REVISTA ESCRITA Literatura e Cultura
revistaescrita.wordpress.com – Número 1 – Março/Abril de 2015
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EXPEDIENTE
Revista Escrita:
revistaescrita.wordpress.com
issuu.com/revistaescrita
Equipe editorial:
Daniel Costa
Daniela Vitor
Flávia Mendes
João Paulo Moreto
Contribuições:
Betinho Paciullo
Letícia Giraldelli
Marcelo Diniz
Marina Laurentiis
Guilherme Nicésio
Guilherme Parra
Pedro Arreguy
Rafaella Meigger
Sarah Salces
Capa:
Eugène Delacroix – Tasso no manicômio. 1839. Disponível na Web
Gallery of Art: www.wga.hu.
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EDITORIAL
Esta REVISTA se organiza com o intuito de fornecer um espaço
aberto de interlocução às pessoas que escrevem, ou que têm vontade
de escrever, e que frequentemente se encontram fora dos circuitos e
das pretensões formais e mercantis da literatura.
Entendemos que escrever é estabelecer diálogo: seja com outros
autores de referência, com colegas, contemporâneos ou simplesmente
consigo mesmo. Frente a isso, esperamos que a REVISTA se preste a
apoiar o exercício da escrita e do comentário a respeito da arte que
nos debate. E que ela seja livre.
E, se diante de nossas carências e objetivos, não pudermos
imediatamente impor uma perspectiva editorial enquanto crivo, essa
impossibilidade é, também, nosso pretexto: é preciso que haja um
espaço de encontro para que haja o exercício de nossa expressão e o
seu debate.
Esta primeira edição propõe uma exploração de diferentes
experiências da escrita, reunindo expressões de identidade, pautas e
dicções particulares.
Ela será uma publicação bimestral temática.
A cada edição, um próximo tema será informado para que os
autores possam elaborar contribuições de livre interpretação, redação
e formato: contos, crônicas, poemas, quadrinhos, etc. Além disso, ela
contará com entrevistas de personagens das cenas artísticas da região:
atrizes, músicos, escritoras, produtores, etc.
Dentre os trabalhos recebidos, a equipe editorial fará uma
seleção que irá compor a edição impressa a ser disposta em algumas
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bibliotecas públicas e universitárias. Essa versão também ficará
disponível para leitura online no endereço virtual:
www.revistaescrita.wordpress.com.
Lá, também serão publicados, continuamente, trabalhos enviados
de maneira pontual e de tema livre, além de resenhas sobre bandas,
séries, cinema, teatro, animações e o que mais qualquer colaborador
achar pertinente.
O tema da segunda edição da Revista Escrita será:
MUDANÇA: (mu.dan.ça) sf. 1. Ação ou resultado de mudar(-se);
MUDA 2. Os móveis e objetos das pessoas que mudam de casa ou de
empresas. 3. Transformação ou alteração no estado habitual de algo 4.
Substituição de algo ou alguém por outro; TROCA.
Maiores informações sobre a publicação podem ser esclarecidas
pelo e-mail: [email protected].
Boa leitura e boa produção a todXs.
Equipe Editorial
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ENVIE SEU TRABALHO
A REVISTA recebe trabalhos (em diferentes gêneros) de qualquer
interessadX em colaborar dentro da proposta temática.
Na seleção, serão priorizadas as contribuições de quem enviar
mais de um trabalho, até o limite de cinco. Com isso, esperamos
conseguir expor consistentemente os estilos dXs autorXs.
Seu trabalho deverá ser enviado em um arquivo de Word (.docx)
para o e-mail: [email protected], descrevendo no assunto:
“Contribuição para Edição”.
A formatação do arquivo deve seguir: fonte Arial 12,
espaçamento 1,5 linhas, padrão de margens Normal, papel A4. A
primeira página deve conter um parágrafo de apresentação do autor,
nome completo, pseudônimo a ser publicado (se desejado) e endereço
do site pessoal ou blog.
A próxima edição irá trazer interpretações livres sobre o tema da
MUDANÇA. A previsão é que a nova publicação seja feita na primeira
semana de Maio. O prazo para envio de trabalhos é até o dia 15/04.
O site da REVISTA está aberto para receber contribuições
continuamente para publicação imediata.
Essas contribuições devem ser enviadas através do formulário (ou
por e-mail, no caso de ilustrações, quadrinhos, músicas, vídeos,
animações ou fotografias), abrangendo crônicas, contos, poemas e
também resenhas de livros, bandas, séries, filmes, shows, etc.
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SUMÁRIO
EXPEDIENTE 2
EDITORIAL 3
ENTREVISTA: MARCELO DINIZ 8
JOÃO PAULO MORETO 19
RAFAELLA MEIGGER 25
MARINA LAURENTIIS 31
SARAH SALCES 37
LETÍCIA GIRALDELLI 44
GUILHERME PARRA 51
DANIELA VITOR 57
GUILHERME NICÉSSIO 67
FLAVIA MENDES 76
BETINHO PACIULLO & PEDRO ARREGUY 83
PÁGINA DO LEITOR 86
7
Artigo X: Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer
hora da vida, o uso do traje branco.
(Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem)
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ENTREVISTA: MARCELO DINIZ
Músico, compositor, arranjador e poeta, Marcelo Diniz nasceu em
Campinas, cidade metropolitana do interior de São Paulo, em 03 de
agosto de 1979.
Em sua formação musical, teve influências de todas as vertentes do
rock, da música popular brasileira dos tempos da Tropicália e Clube da
Esquina, que o levou para caminhos experimentais, como o progressivo
e o psicodélico.
Iniciou sua carreira musical em 1995, atuando como tecladista em
diversas bandas do cenário pop e rock da região, passando por
praticamente todo o estado de São Paulo e algumas regiões de Minas
Gerais.
Entusiasta da timbragem vintage, seguiu estudando as várias formas de
síntese e modelagem analógica, além de se dedicar ao estudo teórico
de harmonização; participando de diversos trabalhos autorais, trilhas
sonoras e covers, se mantendo ativo e polivalente na cena musical até
hoje.
O ano de 2010 foi marcado por novos caminhos: - logo em janeiro criou
o blog “O Sonho Analógico”, fazendo uma alusão ao nome do primeiro
disco solo, onde começou a se aventurar nas ondas de escritor,
publicando poesias e devaneios mundanos de todo o cotidiano.
Em 2011, a vertente literária salta, o blog ganha vida e, em parceria
com a editora “A Barata”, publica seu primeiro livro de poesias intitulado
“Entre Sonhos e Muros”, uma edição pequena que esgotou em poucos
meses. Cria também, no segundo semestre, um manifesto cultural
chamado “A ReEvolução Poética”, misturando diversas formas de arte,
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com diversos convidados diferentes, criando uma interação que está
em constante movimento até hoje.
Desde então, publicou mais quatro livros: “Entrelinhas” (2012), “Cem
Poemas Cem Poetas” (2012), “Sonho Cotidiano” (2013) e “Parthenon”
(2014).
O trabalho do artista pode ser encontrado em seu site:
http://www.marcelodiniz.net
Paralelas
(Parthenon, 2014)
Passei um bom tempo
Vendo a vida pelo vão da
janela
Retas que abriam o mundo
Em abrigo escudo
Me deixavam ileso
Vento celeste em azul momento
Abriu o horizonte em pontos
difusos
Agora eram vãos de árvores, dos
fios
Retas distantes
E um frio confuso
...retas paradas
Paralelas
Que separam
Minha visão e o mundo
Paralelas
Onde eu paro
Para ela...
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O músico e poeta, gentilmente, nos recebeu em sua casa para
comentar a respeito da cena literária local, os percalços da publicação
e sua visão acerca da produção de poesia.
REVISTA ESCRITA: Prezado Diniz, agradecemos por ser tão solícito em nos
receber. Gostaríamos de começar comentando a sua produção: você
a enquadraria em alguma escola literária?
Lá vou eu poetizar. Eu costumo brincar que eu sou um poeta do
despretencionismo. Nós tivemos o romantismo, o barroco etc. Eu sou do
despretencionismo: não tenho a pretensão de ser nada além daquilo
que está acontecendo no momento.
REVISTA ESCRITA: Se fossemos observar nessa geração, as pessoas que
escrevem com você ou que você lê, seria possível entendermos algum
estilo, alguma denominação?
Não sei se consigo fazer isso, pela minha ótica. Talvez vocês, olhando de
fora, sejam mais capazes de enquadrar de alguma forma.
REVISTA ESCRITA: Você poderia comentar um pouco a respeito do
processo de publicação de um livro? O que fazer uma vez que o
manuscrito esteja pronto?
O primeiro passo é chegar até uma editora. Seja uma das menores,
undergrounds, que chamamos de independentes, sejam as maiores.
Todas elas estão abertas a receber escritores, cada uma com suas
exigências, seus contratos, seus custos.
Uma editora possui uma equipe completa para diagramação, registro,
revisão. No meu caso, como foi poesia, eles usaram a tal licença
poética, que é admitir os erros na normal culta e que não são erros, são
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propositais. Já um romance exigiria uma revisão gramatical. As editoras
possuem um profissional para esse tipo de serviço.
Meu primeiro livro eu publiquei a partir do meu blog, no qual eu escrevia
poesias desde 2010. No fim desse ano, eu já tinha muitas postagens e
pensei que daria um bom material para um livro. Reuni dali cem
páginas e fui atrás de uma editora.
Procurei uma editora independente, eles realizaram a diagramação. Eu
não quis revisão, pelo fato de serem poesias, um amigo, artista gráfico,
fez a capa. E depois de juntar os amigos talentosos e os poemas,
basicamente saiu o livro.
Meus dois primeiros livros foram publicados por essa editora de São
Paulo, chamada “A Barata”, que tem a particularidade de fazer os livros
costurados um a um, de uma maneira tradicional. Um romantismo que
cai bem com a poesia.
REVISTA ESCRITA: Então não são as editoras quem procuram obras para
publicação, os escritores é quem procuram essas empresas?
Em geral sim, mas também existem esses olheiros, caçando possíveis
talentos.
REVISTA ESCRITA: E a função da editora inclui a distribuição ou apenas a
confecção dos livros?
Existem as duas coisas. Existem editoras que atuam quase como uma
gráfica (quantos quilos de poesia você quer?) e existem as editoras que
fazem o papel do agente literário, organizando entrevistas,
participação em bienais, espalhando o trabalho pelas livrarias etc.
No meu caso, eu preferi não recorrer a esse tipo de profissional porque
eu gosto de ter controle sobre a coisa toda. Eu também tenho meus
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contatos, eu também consigo minhas entrevistas, também consegui a
Bienal (de São Paulo, 2014). Tudo isso sem um agente literário, sem
contar os amigos que vão movimentando a arte toda.
REVISTA ESCRITA: Qual a vantagem de se recorrer a uma editora ao
invés de atuar independentemente via Internet?
Mesmo no caso de um e-book, ter o selo de uma editora dá outro peso
para a obra. Ela fornece as soluções burocráticas para se existir como
artista, seja no disco ou no livro, como, por exemplo, o registro do ISBN.
Isso faz com que você exista no mercado. Basicamente é isso: tudo é
um grande negócio.
Um escritor iniciante pode ter alguma dificuldade em usar a Internet
para divulgar seu trabalho. Demora um tempo para se aprender o que
e como usar. Nem eu mesmo posso dizer que eu sei, mas quando penso
em lançar um livro eu já sei como usar as redes sociais e outras
ferramentas para vender metade da edição.
Geralmente o que eu faço é seguir os que me inspiram, observando
como o Lenine trabalha as redes sociais, como o Nando Reis as utiliza,
Humberto Gessinger, Oswaldo Montenegro etc.
É preciso se espelhar nas referências para seguir um caminho, um
caminho honesto, pelo menos.
Eu sei que eu estou misturando música e literatura, mas é que é tudo
uma coisa só, tudo o mesmo Diniz.
REVISTA ESCRITA: Existe uma cena cultural de literatura na Região
Metropolitana de Campinas?
Existe. Em toda região. A cena existe, nem sempre de forma reunida,
mas sempre existem as pessoas interessadas pela leitura.
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Em Campinas existem alguns movimentos literários e encontros de
poetas. Aqui, nós temos o Portal do Poeta Brasileiro, que possui a editora
que publicou meu terceiro livro, “Sonho Cotidiano”, chamada
“Iluminata”. Eles fazem reuniões mensais, geralmente nas segundas-
feiras.
Também existe a Parada Poética, organizada por um pessoal da
Unicamp, que abrange quatro cidades e contempla não só o poema
em si, mas a poesia no reggae, no rap etc. Ela acontece geralmente na
Casa São Jorge, em Barão Geraldo.
A gestão pública também tem promovido muita coisa por meio da
Estação Cultura, Estação Guanabara, mas ainda falta um olhar mais
destacado para os literatos da região.
REVISTA ESCRITA: Nessa cena, quem são os leitores dos poetas além
deles mesmos uns dos outros?
Isso realmente acontece muito, essa formação de um círculo. Eu
particularmente não sou muito enquadrado nessa sociedade dos
poetas, porque eu tenho esse lado musical. Existem as pessoas que
conhecem o Diniz, tanto pelos discos quanto pelos livros.
Mesmo entre os poetas, são muitas pessoas. Há um grupo muito grande
por aqui.
REVISTA ESCRITA: Excluindo-se a agenda das políticas públicas, o que
falta para o fortalecimento da cena literária?
Essa é uma boa pergunta. Não sei exatamente o que falta, mas algo
que não se vê muito são artistas de fato. Existem pessoas que
escreveram um livro de poemas, mas não são poetas. Por exemplo, um
médico que decide publicar. E que, às vezes, é até muito bom, mas
não é alguém que vai jogar a cena pra frente.
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Então o que falta mesmo são artistas, escritores, poetas, esse pessoal sair
de trás do muro e dar a cara ao tapa, ao beijo.
REVISTA ESCRITA: O que significa “levar a cena pra frente”?
O que eu quero dizer é que não basta ser formado em Medicina e
escrever alguns poemas. É necessário o sujeito formado em Filosofia,
Letras, que tem algo a dizer com a poesia. Não são só poemas, são
mais poemas.
Não só na cena literária, mas na cena musical também. Muitas vezes
vemos pessoas que estão montando uma banda porque tem aquela
arte dentro de si e gostam de tocar numa sexta-feira à noite. Aí surge
uma questão delicada, pois essas pessoas estão ocupando aquele
espaço.
REVISTA ESCRITA: Então a apropriação dos espaços culturais para o
hobbie e o entretenimento pode ter banalizado o discurso artístico?
Também, mas não só. Talvez a crítica deva ser levada aos artistas
também. A falta das pessoas prontas a dar a cara ao tapa ou ao beijo,
banaliza mais.
A arte também é entretenimento. Ela contempla isso e outras coisas. Às
vezes a função é chocar, fazer chorar, fazer pensar, mas também para
animar e entreter. Nesses casos, a arte como hobbie também é válida,
mas faltam aparecer os artistas do choque, do choro, do pensar etc.
REVISTA ESCRITA: Por que a arte tem que fazer pensar?
Eu só poderia dar uma resposta muito pessoal. A arte tem dois
caminhos: fazer pensar e fazer chorar, por alegria ou tristeza. Se ela
atingir um desses dois lados, para mim, pessoalmente, ela é de verdade.
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REVISTA ESCRITA: O que você registraria na cena da região, entre
músicos e escritores, que é apreciável nesse sentido que você
descreveu?
Tem muita gente. Na música temos o Fabiano Negri, um produtor que
tem feito muita coisa. O Amyr Cantusio, que não posso deixa de citar
como uma grande influência. Quando eu vi ele sozinho num palco eu
percebi que bastava um cara e um teclado pra fazer tudo o que tem
que ser feito. Ele possui um trabalho gigantesco que já vem desde antes
dos anos 70.
Na parte da literatura há um escritor chamado Lenine Rocha, um desses
que não se dizem poetas. Mas é um cara que já tem 5 livros. E esse
pessoal do Portal do Poeta Brasileiro que reúne poesia beat, poesia
romântica, poesia de protesto, etc.
REVISTA ESCRITA: Olhando para toda essa produção, seria possível
caracterizar um movimento, tal como no passado pudemos nos referir
ao Romantismo, Modernismo, Concretismo etc?
Nessa época em que se estabeleciam tais rótulos, a informação não
possuía a velocidade de circulação que possui hoje. Os que abriam a
boca eram os poucos donos de jornais e estabeleciam a verdade do
momento. Certamente, na época modernista existiam os concretistas
fazendo alguma coisa, apenas sem visibilidade.
Você não precisa se enquadrar no mainstream, você está no mundo. E,
por si só, isso já basta. Mas você me pegou num dia abstrato.
REVISTA ESCRITA: A respeito da produção dos poemas. Existem
exigências técnicas?
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Não me prendo a elas. Devem existir, coisas como o Haikai que deve ter
três frases curtas que parece um pouco aquela coisa de “três pratos de
trigo pra três tigres tristes”. Mas eu não me prendo para fazer os meus.
Não sei se ela é boa ou ruim, mas ela flui. Acho que ela quem me
escreve.
Mas devem existir regras, embora nada do que eu esteja falando seja
uma verdade absoluta. Como diz o Mário Sérgio Cortella, as pessoas
estão em constante mudança.
Os poetas do século passado usavam muito os dicionários de rimas, mas
atualmente – sem querer falar mal dos caras que fazem uso dessas
regras – isso me soa como comprar o jeans já rasgado da loja para ter a
rebeldia. Temos regras pros rasgos também.
É por isso falei que eu sou um poeta do despretencionismo. Talvez eu
esteja lançando um movimento e devamos fazer uma semana de arte
dos despretensiosos.
Eu acho que a poesia não é aquilo que sai no papel. Pra mim, a poesia
é um estilo de vida. Nesse sentido, ela não tem regras, só é necessário
seguir um caminho e ele vai se clareando, seja para trás ou para frente.
REVISTA ESCRITA: A sua proposta, em ser despretensioso, não entra em
contradição com a necessidade colocada por você de que a arte faça
pensar?
Aí que está, isso é uma grande mentira. Eu sou despretensioso só no
discurso, é uma pista falsa para você se perder no caminho. Uma pista
tão falsa quanto todos os outros rótulos.
REVISTA ESCRITA: A poesia exige um pacto de sentimentalidade entre o
texto e o leitor?
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Talvez a sentimentalidade seja necessária para o efeito que eu pretendi,
mas todos os leitores sempre vão estar sentimentais de alguma maneira,
algo irá bater, mesmo que seja o ódio do poeta.
As pessoas são diferentes, as cabeças são diferentes, o mesmo texto
sempre vai provocar reações diferentes.
REVISTA ESCRITA: A sua poesia se refere muito ao cotidiano. A descrição
segue e antes dela realizar suas implicações, você coloca alguma
imagem de fuga e dispersão, como, por exemplo, se perder no vento. O
cotidiano pede por uma fuga? Ele é insuportável?
Às vezes sim. Não sei se sempre. Todos nós vivemos no mesmo cotidiano,
cada um do seu jeito, e às vezes ele é massacrante, um leão engolindo
tudo. Mas, às vezes, você pode passar a mão na juba do leão, limpar
alguma coisa caindo do queixo, e isso é a vida: tem dias em que o leão
está bravo, tem dias em que ele está manso.
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JOÃO PAULO MORETO
27 anos, natural de Campinas (SP), apaixonado por
música com essência (ou pela essência da música), pela
família, amigos e natureza. Não sou escritor, escrevo por
desafogo e pelo ímpeto de arriscar.
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ISAQUE
Isaque é um garoto pobre, gordo, que usa óculos fundo de garrafa e
possui dentes encavalados. Isaque banha-se todos os dias com ódio e
exala o aroma da morte. Hoje é dia de apresentar seu trabalho no
colégio e ele treme frio, expor-se significa ofensas, xingamentos,
apelidos, brincadeiras, essas coisas que Deus não se preocupou em
limitar nas crianças em suas vastas imaginações ingênuas, ou que ao
menos deveriam ser ingênuas, e que por consequência culminam em
uma série de traumas a somar à sua adolescência que logo haveria de
vir. Encontra-se, nesse momento, um biscoito em sua boca e ele não o
mastiga, deixa dissolver lentamente. Em situação comum, Isaque
correria para um canto engolir rapidamente o biscoito na fé de não
levar a surra de seu pai que cedo ou tarde, por esse motivo ou por
outro, o faria, e marcaria seu corpo de criança mais uma vez. Mas hoje
não correu, esse biscoito era especial e sua degustação, assim como
sua consequência, era de seu intento que viessem a acontecer,
gostaria de apreciar cada olhar de ódio do pai e absorver em seu
âmago cada sensação da dor. Para sua frustração, nessa manhã nem
seu pai nem a surra deram as caras.
Descer as escadas, acender a lanterna, conferir tudo que deve haver
em sua mochila e ir ao colégio. Isaque detêm-se frente ao espelho e se
admira. Olha além do que os olhos podem ver e agradece a Deus pela
dádiva da vida, agradece por cada minuto que ele recebe
misericordiosamente do seu Senhor, ele que é falho e nem mesmo
merecedor de tal bondade, oh Deus, tudo através de você vem a ser e
sem ti nada seria. Abaixe a cabeça moleque filho da puta, na presença
de Deus deve se portar como gente e não como esse merda que você
é, não criei filho para não ter modos e me fazer vergonha, quando
chegarmos em casa arrancarei lascas de sua pele para que nunca
mais se esqueça das lições que te ensino seu merda, oh pai, perdoe-me
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por esse filho que trouxe ao mundo, antes houvesse morrido quando
criança e seria um a menos para lhe fazer irar-se nos céus, há de ser
obra do demônio, maldita criança. Enquanto que agora, de cabeça
baixa, Isaque rezava em seu coração, Deus, meu querido amigo,
perdoe papai, ele não sabe o que está falando.
Fechar bem a mochila, pentear o cabelo, subir as escadas e despedir-
se de seus brinquedos no quarto antes de sair. Hércules, você não tem
um braço, mas eu te amo mesmo assim, o amo tanto, tanto, hei de
achar seu pequeno bracinho ainda, quem dera eu ter dinheiro para
poder comprar um bracinho para você, ou até mesmo ceder meu
próprio braço, eu tenho dois e pouca falta me faria, exceto hoje, mas
você não viveria com meu braço, de tão pesado e maior que seu
corpo você não poderia mover-se e então acabaria por morrer de
fome ou frio, mas jamais te deixarei morrer meu pequeno, ai como te
amo, porque?, porque Pai você permite que seus filhos fiquem sem
braços, você que tudo pode e que nada há que não possa fazer?, oh
Pai, ou será que não sou capaz de enxergar com clareza suas divinas
provas de amor e cuidado?, deve ser culpa minha, sim, eu não deveria
ter perdido o bracinho de Hércules, eu sou culpado pelo sofrimento
dele e devo pagar por isso, maldito pecador que sou. E você Eva, tão
linda em seus cabelos vermelhos, você está muito linda nesta manhã,
meus parabéns, você notou como Hércules está a olhá-la com um olhar
encantado, você notou? Olá Eva, você carrega um sorriso que traz mais
sentido à minha vida, linda donzela, você me acompanharia para um
café? Ah, imagina!, era só o que me faltava, cale a boca seu sem
braço, seu deformado, você acha que eu andaria por aí com você
assim sem braço, você nem mesmo poderia carregar nossos cafés ao
mesmo tempo porque você tem apenas um braço seu anormal hahaha
você deveria se matar e deixar a terra somente para pessoas perfeitas e
lindas assim como eu, seu horroroso, seu gordo, baleia assassina, quatro
olhos, seu boca deformada, você deveria morrer seu deformado.
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Calma meus queridos brinquedos, não façam isso, no novo mundo de
Deus haverá espaço para todos, para as pessoas bonitas e as
defeituosas, porque aos olhos de Deus somos todos iguais, até mesmo
eu, mas agora preciso ir, hoje irei aprender muito na escola, mas hoje
irei ensinar também, amo todos vocês, amo muito mesmo,
principalmente você Hércules, mesmo assim como você é. Respirou
fundo e sentiu medo.
Entoando cânticos de louvor
abaixo de um céu cinzento
sou pura luz
e dor
âncora, de um pó ao devido pó
Uma aurora, uma noite fria
uma interseção
Vazio
Isaque é um pequeno anjo, metade criança metade destino, ele
caminha sozinho e seu coração transborda amor.
Conferir tudo que há na mochila, não se atrasar, amar, perdoar.
Enquanto caminha, observa os cachorros que brincam livres, os
pássaros a voar, o verde das árvores, sente a brisa fresca do vento em
seu pequenino rosto delicado, faixas, o asfalto, marca do homem em
uma terra perfeita, um registro, parasitas. Ao longe o soar do sino doze
vezes na catedral determina metade do dia e ele volta a sentir medo,
então relembra as consoladoras palavras, “mil cairão à tua direita e dois
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mil à sua esquerda e não serás atingido, vá em paz”, mas conversou
com seu coração, Antes não houvessem três mil mortos ao meu redor e
então ficaria eu tranquilo. Mas que sei eu da vida, mero mortal
pecador, darei a Cezar o que é de Cezar e deleitarei ao colo do meu
amigo Senhor, bondoso Deus. Isaque carrega em sua mão uma
pequena flor e o contato suave e delicado da rosa o protege dos
olhares assustados das pessoas com que cruza, estas espantadas com
sua assombrosa feiura, ele acostumado a sentir-se a escória da
humanidade, e num ímpeto de raiva enfia a flor na boca e a mastiga
violentamente, seu sumo pegajoso, como se estivesse a sentir sangue
escorrer por entre os dentes, não precisava mais da proteção da flor,
queria apegar-se ao ódio de cada olhar cruzado, havia atingido um
estado divino de existência, Seja feita a vossa vontade Pai e também
sua vontade pai.
Papai, cadê a mamãe? Mamãe... sua mãe, aquela vagabunda viciada
deve ter fugido com algum outro viciado e nesse momento devem
estar fodendo como dois cachorros de rua em algum beco por aí. Ah,
não me olhe com essa cara de espanto, pequeno, e nem cite mais o
nome dessa vadia nesta casa ou irei arrancar seus dentes dessa sua
boca torta, seu monstrinho, e toma esta pelo nome que citou, engula
este choro ou te darei reais motivos pra chorar, devia agradecer por eu
te corrigir, pivete, pois se cair nas mãos de deus conhecerá o
verdadeiro fogo do inferno, ajoelhe e reze implorando perdão.
Avistou a fachada do colégio, nuvens, sombra. Mochila, a lição feita, nó
na garganta, a boca seca, gosto amargo de uma vida doentia
gravada em seu corpo, seu coração e sua alma. Saudade da mãe.
Isaque é um ponto inicial, é toda a circunferência, o desfecho e o
conteúdo desse ciclo, depois tudo novamente e então mais uma vez,
ele é nosso vício. Ao dirigir-se ao portão de entrada, reviveu em sua
memória o dia em que seu colega de classe encontrou seu poema em
sua mochila, Ah fofão, deu pra escrever agora, foi?, hahaha pó é o que
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você deveria cheirar para emagrecer seu rolha de poço, toma, engula
essa porra desse papel, coma essa merda que você escreveu agora ou
vou deixar sua cara ainda mais torta e espalhar para todo mundo que
sua mamãezinha fedida anda dando para todos os pais do colégio,
anda, coma seu merda!!! Isaque não mais vê seu amiguinho de escola,
ele era bem mais velho e já se formou, e fica agora a imaginar como
anda a vida do menino, Será que continua assim tão agressivo, tão
sozinho?, espero que esteja bem, já o perdoei, talvez meu poema tenha
mesmo sido um tanto irritante. Mas, ainda sentia o gosto do papel em
seu estômago e transpirava seu conteúdo, abriam-se seus poros um a
um e seu suor sofrido interagia com todo o universo, tocando cada um
dos mortais que habitam a terra, agora ao sentir novamente a dor
dessas palavras e depois em suas consequências que virão, pois todos
juntos somos um, e não há quem não compadeça do sofrimento de um
semelhante como também não há quem não seja culpado por tal dor.
Isaque, eu tremo ao escrever essas linhas, choro contigo e lhe imploro
perdão.
Percorrer todo o primeiro andar, a porta automática, subir a rampa à
direita, três bebedouros, quadros de avisos, Olha o anormal chegando
hahah, fé, esperança, bondade, Ser chamado de anormal é pesado
demais até mesmo para uma criança, pensou, laboratórios, a biblioteca
vazia, a sala da garota que amava, oh nunca foi capaz de olhá-la nos
olhos, imponente cabelo vermelho, outra pequena escada, o refeitório,
enfim sua sala.
Há vida no deserto
como há de ter luz na escuridão.
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Amém
Oh Pai, abençoe mais esse dia de aula e preze por cada alma que aqui
está, perdoe meus amiguinhos que não são capazes de enxergar o
valor que há de ter em mim, perdoe meu papai pelo que estiver
fazendo agora e perdoe meu mau entendimento das coisas, te amo,
amém.
Isaque tem doze anos e a idade de toda a existência, e é belo como
nunca alguma criatura ousou ser, nem os lírios dos campos, nem as
vestes de Salomão, não teve início sua existência e tampouco haverá
fim sobre o que veio a ser, ele caminha pela sala, há um riso imaculado
em sua boca e lágrimas em seus olhos. Ele detém-se frente à sala, toda
a turma já sentada, a professora sem notar, ainda, sua presença. Houve
um segundo de silêncio em toda a terra. Isaque abriu sua mochila,
retirou a 9mm que lá estava, engatilhou-a com perfeição de quem
muito havia treinado e iniciou os disparos. Uma única bala tinha
endereço certo.
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RAFAELLA MEIGGER
Rafaella Meigger publicou seu primeiro romance aos 17 anos
de idade, desde então, vem escrevendo em projetos
independentes e curtas, publicando contos e crônicas no
blog “Me Apanhe No Centeio” e lançando novos livros. Sua
relação com a escrita é vista de longe como parte de sua
personalidade, desde como leva o estilo de vida beatnik, até
por sua tendência sapiossexual.
Amante da expressão corporal e da imagem nas palavras,
da cannabis artística e de costumes cotidianos inusitados, ela
espera alcançar não só mentes ainda trancadas, mas
também se conectar com todas aquelas já em poeiras pela
explosão da sabedoria avançada em suas elegantes páginas
fortemente metafóricas, dadaísticas e de puro tesão ocular.
meapanhenocenteio.wordpress.com
COMPRE SEU ÚLTIMO LANÇAMENTO EM:
http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.
aspx?filesFolder=N1420175167535
CONTATO: RAFAMEIGGER/FACEBOOK
26
VENENO
Me enfiaram em uma dessas cabines de táxi com o teto alto. A
claraboia escura ainda da noite me deixava ver as estrelas no céu,
deitado no estofado cinza. Achei que ia morrer, meu estômago se
contorcia como um quadrado de queijo sendo aquecido.
A TV do hospital rodava um filme policial sobre médicos. Era como fazer
tigres e coelhos assistirem aos documentários de caçada animal. Você
estava sendo avisado ironicamente que morreria como corpo já
descartado na fila de espera.
O desenho da canabis girando no branco do meu olho vermelho
sempre me diz a profunda e inocente verdade, vinda de fora para
dentro e separando os incríveis de completos infelizes insábios.
Vomitei meu coração gelado por volta das sete da manhã, caiu no
chão quente e quase senti cheiro de fritura, até que me fizeram engolir
de volta, e dessa vez, sem pensar no que você havia me feito.
Voltei para casa e rasguei minha carta de despedida. A morte hoje
seria sua, com direito a enterro das suas roupas e fogos na sacada com
seu nome formando palavras de ódio.
27
EU PENSO JACK KEROUAC.
Existe uma armadilha em camisas de botão e algodão estampado, no
cheiro de maçã, no esfaquear de uma colher aquecida em chama de
isqueiro. Espere por mim em um sábado iluminado de fumaça cinza
poluída das nuvens barulhentas lá fora, e torça para que aqui dentro eu
não esteja fardada de silêncio com cinco estrelas militantes. Teremos
veneno no café dos vizinhos homofóbicos para almoçar, placas
iluminadas de motéis caídos para jantar e, amor em cuspes
lubrificantes, bordas de pizza que refletem nossos rostos na gordura
amarelada da fome que três baseados devoram. Não mais carros
fechados mas bicicletas descendo avenidas em direção das praias
lotadas, de garotas de biquíni e cachorrinhos correndo de olhos
vermelhos pelos cigarros engraçados que seus donos assopram em suas
caras, dançando e cantando na areia áspera sem imaginar o quão
breve é estar vivo, e o quão eterno é viver. Vivendo, vejo corpos suados,
colados, vibrantes e nús. Não mais cigarros em caixinhas mas cocaína
alinhada no barrigão de sete meses da garota solteira e grávida,
alucinada ao extremo para dar a luz e despertar do seu novo mundo
fora de si em caminho ao seu mundo novo dentro dela mesma. Hippies,
protestantes, garotas de cabelo raspado, mini saias, garotos de unhas
pintadas, tatuagens no rosto, rebeldes precoces ou adultos infantis
demais se perguntando em livrarias da cidade o que era a Geração
Beat para um Cassady já falecido, enquanto ele respondia no lamentar
da sua espiritual morte e vida como um sonho já acordado: “Todos
vocês são a geração beat. Nós somos e lutamos pela sua base, para
que seja quem se é, e daqui pra frente, tudo se prolonga de nós”, assim
que meu Kerouac ordenou que escrevêssemos com a alma, e Ginsi se
comprometeu a falar de cus, genitais, barbas e heroína com a mesma
delicadeza que se fala da vulgaridade do amor, da fé, do ardor e das
lágrimas.
28
TE VI PASSAR
Minha miséria de você se esconde entre a sola e a meia de meus
sapatos confortáveis sapateando em respirar monótono pela poça
dágua com todo reflexo da chuva sobre mim. O que o fogo estourado
de seus pedais metálicos querem dizer quando escorrem na pinta do
meu rosto lágrimas minhas por você e suas por um enigma, que salta
em liberdade dum lábio inchado até a gola de seu casaco quente?
Quente como o rolo de um filme para te conservar de tanto rancor
armazenado em sangue congelado que se quebra, trinca, imitando
gelos afundados em leite morno pela manhã que nunca se acorda,
para não ter de abrir as cortinas ou os botões do macacão laranja de
prisões acorrentadas no seu pulso sem batimentos, e, sem qualquer sinal
da pulseira que te dei por te sentir mais que a comida que iria para meu
estômago com esses últimos trocados no meu jeans sujo. Da longa
viagem.
29
PRIMEIRO POEMA SEM SER ORLOVSKY
Umedecida boca que sem seus ácidos já me alucina.
Fundos olhos de real visão enigmática.
Mãos sujas e unhas curtas de produção precária da vida.
Como podem 53 horas serem suficientes para se perder num sincero
amor e insuficientes para criar um fantasioso conjunto de versos?
Das colinas de pinheiros, dos cavalos feridos
Do sol florescente em cores de rosa
Que nasce
No seu cochicho sonolento de paixão,
Nada.
Mas a beleza no mistério das suas questões da morte que foram
descobertos na cozinha farta...
Jamais pela sua magia espiritual
Mas a resposta na pinta que mora no nariz
Me marcando o exato momento em que me fez ser de alguém.
Num primeiro poema.
30
AOS CAVALEIROS:
Bunda apoiada e pernas abertas na mesa branca de jantar. Acordei
essa manhã sem me lembrar da demolição que a parede fazia, perdida
na ressaca, enquanto mastigavam com eco seus cafés da manhã em
volta do meu santuário sujo de porra. Mal sabiam.
Me equilibrei na janela do banheiro enquanto a banheira transbordava,
pensei ter ouvido meu nome mas não encontrei sua boca em lugar
algum me chamando. Será que deixamos cair lábio e coração no meio
da bagunça?
A casa esquecida estava enriquecida de arte e isso caberia a mim
também. Chaminés, terraços e escadas encantadoras me esconderam
o túnel da orgia. Lá de baixo éramos como fogo na brasa, fitando a lua
encaixada no final de toda a torre de tijolos.
"Mulheres, meu pau está aqui! Mas meu saco já está bem cheio..." e
todas elas chuparam um canavial de rolas, gozando libidos e frases
roubadas de cavaleiros que soltavam genialidades sem assinatura, de
tão bem confundidos pelo som de melhores vozes da música da morte
salpicada de vida.
31
MARINA LAURENTIIS
Marina Barzaghi De Laurentiis, 26 anos, lua ascendente em
touro, apaixonada por versos, economista de formação,
poeta de coração. Encara a escrita como um exercício de
conhecimento de si e da relação entre seu mirrado corpo e a
imensidão do mundo. Recém-ingressante no curso de Letras,
da Universidade Federal Fluminense, em que pretende
aprofundar seus conhecimentos em literatura e escrita, a fim
de externalizar com maior clareza e precisão o sentir que, de
tanto, faz doer até a alma.
32
MAL INFESTO
Pelo fim das tradições
contradição
co-traduções
e complexo de colônia
que compõe
o corpo cansado
de esconder
as marcas de
facão
de cabra macho
galante
herói
conquistador.
33
ECONOMÊS
Desemprego
palavras
a meu prazer.
Escolha
irracional
de quem sente
a força risível
que escreve e
que -juro-
Jura!
Ex - anteriormente
atual, presente
produção d'linhas.
Montagem.
Semente
que
re-vira em texto
e supre a
estrutura
nenhuma!
Estado
que infla
e câmbio
de ideia
efeito de gente
de entorpecente.
capital do sonho
tomada no espectro
de
expectativa
exposta e
esquecida no
vão
entre o
mundo e a
mente.
34
BABY, FUI PARA O ESTRANGEIRO E NEM
NOTEI!
Você não sabe da última: lembra daquela menina de olhos apertados
em óculos de muitos graus? Aquela que parecia um camaleão, com
roupas que misturavam no ambiente e um jeito de falar que qualquer
um entendia. Lembra? Morreu. Daqui do estrangeiro pude participar do
enterro, transmitido ao vivo pelo novo aplicativo que lançaram com a
promessa de não se deixar passar a morte de um ente querido em
branco, "de qualquer lugar do mundo!". Branco mesmo estava o rosto
da menina! Que nem papel de caderno novo, pedindo para ser
rabiscado. Nem a roupa, notadamente escolhida para a ocasião,
(dizem na rede que ela mesma escolheu. No último suspiro, dizem) nem
a roupa disfarçava a brancura sem vida. A polícia investiga. Suicídio
parece. Era cristã. Foi parar no sétimo ciclo do inferno. Alguns cristãos
ativos protestaram por conta da cerimônia digna de quem é digno do
reino de deus. Suicídio não pode. Outros tantos, igualmente cristãos,
argumentaram que as regras para a subida aos céus deveriam levar em
conta as mudanças sociopoliticoeconoculturais: Diante da cronicidade
da vida, dos avanços da medicina, o suicídio em muitos casos- mas
nem tantos- poderia ser o mais próximo da vontade do Senhor. Foi um
embate geral! Coisa de louco. Até não cristãos tomaram partido,
defendendo fervorosamente suas posições. A irmã, cansada de olhares
acusatórios e também dos complacentes, a irmã parou de ir à igreja. O
padre levou advertência, “queria ver se fosse um padre qualquer, sem
essa rede de influência que ele tem. Seria bem pior”.
A menina foi enterrada em vestido vermelho-terra, sem óculos e com o
pescoço enrolado em echarpe marrom (um luxo!!). Já sabia onde iria
parar.
35
20 DE MAIO
Sinto dificuldade de mover qualquer músculo digno de nota.
Vi o mar.
Ventava, não entrei.
Sal grosso pratiraurucubaca.
Penso que não sei mais o que é digno de pensamento.
Quero dizer,
outra noite eu e B. passamos as horas discutindo o sexo dos elefantes.
Pode imaginar essa cena? Pode?
O que eu sei é que decolei rumo à janela da varanda que tem cidade
ao perder da vista
e ainda não pousei.
Lembro de ti. Esqueço.
Não vale as perninhas da galinha que coloquei no forno a pouco.
Dri vem jantar. Ficou de trazer o vinho.
Faz frio. Trilha sonora e perfume e uma gota de...
Ah... não se faz mais felicidade como antigamente.
36
DOR
Eu sei que não sou
uma louca-de-pedra
doida-varrida
a caminhar
pelas ruas
escuras
alucinada
a rastejar
que nem bicho
no lixo
sem rumo, perdida
a espalhar
minhas verdades
cruas
por puro capricho
e procurar
ensandecida
pela cidade
um punhado de
qualquer coisa
que alivie
a dor.
37
SARAH SALCES
Sarah acredita que o mundo precisa de mais mágica.
Portanto, a cada dia, tenta transformar sua rotina, seja com
um sorriso, uma conversa, uma poesia. É economista, mas
não economiza na hora de investir em amizades, livros e
paixões. Seus amigos dizem que ela é uma bióloga enrustida,
pois ama se jogar na natureza e porque descobre um
bichano diferente em cada folha.
38
COR E MOVIMENTO
Encontro nas árvores minha palheta de cores
E com ela pinto meus poemas
Não só os escritos
como os vividos dentro da alma
Cores que vivificam o preto e branco da existência
Sem elas, como tudo seria?
Tal como alguns animais que não contemplam o existir
Mas apenas o movimento que dele surge
e que no bicho vem a convergir
Mas eu, com a minha imóvel palheta de cores,
já movo o mundo dentro de mim
Dela extirpo o movimento
do qual eu me transformo.
39
FELICIDADE E SONHO
Observações que não pude deixar de compartilhar após a leitura de
"Amar, Verbo Intransitivo" de Mário de Andrade.
Lendo um livro do Mário, vi como é sutil a forma que o amor nasce, bem
como o jeitinho de despertá-lo. Para mim, as sutilezas, os detalhes, as
pequeninas coisas, muito significam e impactam...
Entrementes, os conceitos de felicidade e de sonho também são
abordados pelo autor, com riqueza de sentido.
"Eu não sei se alcançar a felicidade máxima, extasiar-se aí, e sentir que
ela, apesar de superlativa, inda cresce, e reparar que inda pode
crescer mais… isso é viver? A felicidade é tão oposta à vida que,
estando nela, a gente esquece que vive. Depois quando acaba, dure
pouco, dure muito, fica apenas aquela impressão do segundo. Nem
isso, impressão de hiato, de defeito de sintaxe logo corrigido, vertigem
em que ninguém da tento de si."
"impressão de hiato, defeito de sintaxe", sensação que já te acomete
durante o ataque da felicidade, pois a noção de que aquilo poderá
passar já causa um certo pesar dentro de si, pelo passageiro.
"Porém o homem-do-sonho permanece intacto. Nas horas silenciosas da
contemplação, se escuta o suspiro dele, gemido espiritual um pouco
doce por demais, que escapa dentre as molas flexíveis do homem-da-
vida, que nem um queixume de um deus paciente encarcerado.”
Suspiros... Múltiplos... Do sonho, sonhos, que carrego no peito, aonde
quer que eu vá... Jamais petrificados pelos ataques de desesperança
que vem diariamente... Tal qual um deus encarcerado, que apenas
aguarda seu momento para reinar belo, após liberto e pleno.
40
DO NADA
Assim de repente
de maneira fugaz
Sente-se
algo
Então sente-se
e sinta-se
a vontade
Justapostas e
entrecortadas
as palavras tentam
espiar
e assim decifrar
quem sabe um
neologismo criar
para poder
externar
Aquilo que inédito
se formou
Rouba o sono
Tira a rima
é a sina
enruga a testa
coisa besta
Mas tão simples é
O indefinido
definido
nas vielas da
corrida da vida
O novo assusta
mas também
perscruta
o coração
pensador
questionador
voador
Desta vez mistério
não se fará
pois o todo
culpado
de tudo
disto
nada mais é
que indefinido
Do nada
assim se fez
mais um suspirar
transbordar
aliviar
um sussurro da
alma...
apenas.
41
NOVO QUADRO
As pessoas não sabem para onde ir
As pinceladas no quadro nem sempre salvam a tinta despejada
E não há borracha que apague tintas escuras
Os sonhos estão mal entendidos
não se sabe que através deles
uma nova moldura se faz
e nova multiplicidade de cores surge espontaneamente
Mas as pessoas...
continuam procurando no quadro de tintas ressecadas e obscurecidas
Basta um novo piscar de olhos
e tudo se faz novo..
Mas a disposição...
onde está?
42
FUTURO
Futuro
Com você
ele voltou a existir
De repente
o que eu estava congelando dentro de mim
Começou a sublimar
Planos
por uma vida sonhados e abandonados
Reconstruindo-se numa fôrma não fantasiosa
mas realista
Medo
não me afasta de você
Mas, antes, me aproxima com cautela
Cuidado
consigo e comigo
Pois não quero um sofrimento passageiro
43
Daqueles que machucam e que depois deixam o vazio do partir
Quero sofrer diariamente
A tua ausência enquanto te espero no entardecer na sala
Sofrer dolorosamente
ao parar de te abraçar em todas as manhãs
E sentir também as dorzinhas cotidianas
aquelas que acometem qualquer "dois"
E que são logo dissipadas por mil beijinhos
de carinho e carinha de desculpas
Assim...
Duvido.
Que saibas que queres isso para ti.
E nessa dúvida,
meu pensamento presente volta a soprar
para longe o futuro... Cada vez mais ausente.
44
LETÍCIA GIRALDELLI
“Eu sou mais do que essa menina de cabelos castanhos
ondulados. Eu sou mais do que o batom vermelho que não
sai de meus lábios. Eu sou mais do que o blush que deixa
minha face menos pálida. Eu sou também mais do que o
modo como acordo: descabelada e sem maquiagem
alguma. Eu sou mais do que as roupas que eu compro
porque eu gosto. Eu sou mais do que meu corpo totalmente
nu. Eu sou mais do que os poemas que escrevo. Eu sou mais
do que o meu sorriso alcança. Eu sou mais do que meus olhos
dizem e mais ainda do que seus olhos me enxergam. Só não
venha me pedir pra dizer até onde eu vou. Até onde sou. Só
não venha me pedir para explicar esse meu desejo de ser
essência e muito mais. Não há palavras, sinônimos,
comparações para me resumir. Talvez eu não tenha um
resumo, talvez minha biografia ficara cheia de páginas em
brancas por falta de coragem de minha parte, ao tentar
fazer com que alguém me entenda. Eu acho que sou amor.
Só não tenho certeza até quando.”
http://nostalgiaetedio.blogspot.com.br/
45
LIBERDADE
Olhou-me sedento, mas manteve-se à distância. Tentei uma
aproximação maior, dei alguns passos em sua direção... Mas ele
minuciosamente esquivou-se. Tudo o que eu podia pensar naquele
momento ecoava em alto som mesmo que dentro de mim: não se vá.
Não precisa ficar feito um compromisso firmado... Mas agora, fique.
Olhava-me quase sem piscar, eu podia sentir que era recíproca a
vontade de permanecer por perto, mas seus olhos, apesar de sedentos,
sangravam o medo. Eu queria poder te passar algum resquício de
segurança mas eu não podia prometer algo que eu não obtinha
certeza absoluta. A única certeza era: por favor, por hoje fique. Não se
vá, por favor. Não há orgulho. Eu poderia implorar... Mesmo assim, pedi
educadamente, "fique!" Arrastei a gaiola empoeirada, que há anos
estava guardada no porão, desemperrei sua porta e sentei no banco
de madeira enquanto o observava.... O pássaro cantou um hino ao
entrar acanhado entre os ferros enferrujados. Os cadeados nas minhas
mãos uivavam para não serem usados. Arremessei-os ao fundo do mar,
deixei a porta da gaiola entreaberta e cantei um canto desafinado,
berrando amor para mantê-lo por perto. Amar não é posse... Amar é
poder ir e mesmo assim, naturalmente preferir ficar. Cante um doce som
para mim, e então ficarei.
46
GELATINEI
Atrevi-me a vagar pela noite na companhia apenas das estrelas
Acendi um cigarro e lembrei que não sei fumar.
Tossi.
O vento batia forte e eu desejei voar com ele.
Quem voou foi o tempo, olhei no relógio da praça:
Madrugada.
40º compunham a temperatura maluca
Não é Rio de Janeiro,
Não tem mar,
Antes que eu me esqueça
São Paulo,
Não tem água.
Dei um gole da cerveja quente.
Amassei a latinha.
E por alguns segundos pensei em dividir o banco com um mendigo
Pegar emprestadas algumas histórias
a troco de uns trocados pra um lanche.
Voltei pra casa cedo,
O sol derretia as árvores
Que imploravam:
Não
Queremos
Virar
Gelatina.
[....]
Gelatinei.
47
PASSOS REPETIDOS
- Espera mais um minuto?
- Não tem mais o que dizer...
- Não diz. Mas espera.
- Não quero ficar olhando pra você. Dói.
- Fecha os olhos.
- Ainda dói.
O garoto chegou perto da menina que permanecia de olhos fechados,
beijou-lhe a testa, respirou fundo e disse:
- Não precisamos piorar a situação... Correntes quebradas não
machucam, libertam.
- Posso ir agora?
O garoto deu as costas e saiu andando na praça iluminada pelas
estrelas.
A garota ficou.
Como todas as vezes.
48
SUBINDO...
Eu sempre tive a sensação de que algo bom estava pra acontecer. O
vento balançava meus cabelos na rua escura enquanto eu sorria ao
pensar "Algo acontecerá em breve!". Era só mais uma noite boemia... A
mesmice me torrava os miolos crus, mas o pensamento insistia em
sussurrar-me às escondidas: "Algo acontecerá em breve!". Né que
aconteceu?! Enquanto eu esperava o elevador para descansar, após
ter dançado tudo aquilo que não sei dançar, a garota apertou o botão
do mesmo. "Já apertei!" Sorri ao comunicar. O elevador chegou vazio.
Cena óbvia pra uma madrugada fria! Ela também havia bebido um
pouco. Seus olhos não mentiam. Era o sorriso mais bonito que cruzara
meu caminho, eu diria. Fitava-me calada diante do enorme espelho
que refletiam nossos corpos cansados. Era três da manhã. Sua saia era
longa, seus cílios também, a blusa decotada. Cabelos castanhos
meramente ondulados até o quadril. Apertou o oitavo andar. Droga, eu
pararia no sétimo! No terceiro andar a porta abriu e eu quase saí, mas
voltei a tempo de perceber que era uma parada desnecessária.
Alguém que apertou e desistiu... Alguém que apertou os dois elevadores
e o outro chegou mais rápido... Tanto faz... Rimos na minha volta
desengonçada. Que olhar faminto me engolia! Que sede eu sentia
daqueles lábios carnudos! Seriam macios? Minha boca salivava por um
beijo. Sexto andar se aproximava e eu pensava em uma despedida
categórica. Sétimo andar, porta aberta, eu não queria me despedir.
"Saia do elevador comigo..." Pedi educadamente. Os olhos eram
curiosos, o respirar passou a ficar ofegante, mas ela na defensiva
sussurrou ao levantar uma sobrancelha e esticar os lábios: "Eu nem a
conheço..." Eu também não sabia muita coisa sobre ela, minto! Eu não
sabia nada sobre ela... Tampouco o seu nome. Sei que iria descer no
andar seguinte. "Saia comigo..." Repeti. Eu não tinha muita coisa a
oferecer. Eu só queria senti-la perto. Eu queria que ela me acariciasse
49
na sacada, aliás a noite estava estrelada e nós estávamos a sós. Eu
queria que ela me contasse algum segredo nunca revelado. Queria
poder deslizar minha língua onde a fizesse gemer meu nome. Que ela
herdasse meu sobrenome. Entrou no apartamento quieta, mas ainda
sorrindo. A abracei forte, respirei alguns segundos com as narinas
grudadas no seu pescoço. Que cheiro agradável. Que moça
formidável! Peguei um cobertor e três travesseiros. Joguei tudo na
sacada, ela arrumou. Deitamos abraçadas. Encaixou. As três marias no
céu olhavam pra nós e refletiam nossos olhos. Sério! Os lábios eram sim,
macios. O tato dava choque. Arrepios. Afagos. Transamos. Dormimos. Já
se passou um dia após o ocorrido e eu fico implorando em
pensamentos para que ela desça um simples andar para que meu
coração suba mil passos.
PS: Necessito de um marca-passo.
50
SAMBA
No meu sambar do avesso, meio torto e inteiro do meu jeito foi que eu
ganhei a atenção da bela moça.
Gostaria mesmo que por meros segundos entender se sorria tão
contagiante devido achar bizarro ou graça. Mais que isso, gostaria
também, de saber a sua graça. Desejos não me faltavam mas tudo o
que eu conseguia fazer era continuar sambando enquanto a olhava
me olhar. Via-me no reflexo brilhante que me permitiam seus olhos.
Sorria com o teu sorrir enquanto o coração pulava no ritmo do
pandeiro. Os pés continuavam como sempre desajeitados mas não tem
problema ir no samba sem saber sambar. O verdadeiro sambista,
samba com a alma assim que o batuque começa. A gente percebe
quem é feito de samba logo pelo olhar e a bela moça parada no
canto a me fitar.... E eu na roda sem saber dançar... Nós duas sim,
unificamos todos os sambas em um domingo inteiro.
51
GUILHERME PARRA
Guilherme Parra tem 30 anos, é economista, apaixonado por
música em suas diversas vertentes, admirador de cachorros,
lobos e suas variações. Começou a escrever a fim de
contornar sua introspecção e exteriorizar um pouco das
sensações que absorve do mundo.
www.insidewalden.wordpress.com
52
VONTADE
Queria escrever-te os versos mais lindos
Lapidados no íntimo do meu coração.
Com palavras simples, dedicar-te carinhos infindos
Que mostrariam que tu és minha inspiração.
Queria que tais palavras te iluminassem
A ponto de fechares teus olhos para as ouvir.
Que em tua mente diversas cores se formassem
E o que sinto – além do escrito no papel – conseguisses abstrair.
O que eu queria mesmo, em pensamento,
Era segurar sua mão e te abraçar …
E que os versos mais lindos se perdessem com o vento
Para que se propagasse minha vontade de te adorar.
53
QUARTO DE MÁRMORE
“The way your heart sounds makes all the difference…” Dream Theater –
Learning to Live
Junto à janela, olhos sobre a Lua
Ela espera que as lembranças eclipsem
Apaziguando a turbulência interna
Que toma conta de seus sentimentos.
Deitada na cama, esperando o sono
Ela arrosta o teto e tenta entender
As imagens desconexas que surgem
Pela projeção de seus pensamentos.
A chuva que cai do lado de fora
Atravessa o telhado e se amalgama
Às figuras e palavras profundas
Que ali estão dispersas em fragmentos.
Perdida sob um céu de madrepérola
Ela busca razões para ficar
Imune à mensagem em seu silêncio
De longos desolamentos inquietos.
As portas da percepção são abertas
Águas do sono cobrem suas memórias
Cessam as ilusões do coração
E as paredes de mármore se fecham.
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ENTORPECIMENTO
Da montanha mais alta da cidade
Contemplo o frio silêncio das luzes
Retratando a ausência de afinidade
Com alguém: “estan clavadas dos cruces…”
Sopra alto o vento a Fortuna da Morte
E devora em meu ser toda a Esperança
Relegando minh‟alma à própria sorte
De viver como um fantasma em andança …
O vento nada me diz, estremece
A ideia de que penso muito em tudo
Ou que tudo à minha volta me esquece
Em torpor, com a vida adormecida,
Pergunto-me: _ Por que fiz dos meus sonhos
Razão de ser maior que a própria vida?
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SINESTESIAS DA CHUVA
it’s just a litte rain
Debaixo de um pálido céu cinzento
Emerge uma fria ausência que acalma
Debussy projeta a todo momento
Uma indelével chuva em minha alma
Verlaine consente que a chuva caia
Coberta de nevoeiros e gelos
Escorrendo por entre pesadelos
Para que a dor no coração se esvaia
Em essência, sem ninguém a clamar
Byron exalta a chuva e seu cantar:
“Tudo aquilo que flui jamais é triste”
E prazer nas chuvas densas existe
Esperança renascer é sentir,
Em meio à tempestade, um farol.
Se um pouco de chuva torna a cair
Bach me traz sua Ària na corda SOL
upon us all, a little rain must fall
56
ENLUARANDO
É noite. Sob um luar desvairado
Mergulho em um mar de desassossego
O vento sopra mistérios – calado –
Entre os quais, indo a medo, eu navego.
Meu devaneio ostenta solidão.
Entre o que o vento traz e a hora
Minh‟alma estremece, perde a razão
E enluara meu ser enquanto chora.
Tudo o que sou „inda é um grande segredo.
Incerto e triste o coração flutua …
Embora seja tarde, já foi cedo?
Reponto desse sonho em um segundo.
Saindo das ideias, fito a Lua
Nos olhos cujo Amor é o fim do mundo.
57
DANI VITOR
Daniela Vitor, nasceu em São Paulo, em 1979, mas mora em
Campinas há muitos anos. É escritora desde sempre, mas
nunca achou que tivesse uma escrita realmente relevante.
Conforme foi se descobrindo, também descobriu que
bastava que sua escrita fosse relevante para si mesma. É
também esposa, educadora e vê no bailar do Flamenco sua
paz para a alma. Apaixonada por Literatura, sempre voltada
à busca interna e espiritualidade, viu em Clarice Lispector
uma unidade de pensamento sobre si mesma e sobre o
mundo. Hoje, mestranda, também é pesquisadora
apaixonada de Clarice. Percebe o dom da escrita como
uma missão e sonha em poder viver somente disso um dia.
58
MELÔ DA MELANCOLIA
A despeito de tudo o que há de mais belo na vida, hoje acordei azeda.
Daqueles azedumes de nada fazer sentido, de não valer a pena gastar
a saliva, o pensamento, a paciência, a resiliência de ouro. Nada, nada
disso.
Tenho cá meus motivos, mas nenhum deles faz sentido também. Então
apenas aceito o sentimento desprovido de açúcar e emudeço.
Faço disso uma salvação de mim mesma, a fim de aprender o que for
preciso com isso e transmutar logo para uma nova e mais digna
energia.
Este ser sem esperanças nem vontade não sou eu. Só que hoje estou
assim e me deixe assim por ora.
Quem muito busca, corre, aprende, cai, levanta, aprende, desaprende
e aprende de novo, tem dessas coisas: tem dia que acorda exausto das
chatices da vida, como estou hoje.
Uma pitada de revolta de bom ânimo com uma falta de vontade de
entender qualquer coisa. É cansaço só. Se deixar que sinta, isso logo
passa.
Isso porque no fim, já sei também que não passa de uma forma de
enxergar as coisas. E se me faz mal, para que escolher isso como visão
de vida? Não, não quero. É apenas uma brisa cinza, um ar gélido de
desesperança. Talvez até interessante demais para que eu bata o pé
no fundo do poço, assim por puro cansaço do cansaço mesmo, me
agarre às minhas raízes mais positivas de alegria e renasça de novo,
mais forte, mais lúcida, mais consciente, mais serena. E renascerei de
novo e de novo e quantas vezes mais forem necessárias.
59
Gosto de pensar que crise é sinônimo de oportunidade. No mínimo, a
gente cresce. Então crise também é Luz. Não no momento, pois ainda
não bati o pé no fundo do poço, ainda estou lá, tentando entender
alguns sentidos que não fazem o menor sentido, conseguindo me
refazer, me exercitando para ser uma pessoa melhor.
Então me deixe lá. Assim que estiver pronta, eu bato o pé no fundo e
subo. Só quando estiver pronta. Eu sei o caminho, fique tranquilo. Já fui
e voltei muitas vezes. Talvez por isso esteja crescendo tanto.
Eu sei que chegará um dia em que não mais precisarei sentar no
fundinho do poço, quieta e azeda para entender as coisas e aprender,
mas que se dane se hoje ainda preciso disso. Eu assumo minha falta de
evolução e ponto final.
Eu sei que um dia vou olhar para o poço e enxergar somente uma água
pura, cristalina, que mostrará meu reflexo límpido, sereno. E sei que este
dia está cada vez mais próximo. Então tudo está bem, tudo está certo.
Essa lucidez insana às vezes me atormenta, mas acabo achando graça.
Afinal, que outra alternativa é mais alegre do achar graça da falta de
graça? E essa sim sou eu, a alegria desmedida e insana de achar a
graça da vida onde a maioria acha que não tem. O otimismo
exacerbado e irritante de sentir a certeza de que tudo sempre vai dar
certo, de um jeito ou de outro. A esperança sem fim de acreditar que
posso ser melhor a cada dia, que as pessoas podem ser melhores a
cada dia e que o mundo está melhorando a cada dia.
Como hoje não estou sendo eu, me deixe encarar meu lado sombrio,
com toda coragem que me é peculiar, até que se transforme em Luz
novamente.
E cuide de sua vida, não me aborreça. Que das minhas vidas cuido eu.
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MEU BICHO, O EGO.
Hoje acordei desanimada do amor.
Antes que as más línguas se exaltem: não, nada errado com meu
casamento. Digo amor no sentido mais amplo da palavra.
Em qualquer tipo de relacionamento, o amor é bom de fato quando só
se ama e nada mais.
Para usufruir de todas as benfeitorias de amar, é preciso estar disposto,
muito disposto a se desfazer das benfeitorias do ego. Sim, porque é esse
bichinho safado, inerente ao ser humano, que, em sua forma mais
exacerbada, cria expectativas irreais, fere, frustra e faz sofrer
dramalhões mexicanos infundados.
O amor por si só tem só Luz. Acontece que para percebê-lo em sua real
potencialidade é muito necessário trabalhar para que o ego, pelo
menos, se equilibre, e fique guardado numa caixa, sem menores
pretensões. Acabar não acaba, mas é preciso saber domá-lo. Sem isso,
tudo cai numa falta de graça de cinco em cinco minutos, num
desespero ensurdecedor de vaidade.
Eu sei, descobrir isso é motivo de alegria, não de desânimo. Afinal, o
amor em sua forma pura e simples nos contenta só por existir. E querer
mais o que?
O que me desanima é pensar em domar o ego, tão enlouquecido por
satisfação de suas próprias necessidades e entendimentos, tão
pequenos, tão irreais, suburbanos mesmo. E isso me dá uma preguiça,
compreende? Não é desânimo de tristeza, é desânimo de preguiça.
E daí? Quem nunca sentiu preguiça de si mesmo, que atire a primeira
pedra de autopiedade.
61
Hoje quero chuva. Daquelas de ficar em casa, na varanda, olhando a
terra molhada, sentindo o cheiro e lembrando como a infância era boa.
Lembrando de como eu era feliz na ignorância sábia da falta de
conhecimento do meu próprio ego.
Ah, a ignorância... de uma sabedoria ridiculamente exposta à falta de
bom senso, que atordoa, mas faz dormir tranquilo, com barulho bom de
chuva e cheiro bom de bolo depois da brincadeira na lama. Aquele
barro engraçado, a lama, que só os puros entendem o tamanho de sua
grandeza.
A lama, a chuva, minha tranquilidade e nenhum ego. Acho que estaria
bom por hoje.
62
UM DIA
A manhã rompeu o dia, cinzenta, nublada, com um tímido sol que não
deixava definir como realmente seria o tempo. Tempo?
A falta de vontade lhe amargou a boca, seca e sedenta por paz.
O cansaço inundou a casa toda, antes mesmo do primeiro raio daquele
sol, finalmente, definir a que veio.
E então lembrou do transitório, da ilusão da matéria, da injusta justiça
divina. Ainda assim permaneceu azeda.
O cheiro do café lhe trouxe à vida. E sorriu. Cada gota da bebida trazia
um gosto novo ao ânimo que não acordou disposto naquele dia.
Aproveitou os últimos minutos no templo de seu lar, no aconchego do
sofá que abraça, e sentiu o silêncio, perturbador e acolhedor.
Sabia que após o mesmo ritual de todos os dias, teria de encarar o
trânsito impiedoso, os motoristas zumbis, as mesmas tarefas no trabalho
e tudo mais. A sórdida rotina novamente.
Saboreou o último gole do mágico café. Tomou seu banho de lavar a
alma. Vestiu sua melhor fantasia de mulher de negócios. Passou uma
maquiagem suave, que escondeu todos os traços da grande vontade
de estar viajando o mundo todo ao invés de ficar presa o dia todo no
escritório. O perfume, assim como o café, fazia sorrir. Era gostoso sentir o
cheiro de beleza e liberdade.
Olhou pela janela da sala e viu que o sol havia tomado coragem. O dia
antes cinzento e rabugento, havia se tornado bonito, de um azul
incrivelmente parecido com o céu das viagens que conseguia fazer
somente uma vez ao ano. E então sorriu.
63
Lembrou que era só mais um dia e que logo estaria na viagem daquele
ano e viveria de fato nesses poucos dias. Tão poucos dias para viver de
verdade. Não entendia porque tinha que ser assim. Que seja enquanto
for assim.
Respirou, orou, sorriu com a alma. A gratidão tomou conta da casa e
dela. Assim como o dia, também ficou ensolarada de uma esperança
inebriante, original e reveladora.
Tudo parecia mais leve, mais certo, mais justo.
E saiu para curtir o céu azul, que decidiu que estaria também dentro do
cinza escritório fechado.
E assim aceitou a rotina mais uma vez. E acatou o tempo, o destino.
E assim foi feliz.
64
ADORMECI?
E foi então que adormeci.
Em meio a tantos devaneios e loucuras cavalgando dentro de mim, a
insanidade de minha fé era a única e mais improvável lucidez de minha
alma naquele momento.
Um sonho desses que parecem de verdade. E são.
E nele todas as respostas me surgiam, como flocos de neve caindo
docemente perante meus olhos de menina. Era alegria, êxtase, paz,
talvez os minutos mais preciosos e intensos de minha existência. As
respostas que tanto quis, esperei, ansiei, agora fazem parte de mim,
somos unidade.
E nesse sonho havia um cheiro todo refrescante de flor, era Lótus. E daí
eu tive a certeza: despertei.
Foi tudo tão real, tão bonito, que acordei, cá deste lado, num ar
triunfante de felicidade pura.
O relógio despertou, lembrando da rotina terrena. Tomei um banho, me
troquei, saí para a batalha diária.
E foi então que adormeci novamente.
65
RECOMEÇO DE ANO
Olhava a roupa branca e bonita como a última esperança de boas
novas em sua vida.
Talvez não a última, mas mais uma apenas. E já foram tantas.
O fato é que isso não a desanimava, nunca desanimou. Era sempre
motivo de recomeçar. Uma pequena luz no fim do túnel, era somente
disso que precisava para acreditar novamente. E sempre tinha, e
sempre acreditava, e era, enfim, a esperança reencarnada aqui.
Precisava terminar sua parte da ceia para a tão esperada virada do
ano, mas dava uma preguiça de fazer rir um riso desajeitado. Não,
cozinha nunca foi seu ponto forte.
Tinha sim outros predicados e focava neles. Como o tender estava já
coberto por preguiça, resolveu fazer a lista e a limpeza energética final
do ano, dela e da casa. Isso sim era simples e prazeroso para ela.
Começou com uma oração, banhada por incensos, cristais, água
benta. E foi então que entrou em seu mundo particular.
Revivendo as emoções e os acontecimentos daquele ano, percebeu o
quão abençoada foi em absolutamente todas as situações, todas. E
toda a diversidade dos acontecimentos e sentimentos inundou sua
mente e acelerou seu coração. Em alguns momentos, tomada pela
parte humana, chegou a pensar em desistir. Doía o coração. Só que
mesmo nesses momentos, recebia tantos recados de encorajamento,
tantas proteções, tantos sonhos reveladores, que chegava mesmo a
sentir vergonha em pensar na possibilidade de desistir.
Respirava fundo, mudava a forma de ver a mesma coisa e seguia em
frente.
66
No começo essa atitude pareceu insana, sem propósito, descabida
mesmo de razão. E era. Como sempre, era guiada pelo coração, terra
de ninguém da emoção racional.
Decidiu que queria mesmo era se encontrar. E foi ao seu encontro
durante o ano todo. Terapias, florais, cursos, palestras, livros, meditações,
orações, o contato direto acontecendo como rotina. Esse era mesmo o
caminho onde sempre quis estar. E já no início do velho ano, fez uma
resolução de vida. Decidiu para sempre cuidar de si mesma e se
conhecer cada vez mais. Isso sim foi uma resolução revolucionária e
avassaladora de boa. E prometeu a si mesma que essa resolução
estaria eternamente tatuada em sua alma.
De todas as coisas maravilhosas que ganhou com esta decisão, paz
interna intensa foi a mais compensadora delas. E continuando nesses
trabalho de si mesma, atiçava a curiosidade em saber o que mais de
tão bom poderia vir por aí. E decidiu crer definitivamente no invisível,
tão absolutamente visível nas outras dimensões onde adorava estar
nessas descobertas.
Feita sua retrospectiva interna, voltou cá para este lado. Abriu
lentamente os olhos, o incenso havia terminado sua missão. A casa
cheirava a amor. Bebeu da água benta, a mesma água que rolou de
seus olhos pela gratidão que a preencheu.
Reverenciou o Alto, a si mesma, a vida, desejando que toda aquela
energia positiva inundasse o próximo ano, a nova consciência e a Nova
Era. E alma sorriu esperança, faminta por evolução, sedenta por paz
branca.
Flutuou pela casa como quem caminha em nuvens brandas. A vida ali
era serenidade pura. Colocou uma música Flamenca quente, cantou,
dançou, deixou que aquela energia tomasse conta do lugar. E foi,
finalmente, terminar o molho de preguiça do necessário tender.
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GUILHERME NICÉSIO
Guilherme Nicésio nasceu em Franca-SP em 1978. É professor
de literatura, redação e língua portuguesa. Mas demorou a
saber disso. De tanto ouvir dos outros que devia publicar o
que tanto escreve não sabe desde quando, recentemente
decidiu levar isso a sério. Então agora é escritor?
Blog: http://asencruzilhadas.blogspot.com
68
REPRISE
Poucas pessoas entendem bem essa minha mania de reprise. Assisto a
um filme e, se gosto, vou duas, três vezes, no cinema. Se leio o livro, e se
me deleita, vira livro de cabeceira, vai sendo devorado, até por anos,
em alguns casos. As páginas, amareladas. As pontas da capa, um
pouco gastas. Às vezes, um rabisco aparece no trecho mais
interessante. Uma cena te chama mais a atenção e decoram-se os
diálogos do trecho. Uma música me marca e, como a ouço tanto,
gravo sua letra como se fosse um hino pessoal, muito meu, que vou
cantando sem pensar ao longo do dia. Mesmo que não seja um primor
de cantor, claro. O disco, ouvido até mesmo pela madrugada afora,
fura mesmo. Isso quando havia discos (Agora é "Ouvi tanto que deu PT
no meu mp4, no meu Ipod").
É certo que você quer voltar à bela sensação de completude
proporcionada pela primeira vez com o livro, o filme, a música. Quando
você encontra com alguém que leu esses livros, que viu esses filmes, que
escutou as músicas, como que nos irmanamos na ideia de que
compartilhamos um evento único, um crime impune. Buscamos no olhar
do outro um cúmplice desse raio de felicidade efêmera.
Tantas outras coisas podem ter reprise. Isso acaba sendo até mesmo a
maneira como nos apresentamos ao outro, como uma ponte, um
acesso por meio de algo em comum. Principalmente na falta de
assunto. Primeiro encontro de um casal: se é um bom encontro, sempre
será marcado por essas coincidências nas reprises que, nesse caso,
viram pretexto para outra reprise (Um segundo encontro, talvez?).
Esse gosto pela reprise também é difícil, se contamos para alguém que
não dá o devido peso à mesma experiência. Aí, é como um pai que dá
seu brinquedo favorito de infância, guardado a sete chaves, para o
filho futuro. Quando este o vê, pega e o deixa de lado nos primeiros
69
instantes, sem um lampejo de interesse, o ingrato. No fim, nós, os
amantes da reprise, achamos todos loucos ou ingratos os que não
valorizam a obsessão do momento. Também há aqueles que acham
essa coisa de ver de novo, várias vezes, algo estranho, uma loucura ou
pura perda de tempo. Afinal, não é possível gostar de algo tanto assim.
Será?
Censuram-me com frequência por falar empolgado das coisas que me
fascinam. Mas ultimamente tenho ficado mais calado sobre essas
reprises, as quais comento somente com quem me tolera ou curte essa
pegada. Assim, não amolo mais ninguém. Mas, com isso, perde-se
também a oportunidade de se ouvir mais, quando a pessoa fala de
suas própria reprises.
Agora, quando conheço alguém e gosto, também quero repetir a
dose. Aí, falo das minhas reprises. Quero mesmo é aproveitar o tempo.
Estender esse encontro, ao máximo. Com isso, me redescubro um
pouco também no outro, na leitura inusitada das reprises, e das não
reprises. No fim, se isso dá certo, quero um repeteco. Afinal, o segredo
de uma boa conversa é ser generoso.
Mas fazer uma pessoa virar reprise é algo que vai ficando raro hoje em
dia. Nem sempre dá certo, porque ninguém vê e sente exatamente o
mesmo que você. Dizem que isso se deve à falta de tempo. Ou ainda
às redes sociais. Ou ambas, responsáveis pelo individualismo
exacerbado e por uma autopromoção ferrenha. Também já ouvi dizer
que ter tempo para alguém é artigo cada vez mais raro. Mas como
acho que a mesquinhez e a ingratidão sempre grassou por aí no
mundo, não me surpreendo com essas afirmações. Recentemente,
conheci uma pessoa que me surpreendeu dizendo empolgada muitas
coisas sobre uma viagem sua a um evento político em Brasília. Puro
deslumbramento. Diante disso, minhas reprises talvez não fossem tão
interessantes como os discursos vazios, os acordos e reuniões à surdina,
70
o aperto de mão de adversários históricos, o lobby (esse novo nome
para o conchavo). Tentei, mas não deu liga nem reprise. Fiquei triste. No
entanto, há de se ter ainda esperança no coração, sabe?
Lembro de meu primo, Zé Carlos. Quando a gente era moleque, no
Estreito, ele não aguentava minhas sessões de leituras torturantes, meus
comentários sobre livros de que ele não gostava nem um pouco.
Obrigado, Zeca, pela paciência e pelo ouvido amigo. Mas, até hoje,
tratamo-nos com aquela ternura que somente os meninos de boa
infância têm ("- Ô, seu caprino!"; "- Fala, cabeçudo!"). Agora moramos
um pouco longe. Chega a notícia de que ele quer rever a mim e à
família, agora um pouco maior. E meu filho adora aquele carrinho velho
e gasto, ao invés dos outros, novos.
Reencontros são boas reprises.
71
HOJE À TARDE
Um dia qualquer, desenvolvemos uma relação tortuosa com uma
pessoa. Bom, então há um passado. Isso cria uma situação incômoda.
A pessoa sinaliza distanciamento, e isso acontece. Contudo, somos
obrigados a conviver. Pode ser o trabalho, a escola, a família, o que for.
De toda a forma, é a vida.
Uma coisa trivial ocorre com essa pessoa: cadarço desamarrado;
carteira caída; botão aberto; chave ou moeda perdida; sujeira no
dente; pasta de dente na lapela; lanterna do carro ligada... Que seja.
Isso pode ser dor de cabeça para a pessoa em questão; pode ser
embaraço, constrangedor; pode ser que nada. Mas para nós, não.
O banal vira impasse ético: responder com indiferença, e não dizer
nada, provavelmente se omitir seria uma punição pelo passado mal
resolvido; ou se pronunciar, bancar o bom samaritano, e resistir a usar a
situação para tentar mobilizá-la por meio de altruísmo falso,
aparentemente desinteressado. Sinuca do bardo do cotidiano.
Há outra saída. Pediremos que alguém fale por nós, e exigir de pé junto
que não sejamos identificados. Tentar praticar o verdadeiro altruísmo: o
bem sem cara, sem panfletagem, sem interesse. Serve sem selfie?
Pois bem. Uma das soluções é escolhida.
Esperamos a pessoa. Dadas as circunstâncias, parece tocaia. Nos olhos
dela, parece-nos entrever isso. O desconforto. Como há um acordo
tácito - nunca dito, mas estabelecido, acordado, assinado e com firma
reconhecida - em não se conversar ou encontrar além do limite
tolerável, isso seria evidente. Mas não nos importamos. Seguimos em
frente.
- Ó, queria te avisar... Cuidado...
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Mas, na verdade:
"Olha pra mim
Não faz assim
Não vai lá, não..."
A pessoa, assustada, agradece já andando, tomada pela pressa. Frase
cortada, quase soletrando, aturdida:
- Ah, bri-ga-du...
Não sabemos se esse telégrafo entra na conta do susto tomado por tal
aproximação repentina, sorrateira - Que afronta! - ou se é a urgência
que causou nosso alerta. Será que abalou? Gagueira também se
chama sopro no coração. Se de raiva contida, de susto-suspiro, nunca
saberemos.
Queríamos o quê? Palmas e louvores em uníssono? Que a distância,
essa linha reta, se tornasse um único ponto? Que haja um encontro
nesse desencontro? Para quê? Por quê? Ouça: Non amo, quia amo.
Non amo, ut amem. Sossega o peito. Respira. Sossega. Respira... Respira,
vai. Respira... Isso.
Arrependimento? Não, né? Já o sagrado coração nosso ia aguentar
fazer tortura nos outros? Dormiríamos abraçados ao rancor? O João,
sim. Eu, não, nem.
Recolhemo-nos à insignificância. Descansemos em paz. Afinal, o aviso
deve ter servido para alguma coisa.
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ALEGRIA (VERSÃO 2)
Saiba você,
que me visita aqui
na calada da noite.
Saiba você
que me curte
classifica
considera
qualifica
ama
ou não.
Saiba, mas saiba mesmo:
Esse sorriso, essa alegria,
são punhos cerrados
para o mundo.
74
CASCO
Você sabe do que falo:
se facilita, é peça;
se impede, é peso.
Feito o uso,
deixa de lado
ou reserva.
Para mexer, então...
Suja com o tempo.
Ocupa espaço.
Mas quer ter à mão.
Vai saber quando precisa.
Nunca se sabe, não?
Às vezes quebra,
é só usar outro.
Nem pensa na perda.
E os cacos, que fazer?
Varre para o canto?
Deixa como está?
No fim, é isso:
fica atrás da porta
ou cuida e se corta.
75
FAIR PLAY
Saber onde se anda
trançar as pernas
drible e folha-seca
é a regra do jogo.
Nesse impasse
a linha da vida
me impede.
Achei que daria conta
no vamo-que-vamo.
A bola?
Carrego.
Arreguei.
Perdi.
Você, eu,
do contra?
Se liga!
Não sabe jogar?
Não desce pro play.
76
FLAVIA MENDES
“Flavia Mendes, 25 anos, sonhadora, cursando tecnologia em
logística, trabalhando na área. Sonhos são possíveis quando
botamos fé e essa fé que me mantém na luta. Ariana, com
um coração grande, procuro ajudar a todos na medida do
possível e de minhas possibilidades. Somos a geração do
futuro, mais amor hoje para um mundo melhor amanhã.
Encontrando na escrita uma forma de elevar a alma e os
pensamentos, libertando-se de alguns fantasmas.”
77
VOCÊ
Como o perfume das flores se misturam aos mais diversos sentidos...
Me embriagar de seu doce cálice não me traz insanidade...
Sua visão embaçada ao fundo sempre distante, não me traz a
vertigem...
Prazer e medo, amor e ódio, paz e perdição...
Como crianças sem maldade, a pureza de um beijo abraça a alma que
se acalma...
Em meio à escuridão da incerteza eu escolho
O que me afasta de você, que me torna menos e cada vez menor, que
me faz escolher o depois, entre uma linha tênue do sim e não..
Com as mãos livres e o coração atado
Com o horizonte adiante e os olhos vendados
Com o caminho livre e os pés amarrados, mais uma vez sentirei seu
perfume e irei me embriagar em você.
78
PASSAGEIRO
Não havia cor,
Nem sabor,
Nem calor.
Não existia som,
Nem tom,
Nem dom.
Estava ali,
Apenas olhando;
Observando com cautela
Com o pensamento vazio;
E tudo era tão frio.
E já não sentia,
Queria, ou sorria.
E na multidão,
Chegando na estação
Seus passos se perdiam,
e apenas seguiam
onde levara o coração.
79
VIVER
Muitas vezes sufocados pelo tempo, relógio, pressões,
Muitas vezes sufocados pelos sentimentos, incertezas, emoções,
Gritar, chorar, sorrir, sentir,
Solução em nossa frente? Solução, decisão, libertação?
Ficar, mudar, partir, desistir, insistir?
O medo e a insegurança nos rodeiam,
Faz-nos refém de nós mesmos,
Empoeirando a visão para um horizonte brilhante,
Mesmo que por pouco tempo, porém com sentimento.
Escolher entre o bem e o mal,
O bom e o ruim,
O certo e o errado,
O exato e o duvidoso,
Correr e se lançar no nada,
Deixar acontecer,
Ansiedades .....
Amanhã está longe demais, e ontem temos que esquecer.
Viver, é o que temos a fazer.
80
CÉU AZUL
Céu azul, vejo toda sua imensidão,
respiro fundo, sinto toda leveza na alma,
na retina a lembrança,
um leve sorriso, como de uma criança.
Encontro em cada momento,
os mais remotos turbilhões de sentimentos,
o brilho do sol remete a mais profunda alegria,
ao sentir na pele a emoção de estar viva.
A leve brisa do vento, sentindo na face cócegas,
uma notícia boa, um suspiro sincero,
um sonho em vida, que ainda espero.
Após a jornada, tão bela e encantada, o pôr do sol.
Enfim, após um belo jasmim, deitar para descansar, e em um novo céu
azul acordar.
81
SILÊNCIO
O silêncio calou a alma
A dor calou a voz
A voz se calou pela dor
Por que a dor se tornara real.
Vendaram–lhe os olhos
Sonho ou ilusão
Mente ou coração
A utopia já não existia.
Em seu mundo
Seus olhos se abriam.
E cada novo dia, sol nascente
Amanhecer, viver e morrer
E o silêncio voltara a prevalecer.
82
BETINHO PACIULLO & PEDRO ARREGUY
Betinho Paciullo, mineiro estabilizado em São Paulo à alguns
anos, recém formado em Design, vê na ilustração um escape
desde os tempos de menino. Transita por várias vertentes
desse universo, desde ser aprendiz de tatuador, desenhar
estampas até fazer curta metragens animados.
Pedro Arreguy é um jovem de 20 anos, do sul de Minas.
Admirador suspeito da música popular brasileira, e toca
violão por puro prazer. Há pouco tempo começou a escrever
afim de questionar as Inversões de valores de uma sociedade
consumista e violenta.
Iniciaram juntos um projeto, para divulgar a arte de forma
simples e cotidiana: poesias ilustradas espalhadas pela
cidade.
https://instagram.com/betinhopaciullo/
poesiavirtualmg.blogspot.com
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PÁGINA DO LEITOR
FIM
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