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Revista da Procuradoria-Geral

do Município de Porto Alegre

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Revista da

Procuradoria-Geral

do Município

de Porto Alegre

Nº 24 - Porto Alegre - Dezembro 2010

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Centro de Estudos de Direito Municipal

Maren Guimarães Taborda (Org.)

Jessica Buchmann

Comissão Editorial

Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira

Cristiane da Costa Nery

Carmen Lúcia Barros Petersen

Laura Antunes de Mattos

Maren Guimarães Taborda

Vanêsca Buzelato Prestes

Colaboradores

Agueda Reny M. G. Pahim

Jessica Buchmann

Lea Marilda Dornelles Viero

Maria Teresa Zatti

Ronaldo Osmar Bellini

Rafael Puntel de Castro

Sônia Mara Rosa de Castilhos

Sônia Teresinha Rodrigues Rosa

Conselho Editorial da Revista (Nacional)

Alexandra Giacomet Pezzi

Almiro do Couto e Silva

Araken de Assis

Celso Antonio Bandeira de Mello

Cézar Saldanha Souza Júnior

Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira

Eros Roberto Grau

João Batista Linck Figueira

Judith Hoffmeister Martins Costa

Manoel Gonçalves Ferreira Filho

Maren Guimarães Taborda

Conselho Editorial da Revista (Internacional)

Gabriel Ferrer (Espanha)

Joaquín-Garcia Huidobro (Chile)

Vasco Manuel Pereira da Silva (Portugal)

P454 Revista da Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre/Prefeitura

Municipal de Porto Alegre - Porto Alegre CEDIM, nº 24 dezembro 2010, 266 p.

1. Direito: Rio Grande do Sul: Periódicos 2.Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Procuradoria Geral do

Município. Centro de Estudos de Direito Municipal.

CDD 340.581651

Catalogação na publicação: Carmem Lucia Menezes Thober CRB 10/630

Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães

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Prefeito

José Fortunati

Procurador-Geral

João Batista Linck Figueira

Procurador-Geral Adjunto de Pessoal,

Contratos e Serviços Públicos

Marcelo Kruel Milano do Canto

Procurador-Geral Adjunto de Domínio Público,

Urbanismo e Meio-Ambiente

Simone Somensi

Procurador-Geral Adjunto de Assuntos Fiscais

Cristiane Nery

Corregedoria-Geral

Vanêsca Buzelato Prestes

Gamaliel Valdovino Borges

Agueda Reny Pahim

Sônia Teresinha Rodrigues Rosa Martins

Chefe de Gabinete

Maria Elizabeth Rosa Pereira

Coordenadora Administrativo-Financeira

Sônia Mara Rosa de Castilhos

Assessoria Especial de Assuntos

Legislativos e Institucionais

Carlos Eduardo da Silveira

Cauê Vieira da Silva

Assessoria Técnica Especial

Luís Maximiliano Leal Telesca Mota

Edson Duarte do Nascimento

Rafael Puntel de Castro

Prefeitura de Porto Alegre

Procuradoria-Geral do Município

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Procuradoria de Licitações e Contratos

Carmem Lúcia de Barros Petersen

Carin Simone Prediger

Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira

Fernanda Biachi

Jorge Augusto Garcia Pacheco

Leila Maria Reschke

Inês Terezinha Voges Prevê

Jeremias Soares de Mello

Procuradoria de Pessoal Celetista

Rogério Scotti do Canto

Marcia Moura Lameira

Nelson Nemo Franchini Marisco

Pedro Luis Martins

Felipe Ferraz Merino

Luis Henrique Denaui de Almeida

Adriana do Socorro Peralta dos Santos

Daniela Dornelles Balreira

Procuradoria de Pessoal Estatutário

Edmilson Todeschini

Alexandre Molenda

Carmem Regina Vilar Dugacsek

Heron Nunes Estrella

Clarissa Cortes Fernandes Bohrer

Márcia Leipnitz Rauber

Jacqueline Brum Bohrer

Gabriela Reinisch

Sérgio Júnior da Cunha Farias

Procuradoria de Serviços Públicos

Cláudia Padaratz

Alexandra Cristina Giacomet Pezzi

Caren Vasata

Rogério Quijano Gomes Ferreira

Carlos Roberto da Costa Aquines

Luis Fernando Pinheiro

Procuradoria de Patrimônio e Domínio Público

Mauro de Almeida Canabarro

André Santos Chaves

José Luiz Alimena

Eduardo Silva de Oliveira

Jacqueline Maria de Oliveira do Couto e Silva

Joicineli Fagundes de Oliveira Becker

Rafael Jostmeier Vallandro

Comissão Permanente de Inquérito

Leila Maria Reschke

Paulo Ricardo Rama

Agueda Reny Pahim

Luciano Saldanha Varella

Procuradoria de Urbanismo, Meio-ambiente e Regularização

Fundiária

Giovani Carminatti,

Ana Luísa Soares de Carvalho

Andrea Teichmann Vizzotto

Eleonora Braz Serralta

Laura Antunes de Mattos

Rosana Vieira Kuhn

Procuradoria da Dívida Ativa

Bethânia Regina Pederneiras Flach

André Kaminski

Armando José da Costa Domingues

Cibele Aline Volkmann

Janine Giongo

Luis Antonio dos Reis Vizeu

Marcelo Dias Ferreira

Ricardo Hoffmann Muñoz

Caroline Lengler

Giovani Kerber Jardim

Fátima Rejane Kluge Correa

Cesar Emílio Sulzbach

Sidnei Borges Silva

Ismael Silva Correa de Oliveira

Carolina Dalenogare Vaz

Luiz Carlos Niemczewski Júnior

Luis Fernando Oliveira dos Santos

Priscila de Oliveira Machado

Rachel Abramson Schostack

Lea Marilda D. Viero

Nádia Munhos de Campos

Sandra Maria Barbosa Damas

Marcelo Santos da Silva

Ronaldo O. Bellini

Procuradoria Tributária

Andrea Maria da Silva Correa

André George Freire da Silva

Fernando Vicenzi

Cláudio Hiran Alves Duarte

Laerte Marta de Oliveira

Napoleão Correa de Barros Neto

Sylvio Roberto Correa de Borba

Simone dos Santos Nunes

Rosa Maria Godoy Martins

Cândida Castro

Eduardo Woltmann

Procuradoria de Assistência e Regularização Fundiária

Cândida Silveira Saibert

Simone Santos Moretto

Márcia Lima

Maria Etelvina Bergamaschi Guimaraens

Paulo de Tarso Vernet Not

Tami Teixeira Aso

Carlos Antonio Chemello

Luciano Saldanha Varela

Maria Salette Cademartori de Moura Jardim

Guilherme Alfredo Kleinschmitt

Jaqueline Correa da Silva

Mariluci Zancan

Gerência de Aquisições Especiais

Cláudia de Aguiar Barcellos

Ariza Trindade Tavares

Gerência de Precatórios e Contencioso Administrativo

Eduardo Gomes Tedesco

Coordenação Administrativo-Financeira

Alexandre Oliveira Casagrande

André Luiz Elias

Tatiana Porto Ramos

Voltaire Cerqueira Michele

Gerência de Apoio Administrativo

André Sarmento

Cíntia Duarte Nascimento

Karin Aline Coelho dos Santos

Inês Maria Francisco de Araújo

Lauri Antonio Gnatta

Luciana Regina Molinetti

Manoel Jerônimo Fraga da Rosa

Recursos Humanos

Igor da Rocha Dimer

Hadassa Ribeiro Manna

Gerência de Serviços Gerais

Nádia Terezinha Soares da Rosa

Hélio Argimir Gonçalves de Oliveira

Biblioteca

Ercilda Bernadete Baguinski

Gerência de Cadastro e Distribuição

Greice Carin do Canto Atkinson

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Sumário

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................... ......................... 9

ARTIGOS E ESTUDOS ............................................................................................................................... .............. 11

O postulado da imparcialidade e a independência do magistrado no Civil Law ............................ 13

Ana Paula Oliveira Ávila

O paradigma jurídico aplicável ao adimplemento das obrigações no novo Código Civil .................. 35

Arthur M. Ferreira Neto

Paisagem Urbana e Dano Ambiental Estético:

As cidades feias que desculpem, mas a beleza é direito fundamental ............................................... 59

Flávia de Sousa Marchezini

O código civil argentino e a determinação do conceito de estatuto pessoal:

Da contraposição entre Actio e Vindicatio aos direitos sujetivos ...................................................... 83

Maren Guimarães Taborda

Los derechos de reunión y asociación en el convenio europeo de derechos humanos ..................... 97

Miguel Ángel Presno Linera

O direito natural aplicado ao homem do futuro:

Uma (re)formulação dos direitos de personalidade no código civil,

suas implicações frente às nanotecnologias ........................................................................................ 113

Nelson Nemo Franchini Marisco

Formas não tributáveis de financiamento das cidades ....................................................................... 129

Vanêsca Buzelato Prestes1

PARECERES E INFORMAÇÕES ............................................................................................................................... . 147

Valor da FG de servidor cedido ao Legislativo Municipal ................................................................... 149

Edmilson Todeschini

Concurso Público nº 333 - Biólogo .............................................................................................. .......... 157

Alexandra Cristina Giacomet Pezzi

Normas sobre acessibilidade. Lei Federal Nº 10.048/2000 e Decreto Nº 5.296/2004 ...................... 163

Vanêsca Buzelato Prestes

Exigência de multa prévia para fins de admissibilidade de recurso administrativo ...................... 171

Eleonora Braz Serralta

Regularização urbanística do projeto de assentamento da área destinada aos Kaigangues .......... 185

Vanêsca Buzelato Prestes

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MUNICÍPIO EM JUÍZO ............................................................................................................................... ............ 191

Ação civil pública. Contratação de cooperativa. Contrato de prestação de serviços.

Relação entre associado e cooperativa. Terceirização ........................................................................... 193

Rogério Scotti do Canto

Honorários advocatícios na fase de execução de sentença ante a nova

sistemática do CPC – Definição do STJ ................................................................................................... 235

Cristiane da Costa Nery

Transporte escolar – Competência e discricionariedade do gestor municipal .................................... 243

Cristiane da Costa Nery

V Congresso de Procuradores das Capitais Brasileiras .......................................................................... 259

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Apresentação

A Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre apresenta mais uma edição de sua

revista cientifica, com as tradicionais seções de Artigos e Estudos, Pareceres, Município em Juízo

e Enunciados do Congresso de Procuradores das Capitais Brasileiras.

Na presente edição, refletem-se os resultados alcançados, no ano de 2010, tanto na política

de qualificação técnica dos servidores da PGM, quanto na orientação da atuação da Administração

Municipal, uma vez que a missão institucional da Casa é não só garantir a legalidade da

Administração Municipal, mas também a legitimidade democrática, pois é nosso trabalho

diuturno o estreitamento da relação entre governantes e governados, tendo como paradigma a

busca do que é melhor para a nossa população – razão última da existência do Estado e da

Administração comprometida com o serviço público.

Daí, a tradicional seção “Artigos e Estudos” conta com produção científica “da Casa” e

de colaboradores externos, pessoas que têm ajudado a PGM a pensar a cidade não só como o

ambiente urbano que demanda a intervenção organizada e planejada, mas como um conjunto de

relações, como o locus próprio de exercício da cidadania e da proteção da dignidade da Pessoa

Humana, enfim, da “luta por reconhecimento”. É no reconhecimento jurídico que um homem é

respeitado em virtude da propriedade que faz dele uma pessoa de direito, capaz de participar do

processo democrático da formação da vontade. A própria ampliação sucessiva de direitos

fundamentais, obtida pela luta social por igualdade, ampliou o status objetivo de uma pessoa,

dotando-a de novas atribuições e estendendo tais atribuições a um número sempre crescente de

membros da sociedade. Com isso, o Direito ganhou novos e as relações jurídicas foram universalizadas,

sendo paulatinamente adjudicadas àqueles grupos que até então estavam excluídos ou desfavorecidos.

Daí, dos confrontos práticos surgidos por conta da experiência do reconhecimento denegado ou do

desrespeito, amplia-se tanto o conteúdo material quanto o alcance social do status de uma pessoa

de direito. Na experiência do reconhecimento jurídico, uma pessoa será capaz de se considerar

digna de respeito e de auto-respeito, se, e tão somente ela partilhar com todos os outros membros

da comunidade as propriedades que a capacitam a participar na formação da vontade política.

Assim, no primeiro artigo, a colega, professora titular de Direito Constitucional da

UNIRITTER, Ana Paula Oliveira Ávila, trata da imparcialidade e independência do juiz como

elementos essenciais do que se compreende por Estado Democrático de Direito. No segundo

texto, Arthur M. Ferreira Neto, professor de Filosofia do Direito na PUCRS e advogado, trata do

tema das obrigações no Novo Código Civil, discutindo, precisamente, a mudança do paradigma

jurídico que a nova codificação adota, qual seja o de que a experiência jurídica é fenômeno humano

historicamente relevante e axiologicamente orientado.Por conseguinte, encerra o Código Civil a

noção de pessoa concretizada e circunstancializada e de relação jurídica como a convergência de

interesses integrados e harmonizáveis em busca de uma finalidade comum a ser atingido mediante

cooperação e lealdade. Por sua vez, a colega, Procuradora do Município de Vitória, Flávia de

Sousa Marchezini, também professora de Direito Administrativo e de Direito Ambiental, nos

brinda com um trabalho que trata, especificamente, da paisagem urbana e do dano ambiental

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estético, pugnando pela correta identificação das funções ambientais da paisagem urbana, da

delimitação de seus atributos estéticos e das graves consequências advindas da sua deterioração.

Afirma que as lesões a esse importante bem jurídico caracterizam-se como dano extrapatrimonial

ambiental, aferível tanto em seus aspectos individuais quanto difusos, passível, portanto, de

reparação. A Procuradora Maren Guimarães Taborda nos apresenta o texto integral de

comunicação feita em congresso científico, tratando da contribuição de Teixeira de Freitas à

codificação do direito civil argentino, uma vez que a mesma recepcionou, integralmente, a tese

segundo a qual a distinção entre direitos pessoais e direitos reais, chave de todas as relações civis,

é a organização externa do sistema imanente ao Direito. Em continuidade à tradição de intercâmbio

com outras instituições, trazemos à luz a preciosa colaboração do Professor Miguel Ángel Presno

Linera, titular da disciplina de Direito Constitucional na Universidade de Oviedo, que aborda os

direitos fundamentais de reunião e associação no marco do Convênio Europeu de Direitos

Humanos. Seguindo a linha de “pensar” o Direito no marco crítico-filosófico, o colega, Procurador

Nelson Nemo Franchini Marisco, Professor da UNISINOS, faz uma reflexão importante sobre a

(re)formulação dos direitos de personalidade no Código Civil de 2002 suas implicações frente às

nanotecnologias. Finalizando a seção, a Procuradora Vanêsca Buzelato Prestes trata das formas

não tributárias de financiamento das cidades, trabalho apresentado em diversos encontros

científicos, no qual afirma a possibilidade de utilização de instrumentos jurídicos que possam

angariar direta e indiretamente recursos para as cidades, com o fim de dar cumprimento às

competências constitucionais, demonstrando que os mesmos precisam ser utilizados na

perspectiva da gestão e não fragmentadamente, pois, a cidade é um todo.

Os Pareceres e informações, como de costume, foram selecionados seguindo-se critérios

das edições anteriores (temas que apresentam grande importância prática e/ou fazem discussão

teórica consistente). Daí que integram esta edição, pela ordem, pareceres sobre o valor da Função

Gratificada devida a servidor cedido ao Legislativo Municipal; o prazo de validade dos concursos;

as normas de acessibilidade como conteúdo da ordem urbanística; a exigência de multa prévia

para fins de admissibilidade de recurso administrativo e Regularização urbanística do projeto de

assentamento da área destinada aos índios Kaigangues.

Na seção Município em Juízo, apresentam-se casos exemplares da Procuradoria de Pessoal

Celetista e da Procuradoria de Serviços Públicos (ação civil pública que discutiu a contratação de

cooperativas; pagamento de honorários advocatícios na fase de execução de sentença; competência

e discricionariedade do gestor municipal no que tange ao serviço de transporte escolar).

Por fim, publicamos os Enunciados aprovados no VII Congresso de Procuradores das

Capitais Brasileiras, em razão da sempre destacada atuação dos procuradores de Porto Alegre.

A publicação é, portanto, a contribuição da Procuradoria-Geral do Município de Porto

Alegre para o debate nacional sobre o Direito Municipal, bem como sobre a discussão sobre o que

é “Direito” no País.

João Batista Linck Figueira

Procurador-Geral

Maren Guimarães Taborda

Coordenadora do CEDIM

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Revista da

Procuradoria-Geral

do Município de Porto Alegre

Artigos e Estudos

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O postulado da imparcialidade e a

independência do magistrado no Civil Law

Ana Paula Oliveira Ávila1

1

Mestre e Doutora em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Professora Titular de Direito Constitucional da Uniritter. Advogada em Porto Alegre.

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14 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 15

Introdução

Os temas ora tratados, a imparcialidade e a independência do juiz, são questões

relevantes quando se busca compreender a natureza da função jurisdicional. Mais relevantes

ainda elas se tornam quando são analisadas através do filtro constitucional e, mais especificamente,

dos direitos fundamentais. Uma tal análise revelará, de modo incontrastável, que a imparcialidade

e a independência do magistrado atuam, de forma indissociável, na própria composição do que

se entende por Estado Democrático de Direito. Imparcialidade e independência são proposições

que estão na base do sistema de proteção efetiva dos direitos e garantias fundamentais, a ponto

de concluir-se que, no afastamento de uma delas, rompe-se a esfera de direitos juridicamente

reconhecida pelo Estado ao cidadão.

A análise que se pretende empreender da imparcialidade e da independência do

magistrado nesta ocasião está esteada nesta concepção: são proposições que se refletem na própria

realização do Estado de Direito, considerando-se duplo aspecto, o primeiro, relacionado à atividade

jurisdicional enquanto função estatal, e o segundo, relacionado ao próprio papel que a ordem jurídica

desempenha como instrumento de pacificação social, servindo de meio para a realização da justiça.

De qualquer sorte, esta forma de enfocar o problema se insere naquele espírito proposto pelos

estudos acerca das relações entre processo e Constituição, que parte do pressuposto de que o processo

não é uma mera técnica, mas sim, “instrumento de realização de valores e especialmente de

valores constitucionais”, impondo-se considerá-lo como “direito constitucional aplicado.”2

A

análise que aqui se intenta fazer da imparcialidade é justamente no sentido de não

“apenas conformar o processo às normas constitucionais, mas

de empregá-las no próprio exercício da função jurisdicional,

com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido

pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele

conduzido”.3

A presente análise divide-se em duas partes. Na primeira parte, analisa-se o conteúdo e a

natureza jurídica da imparcialidade, e, num amplo espectro, quais os princípios, direitos e garantias

constitucionais têm sua realização assegurada pela imparcialidade. Também neste primeiro capítulo

situa-se a garantia da independência do magistrado, ao lado de outras garantias, como o pressuposto

para o exercício imparcial da função jurisdicional. Na segunda parte, analisam-se as implicações

do reconhecimento da imparcialidade na relação processual, demonstrando-se como a

imparcialidade deve ser pressuposta para a efetividade das demais garantias processuais e dos

direitos fundamentais, cuja proteção constitui a tônica do Estado dos nossos dias.

2

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In AJURIS nº 87 tomo I (37-49),

nesta passagem fazendo referência a KONRAD HESSE.

3

Idem, ibidem.

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16 Revista da PGM

I. O Conceito de Imparcialidade:

Imparcial é a qualidade de quem não é parte. A concepção jurídica de parte está

intimamente ligada a quem tem um interesse próprio. Imparcialidade implica a ausência de

interesse pessoal em determinada questão. Uma compreensão ampla de imparcialidade judicial

pressupõe que se reconheça na jurisdição uma função do Estado, que em CHIOVENDA vem definida

como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da

substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos

públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva.4

“Função” há de ser bem compreendida: “função é o exercício, no interesse de terceiro, de um

poder de que se dispõe exclusivamente para os efeitos de cumprir o dever de atender

determinada finalidade legalmente estabelecida. Isso é função. Ela não se confunde com Direito

ou com Poder, porque nestes alguém desfruta de uma situação subjetiva ativa que lhe permite

mobilizar uma potencialidade jurídica em vista de seu próprio interesse, ao passo que, na

função o exercício dessa potencialidade se efetua no interesse alheio e como instrumento

necessário ao cumprimento de um dever. Aí e só aí teremos função.”5

A imparcialidade desenvolveu-se como dever funcional dos magistrados e decorre

de duas regras essenciais: nemo iudex in causa propria e audi et altera parte. Lançando-

se mão da primeira regra, proíbe-se o exercício de poderes funcionais por quem tenha algum

interesse pessoal, direto ou indireto, na questão controvertida, dando margem à adoção de

hipóteses de impedimento e suspeição; com base na segunda, impõe-se o contraditório e a

participação de todos os interessados no processo. Levando-se em conta estas perspectivas,

resultam, para o magistrado, os deveres de oferecer oportunidade às manifestações a quem

sua decisão venha afetar, e de ponderar todos os interesses juridicamente relevantes no

processo. Isso porque somente se tiver conhecimento da totalidade dos interesses dignos de

proteção jurídica é que o magistrado estará em condições de ser imparcial.

A imparcialidade implica a certeza prévia da não-vinculação da atividade instrutória

e decisória em favor de qualquer uma das partes envolvidas no processo judicial e

independência quanto ao conteúdo das decisões.6

Trata-se de uma exigência intrínseca ao

processo judicial: sem imparcialidade, todas as garantias que nele incidem ficam inócuas. A

própria idéia de “fair procedure” está fundada nas noções de participação dos interessados

e de imparcialidade nas decisões que lhes concernem.

A imparcialidade abrange, ainda, o sentido de objetividade, exigindo que qualquer

decisão seja tomada sempre com base em razões legítimas, assim entendidas aquelas que

encontram amparo no ordenamento jurídico e que dizem respeito às circunstâncias

efetivamente presentes nas questões que se põem no âmbito decisório do juiz.

A imparcialidade, em suma, determina ao magistrado o dever de proporcionar a

participação das partes no processo de formação da decisão judicial, e proíbe ao juiz permitir

4

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, vol. II. São Paulo, Saraiva, 1965. p.3.

5

SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento administrativo. In RDP 84(64-74), p. 66.

6

MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p 93.

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Nº 24 - Dezembro 2010 17

que perseguições, simpatias, antipatias, caprichos, paixões ou interesses de ordem pessoal

interfiram no trato com as partes da relação processual. Na medida em que esses interesses

de ordem pessoal interfiram na avaliação das questões submetidas ao magistrado, estará ele

agindo com base em razões impróprias e, por isso mesmo, incidindo no vício de parcialidade.

E não há tratamento parcial que faça justiça ao jurisdicionado.7

A imparcialidade exige, assim, uma apreciação desinteressada, isenta e objetivamente

orientada dos elementos postos em causa. Trata-se de postura intrínseca à posição do magistrado

que, sendo o órgão estatal encarregado de fazer atuar concretamente o ordenamento jurídico,

é a contrapartida que o Estado oferece aos indivíduos no momento em que deles retira a

autonomia para decidirem as questões nas quais tenham interesse.8

Contudo a imparcialidade

não é devida exclusivamente em razão da posição ocupada pelo magistrado, de terceiro imparcial

em face da relação posta em causa. A atividade que ele desempenha é que é determinante para

a exigência de imparcialidade: a imparcialidade é condição imanente à própria aplicação do

ordenamento jurídico. É o que veremos mais adiante.

1. Pressupostos da Imparcialidade:

Não basta a exigência de conduta imparcial do magistrado. O ordenamento deve

proporcionar condições que propiciem a conduta imparcial. A técnica utilizada em nosso

ordenamento foi a atribuição de garantias à função de magistrado, das quais destacamos as

seguintes como pressupostos da conduta imparcial:

a) Garantia da Independência: pela garantia da independência, que na doutrina

vem por muitos autores qualificada de princípio9

, protege-se a jurisdição contra a interferência de

fatores externos a ela. A independência traduz um relevante aspecto da teoria da divisão dos poderes

(CF, art. 2º: São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo

e o Judiciário - grifei), indicando uma separação orgânica entre a função jurisdicional e as demais

funções estatais e que a administração da justiça confiada ao Judiciário não se subordina à ingerência

dos outros Poderes da República. Além disso, traduz também um sentido mais amplo, de que

“o Judiciário como um todo e cada juiz em particular é

independente não só em relação aos outros poderes, como diante

do próprio poder e da opinião pública. É direito do cidadão que

a jurisdição seja isenta de pressões externas, e como tal a parte

deve exigir do julgador que exerça esta independência”.10

7

GALLIGAN, Denis J. Due Process and Fair Procedure — A Study of Administrative Procedures. Oxford: Clarendon Press, 1996. pp.

441 e 443.

8

PORTANOVA, Rui: Princípios do Processo Civil. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 79: “Quando o Estado tirou do

cidadão o direito à justiça privada e ao desforço pessoal, deu-lhe um terceiro imparcial e independente para resolver seu conflito:

o juiz. Assim, é direito fundamental do cidadão um juiz imparcial e independente.”

10

Neste sentido: CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA, Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 79. RUI

PORTANOVA. Princípios do Processo Civil, 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 72.

11

PORTANOVA, Rui. Op. cit., p. 73.

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18 Revista da PGM

Evidentemente, não se pode presumir que, a pretexto de uma atuação independente,

possa o magistrado alhear-se ou desvincular-se do ordenamento jurídico e da realidade

subjacente. A tônica desta garantia está, justamente, na autonomia do Judiciário em face dos

demais poderes do Estado, cujos atos, diga-se de passagem, incumbe principalmente ao

Judiciário controlar. Daí, ressalta CHIOVENDA,

“a conveniência de que se confie a órgãos autônomos a função

jurisdicional, de modo que quem atua a lei não se deixe guiar

senão do que se lhe afigure ser a vontade da lei, segundo a

ciência e a sua consciência. É mister ainda que esses órgãos

sejam independentes, para impedir a intromissão da

administração na justiça (justiça de gabinete).”11

A garantia da independência deve manter-se circunscrita a este clássico aspecto: “quem

atua a lei não se deixe guiar senão do que se lhe afigure ser a vontade da lei”. A independência não

se presta para fundamentar uma suposta liberdade do magistrado para julgar em detrimento do

ordenamento jurídico. Num sistema como o nosso, de direito positivo —o civil law—, a norma

positivada é o ponto de partida da interpretação jurídica, processo que implica o cotejo com

outras normas de caráter complementar ou hierarquicamente superiores (e.g., normas

constitucionais), de onde resultará uma síntese que transformará as normas gerais e abstratas na

norma individual para o caso concreto. Qualquer outra premissa que seja adotada como ponto de

partida, tais como a pré-concepção do magistrado, seu sentimento subjetivo de justiça ou seus

interesses próprios ou de terceiros, será incompatível com o sentido de imparcialidade que

apresentado neste trabalho.

Vive-se hoje certa descrença em relação às normas jurídicas, e muito se diz que ao

magistrado, a pretexto de encontrar a solução “justa” para os casos concretos, compete criar

normas quando aquela preexistente não se coadune com aquele sentimento (subjetivo) de

justiça. A independência, então, levada a extremo, serviria de fundamento para que o magistrado

se afaste da ordem jurídica posta e “crie” a “sua” norma individual para o caso. Num tal

sentido, a independência seria incompatível com a imparcialidade, na medida em que a inclusão

de elementos subjetivos no processo de aplicação da norma exclui a objetividade necessária

aos juízos imparciais. Seria incompatível, também, com diversas normas constitucionais a

saber: (a) a separação de poderes constitucionalmente engendrada; (b) a legalidade, que

determina que os estados de sujeição do cidadão e as restrições de sua liberdade decorram das

fontes formais do Direto; (c) o princípio democrático, exigindo que essas mesmas restrições

das liberdades individuais sejam manifestações da soberania popular; (d) a igualdade,

formalmente consagrada pela generalidade e abstração das normas; (e) e, também, é

incompatível com a segurança jurídica, na medida em que o magistrado, ao inovar na ordem

jurídica, retira as condições de certeza e previsibilidade das partes, exigidas por aquele princípio,

ao editar uma norma ex post factum.

11

CHIOVENDA, Instituições... Tomo II, op. cit., p. 7.

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Nº 24 - Dezembro 2010 19

Deste modo, independência não significa liberdade ou desprendimento do magistrado

em relação ao ordenamento jurídico. A independência é, pois, funcional, indicando a separação

orgânica entre a função jurisdicional e as demais funções estatais, de modo que o magistrado, no

exercício do seu mister, não se subordine à ingerência de outros agentes ou aos outros Poderes da

República. Nesse sentido, é uma garantia para o seu desempenho imparcial.

b) Garantia da vitaliciedade: prevista no art. 95, inc. I, da Constituição Federal,

consiste em uma garantia adquirida pelos magistrados concursados após dois anos de efetivo

exercício do cargo. Em razão dela, o magistrado somente perderá o cargo em virtude de

sentença judicial transitada em julgado, se juiz de primeiro grau, ou de deliberação do tribunal

a que estiver vinculado, se de segundo grau.

Esta garantia da permanência no cargo público constitui um aspecto fundamental

relacionado à exigência de imparcialidade do magistrado. A estabilidade funciona como

uma garant ia para que o agente possa tomar decisões com imparcia l idade e

independência. Na mesma trilha segue a garantia da inamovibilidade, prevista no art.

95, inc. II, da Constituição Federal.

c) Aposentadoria com proventos integrais ou proporcionais: Poderíamos

ainda ir mais longe nas condições que propiciam o exercício imparcial da função, para

argumentar que a própria aposentaria com proventos integrais ou proporcionais ao tempo

de permanência do magistrado no cargo é condição que suporta a imparcialidade. É que a

Constituição, ao impor vedações ao magistrado, tolhe o desempenho de outra atividade

econômica ou outro cargo ou função, salvo uma de magistério. Não pudesse contar o

magistrado com seus proventos durante a aposentadoria, não seria de se esperar uma atuação

independente, isenta e imparcial por quem atua, no presente, preocupado com a situação

financeira incerta e escassa, do futuro. A incerteza e escassez tornam, certamente, o

magistrado vulnerável às possibilidades de favorecimento e pressões dos mais diversos setores

que possam repercutir na decisão de questões postas sob sua apreciação.

2. Assento constitucional:

A imparcialidade é norma universal prevista no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos

do Homem e reafirmada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (Paris, 1948), verbis:

“Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade,

de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal

independente e imparcial, para a determinação de seus

direitos e obrigações ou para exame de qualquer acusação

contra ela em matéria penal.”

Na Constituição Federal da República não há previsão expressa da imparcialidade. Talvez,

porque uma previsão expressa seja mesmo dispensável, uma vez que diversos dispositivos

constitucionais implicam, naturalmente, a imparcialidade. Se analisarmos a Constituição de forma

unitária e pelo filtro dos direitos fundamentais, será possível perceber que a imparcialidade

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20 Revista da PGM

instrumentaliza uma série de princípios e garantias fundamentais. O processo, assim, passa a ser

o terreno onde afloram princípios, direitos e garantias, e as regras processuais é que viabilizam a

concreta efetivação desses mesmos princípios, direitos e garantias. Senão, vejamos:

a) O Estado de Direito, que passou a ter existência teórica nos fins do século XVIII,

significou a superação de uma forma parcial de comando estatal. Durantes as monarquias

absolutistas, o Estado chegava a confundir-se com a pessoa do monarca, que comandava a

nação segundo seus interesses, ditados por razões que a ninguém cabia questionar. Aí, bem

presente a parcialidade, qualidade de quem ostenta interesse próprio na condução das

atividades a serem desempenhadas.

A passagem para o Estado de Direito muda este quadro, buscando limitar o poder, e

sobretudo despersonalizá-lo, abraçando princípios fundamentais como os da soberania

popular, da democracia, da divisão de poderes, da legalidade, da segurança jurídica e da

igualdade. Em decorrência da institucionalização do Estado de Direito e dos seus princípios

fundamentais (CF, art. 1º e art. 5º), surgem importantes conseqüências. Pelo reconhecimento

da soberania popular, o único poder legítimo é o decorrente da vontade do povo, sendo esta

vontade representada pelo Parlamento e afirmada pela idéia de separação dos poderes. Pelos

princípios da legalidade e da divisão dos poderes, ficam limitadas e discriminadas pela lei as

atividades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, surgindo também formas de controle

dos atos do poder público e uma esfera de direitos individuais que deve contar com ampla e

efetiva proteção estatal. O ordenamento jurídico assume a posição central na estrutura estatal,

substituindo-se à vontade e aos interesses pessoais de quem quer que atue em nome do

Estado. Precisamente aí a implicação da imparcialidade dos agentes estatais.

b) Pela exigência de legalidade e segurança jurídica (CF, art. 5º, caput e inc.

XXXVI; art. 150, I e III), o Estado passa a se comunicar com o indivíduo por meio do direito

objetivo: a norma geral, abstrata, democrática e prévia. A atividade estatal há de ter um

embasamento legal, sendo que a generalidade da lei dá também conta de, em tese, preservar

a igualdade dos indivíduos. Afora isso, importante sublinhar que, no reconhecimento da

força normativa dos princípios, há implícita uma certa mobilidade para que o intérprete

conforme a norma jurídica segundo o caso concreto, e, mais grave, “mesmo a regra jurídica

clara e aparentemente unívoca pode ser transformada em certa medida, de acordo com

as particularidades do caso concreto, por valorações e idéias do próprio juiz”.12

São

realidades que, no âmbito do processo judicial, podem ser traduzidas como a “outorga de

competência para a livre investigação jurisdicional do direito”13

.

Se assim mesmo ocorre, maior relevo é de se conferir à imparcialidade como

elemento legitimador do processo de interpretação e aplicação do direito, pois uma motivação

psicológica e não-objetiva no exercício de poderes públicos seria uma fonte de risco para a

aplicação justa do Direito.14

O titular de funções decisórias deve-se afastar de motivações

12

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In AJURIS nº 87 tomo I (37-49).

13

Idem.

14

Sobre os riscos do consequencialismo/pragmatismo na aplicação do Direito, v. AVILA, A modulação dos efeitos temporais pelo STF no

controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a Constituição do artigo 27

da Lei no 9.868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

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Nº 24 - Dezembro 2010 21

não-objetivas e deve examinar somente aqueles elementos congruentes com o que preceitua

o ordenamento jurídico.15

A conduta imparcial é que confere o traço de legitimidade ou

arbitrariedade à atividade jurisdicional.

c) Por força do princípio democrático, assentado na soberania popular, o poder emana

do povo e ao povo retorna sob a forma de normas iguais para todos, as quais representam uma

decisão tomada direta ou indiretamente pelo próprio povo (CF, art. 1º, parágrafo único). Dessarte,

a opção pelo Estado Democrático de Direito —como faz a nossa Constituição no caput do artigo

1º— e, portanto, pelo governo das leis, traduz justamente um dos primeiros fundamentos para a

adoção da imparcialidade. A vontade que se deve fazer atuar é a do Direito, e não a do aplicador.

O princípio democrático, além do mais, exige uma ação responsável relativamente

ao bem comum e pressupõe, com isso, no âmbito decisório do Estado, que as decisões

sejam tomadas com base em critérios supraindividuais.16

d) Deve-se registrar, ainda, que numa perspectiva material o Estado de Direito prima,

também, pela exigência de justiça material (CF, art. 3º, inc. I), cuja distribuição seja

realizada com base em circunstâncias objetivas. Assim sendo, é necessário que as decisões

sejam produto não do imaginário do decisor, mas de elementos concretos efetivamente

presentes no objeto de sua cognição.

e) Ainda em face da perspectiva material de Estado de Direito, assume relevância o dever

de proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, inc. XXXV). Para

que os direitos fundamentais preencham sua função na realidade social, são necessárias

normas procedimentais organizatórias e regras procedimentais adequadas. Nas palavras de

CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA:

“os direitos fundamentais, para poderem desempenhar sua

função na realidade social, precisam não só de

normatização intrinsecamente densificadora como

também de formas de organização e de regulamentação

procedimentais apropriadas. Daí a necessidade de estarem

assegurados constitucionalmente por normas, principiais

ou não, garantindo-se ao mesmo tempo seu exercício e

restauração, em caso de violação por meio de órgãos

imparciais com efetividade e eficácia”.17

A proteção material dos direitos fundamentais, pois, consubstancia a garantia do

direito à ampla defesa de interesses num processo devido (“fair procedure”), sustentado na

participação dos interessados e na avaliação por um decisor imparcial (CF, art. 5º, inc. LV).

A própria preservação da dignidade humana exige que não haja dúvidas sobre a

objetividade e a imparcialidade no âmbito decisório da ação estatal. Faz parte do respeito à

15

KAZELE, Norbert. Interessenkollisionen und Befangenheit im Verwaltungsrecht. Berlim: Duncker & Humblot, 1990, p. 46.

16

KAZELE, op. cit., p. 48.

17

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In AJURIS nº 87 tomo I (37-49),

nesta passagem fazendo referência a KONRAD HESSE.

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22 Revista da PGM

dignidade humana a efetiva consideração dos direitos e interesses individuais pelo Estado,

que, além de protegê-los, está incumbido de propiciar condições para que eles se realizem.

E, tanto na proteção quanto nas possibilidades de realização desses interesses, a atividade

do Estado é permeada pelas exigências de impessoalidade, objetividade e imparcialidade.

No tocante à proteção dos direitos fundamentais há que considerar também a

relação recíproca entre os direitos de liberdade e as garantias do devido

processo (CF, art. 5º, inc. LIV). A vida em sociedade não é mais possível sem a participação

do Estado, que chamou para si, entre tantas atividades, o monopólio da jurisdição.

Conseqüência disso é a modificação das condições de realização da liberdade individual.18

Com efeito, o Estado passa a condicionar de diversas formas a liberdade individual, e tais

condicionamentos somente são legitimados pelo atendimento às condições de imparcialidade.

f) O Princípio da Igualdade é uma importante interface da imparcialidade. Nas suas

relações com os indivíduos, considerados perante o Estado, é decisivo que as decisões estatais

sejam tomadas sem a consideração da pessoa, e sim com a consideração objetiva dos pontos

de vista estabelecidos em lei.19

Tal consideração passa, obviamente, por mecanismos que

tornem o sistema impermeável a simpatias ou antipatias pessoais, a motivações político-

partidárias, ou a preferências ditadas pela afinidade com determinados grupos ou segmentos

na sociedade. Entre tais mecanismos, a imparcialidade e neutralidade aparecem para tornar

o sistema infenso a tais perigos.

3. Natureza Jurídica: princípio, regra ou postulado normativo aplicativo?

Essa busca de um assento constitucional para a imparcialidade somente se faz

relevante para demonstrar como a imparcialidade se afigura como condição indispensável

para o exercício legítimo do poder estatal. Não tivéssemos também esta intenção, esta

análise seria supérflua, pois não é de hoje que se sabe que a previsão expressa de uma

norma não é condição sine qua non para o reconhecimento de sua existência. No caso da

imparcialidade, isso é revelado especialmente se se tiver em vista a natureza da

imparcialidade enquanto postulado normativo, portanto, uma condição indispensável

para a aplicação das normas jurídicas, atividade que consiste precisa e principalmente

na atividade do magistrado. Se a imparcialidade for considerada um princípio, o mesmo

se pode dizer quanto ao seu reconhecimento dispensar a previsão normativa expressa,

tendo em vista o seu caráter fundante do ordenamento. Vejamos, pois, qual a natureza

jurídica da imparcialidade.

HUMBERTO ÁVILA propôs, na sua Teoria dos Princípios, o reconhecimento de

três espécies distintas de normas: as regras, os princípios e os postulados normativos

aplicativos. As regras seriam normas que prescrevem, imediatamente, a adoção da conduta

que descrevem com maior ou menor precisão. Os princípios, a seu turno, não descrevem

imediatamente condutas, mas enunciam a promoção de um fim, este considerado como

18

Idem, p. 52

19

Idem, p. 51

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um estado ideal de coisas. Os fins, nas regras, são implícitos, da mesma forma que as

condutas necessárias à promoção dos f ins descritos nos princípios estão neles

implicitamente previstas.20

Ladeando as regras e os princípios, inclui-se a categoria dos postulados normativos

aplicativos, que seriam espécies de meta-normas, pois não estabelecem deveres de conduta,

como as regras, e nem o dever de promoção de um certo estado de coisas, como os princípios,

estabelecendo, sim, o modo como esses deveres devem ser aplicados.21

Segundo ÁVILA,

“os postulados, de um lado, não impõem a promoção de

um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever

de promover o fim; de outro, não prescrevem indiretamente

comportamentos, mas modos de raciocínio e de

argumentação relativamente a normas que indiretamente

prescrevem comportamentos”.22

Vale sublinhar que referido autor admite a coexistência dessas espécies normativas

em face de uma mesma proposição jurídica. Assim, uma norma pode ser regra, princípio ou

postulado, tudo dependendo do enfoque sob o qual seja analisada.23

E, de fato, a

imparcialidade admite ser analisada sob diferentes ângulos.

A imparcialidade pode ser um princípio. Neste caso, vislumbra-se o dever de

promoção de um estado ideal de coisas, qual seja, o de julgamentos isentos de interesses

pessoais ou razões impróprias consideradas pelo julgador. Não há regra de conduta expressa

determinando positivamente a conduta que leve a este estado, ou seja, o que se deve fazer

para agir com imparcialidade. Contudo no CPC estão previstas, negativamente, as hipóteses

de suspeição ou impedimento, que determinam ao magistrado o que não fazer, sob pena de

violar-se o estado de coisas subjacente (imparcialidade) que as regras dos arts. 134 e 135

destinam-se a promover.

Ao se considerar a imparcialidade um princípio, afigura-se fundamental a

contribuição de CANOTILHO no sentido de que “os princípios se beneficiam de uma

objetividade e presencialidade que os dispensam de estarem consagrados expressamente

em qualquer preceito particular”.24

Vistos por este prisma, os princípios jurídicos, enquanto

“idéias jurídicas materiais que lograram uma consciência jurídica geral, podem tanto estar

escritos no texto legal, como podem estar implícitos”.25

20

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo:Malheiros Editores

08/2004, p. 70

21

Idem, p. 87-88.

22

Idem, p. 89.

23

Idem, p. 60.

24

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina, 3ª ed., Coimbra, 1999,

p. 1089.

25

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., Lisboa, 1989, p.

577. Ainda: Larenz qualifica os princípios jurídicos como “pautas diretivas de normação jurídica que, em virtude de sua

própria força de convicção, podem justificar resoluções jurídicas”.

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24 Revista da PGM

Além disso, um mandamento considerado um princípio jurídico, “compreende a

bipartição, característica da proposição de direito em previsão e consequência jurídica”26

,

de modo que, uma vez reconhecido, vincula imperativamente o destinatário. Disso tudo

resulta que, nada obstante a falta de assento expresso na Constituição, a imparcialidade

impõe-se enquanto princípio.

No entanto, a imparcialidade deve também ser vista enquanto postulado e já não

com as características de princípio ou regra.27

Há, nitidamente, um caráter metodológico —

ou formal, ou procedimental—, na imparcialidade. Este diz respeito à forma como o

magistrado vislumbra o ordenamento que lhe incumbe aplicar concretamente em face das

partes que se submetem à sua esfera de decisão. Diz respeito à condução do processo judicial

e do processo de aplicação do direito: esses processos devem ser conduzidos de forma isenta

de interesses pessoais ou razões impróprias. Quando o juiz analisa uma lei, bem como os

fatos e demais elementos que as partes apresentam à causa, deve fazê-lo com imparcialidade.

Não há negar, por este ângulo, o caráter metodológico que assume a imparcialidade.

Por este prisma, sendo o caso de inseri-la em alguma categoria analítico-normativa,

impõe-se a opção pela categoria dos postulados normativos, enquanto “condições de

possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico”, os quais, embora não ofereçam substrato

material para fundamentar uma decisão, explicam como (sob que condições) pode-se conhecer

o Direito.28

Não seria propriamente princípio, na concepção que lhe atribui a doutrina dominante

(DWORKIN, ALEXY), porque a imparcialidade não admitirá flexibilização e nem comporta uma

gradação na sua aplicação, i.e., não incide em graus. Por sinal, quanto à aplicação, assemelha-

se mais à regra: incide ou não, por completo (nas palavras de DWORKIN, “all or nothing

fashion”). EGON MOREIRA, apesar de chamar a imparcialidade de princípio, nitidamente

apercebeu-se desta circunstância quando averbou: “inexiste imparcialidade enfraquecida, ou

que eventualmente incida em alguns casos e noutros não. Trata-se de valor absoluto.”29

Trata-se, indubitavelmente, de exigência para que as normas jurídicas sejam aplicadas.

Veja-se que a imparcialidade, aqui, não contém um fim em si mesmo, e, sim, determina um

meio para que se atinjam fins previstos em outros princípios (instrumentaliza a

implementação da igualdade, do Estado de Direito, da proteção dos direitos e garantias

fundamentais, do contraditório, da ampla defesa, etc.). Não mais se enquadra, nesta segunda

hipótese, no conceito atribuído por ÁVILA aos princípios, enquanto normas imediatamente

finalísticas30

. Assim sendo, este dever é implicado por dedução lógica da necessidade de dar-

se cumprimento aos preceitos fundamentais que permeiam o ordenamento jurídico,

dispensando previsão normativa expressa.

26

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução de António Menezes

Cordeiro. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989, p. 86.

27

Sobre os aspectos comuns aos princípios jurídicos e sua distinção relativamente às regras jurídicas: ALEXY, Robert. Derecho y

Razón Practica. Biblioteca de Etica, Filosofia del Derecho y Politica. México, Premià Editora, 1993. CANOTILHO, Direito

Constitucional..., p. 1086 e ss.

28

ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidadde. in RDA

215:151-179, p. 165.

29

MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p 94.

30

ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras..., p.167.

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Parte II - Ruptura da Imparcialidade

1. O vício de parcialidade

O vício de parcialidade ocorre quando o magistrado é parcial. Assim será sempre

que, na tomada de decisões ou na simples condução processual, surgir o risco de que possa

o juiz agir influenciado por fatores que sejam impertinentes aos elementos postos em causa

pelas partes e ao ordenamento jurídico. Nessa situação, o juiz aparece subjetivamente — e

não mais objetivamente como se deveria supor — relacionado às questões que lhe forem

submetidas.

Não se concebe o magistrado como um ser despido de vontade própria. No entanto,

no sistema do civil law, as “vontades” possíveis ao magistrado são somente aquelas

amparadas pelo ordenamento jurídico. Afinal, a atividade jurisdicional reside na atuação

concreta da lei (entendida como Direito). Se o magistrado faz intervir uma vontade que

pouco ou nada tem a ver com o processo de aplicação da lei e com os atos que esta exige,

adquire este uma vontade que não lhe foi permitida pelo ordenamento: ele se apropria da

vontade que deve ser do ordenamento. Aí, então, a parcialidade: o risco de que decida uma

questão quem nela tenha interesse próprio atenta contra o mandamento da imparcialidade

e torna indiscutivelmente viciada a decisão tomada.

O vício de parcialidade foi profundamente estudado por DENIS GALLIGAN, defensor

de que a imparcialidade é a necessidade mais elementar para quem pretende dispensar, a

quem quer que seja, um tratamento justo e eqüitativo.31

Procurando analisar o porquê de se

considerar a parcialidade algo tão degradante, distinguiu o autor dois aspectos deste vício: a

predisposição de decidir em favor de alguém face a outrem (violação da igualdade) e o

descontrole em relação às pré-concepções, visto que “ser parcial é, de alguma forma, ter

decidido a questão de antemão ou tê-la decidido por razões que não são as razões corretas”32

.

GALLIGAN atribuiu à parcialidade diferentes naturezas, classificando-a em três espécies:

parcialidade pessoal (personal bias), parcialidade sistêmica (sistemic bias) e parcialidade

cognitiva (cognitive bias).

Parcialidade pessoal abrange a ampla esfera dos interesses pessoais, sentimentais

ou financeiros, inclusive em benefício de terceiros. Presente o interesse pessoal, o magistrado

é considerado incapaz de decidir adequadamente qualquer questão.

A parcialidade sistêmica diz com as predisposições do indivíduo, que resultam do

fato de ele pertencer a uma determinada classe social, ou ter tido determinada vida pregressa,

ou trabalhar em determinado segmento. Tudo isso gera uma natural afinidade entre indivíduos

31

GALLIGAN, Denis J. Due Process and “fair procedure” — A Study of Administrative Procedures. Oxford: Clarendon Press,

1996, p. 437 e ss. Acrescenta o autor: “The rule against bias stands with the hearing rule as one of the twin pillars of the

common law concept of precedural fairness. (...) the repugnance felt towards biased decision-makers is widely reflected in

constitutions, international conventions, and administrative law codes.”

32

GALLIGAN, Denis J. Due Process... p. 438 (traduziu-se)

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26 Revista da PGM

do mesmo segmento ou que tenham tido experiências semelhantes. Essas afinidades poderão

determinar influências nas ações e pontos de vista de qualquer pessoa. O autor reconhece que

essa “sistemic bias” é, por natureza, tão “entranhada” na compreensão que as pessoas têm

dos fatos, que dificilmente poderia ser eliminada ou reduzida, a não ser por uma modificação

do próprio sistema.33

No entanto, assevera o autor que admitir que esta forma de parcialidade

esteja tão arraigada na sociedade não significa dizer que ela seja inevitável ou tolerável. Mesmo

porque, ela pode ser tão prejudicial quanto as outras formas de parcialidade, ao provocar

distorções no processo judicial a partir da introdução de razões ilegítimas.

Em certa medida, o sistema do civil law, optando pela positivação do direito, possui meca-

nismos que atuam como freios a esta forma sistêmica de parcialidade. Assim, o simples respeito ao

Direito e à vontade geral positivada, ao mesmo tempo que atende às exigências de democracia,

legalidade, segurança jurídica, devido processo e dever de respeito à igualdade e dignidade do

cidadão, atende também ao dever de imparcialidade.

A parcialidade cognitiva compreende a idéia de que, no processo de formação da

decisão, muitas vezes assumem-se certas premissas que são injustificáveis à luz dos fatos e

que levam a conclusões falsas.34

Segundo GALLIGAN, a má apreciação das razões de decidir

já configura a parcialidade. Sem a observância dos parâmetros legais corretos para a decisão

—inclusive, e especialmente, no uso de poderes exercitáveis ex officio pelo juiz—, fica

inviabilizada uma tomada de decisão apoiada em padrões de conduta que, segundo o

ordenamento, seriam condizentes com a proteção dos direitos individuais e com o “fair

procedure”. Como conseqüência, a pessoa afetada pela decisão não é tratada segundo os

standards legais e, portanto, não é tratada com justiça (“is treated unfairly”).35

Bem de se ver que a averiguação da parcialidade remete ao subjetivismo das pessoas.

Por tal razão, a maior dificuldade com relação ao vício de parcialidade diz respeito à prova

desse subjetivismo. Justamente por isso é que, no Brasil, através da previsão de impedimentos

e suspeições, a imparcialidade é assegurada por um sistema em que o risco de avaliação

imprópria dos casos concretos justifica a invalidação da decisão. Ou seja, sinais exteriores

de que possa haver um posicionamento parcial do decisor são suficientes para que o

ordenamento lhe interdite a prática do ato ou a tomada de decisão, prescindindo-se da

prova de ter havido efetiva parcialidade. Basta, portanto, que o decisor possa ter interesse de

ordem pessoal ou pecuniária no caso, mesmo que ele tenha discernimento para não permitir

que tais interesses afetem sua avaliação. 36

33

“The alleged preferences of judges for men over women, the deep-seated racism of some police officers, or the moralistic

stereotyping of welfare claimants is each likely to be alleviated only by fundamental reforms in the education and training

of those making the judgements.” Idem, p. 439.

34

“...we tend to conclude rather too readily that our own view of an issue is widely shared; and when we believe variables to

be related to each other, we will hold them to be related even when they are not.” Idem, p. 440.

35

Idem, pp. 441 e 443. O que está em jogo, segundo o autor, são as normas jurídicas segundo as quais cada caso há de ser decidido. O

legislador já fixou as condutas possíveis à Administração, com maior determinação no caso das regras, ou menor determinação no caso dos

princípios. Mesmo nos princípios, porque impõem finalidades, reconhecem-se verdadeiros vetores de conduta, na medida em que tornam

intoleráveis condutas incompatíveis com os fins almejados pelo ordenamento jurídico.

36

Idem, p. 446: “A personal interest, whether financial, proprietary, or based on a special human association, automatically

criates a powerful risk of bias which is likely to have an insidious influence on the decision-maker, no matter how hard he

strives to overcome it.”

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São sistematizadas, assim, hipóteses de impedimento e suspeição que prevêem a

presunção, devido a razões de ordem subjetiva e que dizem respeito à pessoa do magistrado,

de que não haverá a imparcialidade, necessária em face dos princípios e garantias previstas

no sistema constitucional vigente. Por conseguinte, uma vez verificado o risco de parcialidade

por interesse pessoal do julgador da questão ou por incapacidade de avaliar a questão com

isenção, simplesmente demonstrar o risco deve ser suficiente para argüir-se a invalidade do

processo que deu origem à decisão.

Nesses casos, a valoração que o ordenamento dá à simples suspeita de que possa

haver parcialidade (daí falar-se em “risco”) é a seguinte: a mera suspeita já obscurece o

processo e ameaça o interesse público na necessidade de um juízo independente, que mereça

o respeito e a confiança dos jurisdicionados.37

O que ocorre nas hipóteses de impedimento e suspeição é que, ao invés de se presumir

o exercício impessoal, imparcial, objetivo e isento da jurisdição, presume-se exatamente o

contrário, e precisamente em face disso é que se impõe o afastamento do magistrado daquelas

situações em que seu desempenho seja comprometido por alguma questão subjetiva que

lhe diga respeito. Não importa se o magistrado se deixa ou não influenciar. Basta que esteja

em situação influenciável. As hipóteses de impedimento e suspeição servem justamente

para proteger o juiz dessas influências e também da repercussão negativa da condução do

processo por juiz presumivelmente interessado, tivesse ele realmente interesse ou não. Daí

porque, deve o magistrado ter à sua disposição a faculdade de exigir seu afastamento de

determinado caso por considerar-se impedido ou suspeito, bem como devem as partes

prejudicadas dispor de mecanismos para argüírem a parcialidade do juiz, para fins de afastá-

lo do caso em questão. Essas hipóteses estão contempladas no CPC no capítulo dos

impedimentos e suspeições.

2. Exceções de impedimento e suspeição

Entre as garantias típicas do processo judicial se situam a imparcialidade e as

hipóteses de impedimento e suspeição que dela decorrem. Isso porque é pacífica a

necessidade de que o juiz realmente julgue sem ser influenciado por quaisquer fatores que

não os direitos dos litigantes que ao seu juízo se submetem.38

PONTES DE MIRANDA afirmou que “quem está sob suspeição está em situação de

dúvida quanto ao seu bom procedimento. Quem está impedido está fora de dúvida, pela

enorme probabilidade de ter influência maléfica para a sua função.”39

O Código de Processo

Civil fixou, nos arts. 134 e 135, casos de impedimento e suspeição que, uma vez comprovados,

contêm verdadeira presunção juris et de jure de parcialidade, absoluta, portanto, ensejando

o afastamento do juiz naquelas situações em relação à causa.

37

Nesse sentido, GALLIGAN. Idem, p. 442.

38

BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume I. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 333.

39

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense,

1973, p.399.

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28 Revista da PGM

a) Hipóteses de Impedimento:

O Código de Processo Civil brasileiro, em seu artigo 134, arrola uma série de casos

de impedimento. Em ocorrendo uma dessas hipóteses e não se verificando o devido

afastamento do juiz impedido, fica o processo viciado por defeito insanável, que persiste até

depois do seu desfecho (nos termos do artigo 485, inciso II, do Código de Processo Civil

brasileiro, a sentença proferida por juiz impedido poderá ser objeto de ação rescisória).

Assim prevê o dispositivo (verbis):

“É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:

I - de que for parte;

II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou

como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha;

III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou

decisão;

IV - quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou

qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral

até o segundo grau;

V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das partes, em linha

reta ou na colateral, até o terceiro grau;

VI - quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na

causa.”

b) Hipóteses de Suspeição:

Como casos de suspeição estão contempladas, no artigo 135, as situações em que o

juiz tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os

respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau. Dispõe o referido

dispositivo que, nesses casos, poderá ser argüída a suspeição do juiz pelas partes interessadas.

Interessante notar que, em se tratando de suspeição, embora se verifique, também nesta

situação, uma presunção absoluta de parcialidade40

, não exige a lei a abstenção de atuação

do magistrado, dependendo o afastamento do requerimento pelos interessados. Ainda,

diversamente dos impedimentos, os casos de suspeição não constituem defeitos insanáveis,

de modo que, se o magistrado não se abstiver e nem a parte impugnar, o defeito

desaparecerá.41

Segundo o artigo 135 do Código de Processo Civil, “reputa-se fundada a

suspeição de parcialidade do juiz, quando:

I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;

II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes

destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau;

III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;

40

BARBI, Celso Agrícola. Comentários... p.341.

41

Idem, ibidem.

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Nº 24 - Dezembro 2010 29

IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das

partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas

do litígio;

V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.

Parágrafo único: Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.”

Segundo PONTES DE MIRANDA, “íntima diz-se a amizade quando há laços afetivos,

notórios ou não, mas verificáveis por fatos de estreita solidariedade, que possam influir no

julgamento pela determinação psicológica, consciente ou não. Também a inimizade capital

supõe o elemento afetivo de hostilidade a ponto de perturbar o julgamento.”42

Ressalta o

autor que a apreciação de tais causas de suspeição independe de auto-exame do agente,

podendo as partes interessadas prová-las com fatos e testemunhas.

Parte III – Imparcialidade e Processo:

1. Elementos do fair procedure: pode-se falar em contraditório, ampla defesa e juiz

natural sem imparcialidade?

A imparcialidade, considerada nos termos retro-expostos, apresenta-se como um

elemento intrínseco à noção de “fair procedure”, surgida no direito inglês para designar a

necessidade de que os atos estatais resultassem de um procedimento justo.

A idéia geral de “fair procedure” é de que um procedimento, para ser justo, deve

satisfazer todas as condições necessárias para preservar a imparcialidade (“unbiased

decision-making”) e o contraditório, consubstanciado na participação dos interessados para

efeitos de conhecerem a questão, oferecer defesa, argumentos e suas próprias razões. Esta é

a fórmula elementar para uma adequada avaliação dos interesses em jogo e para evitar

decisões baseadas em interesses impróprios (“sinister interests”).43

Nesse sentido, a imparcialidade constitui um elemento que pertence à própria noção

de processo, e sua ausência esvazia o sentido das principais garantias processuais – justo

aquelas que dão fundamento a toda estrutura do Processo Civil.

2. Imparcialidade e a garantia do contraditório:

Uma das mais importantes garantias jurídicas existentes no âmbito da função

jurisdicional é o contraditório. O contraditório é garantia constitucional insculpida no capítulo

dos direitos e garantias fundamentais, artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988,

assegurada a todos os que participam de processo judicial e administrativo. Ora, como já se

viu, uma das máximas do princípio da imparcialidade é justamente o direito de ser ouvido,

42

Comentários..., p. 403.

43

GALLIGAN, Denis J. Discretionary Powers — A Legal Study of Official Discretion. Oxford: Clarendon, 1986, P. 333.

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30 Revista da PGM

o que equivale à garantia do contraditório. Por conseqüência lógica, se o contraditório é

uma garantia inseparável do processo, a imparcialidade também o é.

A participação dos interessados é uma condição para que o procedimento seja

considerado justo. A imparcialidade visa a assegurar que a garantia mais eficaz do processo,

que é a possibilidade de participação das pessoas presentes na relação processual, não se

reduza a uma mera formalidade para legitimar decisões arbitrariamente levadas a efeito.

Devido à participação dos interessados, que consubstancia a garantia do contraditório, uma

sentença resulta não mais da vontade pessoal e subjetiva, do magistrado, mas de um

contraditório entre os interessados e o cotejo com os elementos que se apresentam para a

formação de sua convicção, tornando visível o confronto de todos os interesses presentes na

situação. Precisamente aí surge o dever de ponderação imparcial desses elementos pelo

juiz: não fosse ele exigido, sequer seria necessária a participação dos interessados e a

exposição de suas razões.

3. Imparcialidade e ampla defesa:

A ampla defesa está expressamente prevista no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal,

ao lado da garantia do contraditório. Da forma como foi prevista, não há mais dúvidas de

que a ampla defesa não se aplica apenas no âmbito penal, como concebera a Constituição

Imperial de 1824, tendo plena aplicabilidade nas instâncias processuais judiciais e

administrativas.

A garantia da ampla defesa exige o cumprimento de algumas regras de conduta para

tornar-se efetiva. A primeira delas é a instauração do contraditório, pois, em qualquer processo

do qual decorra decisão que influencie a esfera jurídica de alguém, é preciso dar a este

alguém conhecimento das informações que pesem contra ele – sob pena de ter-se instaurado

um encadeamento de atos como aquele concebido por KAFKA no seu conhecido “O Processo”.

E, por razão lógica, decorre a necessidade de que a defesa seja prévia, isto é, anterior à

decisão, para que possa ser conhecida e efetivamente considerada por quem tem competência

para decidir.44

Falta de contraditório e defesa posterior frustrariam o próprio propósito da

garantia da ampla defesa.

Além disso, a satisfação da ampla defesa compreende o acesso aos autos, a

possibilidade de apresentar razões e documentos, de produzir provas testemunhais ou

periciais e oferecer defesa técnica quando a natureza da situação assim o exigir, e ainda, faz-

se imprescindível a necessidade de motivação dos atos em geral e especialmente da decisão,

pois só isso permite que seja formulada defesa adequada.

A ampla defesa implica, portanto, a objetividade e a imparcialidade. Ou seja,

somente mediante a ampla participação do interessado, com a faculdade de oferecer provas

e argumentos, é que se tem condições de oferecer à autoridade elementos de convicção que

conduzam a “uma decisão racional, imparcial, ajustada aos fatos e à lei”.45

1

FERRAZ, Sérgio, e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 71.

1

SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento... Op. cit, p. 106.

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Nº 24 - Dezembro 2010 31

Interessante notar que, mesmo presentes no feito todas as oportunidades possíveis

de defesa, de nada valerão, se se admitir que a decisão seja tomada com parcialidade. É

evidente: perante julgador parcial, por mais que se argumente e se ofereçam razões, jamais

haverá a “garantia” de que os argumentos e razões influenciaram no convencimento —

situação inadmissível para a “garantia” da ampla defesa. O dever de imparcialidade aparece,

portanto, como uma necessidade lógica para que a garantia da ampla defesa seja exercida na

sua plenitude.

4. Imparcialidade e juiz natural:

“Juiz natural” é outra garantia fundamental, prevista nos incisos XXXVII e LIII do art.

5º da Constituição Federal, e a própria essência desta exige imparcialidade: a garantia se constitui

na exigência de julgamento por pessoa que ostente posição exclusivamente objetiva em relação

ao feito, ou, em outras palavras, que um juiz não possa decidir caso em que tenha uma classe

de interesse capaz de constituir verdadeiro motivo de parcialidade. Exigem-se, pois, basicamente

dois elementos: autoridade imparcial e pré-constituída em relação ao feito.46

Juiz natural não deixa de ser um corolário das garantias anteriormente analisadas,

sob pena de, mesmo que se admita o contraditório e a ampla defesa, escolher-se a dedo um

julgador predeterminado a condenar ou absolver, transformando o processo judicial em

verdadeiro faz-de-conta: o julgador parece levar em consideração a participação das partes,

tendo tomado de antemão sua decisão.47

Com a garantia do juiz natural incide, naturalmente,

o dever de imparcialidade, pois seria inútil disciplinar previamente um sistema de distribuição

de competências, caso fosse permitido à autoridade legalmente constituída atuar com

parcialidade.

CONCLUSÕES:

Conforme verificado, a imparcialidade e a independência do juiz são questões que

trazem em si grande relevância para melhor compreender a natureza da função jurisdicional.

Ainda mais, quando analisadas sob o prisma constitucional e, especialmente, dos direitos

fundamentais. A concepção jurídica de imparcialidade implica a ausência de interesse pessoal

em determinada questão, ou seja, é imparcial aquele que não é parte. Ainda que não haja previsão

expressa da imparcialidade na Constituição Federal, não há maior problema quanto a isso. Isso

porque vários dispositivos constitucionais implicam, logicamente, a imparcialidade.

Para que a conduta do magistrado possa ser imparcial é necessário que o ordenamento

proporcione condições que a favoreçam. Em vista disso, o nosso ordenamento atribuiu garantias

à função de magistrado, algumas constituindo verdadeiros pressupostos da conduta imparcial: a

46

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad,

1998. p. 271.

47

Idem, p. 301.

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32 Revista da PGM

garantia da independência, a vitaliciedade e a aposentadoria com proventos integrais ou

proporcionais. A ausência dessas garantias, sem prejuízo das demais existentes no

ordenamento jurídico brasileiro, torna, certamente, o magistrado vulnerável às possibilidades

de favorecimento e pressões dos mais diversos setores que possam ter interesse na decisão

de questões postas sob seu julgamento.

Cumpre esclarecer que a independência do magistrado não se confunde com

liberdade. A independência decorre do exercício de função jurisdicional, protegendo a

jurisdição contra a interferência de fatores externos a ela. Significa, basicamente que a

administração da justiça confiada ao Judiciário não se subordina à ingerência dos outros Poderes

da República e nem da opinião pública.

Não se pode presumir que, a pretexto de uma atuação independente, possa o magistrado

alhear-se ou desvincular-se do ordenamento jurídico e da realidade subjacente. A tônica da

independência está, justamente, na autonomia do Judiciário em face dos demais agentes do Estado.

Ainda, quando se fala, na doutrina processual, no chamado “princípio do livre

convencimento do juiz”, deve-se contextualizar este princípio na apreciação da prova apresentada

pelas partes perante o magistrado. A análise da prova é, precisamente, o âmbito do livre

convencimento, eis que é o magistrado quem, pela posição de imediatidade em relação aos fatos,

tem melhor condição de avaliá-los. Atribuir a este princípio do livre convencimento uma concepção

exacerbada (e isso se tem visto com uma freqüência lamentável), que permita ao julgador abrir

mão do ordenamento para aplicar ao caso os seus critérios pessoais e subjetivos é postura contrária

aos ditames da imparcialidade. Assim, independência e livre convencimento não se confundem

com liberdade para decidir à revelia do ordenamento.

No que diz respeito à natureza jurídica da imparcialidade, embora muitos

denominem-na como princípio, ela pode (e deve) também ser vista como postulado. Na

verdade, a categoria que mais se amolda as características da imparcialidade é justamente a

dos postulados. É esse o melhor entendimento, uma vez que a imparcialidade não admite

flexibilização e nem comporta uma gradação na sua aplicação, isto é, não incide em graus,

características normalmente atribuídas aos princípios. Ademais, quanto à aplicação,

assemelha-se mais à regra, ou seja, incide ou não, por completo.

Contudo, por vezes, o dever de imparcialidade está sujeito a violações, quando o

magistrado torna-se parcial. Isso ocorrerá sempre que, na tomada de decisões ou na simples

condução processual, surgir o risco de que possa o juiz influenciar-se por fatores externos e

inoportunos aos elementos postos em causa pelas partes e ao ordenamento jurídico. São esses os

casos de impedimento e suspeição do juiz, colacionados nos arts. 134 e 135 do Código Civil

Brasileiro, respectivamente.

Não se pode falar em contraditório, ampla defesa e juiz natural sem falar em

imparcialidade. Estes conceitos estão intimamente ligados ao postulado da imparcialidade. A

imparcialidade, conforme verificado, tem por objetivo assegurar que a garantia mais eficaz

do processo, que é a possibilidade de participação dos interessados, não se restrinja a uma

simples formalidade que legitime decisões arbitrariamente levadas a efeito. Igualmente ocorre

com a ampla defesa e o juiz natural, colocados na Constituição oportunamente próximos ao

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Nº 24 - Dezembro 2010 33

contraditório. A ampla defesa implica a imparcialidade. Significa dizer, portanto, que somente

mediante a ampla participação do interessado (através de provas e argumentos) é que se

têm condições de apresentar ao julgador elementos de convicção que conduzam a uma

decisão imparcial, amoldando os fatos à lei. A garantia fundamental do “juiz natural”, por

seu turno, essencialmente impõe a imparcialidade, uma vez que se constitui na exigência de

que um juiz não possa resolver um caso em que tenha uma classe de interesse capaz de

estabelecer verdadeiro motivo de parcialidade.

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Nº 24 - Dezembro 2010 35

O paradigma jurídico aplicável ao

adimplemento das obrigações no novo Código Civil

Arthur M. Ferreira Neto*

*

Mestre em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutorando em Filosofia pela PUCRS, Professor de Direito da PUCRS, Advogado em

Porto Alegre.

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36 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 37

Introdução

Paradigma científico em Thomas Kuhn

Thomas Kuhn, em seu clássico “The Stucture of Scientific Revolutions”2

, afirma que o

surgimento de um paradigma científico é sinal de maturidade no desenvolvimento em qualquer

ramo do conhecimento. Por paradigma entende determinado padrão ou modelo reconhecido

universalmente como um avanço científico, adotado, durante certo momento histórico, por

determinado segmento da comunidade acadêmica como parâmetro para a resolução de

problemas e desenvolvimento de pesquisas. Não obstante existam aqueles que neguem a

possibilidade de evoluções paradigmáticas no campo da ciência do direito, inegável a utilidade

de se pensar nas diferentes posturas adotadas pelo aplicador do direito diante do ordenamento

jurídico no transcurso da história.

Influência do culturalismo de Miguel Reale

na elaboração do novo Código

Assim pensando, não temos como deixar de vislumbrar o advento do novo Código

Civil como um símbolo que, entre outros, marca a modificação do paradigma jurídico. A

feitura do novo Diploma parte da inegável influência do culturalismo de Miguel Reale3

.

Criticando o formalismo de Kant, bem como o sentimento individualista que se instaurou

em nossa realidade a partir do Século XVIII, Reale propõe a apreensão do fenômeno jurídico

como sendo fruto pleno da experiência humana, fenômeno este historicamente relevante e

axiologicamente orientado. Com isso, a realidade deixa de ser mera projeção idealizada da

pura razão, passando a ser definida sempre de acordo com determinado contexto histórico,

dotado de sentido valorativo próprio. O ser numênico representado na figura estanque do

sujeito de direito move-se, agora, para a concepção de pessoa concretizada e

circunstancializada, assim como, a própria relação jurídica não mais pode ser entendida

como mera conexão estática de vontades livres, mas como convergência de interesses

integrados e harmonizáveis em busca de uma finalidade comum a ser atingido mediante

cooperação e lealdade.

2

KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Estados Unidos da América: University Of Chicago Press, 2ª edição, 1970.

3

“O mérito do Culturalismo Jurídico, o que o torna preferível a todas as doutrinas sobre a natureza e fundamento do Direito, é

exatamente a apreciação integral da vida jurídica, que não é só norma, nem só fato social. O Direito é uma realidade tridimensional,

que apresenta um substratum ‘fático’ (dado de natureza, circunstância histórica etc.) no qual se concretizam valores de cultura,

e, ao mesmo tempo, é norma que integra em unidade superior o processo incessante de atualização de valores.” (Horizontes do

Direito e da História. São Paulo: Editora Saraiva, 3ª edição, 2000, p. 296)

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38 Revista da PGM

Dois paradigmas jurídicos – Código Civil de 1916 e

Código Civil de 2002

A falta de compreensão do novo paradigma que se instaura, hoje, com o advento do novo

Código provoca a insatisfação em duas classes de juristas: naqueles que pretendem ler os

enunciados do novo Código ainda inspirados na ideologia oitocentista, puramente racional e

individualista, bem como naqueles denominados por Judith Martins-Costa4

de neotéricos, que se

regozijam com a novidade, pela exclusiva razão desta ser sem precedente.

Ora, não pode o aplicador do Código atentar-se apenas ao plano perfunctório dos

enunciados normativos nem pode ele ter como espírito a vanglorização de novidades que podem

ser facilmente abarcadas pelo novo paradigma proposto, desde que realizada sua compreensão

estrutural em termos de cláusulas gerais e de modelos jurídicos. Deve, na verdade, captar o

evolucionismo proposto por Miguel Reale, através do qual se pretende preservar o texto do Código

anterior naqueles pontos concordantes com o novo paradigma, inovando-se apenas nas searas

em que a prudência assim determina.

Por estas razões, clarear a modificação paradigmática que se iniciou com a vigência do

Código de 2002 é tarefa que se impõe e a primeira delas é a demonstração da mudança

metodológica que se introduziu.

Quadro comparativo

A introdução do Diploma Civil de 2002 provoca tamanha mudança na postura que o

aplicador do direito deve ter ao manejá-lo que se torna possível estruturar o seguinte quadro,

com função de permitir a comparação entre o paradigma que inspirou o código passado e aquele

que hoje impera:

4

Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. XI.

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Nº 24 - Dezembro 2010 39

Neste trabalho, portanto, propõe-se a analisar o paradigma jurídico que influenciou Clóvis

Bevilaqua na elaboração do Código Civil de 1916, especificamente no que tange ao adimplemento

das obrigações, bem como os motivos que levaram ao declínio deste mesmo paradigma. Em

seguida, será exposto o surgimento de um novo paradigma, que resgata, em certa medida, o

espírito da filosofia clássica, localizando tal influência na estruturação de uma nova concepção de

adimplemento da obrigação. Por fim, buscar-se-á apresentar uma nova leitura do modelo jurídico

da boa-fé, partindo-se da aplicação a esse instituto jurídico da nova teoria dos princípios proposta

por Humberto Ávila.

1. O ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – A

INSPIRAÇÃO DO INDIVIDUALISMO E DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL

a) Kant – Ruptura de Paradigma Clássico e influência no pensamento

jurídico moderno

Mesmo já existindo, no Direito Romano, a concepção da obrigação como sendo um vínculo

jurídico que constrangia o devedor a realizar determinada tarefa em benefício exclusivo do credor,

representada na famosa definição de Justiniano (“obligatio est iuris vinculum, quo necessitatis

adstringimur aliucus solvendae rei, secundum nostrae civitas iura”), foi somente que com o

racionalismo e o idealismo transcendental de Immanuel Kant que o relacionar entre pessoas

dentro do mundo jurídico atingiu grau máximo de abstração, tornando-se, com isso, altamente

estático e formal.

Nos anos de 1797 e 1798, Kant lança sua Metafísica dos Costumes, sua obra de maior

reflexo no campo do direito, através da qual busca estruturar todas as regras apriorísticas e extraídas

da pura razão, que guiariam o homem em sua ação prática. Divide, assim, sua obra em duas

partes: os princípios metafísicos da doutrina do direito e princípios metafísicos da doutrina da

virtude. Interessa ao presente estudo a primeira parte do trabalho desenvolvido por Kant, que,

por sua vez, divide-se em doutrina do Direito Privado e doutrina do Direito Público.

Em sua Doutrina Transcendental, Kant parte da confiança que deposita na estrutura

formal do seu imperativo categórico, o qual pode ser entendido como o instrumento suficiente e

necessário, dado pela pura razão, que impõe ao ser racional o dever de preencher determinado

comportamento, visto como objetivamente bom. Não é à toa que, para Kant, a obrigação é vista

“como la necessidad de uma acción libre bajo un impetrativo categórico de la razón”5

, enquanto

o dever é simplesmente “la acción a la que alguien está obligado”6

.

Já na Doutrina do Direito, o fenômeno jurídico é visto apenas como o conjunto de condições

nas quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio de outro, sob leis universais da liberdade.

Desta concepção de direito surge a noção do indivíduo portador de uma liberdade a priori e

ilimitada, sendo restringida apenas externamente, em um segundo momento, pelo âmbito de

5

KANT, Immanuel. ORTS, Adela Cortina (trad.). La Metafísica de los Costumbres. Espanha: Editorial Tecnos, 3ª edição, 2001, p. 28.

6

Op. cit., p. 29.

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40 Revista da PGM

projeção da liberdade individual de seu vizinho. A partir do momento em que o direito passa a ser

visto, não mais como uma coordenação harmônica de interesses direcionados, mesmo que

indiretamente, para um fim comum, mas como uma convivência de esferas individuais de poder,

autônomas e auto-interessadas, inicia-se a instauração de um novo paradigma científico, naqueles

termos em que definidos por Thomas Kuhn.

A adoção do novo paradigma introduzido por Kant acarretou duas mudanças na perspectiva

do fenômeno jurídico. Primeiramente, o conjunto de condições que permite o convívio dos arbítrios,

agora chamado de direito, somente adquire sentido enquanto visto como modo coação daqueles

que injustamente adentram na esfera de liberdade de outro indivíduo. Não é por outra razão que

Kant afirma que “...derecho y facultad de coaccionar significan, pues, una y la misma cosa”7

.

A segunda alteração marcante está na descrença absoluta quanto à possibilidade de se aplicar um

juízo eqüitativo na composição dos conflitos jurídicos. O Mestre de Königsberg introduz a eqüidade

dentro de seção da sua obra que denominada “Direito Equívoco”, já que se mostra como a

situação em que o indivíduo possui direito, mas este não tem o direito de coação correspondente.

Assim, nestes casos, jamais poderá haver reparação de qualquer dano mediante a invocação da

eqüidade, pois “ésta sólo pertence al tribunal de la conciencia (forum poli), mientras que toda

cuestión jurídica ha de llevarse ante el derecho civil (forum soli).”8

Envolto em toda esta ideologia é que se encontra estruturada a relação jurídica na esfera

privada. Kant teoriza acerca dos vínculos jurídicos formados entre os indivíduos em seção de sua

obra denominada como “Modo de adquirir algo exterior.”9

Neste contexto, uma relação jurídica

obrigacional é definida como sendo a faculdade de o meu arbítrio, sob leis universais da

liberdade, adquirir o arbítrio de outrem, iniciando, assim, uma relação de causalidade, em

que o arbítrio adquirido se compromete a realizar determinado ato em meu favor. Vejamos as

palavras próprias de Kant:

“Pero que es lo exterior que adquiero por contrato? Puesto que sólo se trata de la

causalidad del arbitrio del otro con respecto a la prestacion que me ha prometido, no adquiero

inmediatamente una cosa exterior, sino un acto de este último, por el que aquella cosa pasa

a mi poder, para que yo la haga mía. Asi pues, mediante el contrato adquiero la promessa de

otro (no lo prometido)... Pero este derecho mío es sólo personal, es decir, un derecho frente a

una determinada persona física, o sea, el de actuar sobre su causalidad (su arbitrio) para

que produzca algo para mí...”10

Temos nesta passagem a marca de nascença do voluntarismo que impregnou, não

apenas o modo de pensar os vínculos obrigacionais, mas toda a mentalidade jurídica dos

últimos séculos.

7

Op. cit., p. 42.

8

Op. cit., p. 44/45.

9

Op. cit., p. 72.

10

Op. cit., p. 93.

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Nº 24 - Dezembro 2010 41

b) Autonomia da vontade como princípio norteador no Direito das

Obrigações

O voluntarismo inaugurado pelo idealismo transcendental de Kant, juntamente com as

concepções liberais do século XIX, marcaram o direito obrigacional e os sistemas contratuais durante

longo período. Inspirados nos ideais da revolução francesa, os indivíduos são vistos e tratados com

igualdade absoluta – em um sentido meramente formal –, até porque todos, da mesma forma,

qualificados como seres racionais e dotados de plena liberdade para dispor acerca de seus destinos,

de acordo com aquilo que fosse ditado pela vontade. Neste momento histórico, a vontade aparece

como valor superior e o ato volitivo com evento de maior relevância no trânsito jurídico.

Além disto, desta matriz surge, para o direito obrigacional, o primado supremo da

autonomia da vontade, o qual, por um lado, impõe a obrigatoriedade dos compromisso assumidos

pelas partes e, por outro, a imutabilidade da avença firmada, independentemente das modificações

fáticas surgidas no mundo dos fenômenos. Esta última característica é reflexo claro de

superestimação do primado da vontade, bem como conseqüência da máxima abstração com que

os vínculos jurídicos são vistos pelo aplicador do direito neste período. Ora, dentro destas relações

ideais e abstratas, os seus partícipes são considerados apenas como seres numênicos – puramente

racionais e despedidos de qualquer qualificação empírica -, motivo pelo qual se torna extremamente

fácil tratá-los em pé de “igualdade”. Sendo também igualmente livres, dentro desta realidade

abstrata, os contratantes numênicos não estão autorizados a insurgir-se contra as regras ditadas

por eles mesmos neste ambiente de liberdade plena.

Assim, a absolutização de uma denominada autonomia da “vontade” impede que se

busque, dentro do direito obrigacional, uma igualdade material entre as partes contratantes,

afastando, ainda, a possibilidade de se alcançar a solução adequada em cada caso particular, qual

seja, o justo concreto.

Clóvis do Couto e Silva, em seu clássico artigo11

, relembra que, quando das Codificações

do Direito Civil do século XIX, o primado da autonomia da vontade sustentava-se em uma realidade

na qual havia um mercado eficiente, com uma economia estável, e com um Estado que não

promovia intervenções exageradas. Em contrapartida, as crises econômicas que marcaram a

primeira metade do século passado impuseram a utilização da cláusula “rebus sic stantibus”, a

fim de apaziguar o grande número de conflitos surgidos no período. Não obstante o respeito que

se impõe ao renomado civilista gaúcho, mostra-se necessário remarcar que, entre nós, não vemos

a falta de estabilidade econômica e financeira como sendo o critério suficiente ou necessário para

a adoção de uma postura relativizadora do primado da autonomia da vontade. A necessidade de

conjugarmos o elemento vontade com outros valores protegidos no Direito Obrigacional não

surge somente quando se está diante de realidades econômicas inseguras e instáveis. Isso significa

qualificar ainda mais o tom de relativização que necessita ser empenhado na compreensão da

autonomia da “vontade”, pois, mesmo em Estados com economia extremamente saudável, este

primado poderá ter que ceder diante das peculiaridades da situação particular.

11

A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro.

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42 Revista da PGM

c) Estrutura do Direito das Obrigações no Código de Beviláqua

Clóvis Beviláqua concretizou no Código Civil de 1916 projeto dotado de qualidades

invejáveis, já que de elaboração escorada na genialidade deste mestre. Conforme afirmado por

Renan Lotufo, “é considerado um monumento legislativo de tal porte que é citado nos grandes

autores internacionais...”12

. Tais considerações são necessárias para mantermos aceso o respeito

que a obra legislativa indubitavelmente merece. Como é inerente à própria experiência humana,

nem o maior dos pensadores consegue captar, de modo pleno, o espírito que irá coordenar, no

futuro, a ordem das coisas. Por isso, torna-se necessário analisar a estrutura do Código de 1916

para, diferenciando, compará-lo com o Diploma Civil atualmente em vigor.

Por outro lado, não devemos obliterar qual era a postura ideológica que veio a guiar

Bevilaqua na produção de seu projeto. É marcante a inspiração da filosofia deontológica no seguinte

trecho do seu livro “Direitos das Obrigações”:

“Em todas essas faces da existência, o conceito de obrigação é, fundamentalmente, o

mesmo, porque é sempre a submissão a um regra de conduta, cuja autoridade é reconhecida

ou forçosamente se impõe ...”13

Assim como Kant, Bevilaqua vê na obrigação um compromisso indeclinável de se dar

observância a uma regra de conduta que, postada acima de nós, nos oprimi. Tanto é verdade

que, modificando singelamente conceito antes desenhado por Savigny, define a obrigação jurídica

como sendo:

“a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma

coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém que por ato nosso ou de

alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei adquiriu o direito de exigir

de nós essa ação ou omissão.”14

O Código de Beviláqua dispunha sobre o Direito das Obrigações no Livro III da sua Parte

Geral. A sistematização científica do seu projeto codificador apresentou, em primeiro lugar, as

modalidades de obrigações (Título I), classificadas de acordo com o seu conteúdo, para, em

seguida, estabelecer genericamente os efeitos regulares destas (Título II) e, depois, dispor, de

modo mais detalhado, acerca dos contratos e suas espécies (Título IV e V). O Código de 1916 não

continha nenhum título ou capítulo próprio para o trato do adimplemento obrigacional. Na verdade,

os dispositivos que tratavam especificamente do adimplemento encontravam-se, de modo esparso,

no Título II do Livro III, o qual assumia a denominação ampla “Dos efeitos das Obrigações”. Além

disso, o inadimplemento vinha regrado genericamente dentro do Capítulo XIII do mesmo Livro

III, com o nome “Das conseqüências da inexecução das obrigações.

12

Da oportunidade de Codificação Civil e a Constituição, in SARLET, Ingo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição. Porto

Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2003.

13

Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Francisco Alves, 8ª edição, 1954, p. 14.

14

Op. cit., p. 14.

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Nº 24 - Dezembro 2010 43

O fato de tanto o adimplemento da obrigação, quanto a falha no seu cumprir, estarem

ambos previstos no título genérico dos efeitos regulares das obrigações é por demais simbólico e

marca o espírito que rendia a postura do jurista na época de elaboração do Código, atualmente

revogado. Este simbolismo será analisado no item que segue.

d) Adimplemento como mero efeito dos vínculos obrigacionais.

Conforme já antecipado no item anterior, sob a égide do Código de Beviláqua, o

adimplemento, juntamente com a regra geral do inadimplemento (Art. 1.056. Não

cumprindo a obrigação, ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde

o devedor por perdas e danos.), encontravam-se regrados, de forma esparsa, dentro do

título dedicado aos efeitos das obrigações. Esta constatação não é feita de modo

descompromissado, exatamente porque não se vislumbra como irrelevante ou aleatória a

presença do adimplemento debaixo do campo dos amplos e genéricos efeitos obrigacionais.

Na verdade, a constatação serve para demonstrar, mais uma vez, o plexo ideológico que

embriagava os juristas da época.

Ora, tendo já ressaltado que, sob o domínio da mentalidade voluntarista e idealista

inaugurada no século XIII, os vínculos obrigacionais eram vistos como meras conexões

estáticas entre dois centros de poder, formalmente iguais, e sempre antagônicos, nos quais

o arbítrio de um contratante captura o de outro, para seu interesse próprio, por óbvio que o

adimplemento da obrigação não teria como não assumir outro papel senão secundário. Neste

contexto, o adimplemento não é a finalidade de uma obrigação, mas mero efeito natural de

uma relação de causalidade que se inaugurou com a apreensão do arbítrio daquele que

sofre a imposição do dever jurídico. Sendo o adimplemento um efeito natural desta cadeia

de causalidade, aparece ele quase como carente de juridicidade – um simples evento social,

que, inclusive, poderia dispensar regramento jurídico próprio –, pois, lembrando-se de Kant,

nas hipóteses de sua configuração nenhuma necessidade de coação surgiria e, portanto,

desnecessário seria o Direito.

Como se pretende apresentar na segunda parte deste trabalho, o novo paradigma jurídico

instaurado pelo Código de 2002 resinstaura a ideia do adimplemento como telos de todo vínculo

obrigacional, assumindo, com isso, posição de destaque no Direito das Obrigações.

2. O ADIMPLEMENTO OBRIGACIONAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL –

MUDANÇA PARADIGMÁTICA E A BUSCA PELA ETICIDADE DA SITUAÇÃO

a) Declínio do Idealismo transcendental kantiano (crise paradigmática)

Em seu estudo histórico sobre o padrão das evoluções científicas, Thomas Kuhn atesta

que o surgimento de um novo paradigma científico pressupõe o surgimento de casos anômalos

em relação aos quais o paradigma vigente não mais fornece respostas, provocando, com isso,

crises paradigmáticas. A conseqüência direta da instauração desta crise é a descoberta de novas

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44 Revista da PGM

teorias científicas que moldam padrões pré-paradigmáticos, que, ao final, formam um novo

paradigma a ser observado e seguido pela comunidade acadêmica15

.

No caso da ciência do Direito, mesmo sendo de grande utilidade a terminologia de Kuhn,

não se pode dizer que o paradigma jurídico que atualmente está sendo difundido corresponda à

descoberta de uma nova teoria que emergiu do desenvolvimento científico. Na verdade, é de ser

compreendido como um redescobrimento dos pensadores clássicos.

De qualquer modo, a descrição de Kuhn sobre o aparecimento e o desenvolvimento da

crise paradigmática nos é bastante pertinente.

Na primeira parte deste trabalho, foram apresentados os fundamentos da postura filosófica

que inspirou as mentes dos juristas daquele período. As premissas do Iluminismo fizeram com

que o homem fosse visto como um ente puramente racional (ser numênico), despedido de todas

as suas características e qualidades, as quais precisamente o diferenciam de seus pares. Tal postura,

como já visto, veio a autorizar um tratamento a todos uniforme, baseado em uma igualdade

meramente formal. A influência do liberalismo clássico também deixou outras marcas, ao colocar

o homem como ser plenamente livre e guiado pela sua vontade, possibilitando que, baseado

exclusivamente em um ato volitivo, viesse ele a formar vínculos jurídicos e contrair obrigações, as

quais, assumidas livremente, deveriam ser atendidas e preenchidas independentemente das

modificações fáticas posteriores. Dentro destas relações intersubjetivas, um contratante numênico

encontrava-se munido de um direito subjetivo. Este era visto, nesta época, como um verdadeiro

poder que emanava de sua personalidade, quase que dotado de vida própria, nascido em meio a

uma penumbra mística, ilimitado, sofrendo apenas restrições externas, naqueles estritos pontos

previstos pelo ordenamento jurídico. Do outro lado desta mesma relação jurídica abstrata,

encontrava-se o outro contratante numênico, que, estando pechado por um dever jurídico que

lhe intimidava e lhe oprimia, ficava acuado no outro extremo da conexão, sem nada por fazer que

não absolutamente satisfazer o interesse daquele que portava o direito subjetivo, o qual, inclusive,

podia coagi-lo a dar cumprimento à prestação, caso desatento.

Mesmo sendo um tanto exagerada tal descrição, os seus fundamentos indubitavelmente

inspiraram os juristas de tempos passados.

Ocorre que modificações na forma do pensamento humano e na própria estruturação

social fizeram surgir realidades para as quais o paradigma idealista não dava conta, deslanchando-

se a já referida crise paradigmática. O rompimento com a postura da modernidade inicia-se

quando o homem não admite mais ser tratado pelo Estado como apenas uma abstração, não se

contentando com a igualdade formal e exigindo a instauração e a concretização de políticas que

visam a uma igualdade substancial, de acordo com a necessidade de cada indivíduo,

circunstancialmente qualificado. Trata-se da passagem do Estado Liberal para o Estado Social, a

qual, porém, é matéria que indubitavelmente refoge ao tema proposto.

Este contexto, de qualquer modo, marca forte modificação no âmbito do direito civil,

instaurando a necessidade de as partes integrantes da relação serem compreendidas não

abstratamente, mas conforme suas particularidades concretas, as quais deverão ser levadas em

15

KUHN, op. cit., pp. 17/20.

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Nº 24 - Dezembro 2010 45

consideração ao atribuírem-se as posição jurídicas respectivas. Com isso, deixa-se de analisar a

obrigação apenas pela sua perspectiva externa, passando-se a averiguar os aspectos internos da

relação obrigacional.

Para Judith Martins-Costa dois fatos levaram à ruptura do paradigma oitocentista. O

primeiro deles é a necessidade de, atualmente, ver o homem como ocupante de inúmeros papéis

dentro da sociedade, que o qualificam, não mais como mero sujeito de direito, mas como uma

pessoa concretizada e circunstancializada. Mais do que isso, a pessoa passa a ser vista como o

valor-fonte de todo o ordenamento jurídico, em relação ao qual todos os demais valores são

estruturados16

.

Em segundo lugar, impõe-se considerar que a própria racionalidade das relações

econômica emergentes na sociedade hodierna alterou-se. Isso porque vivenciamos hoje, o que

Bell denomina, de sociedade pós-industrial, na qual grande parte dos trabalhadores ocupa seus

postos no terceiro setor (serviços) e os contratos não servem mais apenas para a circulação de

bens, mas para englobar tratativas antes jamais imaginadas (meras criações de produtos

financeiros)17

.

b) Empirismo de Alf Ross como instrumento desmistificador do Direito

Subjetivo (função propedêutica do tû-tû)

Não obstante a inegável modificação na realidade social e econômica provocada pelos

fatos acima descritos, a reflexa alteração no paradigma jurídico não é algo facilmente apreendida

pelo jurista. Os conceitos e modelos defendidos no paradigma anterior estão de tal modo

impregnados em nosso intelecto que a adoção de um novo padrão de pensar mostra-se uma

tarefa árdua. O direito subjetivo e o dever jurídico são definições fortemente marcadas no

aprendizado do aplicador do direito e este ferrete provoca dificuldades no aceitar a estrutura

trabalhada no novo Código Civil. Por esta razão, antes de se passar ao estudo do novo paradigma

que agora se instala, é imperativo adotarmos algumas providências propedêuticas.

Para tanto, nos valeremos de precioso estudo apresentado por Alf Ross. Desenvolvendo

pensamento qualificável como empirismo jurídico, Ross elabora excelente texto que pode ser

visto como um instrumento desmistificador da noção se tem de direito subjetivo, conforme

entendido na concepção oitocentista antes traçada. O texto, assim, mostra-se propedêutico, pois

é leitura necessária para nos desapegarmos gradualmente do idealismo transcendental que assolou

e talvez ainda assole o pensamento jurídico.

Publicado no ano de 1957, o artigo assumiu o curioso e sugestivo nome de “Tû-tû”18

. Tal

título encontra esclarecimento já no relato inicial feito por Alf Ross. Relata o jusfilósofo escandinavo

que, em 1950, o antropologista Ydobon publicou estudo sobre a tribo Noît-cif, que habitava ilha

do Pacífico Sul, denominada Noîsulli, povo este considerado como o mais primitivo daquela época.

Ao analisar o povo noît-cif, o Sr. Ydobon veio a constatar que, entre os integrantes da tribo, tinha-

16

Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, pp. 04.

17

Op. cit., p. 05.

18

ROSS, Alf. Tû-Tû. Harvard Law Review, vol. 70. Cambriedge: The Harvard Law Review Association, 1956-7.

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46 Revista da PGM

se o costume de se reconhecer o surgimento de algo por eles denominado de tû-tû, sempre que

um de seus tabus locais tivesse sido violado. Da mesma forma, aquele que agisse em contradição

com o tabu imposto na tribo também receberia a pecha de tû-tû. Não obstante a dificuldade de se

transpor a amplitude desta expressão não-civilizada para a linguagem científica, Ydobon explica

que tû-tû era visto como uma força perigosa ou uma infecção que acometia a pessoa do infrator

e colocava em risco integridade de toda a comunidade, razão pela qual o aparecimento de tû-tû

sempre exigia um ritual de purificação. Por isso, relata, exemplificativamente, que o fato de um

noît-cif comer a comida do chefe da tribo ou matar animal considerado sagrado demonstrava

como efeito correlato e imediato o surgimento do tû-tû, o qual, ainda em uma relação de

causalidade, exigia, para fins de sua resolução e apaziguação, a realização da cerimônia solene de

purificação19

. Assim, concluiu Ydobon que tû-tû não possuía qualquer significação semântica ou

utilidade prática, pois tinha como função apenas concatenar a descrição de fato violador de regra

costumeira com a prescrição da conseqüente sanção a ser aplicada nestes casos de violação, no

caso a cerimônia de purificação. Portanto, para ele o tû-tû apenas representava uma superstição

da tribo que ainda vivia em estado de incivilidade, o qual deveria, por óbvio, ser abandonado20

.

Neste ponto, Ross rompe sua narrativa para confessar que jamais existiu a ilha de Noîsulli,

o povo de Noît-cif nem o Sr. Ydobon21

. Da mesma forma, o tû-tû seria pura criação, fruto de sua

inventividade, servindo de crítica ao modo como, muitas vezes, o próprio aplicador do direito

visualiza o surgimento de uma relação jurídica, bem como entende a natureza do direito subjetivo

e do dever jurídico. Mesmo que não tenha conteúdo semântico próprio, Ross defende que seria

exagerado o abandono, proposto por Ydobon, de expressões como o tû-tû. Isso porque elas ganham

uma importante função no uso diário da linguagem, especialmente no campo jurídico, já que sua

aparição não é aleatória e sempre vem a representar um conector entre uma asserção descritiva

e uma asserção prescritiva.

O tû-tû deve ser compreendido, pois, como um instrumento necessário ao operador do

direito, isso quando vislumbrado como sendo um termo intermediário entre dois estado de coisas

(states of affairs), um descritivo, que qualifica a ocorrência de determinada situação jurídica tida

por relevante, e outro prescritivo, que indica as conseqüências que devem ser, por ele, aplicador

do direito, esperadas e almejadas.22

É por esta razão que a expressão tû-tû, mesmo não tendo

qualquer significado semântico, encontra forte função prática23

. Seria caótico o sistema jurídico

que pretendesse abstrair por completo de sua linguagem expressões tû-tû e passasse simplesmente

a elencar uma série desencadeada de fatos relacionados com conseqüências isoladas. Tal postura

19

Esquematicamente, a relação poderia ser apresentada da seguinte forma:

(1) Se alguém comer a comida do chefe da tribo, ele estará tû-tû;

(2) Se alguém estiver tû-tû, ele deverá ser submetido a uma cerimônia de purificação.

20

Por isso, a relação antes apresentada poderia ser simplesmente relatada através de uma única assertiva:

(3) Se alguém comer a comida do chefe da tribo, ele deverá ser submetido a uma cerimônia de purificação.

21

A leitura invertida dos termos corresponderia a Illusion, Fiction e Nobody.

22

“The tû-tû pronouncements seem able to fulfill the two main functions of all language: to prescribe and to describe; or to be more

explicit, to express commands or rules, and to make assertions about facts.” (op. cit., p. 813)

23

“Although the word “tû-tû” in itself has no meaning whatever, yet the pronouncements in which this occurs are not made in a

haphazard fashion. Like other pronouncements of assertion they are stimulated in conformity with prevailing linguistic customs by

quite definite states of affairs. This explains why tû-tû pronouncements have semantic reference although the word is meaningless.”

(op. cit., p. 814)

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Nº 24 - Dezembro 2010 47

24

Tomando-se o exemplo da propriedade, explicitado por Alf Ross: “(Ownership) merely stands for the systematic connection that F1,

as well as F2, F3 ... Fp entail the totality of legal consequences C1, C2, C3 ... Cn. As a tecnique of presentation this is expressed then

by stating in one series of rules the fact that ‘create ownership’ and in another serires the legal consequences that ‘ownership’

entails.” (op. cit., p. 820)

25

Op. cit., p. 818.

26

Op. cit., p. 825.

27

CASTRO, Torquato. Teoria da Situação Jurídica em Direito Privado Nacional. São Paulo, Editora Saraiva, 1985, p. VIII.

acarretaria um sistema infinito de regras jurídicas. Por isso, uma expressão ao estilo tû-tû tem a

precípua função de compilar e unificar um conjunto definido de realidades fáticas, relacionando-

o com uma séria, também ordenada, de conseqüências desejadas24

.

O excesso na compreensão do termo tû-tû estaria precisamente em entendê-lo como

sendo um ente dotado de autonomia e força própria, que poderia ser compreendido

independentemente da situação jurídica na qual surgiu. Tal postura é típica na noção oitocentista

de direito subjetivo, em que este seria visto como “a power of an incorporeal nature, a kind of

inner, and invisible dominion over the object of the right, a power manifested in, but

nevertheless different form, the exercise of the force (judgement and execution) by which the

factual and apparent use and enjoyment of the right is effectuated.”25

A alegoria do tû-tû, portanto, está direcionada a nós operadores do direito, sendo que,

por um lado, busca expurgar a falsa noção de direito subjetivo como poder autônomo emanado

de seu titular, no mesmo estilo místico e fantasioso em que era compreendido na fictícia tribo de

Noît-cif, e, por outro, pretende demonstrar sua inerente função sistemática na linguagem jurídica,

a qual possibilita unificar situações jurídicas de relevo com o seu conjunto de conseqüências

desejadas. Serve, portanto, como “ferramentas de presentação”26

ou como uma ligação causal

entre determinada situação fática descrita com determinada conseqüência jurídica desejada.

c) Introdução à Teoria da Situação Jurídica e a busca pela Eticidade

Afastada a natureza mística e esotérica que envolvia a noção de direito subjetivo, pode-se

apresentar a estrutura que molda o paradigma que hoje é reintroduzido na prática jurídica. Fala-

se em reintrodução, pois, na verdade, corresponde ele, até certo ponto, em um resgate do

pensamento clássico. A relação jurídica já não pode mais ser apreendida em sua visão estática, de

pólos antagônicos, em que direito subjetivo e dever jurídicos podem ser analisados de modo

apartado, pois estritamente opostos. A postura estática diante da relação jurídica poderia ser

representada da seguinte forma:

A > B

Direito Dever

Subjetivo Jurídico

Uma vez assimilados os ensinos propedêuticos apresentados no item antecedente, impõe-

se abandonar a “filosofia que reduziu o direito a uma simples manifestação de liberdade

individual.”27

A visão do fenômeno jurídico que não se contenta com a estrutura formalizada e

estática da relação jurídica é aquela que resgata a necessidade de se buscar o justo do caso concreto,

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48 Revista da PGM

ou seja, a solução adequada para cada situação circunstancializada. O direito, portanto, nesta realidade,

não será um a priori da razão humana, tal como o imperativo categórico kantiano, mas um fenômeno

que tome em conta a problematicidade e a circunstancialidade das inúmeras situações fáticas

relevantes para o mundo jurídico28

. Tais situações fáticas, uma vez qualificadas pelo sistema jurídico

como relevantes, isto é, como fato jurídico29

, passam a estruturar situações jurídicas.

Os sujeitos de direito inseridos na situação jurídica necessitam ser qualificados de acordo

com as circunstâncias fáticas em que o vínculo obrigacional surgiu. Isso faz com que eles venham

a assumir posições jurídicas determinadas dentro da relação. Sobre a qualificação das posições

jurídicas, cabem os esclarecimentos de Torquato Castro:

“As posições dos sujeitos de direito, enquanto inseridos na situação jurídica, são

estruturadas pela norma e assim relativizadas as posições de fato de onde se geram. (...) Por

essa razão não cabe mais hoje considerar essas posições como categorias consistentes em aptidões

psicofísicas do indivíduo, nem como ‘manifestações’ ou ‘emanações’ da ‘capacidade’ humana...”30

A qualificação destas posições jurídicas serve ainda de medida para determinar como os

sujeitos concretizados participarão e interagirão diante do objeto que serviu, desde o início, de

motivo para o surgimento da obrigação. O estabelecimento deste parâmetro de medida estabelecido

entre os sujeitos devidamente posicionados e o correspondente objeto (res) é o que possibilitará

a justificação da solução adequada para o caso. Ora, sem a qualificação circunstancializada dos

sujeitos nem a atribuição de medida relativamente a coisa pela qual se vincula a busca pelo justo

concreto estará inviabilizada.

Assim, o pensar no direito em termos de situação jurídica traz nova dinâmica para o

fenômeno, pois exige que a posição de cada sujeito de direito relacionado seja justificada de

acordo com os elementos fáticos da situação particular, bem como seja estruturado critério de

medida entre os posicionados e o objeto da relação. Dito isso, podemos apresentar a conceituação

definitiva de situação jurídica, elaborada por Torquato Castro:

“(situação jurídica)...é a situação que de direito se instaura em razão de uma

determinada situação de fato, revelada como fato jurídico, e que se traduz na disposição

normativa de sujeitos concretos posicionados perante certo objeto; isto é, posicionados em

certa medida de participação de uma res, que se define como seu objeto.” 31

28

“Essencial à deliberação é a vontade que põe o ato em existência imediata. Mas não há arbítrio puro na decisão sobre as coisas

que podem ser por diversos modo. (...) Na ação prática, como projeção para um resultado, há a ponderação da escolha do

resultado, a das suas conseqüências previsíveis e a dos meios para alcançá-lo. (...) O direito, sendo solução existencial, vale-se da

razão que não é formal, e, sim, tópica, enquanto envolve com o problema. (...) A filosofia clássica cita, entre os primeiros, a

formação no jurista, de um hábito prático-experimental, que é a prudência... A prudência nas soluções jurídicas é chamada,

desde os romanos, de jurisprudência. O direito é, em parte essencial, organização de interesses em que se fundam as necessidades

vitais do homem.” (op. cit., pp. 2/5)

29

“Fato jurídico é todo evento apto a produzir conseqüências no mundo jurídico. ... O fato é juridicizado em função de um

problema cuja solução é dada com os efeitos de direito. A norma é, assim, igualmente constitutiva da juridicização do fato e da

juridicização da conseqüência que dele emana.” (op. cit, p. 27)

30

Op. cit., p. 46.

31

Op. cit., p. 50.

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Nº 24 - Dezembro 2010 49

Considerando, assim, os elementos constitutivos da situação jurídica o sujeito, o objeto e

as posições dos sujeitos poderíamos, ainda, estruturar o seguinte modelo esquemático:

A < > B

O

Vejamos, pois, no tópico seguinte, quais as conseqüências obtidas na assunção desse

novo paradigma jurídico.

d) Estrutura do Direito das Obrigações no Novo Código Civil

O modo como o Direito das Obrigações foi estruturado no novo Código Civil lhe é aspecto

bastante marcante, sendo de grande valia a análise desta estrutura para a sua completa

compreensão. O Direito das Obrigações inaugura a Parte Especial do novo Diploma, apresentando-

se no seu Livro I. Diferentemente do ocorrido no Código de 1916, este estabelece uma estrutura

que prioriza a visualização das fases pelas quais o vínculo obrigacional normalmente passa. Por

isso, iniciou o novo Código dispondo acerca das normas aplicáveis à formação dos vínculos

obrigacionias, no título denominado “Das Modalidades das Obrigações” (Título I), para, em seguida,

tratar das diferentes formas de movimentação pelas quais as obrigações assumidas podem passar

(Título II). Mais adiante, veio a estabelecer as regras pertinentes ao adimplemento e extinção das

obrigações (Título III), bem separando-as daquelas aplicáveis ao seu inadimplemento (Título IV).

O espírito do novo Código, portanto, secciona as regras pertinentes ao Direito Obrigacional

de acordo com as diferentes fases em que o vínculo poderá se encontrar. Temos, assim,

primeiramente, os dispositivos pertinentes à formação do vínculo, seu desenvolvimento e sua

eventual transformação. Em um segundo momento, são apresentadas as regras aplicáveis ao

adimplemento e às demais formas de extinção regular (dentro da normalidade) da obrigação,

para, em seguida, serem tratadas a forma patológica e anômala de findar-se o vínculo obrigacional.

Aliás, a separação das obrigações em duas fases – a do nascimento e desenvolvimento dos deveres

e a do adimplemento – já havia sido destacada por Clóvis do Couto e Silva32

.

Marcante, ainda, no novo Código é a distinção promovida no Título III do Livro I da

Parte Especial entre o adimplemento da obrigação e sua extinção. O adimplemento, aqui

entendido como sinônimo de pagamento e de cumprimento, corresponde à satisfação da

prestação devida, de modo voluntário, com exatidão, de acordo com as condutas determinadas

pelo princípio da boa-fé objetivo e mediante a satisfação do interesse do credor. Já a mera

extinção da obrigação deve ser vista como o término do vínculo jurídico que não observou os

quatro requisitos necessários para a configuração do adimplemento em sentido estrito, tal

32

COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como Processo. São Paulo, Ed. Bushatsky, 1976;

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50 Revista da PGM

como ocorre na remissão, na prescrição, na impossibilidade superveniente e na impossibilidade

por onerosidade excessiva33

.

Por esta razão, o adimplemento, dentro da estrutura do Código, pode ser compreendido

como uma espécie do gênero extinção da obrigação.

e) Obrigação como processo – pioneirismo de Clóvis do Couto e Silva

A seminal obra “Obrigação como Processo” de Clóvis do Couto e Silva é sem dúvida um

marco no desenvolvimento do Direito Civil pátrio. Continha ela ideias e conceitos extremamente

inovadores para o ano de 197634

, quando publicada, da mesma forma como ainda mantêm

atualidade e relevância nos dias de hoje. Esses ensinamentos indubitavelmente trilham a mesma

matriz ideológica que serve de suporte à Teoria da Situação Jurídica antes analisada e, por este

mesmo motivo, estão fortemente presentes nas diretrizes que formaram o segmento pertinente

ao Direito das Obrigações do novo Código.

Não é à toa que o clássico livro, já na sua primeira página, dá destaque máximo ao

adimplemento, ao dizer que este “atrai e polariza a obrigação”. Em seguida arremata, “É o seu

fim. O tratamento teleológico permeia toda a sua obra, e lhe dá unidade.”35

Coincidentemente ou não, Aristóteles, em sua Ética a Nicômacos, também inicia sua doutrina

com a seguinte sentença: “Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito,

visam a algum bem; por isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas

visam.”36

Portanto, a constatação do civilista gaúcho relativamente ao direito das obrigações e ao

adimplemento, já havia sido bem destacada pelo Estagirita em relação a todas as ações humanas.

Com estas palavras, Clóvis do Couto e Silva inaugura a concepção da obrigação como

sendo uma realidade processualizada, complexa e dinâmica, que somente se justifica porque a

ela é destinado um fim. Este fim, o seu telos, é obrigatoriamente o adimplemento. Ao se colocar

o adimplemento como finalidade de toda e qualquer obrigação, modifica-se a própria forma de

compreensão do vínculo obrigacional. Este passa a ser visto como totalidade, uma “cadeia de

processos”, que se desenvolve e se direciona exclusivamente para o seu fim, que é o adimplemento.

A complexidade pela qual passa a ser compreendida a obrigação vem a alterar também a

postura daqueles integrantes da relação jurídica. Sendo o adimplemento a direção obrigatória

para qual se deve dirigir o vínculo obrigacional, as partes que dele são integrantes não mais

podem ser vistas como localizadas em posições antagônicas e contraditórias. A obrigação, enquanto

processo dinâmico que é, impõe a ambos os participantes deveres que devem ser atendtidos para

atingir-se o almejado adimplemento.

Portanto, a relação obrigacional, agora vista com a complexidade que lhe é inerente,

passa a ser entendida como um foco de cooperação e colaboração, impondo aos seus integrantes,

33

Vide, ainda, MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003,

pp.84/92.

34

Sua versão datilografada remontava a 1964, conforme MARTINS-COSTA, Judith (Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo

I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003).

35

Op. cit., p. 05.

36

ARISTÓTELES. KURY, Mário da Gama (trad.). Ética a Nicômacos. Brasília: Editora da UNB, 3ª edição, 2001, p. 17.

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além da necessidade de cumprir os deveres de prestação, a de dar atendimento a deveres

instrumentais. Somente assim será plenamente atingido o adimplemento e garantida a proteção

aos interesses regrados pelo vínculo jurídico que se formou.

Estes deveres instrumentais, necessários para se alcançar o pleno adimplemento

obrigacional, são estruturados através da compreensão do modelo jurídico boa-fé, o qual será

analisado, em seguida, de acordo com as três formas possíveis em que pode vir manifestado no

ordenamento jurídico.

3. O MODELO JURÍDICO DA BOA-FÉ E SUA

TRIDIMENSIONALIDADE NORMATIVA.

a) A Teoria dos Princípios de Humberto Ávila

Em período mais recente, Humberto Ávila publicou instigante livro, no qual apresenta

projeto inovador acerca da distinção entre regras e princípios37

. Ávila inicia sua exposição com

crítica ao trabalho de Ronald Dworkin, que inaugurou no mundo jurídico a discussão sobre regra

e princípio, bem como à adapatação destes conceitos elaborada por Robert Alexy, apontando as

insuficiências dos critérios adotados por estes juristas e a conseqüente dificuldade de identificação

e aplicação das espécies com base nestes métodos. O trabalho de Ávila, na verdade, deve ser visto

como uma complementação e evolução das pesquisas jurídicas realizadas por grandes jusfilósofos

que lhe antecederam.

Ávila toma, ainda, como ponto de partida para seu projeto, a distinção entre texto e norma38

,

além da natureza constitutiva da interpretação (como atividade verdadeiramente reconstrutiva)39

.

Ao que interessa para o presente estudo, pode-se dizer, sucintamente, que as regras,

segundo Humberto Àvila, estariam distanciadas dos princípios em razão de três critérios, quais

sejam natureza do comportamento descrito; a natureza da justificação exigida; a medida de

contribuição para a decisão. Por isso, as regras seriam “normas imediatamente descritivas,

primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência”40

, enquanto

que os princípios seriam “normas imediatamente finalística, primariamente prospectiva e

com pretensão de complementariedade e de parcialidade.”41

Além de regras e princípios, o ordenamento jurídico também seria composto de postulados

normativos. Estes não indicariam nem um comportamento imediato, nem uma finalidade a ser

37

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Editora Malheiros, 2003.

38

“Normas não são textos nem conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos.

Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não

existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dipositivo haverá uma norma, ou

sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.” (op. cit., p. 22)

39

“... interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir; a uma porque utiliza como ponto de partida os textos

normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados

núcleos de sentidos, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual.” (op. cit.,

25).

40

Op. cit., p. 119.

41

Op. cit., p. 129.

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52 Revista da PGM

buscada pelo operador do direito, mas apenas os critérios que deveriam orientar a interpretação

e aplicação das outras duas espécies normativas. Por isto, os postulados “situam-se num plano

distinto daquele das normas cuja aplicação estruturam.”42

São, portanto, metanormas que

apenas indicam o método a ser seguido na invocação e aplicação das outras normas

comportamentais e normas finalísticas.

Dessa forma, com base na inovadora tese de Humberto Àvila, o ordenamento jurídico

deveria ser analisado de acordo com uma perspectiva que tomasse em conta as três dimensões –

regra, princípio e postulado – em que uma norma poderia ser estruturada, a qual não

necessariamente corresponderia a um enunciado específico e determinado. Inaugura, assim, a

tarefa de pensarmos o sistema jurídico de acordo com uma tridimensionalidade normativa.

b) Modelo jurídico da boa-fé como regra, princípio e postulado

Os deveres secundários, cujo cumprimento se impõe a fim de que seja alcançado o

adimplemento da obrigação, devem ser extraídos do modelo jurídico da boa-fé, razão pela qual a

sua compreensão deve ser ampla e completa. Por esta razão, importa aplicarmos os ensinamentos

de Humberto Ávila na tentativa de visualizarmos as três dimensões possíveis que o modelo jurídico43

da boa-fé pode se revestir.

Tentaremos, portanto, apontar a boa-fé, em nosso ordenamento jurídico, com regra,

como princípio e como postulado, lembrando que um único enunciado jurídico pode, por uma

via, não corresponder exclusivamente a uma norma, mas, por outra, pode vir a demonstrar mais

de uma dimensão normativa.

c) Indicação da tridimensionalidade normativa da boa-fé no Novo Código Civil

A ausência de uma referência legislativa expressa no período anterior à entrada em vigor

do novo Código não impediu que o princípio da boa-fé objetiva fosse gradualmente estruturado

pela doutrina e aplicado pelos Tribunais em decisões mais avançadas. Atualmente, a boa-fé objetiva

encontra-se estruturadas em inúmeros dispositivos do novo Diploma Civil, merecendo, porém,

especial destaque as duas cláusulas gerais contidas nos art. 187 e 422, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos

bons costumes.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,

como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

42

Op. cit., p. 80.

43

Toma-se o conceito de modelo jurídico elaborado por Miguel Reale, que é apresentado como sendo uma “estrutura normativa de

atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da experiência social, prescrevendo a atualização racional e garantida dos

valores que lhes são próprios.” (REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito – Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:

Saraiva, 3ª edição, 2002, p. 48)

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Nº 24 - Dezembro 2010 53

O próprio compreender da obrigação como um processo dinâmico e complexo impõe

que se veja a boa-fé objetiva como um instrumento norteador tanto para definir as atitudes

consideradas como admissíveis dos integrantes do vínculos como para apontar o modo adequado

para que a relação obrigacional alcance seu fim necessário, qual seja, o adimplemento. Portanto,

a boa-fé objetiva impõe deveres instrumentais que devem ser obedecidos pelos integrantes da

relação para garantir tanto a sua correta postura, como o substancial adimplemento da obrigação.

Estes deveres instrumentais oriundos da boa-fé objetiva não encontram destinatário apenas

na pessoa qualificada na relação como “devedor”, conforme seria de se esperar no modelo obrigacional

estruturado no paradigma oitocentista. No modelo atual, que assume a obrigação como processo, os

interesses das partes envolvidas, que se encontram regrados através do vínculo jurídico, são vistos

como uma força convergente, de sentido único, a qual culmina obrigatoriamente no adimplemento.

Com isso, a boa-fé impõe deveres exclusivos ao “devedor”, além de deveres próprios do “credor”,

assim como deveres atribuídos igualmente a ambos os partícipes da relação. Em primeiro lugar, é

dever exclusivo do devedor realizar um “comportamento útil” e “economicamente significativa”

para satisfazer o interesse do credor. Ao credor, por sua vez, cabe adotar atitudes que demonstrem

lealdade e confiança para com a sua contraparte na relação, assumindo assim deveres de não agravar

a situação do devedor, otimizar os meios para o pagamento, bem como devidamente esclarecer e

informar aquele que deve realizar a prestação devida.

Conforme havia sido apontado no item anterior, o modelo jurídico da boa-fé deve ser

visualizado de acordo com as três dimensões que uma espécie normativa pode adotar, quais

sejam regras princípios e postulados. Cabe, portanto, indicar no próprio texto do novo Código

Civil a tridimensionalidade normativa que a boa-fé pode assumir.

Inicialmente, devemos diferenciar da boa-fé objetiva o sentido normalmente atribuído à

denominada boa-fé subjetiva. Enquanto aquela se apresenta como um padrão de conduta

objetivamente determinado, que guia o homem probo em sua ação através de um sentimento de

lealdade, confiança e honestidade, esta se configura como um estado psicológico ou de consciência

da pessoa, qualificada na norma como necessária para a configuração de uma situação jurídica

determinada. Poder-se-ia dizer, melhor esclarecendo, que a boa-fé subjetiva “denota estado de

consciência, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito

(sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria

possessória.”44

O enunciado legal do qual pode ser extraída a norma representativa da boa-fé subjetiva

está localizado no art. 1.201 do CC/02, in verbis:

Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que

impede a aquisição da coisa.

Nesta situação específica, pode-se afirmar, com convicção, que a boa-fé, em sua perspectiva

subjetiva, assume contornos de regra, já que vem a ser um dos elementos essenciais do suporte

44

A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 411.

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54 Revista da PGM

fático, necessário para que haja a subsunção da norma. Melhor dizendo, no caso da boa-fé subjetiva,

a conduta necessária para o atingimento da conseqüência jurídica desejada já se encontra,

imediatamente, descrita na norma.

Dizer que a boa-fé subjetiva adota contornos de regra, não significa afastar da boa-fé

objetiva a possibilidade de receber a mesma dimensão normativa. Podemos apontar a boa-fé

objetiva como norma imediatamente comportamental, ou seja, qualificada como regra, nas

situações previstas no § 2º, do art. 16745

, bem como no art. 11346

, ambos do novo Código Civil.

Ora, tanto o ressalvar do terceiro de boa-fé no caso de contratos simulados, quanto a obrigatoriedade

de se interpretar os negócios jurídicos com base na boa-fé e nos usos, exigirão apenas “uma

avaliação da correspondência entre a construção conceitual da norma e a finalidade que lhe

dá suporte”47

, dispensando, ainda, uma justificação de maior calibre para sua aplicação, pois

preliminarmente decisivas e abarcantes. Isso significa dizer que a invocação da boa-fé na

interpretação dos contratos ou no resguardar de direito de terceiro não exigirá uma exposição

argumentativa de maior fôlego, exatamente por adota uma dimensão de regra.

A boa-fé objetiva, porém, ganha maior relevância nas situações em que adquire sua

natureza principiológica, ou seja, quando adota contornos de norma imediatamente finalística,

que aponta para um estado ideal de coisas, o qual somente é alcançado através da adoção de

determinados comportamentos não indicados expressamente no dispositivo legal. Por isso, do

princípio da boa-fé devemos extrair os padrões de conduta que são necessários para o pleno

adimplemento da obrigação, condutas estas sempre entendidas como denotadores da confiança

e lealdade entre os integrantes da relação jurídica. Além disso, do princípio da boa-fé objetiva

também pode ser retirados os demais deveres instrumentais que são devidos às partes vinculadas

pela obrigação, tais como os deveres de proteção, de cooperação e de informação. Em ambas as

situações, os comportamentos específicos devidos em cada situação jurídica não são sabidos de

antemão, o que demonstra o caráter prospectivo da boa-fé, enquanto princípio, bem como a

necessidade de se melhor justificar a sua invocação e aplicação no caso concreto.

A estruturação normativa do princípio da boa-fé objetiva parte obrigatoriamente da

apreensão de sentido dos arts. 187 e 422, antes transcritos. Por óbvio, o princípio da boa-fé

objetiva não encontra seu local de suporte e apenas nestes dois enunciados, mas, na verdade,

busca sua força de justificação em outros dispositivos que indiretamente apontam para o mesmo

estado ideal de coisas (o de confiança e lealdade entre as partes vinculadas).

Por fim, podemos vislumbrar a boa-fé em sua dimensão de postulado normativo, o que

significa dizer que ela assume forma de norma imediatamente metódica, que estrutura a interpretação

e aplicação dos demais princípios e regras, com base em critérios definidos.48

Para nós, a dimensão

metodológica da boa-fé é explicitamente trabalhada no novo Código Civil naquelas situações em que

o legislador buscou normatizar o enriquecimento sem causa, visando a garantir o equilíbrio material

das relações jurídicas. Por isso, entendemos que este equilíbrio, de manutenção obrigatória nas

45

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. (...)

§ 2o

Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.”

46

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

47

ÁVILA, op. cit., p. 120.

48

ÁVILA, op. cit., p. 120.

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relações obrigacionais, assume, além de sua típica natureza principiológica, contornos de postulado

normativo que podem ser vinculados diretamente à boa-fé. Assim, a interpretação das situações de

excessiva onerosidade retratadas pelo Código Civil49

Citamos, exemplificativamente, os arts. 317, 478

e parágrafo único do art. 944, todos do CC/02, que seguem transcritos:

“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre

o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o Juiz corrigi-lo, a

pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma

das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude

de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do

contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

deverá ser guiada obrigatoriamente pelo postulado normativo da boa-fé, o qual deverá

indicar os critérios para solução de conflito no caso concreto.

CONCLUSÃO

Uma leitura comparativa dos textos dos diplomas civis de 1916 e 2002, que seja realizada

de forma perfunctória e desatenta, pode vir a indicar que muito pouco mudou-se no regramento

do Direito Civil e do Direito das Obrigações. Entretanto, tomando-se em relevância o paradigma

jurídico que inspirou a feitura da legislação civil hoje já revogada e comparando-o com a nova

postura que o aplicador do direito necessita ter ao manejar o novo Código, o entendimento daqueles

que não vêem qualquer mudança mostra-se míope e de todo equivocado.

Assim, para atingir a adequada compreensão do Código Civil atualmente vigente não

basta, por óbvio, apenas atentar-se aos seus enunciados. É imperativo seu estudo estrutural e

sistemático.

O individualismo e o idealismo transcendental que marcaram a experiência jurídica

na Modernidade não encontram mais resguardo nos parâmetros praticados na sociedade

pós-industrial hoje sendo vivenciada. Por esta razão, a estrutura do Novo Código demonstra

uma preocupação do legislador em permitir a busca pela solução adequada em cada caso

concreto, mediante um juízo de relevância das particularidades projetadas em cada situação.

Assim, a necessidade da concreção e da busca pela eticidade na situação particular marcam

o tom do Novo Código.

49

Citamos, exemplificativamente, os arts. 317, 478 e parágrafo único do art. 944, todos do CC/02, que seguem transcritos:

“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento

de sua execução, poderá o Juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,

com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a

resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a

indenização.”

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56 Revista da PGM

De acordo com o novo paradigma, a obrigação passa a ser vista como processo, um vínculo

formado através do espírito de cooperação mútua existente entre aqueles que entenderam por bem

regrar seus interesses. Por esta razão, o vínculo obrigacional somente encontra sua justificação

quando visualizado de acordo com o fim para o qual surgiu, qual seja, o seu pleno adimplemento.

Este pleno adimplemento não é mais atingido pela simples entrega do bem pretendido por

aquele denominado de credor na obrigação. Além do cumprimento da prestação devida, as partes

vinculadas pela obrigação necessitam, agora, dar atenção a deveres de uma ordem diferenciada,

deveres estes demonstradores efetivos da relação de lealdade e confiança que havia se instalado.

Estes deveres secundários são estruturados através da compreensão do modelo jurídico

da boa-fé, o qual, conforme se pretendeu demonstrar através de uma leitura do próprio Código

Civil de 2002, pode ser analisado de acordo com a sua tridimensionalidade normativa.

Portanto, pode-se dizer que o foco principal deste pequeno estudo foi analisar os dois

paradigmas jurídicos que inspiraram a elaboração dos Códigos de 1916 e de 2002, diferenciando-

os, e, ainda, demonstrar a possibilidade de se analisar o modelo jurídico da boa-fé como regra,

como princípio e como postulado.

OBRAS CONSULTADAS

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do Devedor. Rio de

Janeiro: Aide Editora, 1991;

ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das Obrigações. Portugal: Almedina, 9ª edição, 2001;

ARISTÓTELES. KURY, Mário da Gama (trad.). Ética a Nicômacos. Brasília: Editora da UNB, 3ª

edição, 2001.

____________________. The Nicomachean ethics. Grã–Bretanha: Wordsworth Classics of

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ASSIS, Araken de. Resolução do Contrato por Inadimplemento. São Paulo: Revista dos Tribunais,

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ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.

São Paulo: Editora Malheiros, 2003.

BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva

comparatista. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, vol. 09, 1993, pp. 60-70;

BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Francisco Alves, 8ª edição, 1954.

COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como Processo. São Paulo, Ed. Bushatsky, 1976;

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58 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 59

Paisagem Urbana e Dano Ambiental Estético:

As cidades feias que desculpem, mas a

beleza é direito fundamental1

Flávia de Sousa Marchezini2

1

MARCHEZINI, Flávia de Sousa. Paisagem urbana e dano ambiental estético: as cidades feias que me desculpem, mas beleza é direito fundamental.

Revista da Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte – RPGMBH, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, jan./jun. 2010.

2

Procuradora do Município de Vitória-ES, Professora de Direito Administrativo e Direito Ambiental , Mestre em História Social das

Relações Políticas pela UFE.

3

BENJAMIN, Antonio Herman. Paisagem, natureza e direito: uma homenagem a Alexandre Kiss. In: BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos

e (org). Paisagem, natureza e direito. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2005, v. 2. Não paginado.

“A proteção da paisagem é um longo e inacabado processo histórico. (...) todos

hoje se sentem, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, vinculados

aos destinos da terra e, a partir dela, às belezas que ela oferece. Eis a importância

da paisagem no discurso político, cultural, ético e jurídico da proteção ao meio

ambiente.” 3

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Nº 24 - Dezembro 2010 61

Introdução

O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou intenso processo de

urbanização, especialmente na segunda metade do século XX. Em 1940, a população urbana era

de 26,3% do total. Em 2000, passou para 81,2%. Esse crescimento se mostra mais impressionante

ainda se lembrarmos os números absolutos: em 1940, a população que residia nas cidades era de

18,8 milhões de habitantes, e em 2000, ela era de aproximadamente 138 milhões4

. Constatamos,

portanto, que em 60 anos os assentamentos urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais

de 125 milhões de pessoas.

Trata-se de um gigantesco movimento de construção urbana necessário para o

assentamento residencial dessa população, bem como para a satisfação de suas necessidades de

trabalho, abastecimento, transporte, saúde, energia, água, lazer, etc5

.

Esse intenso processo de urbanização, gerado a partir de um modelo funcionalista, com

a predominância dos interesses econômicos, fez surgirem novas demandas no que tange à proteção

do meio ambiente, ampliando-se o campo de atuação do Direito Ambiental.

Diante desse quadro, inevitável foi a preocupação com a degradação do espaço urbano,

passando-se a falar, mais recentemente, na existência de um direito urbano-ambiental6

.

Em uma homenagem ao Professor Alexandre Kiss, Antônio Hermam Benjamim7

reflete

sobre o surgimento de novos focos no Direito Ambiental, com destaque para a proteção da

paisagem:

“Realmente, quando imaginávamos que o Direito ambiental

já havia se consolidado em um espaço mais ou menos

definido, eis que, recentemente (re)surge a paisagem como

um dos seus temas centrais, tanto no Direito Internacional

(e aí está a convenção européia da Paisagem), como no

Direito Interno. Apropriadas aqui as palavras de Lewis

Mumford, em sua obra clássica, quando lembra que

“felizmente a vida tem um atributo previsível: é cheia de

surpresas.A paisagem é uma delas.”

4

ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 13

5

MARCHEZINI, Flávia de Sousa. Cidade e cidadania no Brasil: uma análise historiográfica da participação popular construída num ambiente

urbano. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 8, n. 45, p. 12-25, maio/jun. 2009. Disponível em www.anpm.com.br

6

Dentre os defensores da existência de um Direito Urbano-ambiental no Brasil, mencionamos Toshio Mukai , Vanesca Buzelato Prestes, Maria

Etelvina Bergamaschi Guimaraens, dentre outros.

7

BENJAMIN, 2005. Não Paginado.

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62 Revista da PGM

A preocupação com a paisagem, em especial com a paisagem urbana emerge da

necessidade de se ajustar o território e as ocupações urbanas de modo que propiciem qualidade

de vida aos seus habitantes, e de preservar os espaços verdes e demais áreas de interesse ambiental

que sobreviveram ao processo de ocupação. Amplia-se o foco, mas é mantido o viés funcionalista

e antropocêntrico no tratamento da questão.

A paisagem da cidade, então, passa a ser percebida como um bem ambiental de extrema

importância e que já conta com algum regramento jurídico no plano internacional, nacional e

local, mas que ainda padece com pré-conceitos relacionados à concepção de beleza e com a

ausência de ações mais efetivas de prevenção e reparação.

O cenário urbano é um bem jurídico diretamente relacionado com qualidade de vida dos

habitantes das cidades e de todos aqueles que por elas circulam, razão pela qual, nos propusemos,

através do presente, buscar uma melhor compreensão das suas funções ambientais, com vistas a

estimular os operadores do direito a atentar para as constantes violações a esse bem jurídico, e

para as graves consequências sócio-ambientais não só das ações lesivas, mas também da “timidez”

em se buscar a responsabilização patrimonial e extrapatrimonial dos causadores dos danos.

1. A PAISAGEM URBANA COMO MICROBEM AMBIENTAL E

SUAS FUNÇÕES

A Constituição da República dispõe, em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade

de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as

presentes e futuras gerações”.

Com o escopo de dar a máxima proteção ao meio ambiente, a nossa matriz constitucional

traz a concepção de meio ambiente enquanto macrobem, em sua visão mais geral e abstrata.

Como macrobem abstratamente caracterizado, o meio ambiente pode ser compreendido

como o conjunto de interações físicas, químicas e biológicas que permite, abriga e rege a vida em

todas as suas formas8

. Paralelamente, têm-se os bens ambientais, caracterizados em especificidade

e concretude. São os elementos ambientais (microbens) bióticos (fauna e flora), abióticos (água,

solo, ar), culturais (bens materiais e imateriais de valor histórico, artístico ou estético) e artificiais

(conjunto de edificações, ruas, praças, jardins e espaços livres e equipamentos urbanos em geral).

O Meio Ambiente como macrobem, contudo, não se confunde com o somatório dos

microbens ambientais. Ele é universalmente considerado, ao passo que os bens ambientais

são específicos e individualmente examinados, não obstante haja permanente inter-relação

entre os mesmos.

Nessa ótica, a paisagem urbana é um bem, um valor ambiental. Sua proteção decorre da

necessidade humana de conviver com elementos sensoriais que lhes proporcionem bem estar

físico e psíquico, intimamente relacionados com a proteção à qualidade de vida à que alude o

texto constitucional.

8

CAMPOS, Ibrahim Camilo Ede. Especificidade do dano ambiental e biodiversidade na esfera da reparação civil ambiental. Tese apresentada

no 3º Congresso de Estudantes de Direito Ambiental. Tema do evento: mudanças climáticas, biodiversidade e uso sustentável de energia. São

Paulo, JUN/2008. Disponível em http://www.direito.ufmg.br/neda/arquivos/texto-congresso-jun.pdf

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Nº 24 - Dezembro 2010 63

No nosso mundo sensorial, a visão domina todos os outros sentidos.

Nós somos profundamente marcados pelas associações visuais e

sensoriais. Seres visuais, muito mais informação nos alcança pelos

olhos do que pelos outros sentidos9

.

RODRIGUES10

divide as funções dos microbens ambientais em função ecológica e funções

artificiais:

É que, como se disse, em razão do fato de os microbens ambientais

(recursos ambientais) terem, ao lado de uma função ecológica, outras

funções – que chamamos de artificiais (econômica, social e cultural)

–, é claro que a ofensa à função ecológica destes bens, normalmente,

acarretará, por via reflexa, uma agressão às suas funções

antropocêntricas. É o que acontece, por exemplo, quando a emissão

de poluição no mar, além de degradar o meio ambiente, cause danos

à atividade econômica dos pescadores que dependem do mar para

exercer o seu trabalho.

No léxico, paisagem é a extensão de território que se abrange com o lance de uma vista11

.

Abrange, portanto, na maioria dos casos, elementos naturais e culturais, sendo cada vez mais

rara, em nosso planeta, a existência de paisagens absolutamente livres de quaisquer interferências

humanas.

Quando se fala em paisagem urbana, a indissociabilidade entre cultura e natureza se

torna regra absoluta:

O fato é que a paisagem é a materialização por excelência da

indissociável união entre cultura e natureza. Como afirmam Morin e

Kern, somos orientados por um duplo estatuto composto por cultura e

natureza. A interação do homem com o meio natural se dá a partir de

sua bagagem cultural. Para atingir o ideal da qualidade de vida, com

o qual nosso ordenamento jurídico está comprometido por força da

inserção da dignidade da pessoa humana dentre os fundamentos da

República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, da CF) e como uma

das finalidades da ordem econômica (art. 170, “caput”) e

expressamente salvaguardado pelo “caput” do art. 22512, o ser

humano necessita de uma configuração espacial que propicie o bem-

estar físico e psíquico13

.

9

BENJAMIM, 2005. Não Paginado.

10

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Reflexos do direito material do ambiente sobre o instituto da coisa julgada (in utilibus, limitação territorial,

eficácia preclusiva da coisa julgada e coisa julgada rebus sic stantibus).Disponível em www.marceloabelha.com.br . Acesso em 29 out 2009.

11

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em http://www.priberam.pt

13

MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Tutela jurídica da paisagem no espaço urbano. Revista de direito ambiental. São Paulo, v. 11, n. 43, p. 07-

34, jul. /set. 2006. Disponível em www.iedc.org.br. Acesso em 10 OUT 2009.

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64 Revista da PGM

Sendo um mecanismo visual de interação entre o Homem e a natureza, a paisagem

urbana afigura-se como “a roupagem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e

visitantes14

” e, conforme já exposto, é por vezes tratada no campo do direito urbanístico, e outras

na seara do direito ambiental.

Poder-se-ia dizer, por conseguinte, que a paisagem é o conjunto de elementos visuais que

dão testemunho das relações entre o homem e a natureza. A sua proteção, embora possa se

identificar de modo individual diante de algum caso concreto em especial, encerra inegável interesse

difuso por relacionar-se diretamente com a qualidade de vida e com o bem-estar da população.

É de toda a população, portanto, o interesse de morar em uma cidade

ornamentada, plasticamente agradável e, por que não dizer, bela. “.15

Destaca RODRIGUES16

, que “o ser humano ainda não conseguiu dominar e nem entender

todos os papeis desenvolvidos pelos bens ambientais. É o que poderíamos chamar de

desconhecimento científico pela coletividade, das funções exercidas pelos bens ambientais”. A

partir da compreensão da paisagem como um microbem ambiental, procuraremos no presente

item, com fulcro em estudos já realizados e doutrina já produzida, destacar algumas funções da

paisagem urbana com vistas a facilitar a identificação dos danos a ela causados.

SILVA17

destaca uma função estética da paisagem urbana, que sobressai da variedade de

formas, do traçado urbano e dos contrastes das construções com elementos naturais, da limpeza

das fachadas e logradouros e uma função psicológica que remete aos efeitos da harmonia ou

desarmonia entre os componentes dessa paisagem sobre o equilíbrio pisíquico de seus habitantes,

visitantes e transeuntes.

Para MARCHEZAN18

, como bem jurídico tutelado, a paisagem seria dinâmica, sensitivo-

espiritual, transdisciplinar, conectiva e heterogênea.

Por ser dinâmica, não-estagnada, a paisagem teria por função a renovação e, com isso, a

quebra na monotonia visual. Carregada de valor estético, a paisagem urbana exterioriza ambiências

que permitem ao ser humano um conforto emocional, o apreço pelo belo, harmonia, paz de

espírito. A beleza das paisagens é, nessa linha, fonte de inspiração para o indivíduo e interfere

positivamente em seu processo produtivo e nas relações inter-pessoais, com reflexos sociais

imediatos.

A paisagem é transdisciplinar por ser objeto de estudo de várias disciplinas. Acrescentamos

que, por essa razão, à ela se impõe um tratamento também integrado, não se admitindo uma

tutela setorializada ou fragmentada.

A paisagem tem, ainda, uma função conectiva, de relacionar o homem à natureza,

integrando fatores de tempo e espaço:

14

SILVA, JOSÉ AFONSO. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores – 5° edição rev.atual., 2008, p. 307.

15

MINAMI, Issao; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. A questão da ética e da estética no ambiente urbano, ou porque todos devemos ser

belezuras. Disponível em www.ambientebrasil.com.br. Acesso em 03/05/2009.

16

RODRIGUES, 2009, p. 4.

17

SILVA, 2008, P. 308.

18

MARCHEZAN, 2006, p.15.

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Nº 24 - Dezembro 2010 65

Estabelece conexões intra e intergeracionais, através das

identificações entre os diversos membros contemporâneos de com

os diversos lugares por onde transitam e habitam, além de permitir

diálogos entre as gerações pretéritas e presentes e construção de

um berçário para as futuras gerações.

Propicia a integração plena entre os fatores espaço e tempo, essenciais

à vida humana, influenciando na qualidade do espaço transformado

pelo homem e na adequada fruição do tempo. Por fim, apresenta-se

como vasos comunicantes de informações, onde passado, presente e

futuro acabam se fundindo numa síntese materializada e percebida,

mas que carrega em si todo um conjunto de informações anacrônicas19

.

Referindo-se a essa função conectiva, metaforicamente expressa na “memória das cidades”

Morand-Deviller20

destaca:

Se a cidade é feita para durar, é porque ela é um “local de memória”

repleta de marcas ofertadas às gerações presentes e futuras. Ela se

conjuga em todos os tempos, enquanto que uma localidade e uma

paisagem se conjugam principalmente no presente, já que encontram

sua existência nos olhares que o contemplam. O construído oferece

sinais de reconhecimento do passado mais evidentes do que aqueles

que são fornecidos pela natureza que está em constante renovação.

É, por fim, heterogênea. Acrescentamos a partir dessa característica, uma função

democrática às paisagens urbanas: A paisagem é heterogênea como é heterogêneo o meio

ambiente, tanto em seus elementos naturais como culturais. É heterogênea como é heterogênea

a Sociedade. Por isso, a paisagem urbana tem a função de expressar a IDENTIDADE tanto da

natureza que a circunda quando dos diversos rostos da sociedade que nela se expressam. A

beleza da paisagem não pode, portanto, ser elemento de segregação como ocorreu longo da

trajetória da urbanização brasileira. O feio (muitas vezes entendido como pobre) não pode ser

afastado, marginalizado para a periferia dos centros urbanos. As belezas peculiares devem ser

harmonizadas por ações de políticas públicas, a fim de que todas as “personas” sejam expressas

em harmonia no cenário urbano.

2. O REGRAMENTO JURÍDICO DA PAISAGEM URBANA: Direito supérfluo?

2.1 O Direito internacional

A Preocupação com a paisagem no Direito Comparado se fez presente muito antes do que

ocorreu no Direito Brasileiro. Dentre as Convenções Regionais que tratam da proteção da paisagem,

19

MARCHEZAN,2006,P.16.

20

MORAND-DEVILLER, Jacqueline. A cidade sustentável. Sujeito de Direitos e deveres. In: Políticas Públicas ambientais: estudos em homenagem

ao professor Michel Prieur/coordenação Clarissa Ferreira Macedo D’Isep, Nelson Nery Junior, Odete Medauar – São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais,2009, p. 349/350.

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66 Revista da PGM

destacam-se a Convenção de Washington, de 1940; a Convenção de Argel, de 1968; a Convenção

de Bruxelas, de 1982 e a Convenção de Salzburgo, de 1991.

Não obstante a existência de Legislações específicas e de Convenções Regionais, a relevância

que a paisagem conquistou como bem ambiental nos últimos anos, levou o Conselho Europeu à

elaboração de uma Convenção Européia da Paisagem.21

Concluída em 29/10/2000, na cidade de

Florença – Itália, a Convenção passou a ter vigência na ordem internacional em 01/03/2004, e,

não obstante só vincule os países signatários, tornando-se a principal referência internacional em

matéria de proteção paisagística, inclusive no que tange a aspectos conceituais que merecem

destaque:

Art. 1º - Para os efeitos da presente Convenção:

a) Paisagem designa uma parte do território, tal como é apreendida

pelas populações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de

factores naturais e ou humanos;

b) Política da paisagem designa a formulação pelas autoridades

públicas competentes de princípios gerais, estratégias e linhas

orientadoras que permitam a adopção de medidas específicas tendo

em vista a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem;

c) Objectivo de qualidade paisagística designa a formulação pelas

autoridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das

aspirações das populações relativamente às características

paisagísticas do seu quadro de vida;

d) Protecção da paisagem designa as acções de conservação ou

manutenção dos traços significativos ou característicos de uma

paisagem, justificadas pelo seu valor patrimonial resultante da

sua configuração natural e ou da intervenção humana;

e)Gestão da paisagem designa a acção visando assegurar a

manutenção de uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento

sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações

resultantes dos processos sociais, económicos e ambientais;

f) Ordenamento da paisagem designa as acções com forte carácter

prospectivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de

paisagens.

Outro dispositivo que merece destaque na Convenção Européia refere-se à Educação

Ambiental, componente que tem ficado fora da agenda no cenário Brasileiro:

Artigo 6.º

Medidas específicas

21

Disponível em http://conventions.coe.int/Treaty/en/Reports/Html/176.htm.

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Nº 24 - Dezembro 2010 67

A) Sensibilização

Cada uma das Partes compromete-se a incrementar a sensibilização

da sociedade civil, das organizações privadas e das autoridades

públicas para o valor da paisagem, o seu papel e as suas

transformações.

B) Formação e educação

Cada uma das Partes compromete-se a promover:

a) A formação de especialistas nos domínios do conhecimento e da

intervenção na paisagem;

b) Programas de formação pluridisciplinar em política, protecção,

gestão e ordenamento da paisagem, destinados a profissionais dos

sectores público e privado e a associações interessadas;

c) Cursos escolares e universitários que, nas áreas temáticas

relevantes, abordem os valores ligados às paisagens e as questões

relativas à sua protecção, gestão e ordenamento. (n.n.)

Para os membros da Comunidade Comum Européia, a paisagem foi tomada como

patrimônio comum, sendo considerada “fundamental, para alcançar o desenvolvimento

sustentável, o estabelecimento de uma relação equilibrada e harmoniosa entre as necessidades

sociais, as atividades econômicas e o ambiente22

”.

Na visão dos países signatários, a paisagem desempenha importantes funções de interesse

público nos campos cultural, ecológico, ambiental e social e que constitui um recurso favorável à

atividade econômica, cuja proteção, gestão e ordenamento adequados podem contribuir, inclusive,

para a criação de empregos e geração de renda23

.

Por fim, insta ressaltar que, embora a Convenção Européia da paisagem tenha eficácia

apenas no continente europeu, produzindo efeitos entre seus signatários, ela vem se transformando

em referência mundial no campo das legislações de proteção, tanto que é referida pela grande

maioria dos doutrinadores que abordam o tema, tendo influenciado até mesmo alguns julgados

no Brasil24

.

2.2 O ordenamento jurídico brasileiro

2.2.1 Regramento Constitucional

O artigo 225 da Constituição Federal assegura o Direito Fundamental ao Meio Ambiente

equilibrado como condição essencial à qualidade de vida, sendo um dos direitos humanos de

terceira geração25

.

22

Preâmbulo do Decreto Português nº 04 de 2005, que ratificou a Convenção Européria da Paisagem.

23

Idem.

24

A exemplo mencionamos a Ação Popular nº 950209270-8 – 2ª Vara Federal de Santos-SP. Disponível em http://jus2.uol.com.br/pecas/

texto.asp?id=549

25

Bobbio, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Campus, 1992.

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68 Revista da PGM

Essencial à sadia qualidade de vida de seus habitantes, a paisagem urbana se insere tanto

na noção unitária e sistêmica de meio ambiente (macrobem), quanto na concepção de bem

ambiental suscetível de lesão determinada (microbem).

Nesse contexto, uma interpretação sistemática do Texto Constitucional nos remete a uma

tutela constitucional da paisagem que se põe como fundamento para uma série de diplomas

infraconstitucionais que tratam da matéria.

A Constituição Federal, a partir da exegese combinada dos arts.

182, “caput”, 216 e 225, reconhece a necessidade de proteção desse

bem jurídico, além de atribuir competência material concorrente

à União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger o

meio ambiente e combater a poluição “em qualquer de suas

formas” (art. 23, inc. VI)26

.

Para os antropocentristas, toda essa proteção tem por princípio basilar a Dignidade da

pessoa Humana, e eventual lesão à paisagem urbana se insere na gama de proteções desse supra

princípio constitucional.

O uso dos bens ambientais está condicionado a uma perfeita

integração dos fundamentos constitucionais indicados no art. 1º da

Carta Magna, no sentido de compatibilizar a ordem econômica do

capitalismo aos interesses de brasileiros e estrangeiros residentes no

País portadores do direito ao piso vital mínimo (arts. 1º, III, e 6º da

Constituição Federal) considerando claramente as especificidades da

República Federativa do Brasil (art. 3º da Carta da República)27

Uma das conseqüências de se considerar a paisagem urbana como microbem ambiental,

é o tratamento que lhe deve ser dado à luz dos princípios do Direito Ambiental, especialmente no

que tange ao princípio da ubiquidade. Assim, é a tutela jurídica da paisagem urbana que deverá

regrar a atividade econômica de publicidade externa, por exemplo, e o “direito de informar” será

necessariamente limitado pelas normas de ordenação do território.

Considerando, ainda, que a paisagem urbana pode exercer uma função turística a depender

se seus atributos, estado de conservação e da harmonia de seus elementos, têm-se, ainda, o

incentivo ao turismo como fator de desenvolvimento econômico e social, previsto no artigo 180

da Carta Magna, como dispositivo que lhe guarda proteção.

A partir desse elenco constitucional, pode-se inferir que qualquer conduta ou atividade

lesiva à paisagem urbana sujeita os infratores, ao sistema de responsabilidade previsto no § 3º do

artigo 225 da CRFB.

26

MARCHEZAN,2006, p. 28

27

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Paisagem urbana e sua tutela em face do direito ambiental. Disponível em http://www.saraivajur.com.br/

menuEsquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutrina=837. Acesso em 24 out 2009.

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Nº 24 - Dezembro 2010 69

2.2.2 O Regramento Infraconstitucional

No regime constitucional de Competências, embora o Município ocupe um papel

privilegiado, dada sua competência para legislar sobre assuntos de interesse local e sobre a

ordenação territorial do solo urbano, o artigo 24 estabelece que a competência é concorrente

para legislar sobre proteção do patrimônio histórico, turístico e paisagístico.

Por tal razão, tem-se um ordenamento jurídico vasto, composto por Legislações Federais,

Estaduais e Municipais discorrendo sobre a proteção da paisagem.

A lei 6.938/1981, que dispõe sobre a política Nacional do Meio Ambiente, define em seu

artigo 3º, III, poluição como sendo a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades

que direta ou indiretamente:

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio

ambiente. (g.n.)

No que tange à propaganda eleitoral, relevante fonte poluidora, tanto a Lei 4.737/65 (Código

Eleitoral), quanto a Lei 9.504/97, que dispõe sobre a propaganda eleitoral vedam a propaganda

que prejudique a estética urbana.

A Lei 9.605/98, que trata dos crimes ambientais, em seus artigos 63 a 65, tipifica como

criminosas condutas que se caracterizem como poluição contra o ordenamento urbano e o

patrimônio cultural.

É vedada ainda a utilização de iluminação e elementos publicitários que possam gerar

confusão ou interferir na visibilidade de sinalização ou comprometa a segurança do trânsito, bem

como promover qualquer alteração na sinalização já existente, a teor do que preceitua os artigos

81 e 82 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro).

Merece destaque, ainda, na Legislação Federal, o Decreto-lei 25/37 (Lei de Proteção ao

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que protege os imóveis tombados dos anúncios ou

cartazes que possam eventualmente prejudicar a sua visibilidade.

A Função Social da Cidade esculpida no artigo 182 da CR possibilitou ainda que o seu

regulamento, Lei nº 10.257/2001, conhecida como “Estatuto da Cidade”, trouxesse uma proteção

adicional à paisagem urbana, vez que determina, em seu art. 2º, que a política urbana tenha por

objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,

tendo como uma das diretrizes gerais a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente

natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico, de

acordo com o inciso XII do art. 2º da Lei nº 10257/01.

Por fim, temos a recentíssima Lei 11.934, de 06 de maio de 2009, que, sem excluir a

competência municipal, dispõe sobre limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos

e eletromagnéticos e, dentre outros aspectos do tema, delimita alguns conceitos atinentes à

instalação das chamadas Estações Radio-Base de Telefonia, que se apresentam como uma das

causas mais recentes de poluição visual e motivo de preocupação, dado o desconhecimento

científico sobre os níveis e riscos da radiação emitida.

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70 Revista da PGM

No que tange às Leis Municipais, os Planos Diretores Urbanos, os Códigos de Posturas e a

Legislação Ambiental local sempre foram referência. Mais recentemente, e em razão do o

agravamento da poluição visual em nossas cidades, muitos municípios brasileiros já editaram

leis específicas, como é o caso da “Lei Cidade limpa” – Lei nº 14.223/2006 de São Paulo que deu

origem à “operação cidade limpa28

”, conhecida pela retirada de centenas de painéis publicitários

que se encontravam em situação irregular, não sem antes enfrentar uma série de questionamentos

judiciais, uma verdadeira “guerra de liminares”.

Merece destaque ainda a Lei 14.223/2006 do Município do Rio de Janeiro, que

regulamenta os elementos que compõem a paisagem urbana. A exemplo das legislações de

outros municípios, foi alvo de grande celeuma judicial, tendo sua efetividade minimizada

em muitos momentos.

Em Vitória, a Lei 5954/2003, que regula a instalação de elementos de publicidade externa

na cidade, acabou sendo drasticamente alterada pela Lei 7.095/2007, com ampliação de prazos e

flexibilização de normas importantes para a proteção paisagística por força de determinação

judicial29

, que “revogou liminarmente (sic)” alguns dispositivos da norma, repristinando (sic) o

antigo Código de Posturas que não regulava a matéria, deixando o Município à mercê das

irregularidades perpetradas pelos empresários-especuladores.

No campo das garantias, sendo um microbem ambiental, e, em consequência, patrimônio

público, a paisagem merece a mais ampla proteção, sendo a Ação popular e a Ação Civil Pública,

os instrumentos mais utilizados. Defendemos, ainda, a utilização do Mandado de Segurança,

tanto individual quanto coletivo, quando o ato lesivo se caracterizar como ato de autoridade e não

houver necessidade de dilação probatória, vez que o direito à paisagem urbana configura-se como

direito líquido e certo.

Destarte, como se pode perceber, não é exagero se falar na existência de um estatuto

jurídico da paisagem urbana, sendo vasto o rol dos diplomas legais que apregoam a sua proteção.

O problema ainda se afigura no campo da efetivação desses direitos, seja por ausência de

um projeto adequado de educação ambiental, ou como dispõe a Convenção Européia da Paisagem,

um projeto de “sensibilização” da população, seja pela postura de parte dos Tribunais Pátrios,

que ainda veem a proteção à paisagem como uma espécie de “direito supérfluo”, facilmente

preterido diante de um simples argumento de geração de empregos ou de desenvolvimento

econômico.

Olvidam os julgadores que estamos diante de um Direito Fundamental de Terceira

Geração, que pode ser enfrentado tanto pelo viés coletivo, como um direito difuso à estética

urbana, quanto pelo viés individual, corolário desse direito difuso: o direito do cidadão à fruição

da paisagem urbana, sem qualquer interferência ou mensagem, que não as relativas à orientação

e ao bem comum30.

28

Sobre a “Operação cidade limpa” ver http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=14513

29

Ref. Processo nº 024.040.035.180 – Vara dos feitos da fazenda pública Municipal de Vitória.

30

MINAMI, Issao; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. A questão da ética e da estética no ambiente urbano, ou porque todos devemos ser

belezuras. Disponível em www.ambientebrasil.com.br. Acesso em 03/05/2009.

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Nº 24 - Dezembro 2010 71

3. A VULNERABILIDADE DA PAISAGEM URBANA E

AS CONSEQUÊNCIAS DANOSAS DA POLUIÇÃO VISUAL.

A paisagem urbana sofreu, ao longo da trajetória da urbanização, influência de diversos

fatores históricos, em especial, dos valores advindos da revolução industrial. O modelo arquitetônico

moderno, o avanço tecnológico, os processos de migração e imigração são apenas alguns exemplos.

Essa diversidade de influências, associadas ao padrão capitalista-desenvolvimentista, trouxe para

as cidades um quadro bastante frágil sob a ótica paisagística, tendo em vista que, ou foram pensadas

apenas do ponto de vista da sua funcionalidade relativa à produção, ou foram fruto de

assentamentos “espontâneos” e desordenados.

O quadro atual de grande parte dos municípios brasileiros é o seguinte: áreas nobres e/

ou centrais planejadas convivendo com favelas e outros espaços cuja ocupação foi “irregular”.

Temos a cidade legal e a cidade ilegal, como bradam os discursos partidários.

Mesmo após o surgimento do direito ambiental, o foco das preocupações, inicialmente,

eram os elementos naturais (bióticos e abióticos), sendo muito recente a preocupação com os

elementos culturais/estéticos, que só ingressaram na “agenda” da tutela ambiental quando o

contexto fático já era caótico31

A problemática da poluição visual não é, contudo, “privilégio” do processo de

urbanização brasileiro. Ao discorrer sobre os problemas das cidades européias, Morand-

Deviller32

salienta:

As ameaças de vandalismo são constantes e ocorrem por conta de

motivos ruins como a ignorância, a cobiça, o fanatismo religioso, o

arbítrio dos príncipes e as razões estéticas em nome de um “bom

gosto” cujos campeões são tão temidos quanto aqueles da virtude.

Aprofundaremos a análise desse processo histórico e sua influência no tratamento jurídico

da paisagem urbana no tópico seguinte, mas por ora, impõe-se destacar que, em razão dos fatores

apontados, associados à ausência de uma política adequada de educação cívica e ambiental, as

nossas cidades padecem com o problema da poluição visual que se apresenta com diversas facetas,

a exemplo: anúncios publicitários, painéis, cartazes; elementos de sinalização urbana; elementos

aparentes da infra-estrutura urbana (postes de energia elétrica, de iluminação pública, antenas

de telefonia, hidrantes, extintores de incêndio); serviços de comodidade pública (cabines

telefônicas, cestos de lixo, abrigos e pontos de ônibus, etc.)33

Em razão da necessidade pública dos demais elementos e da possibilidade de, sob o viés

arquitetônico, integrá-los à paisagem de forma harmônica, a grande preocupação volta-se para o

problema da publicidade externa, ou seja, o abuso da utilização de equipamentos publicitários, o

excesso de mensagens.

31

MINAMI, GUIMARÃES JÚNIOR, não paginado.

32

MORAND-DEVILLER, 2009, p. 350.

33

SILVA, 2008, p. 322.

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72 Revista da PGM

A cidade é palco de grande concentração de informações e mensagens

que “são percebidas e ‘lidas’, porém nem sempre compreendidas pelos

cidadãos”. (...) as cidades têm sido reduzidas ao jogo da “pura

imagem”, com íntima vinculação à lógica do consumo e à venda de

estilos de vida. “Ver a cidade hoje não pode escapar de ver um enorme,

pulsante e atraente espaço de venda34

”.

A Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/1981, define:

Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de

atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c) afetem desfavoravelmente a biota;

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio

ambiente;

e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões

ambientais estabelecidos;

IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado,

responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de

degradação ambiental; (n.n.)

Para Fiorillo35

, a poluição visual se caracteriza como ofensa à integridade psíquica das

pessoas que residem, circulam ou transitam numa cidade, ou simplesmente a visitam, posto que

afeta o direito à qualidade de vida.

Para fins do presente trabalho, mais do que uma discussão conceitual, pretende-se dar

destaque para a análise das consequências danosas da poluição visual, tendo em vista que é o

conhecimento científico das funções da paisagem urbana e dos danos decorrentes de sua violação

que contribuirão tanto para a prevenção quanto para uma reparação mais eficaz do dano

ambiental difuso.

Sobre os danos à saúde Campos36

em aprofundado trabalho sobre poluição visual, refere-

se a um importante estudo científico realizado pelo Instituto Paulista de Stress, Psicossomática e

Psiconeuroimunologia – IPSPP de São Paulo, intitulado “Stress, Saúde e Poluição Visual” (2003).

As pesquisas feitas sob a coordenação do Professor Esdras Guerreiro Vasconcellos, apontaram

como agentes causadores de estresse: a concentração excessiva de mídia externa, placas,

outdoors, letreiros, faixas, backlights, painéis, grafites, pichações, recipientes de lixo

34

MARCHEZAN, 2006,p. 15

35

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 3 ed. rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 127.

36

CAMPOS, Watila Shirley Souza. Poluição Visual no Direito Brasileiro. Dissertação. Santos: Universidade Católica de Santos, 2006, p. 29.

Disponível em http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6 Acesso em 02 MAR 2009

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Nº 24 - Dezembro 2010 73

expostos abertamente em locais públicos, postes de fiação aérea, moradores de rua,

favelas com deficiente organização urbana e arquitetônica, dentre outros.

Todos esses agentes foram considerados causadores de alterações de humor tão relevantes

que determinam ser o estresse o início de uma cadeia de sintomas fisiológicos e psicológicos que

podem levar o indivíduo até ao óbito. Esclarece ainda mais:

Existem estudos afirmando que, na vida cotidiana de um indivíduo

civilizado, o organismo recebe cerca de 23.000 informações ao dia.

Decerto que não nos damos conta disso, não percebemos todas as

milhares de coisas que, permanentemente, acontecem ao nosso redor

e, concomitantemente, dentro de nós e, portanto, também não

percebemos que sentimos algo com respeito a cada uma delas

(SIIWINGER, 2001). Sabemos hoje que, toda vez que uma sensação

de eustress ou distresss37

acontecer, antecede ao aparecimento dessa

sensação agradável ou desagradável um processo bem estruturado, no

qual o sistema límbico, o tálamo e o neocórtex superior, que são núcleos

cerebrais vitais para a elaboração da informação, são acionados e

preparam uma resposta comportamental a cada uma delas. Para tanto

eles acionam um eixo neuro-endócrino específico que inclui

componentes do sistema nervoso e glandular. Os principais integrantes

desse eixo de stress são o hipotálamo, a glândula hipófise e glândula

supra-renal. Esse acionamento decorre da avaliação que o sistema

límbico e cortical superior venha a fazer da informação recebida e a

resposta por eles estruturada implica inevitavelmente uma secreção

maior ou menor de hormônios de ativação ou inibição, os quais são

descarregados na corrente sanguínea e vão, cada um à sua maneira,

atuar sobre os diversos órgãos e sistemas do nosso corpo38

.

Dentre os fatores causadores de distress existentes no contexto

físico-social de nossa vida contemporânea, está o agente poluidor

visual. Ele é visto como sendo um dos mais relevantes. O homem do

século XX e, consequentemente, o deste século, elabora 85% das

informações do meio ambiente através do sistema visual. Esse hiper-

desenvolvimento do sistema visual provocou uma certa atrofia no

funcionamento dos outros órgãos dos sentidas, ou seja, do paladar,

da audição, do olfato e, sobretudo, do tato. Ver é fundamental. Ver

para crer parece ter se tornado o mote de vida do homem do século

da comunicação. E exatamente por ser essa via de entrada na

integridade interior de nosso organismo, uma das mais importantes

37

Segundo a pesquisa, o eustress ocorre quando o motivo causador de estress é positivo, agradável e alegre, ao passo que o distress acomete o

indivíduo caso o motivo estafante seja negativo, desagradável e irritante.

38

VASCONCELLOS, 2003 apud CAMPOS, 2006, p. 30

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74 Revista da PGM

para o ser humano moderno, convém que se exerça aqui redobrados

cuidados, visto que tudo que penetrar à membrana do receptor visual

traz em si e consigo determinado potencial para desencadear um

processo de stress lá dentro do corpo.

Dessa análise, não é difícil concluir que os graves prejuízos à saúde física e mental do

indivíduo têm reflexos patrimoniais e extrapatrimoniais sobre as suas esferas individuais. Ocorre

que, além de atingir a individualidade, o estresse decorrente da poluição visual, tomada como

prática danosa à paisagem urbana, tem reflexos imediatos sobre a esfera social do indivíduo,

sobre as suas relações de convivência, sobre o indivíduo em sua dimensão coletiva e sobre a

coletividade abstratamente considerada. Explica-se: o mesmo estudo, bem como outros já

publicados, relacionam o stress aos desarranjos familiares, baixa produtividade no trabalho,

violência e outros comportamentos anti-sociais.

Além dos danos à saúde, a poluição visual prejudica, ainda, a atividade turística:

O potencial turístico de cidades como Rio de Janeiro, Salvador e

Ouro Preto está diretamente ligado à formosura de suas paisagens. A

indústria do turismo, com todos seus desdobramentos econômicos,

nessas e em outras cidades, depende da conservação e melhoria de

seus belos panoramas39

.

Ao tratarmos das funções da paisagem como microbem ambiental, referimo-nos à

conectividade que a paisagem proporciona ao estabelecer uma relação sensorial do homem com

a natureza, com a história, com a cultura, com a arte. A perda ou deterioração da paisagem

impede o exercício dessa função, gerando uma situação de desvinculação, verdadeira alienação.

Privar a coletividade dessa função estético-conectiva traz gravíssimos prejuízos à qualidade de

vida, limita o desenvolvimento do ser humano, empobrece a existência, deprime, oprime.

Por fim, retomamos a antes apontada função democrática da paisagem, como atributo

que tem a paisagem urbana de expressar a identidade, as peculiaridades e as diferenças da

sociedade que nela reside e de todos aqueles que, de algum modo, com ela se relacionam.

O abuso da utilização de tecnologias e de equipamentos publicitários em nome de uma

“modernização” está levando à produção de cidades iguais. A Globalização impõe uma

padronização internacional40

: todas têm que se parecer com o Times Square. O bucólico, o histórico,

o artístico, o característico, o local e o pessoal, embora valorizados pelo movimento pós-moderno,

são desprestigiados ante a pressão econômica.

Desse modo, a lesão às paisagens peculiares, através da poluição visual de equipamentos

publicitários padronizados e tecnologias expostas, configura dano extrapatrimonial ambiental,

vez que atinge a função democrática da paisagem urbana, gerando a perda de identidade

39

MINAMI, GUIMARÃES JÚNIOR, não paginado.

40

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade . P. 67-76 Disponível em www.pdf-search-engine.com/baixar-livro-stuart-hall-identidade-

cultural-na-pós-modernidade-pdf.html. Acesso em 12 SET 2008.

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Nº 24 - Dezembro 2010 75

das cidades. Como consequência, pode ocasionar reflexos patrimoniais, pela perda do valor

turístico, por exemplo.

Ante o exposto, são drásticas as conseqüências da poluição visual e exigem uma rápida

mudança de postura por parte dos operadores do direito. Caso esta não ocorra, correremos o

risco de limitar as atrações turísticas ao letreiro mais luminoso ou a maior street tv.

4. DANO EXTRAPATRIMONIAL À FUNÇÃO ESTÉTICA DAS CIDADES:

BELEZA É FUNDAMENTAL

4.1 O Modelo de Urbanização e a busca por uma paisagem funcional

A conhecida frase do poeta Vinícius de Moraes “as feias que me desculpem, mas

beleza é fundamental” parece não ter ecoado ao longo da trajetória do direito urbano-

ambiental, vez que as cidades e suas interações com o meio ambiente natural sempre foram

pensadas a partir de sua funcionalidade, vista esta numa perspectiva predominantemente

econômica.O modelo de urbanização implantado no Brasil foi fruto do chamado “urbanismo

funcionalista” que se expressou no cenário internacional a partir de 1910, com o movimento

de planificação urbana. Considera-se que a cidade inteira tem que ser reformada e as coisas

tem que estar em seu devido lugar, segundo a expressão pitoresca dos autores do Plano

Regional de Nova York:

[..] A ocupação do solo de acordo com os diversos usos parece ter

sido obra do chapeleiro louco de ‘Alice no País das Maravilhas’. Pessoas

muito pobres vivem em cortiços situados em áreas centrais de preço

elevado. [..] A uns poucos passos da Bolsa se sente o aroma de café

torrado; a uns cem metros de Times Square, o fedor dos matadouros.

[..] A situação contraria todo sentido de ordem. As coisas estão fora

do seu lugar natural. É necessário corrigir essa confusão para que as

atividades se realizem em lugares apropriados.41

A historiografia nacional denota um modo de ver e fazer a cidade que distribui os homens

desigualmente no espaço e subordina os direitos políticos, os direitos individuais e a cidadania

aos modelos de uma racionalidade econômica42

.

A lógica da “ordem e do controle”, o “urbanismo funcionalista” implementado pelos

militares tiveram como consequência um modelo de cidade em que a ocupação ou foi

absolutamente desordenada ou, quando planejada, considerou apenas as funções econômicas do

espaço urbano.

41

TOPALOV, C. Da questão social aos problemas urbanos: os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século XX.

In: RIBEIRO, L.; QUEIROZ, C. P. (Org.). Cidade, povo e nação, a gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, [s.d]. p. 44.

42

MARCHEZINI, Flávia de Sousa. A trajetória da participação popular no planejamento urbano: o caso do Conselho Municipal do Plano

Diretor de Vitória (1961-2001). Vitória: 2006. Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas) - Universidade Federal do

Espírito Santo.

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76 Revista da PGM

A arquitetura moderna se mostrou um importante instrumento desse ideário, ao buscar

a uniformização de costumes e estilos, abusando da geometria e dos ângulos retos, trazendo para

nossas cidades uma padronização internacional, descontextualizada dos cenários naturais e sócio-

culturais, com suas construções frias.

Conforme já exposto, mesmo a pós-modernidade, com a retomada da valorização do

local, dos elementos distintivos e da integração com os espaços naturais, não livrou os cenários

urbanos dos problemas decorrentes da avidez lucrativa, mormente no que tange ao abuso na

utilização de elementos publicitários e tecnológicos que, em inúmeros casos, mascaram a

identidade dos espaços da cidade.

No Dizer de Silva43

Uma cidade não é um ambiente de negócios, um simples mercado onde

até a sua paisagem é objeto de interesses econômicos lucrativos; mas é,

sobretudo, um ambiente de vida humana, no qual se projetam valores

espirituais perenes, que revelam às gerações porvindouras a sua memória.

Sobre o problema da funcionalidade, Brasil Pinto44

destaca:

O urbanismo não visa apenas à obra de utilidade, mas cuida do contexto

em que estão inseridos “dos aspectos artísticos, panorâmicos, paisagísticos,

monumentais, históricos, de interesse cultural, recreativo e turístico das

comunidades. (...) Por outro lado, a referência à proteção estética da cidade

e de seus arredores enseja a proteção e a preservação de vistas

panorâmicas, das paisagens naturais e dos locais de particular beleza.

4.2 A Beleza como valor relativo

O culto ao belo sempre fez parte da cultura do homem e foi a arte renascentista que

chamou a atenção para a beleza das paisagens naturais, mas tal perspectiva não foi privilegiada

nas ocupações urbanas, principalmente na trajetória brasileira.

É obra da pós-modernidade a emergência de uma função estética das cidades, mas sempre

condicionada a uma funcionalidade utilitária:

Os efeitos estéticos são de importância muito grande para equilibrar

os desajustes das sociedades industriais contemporâneas. Mas não

há de esquecer que a funcionalidade do traçado urbano constituirá

outra exigência das aglomerações urbanas de hoje, de modo a

proporcionar ao habitante a ao transeunte facilidade e comodidades

sem as quais os desajustes se agravam45

.

43

.SILVA, 2008, p. 307.

44

PINTO, Antonio Carlos Brasil. Turismo e meio ambiente: aspectos jurídicos. Campinas, Papirus, 2003, p.108.

45

SILVA, 2008, P. 310.

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Nº 24 - Dezembro 2010 77

Não há se propugnar pelo esteticismo gratuito, mas se há de

perseguir a integração entre o elemento estético com uma diretriz

do desenvolvimento urbano; não a preocupação estética artificial,

mas como algo que brota intuitivamente da forma urbana, incluída

no conceito patrimonial ambiental urbano, de que a paisagem

urbana constituirá o revestimento diáfano e envolvente – se tocado

por um critério estético, não com a idéia de monumentalidade,

mas com o caráter de representatividade – ou as garras com que

esse mesmo ambiente agredirá a visão, o sentimento e o

comportamento das pessoas46

.

A palavra estética advém do grego asthesis e tem como significado o conhecimento

sensorial, a experiência, a sensibilidade. Como ramo da Filosofia, é o estudo racional do belo em

relação ao sentimento que suscita nos seres humanos. Nessa acepção, o belo é tratado com certa

vaguidade, caracterizando-se como um valor relativo, que depende de juízos subjetivos e critérios

que variam no tempo e no espaço.

BENJAMIN47

exemplifica bem o problema na análise do comportamento dos Tribunais:

No Direito comparado, os juízes, por muitos anos, fraquejaram

quando chamados a decidir conflitos atinentes a valores

estritamente estéticos. Nos Estados Unidos, p.ex., antes de 1950, os

tribunais frequentemente viam os valores estéticos como um luxo,

em vez de uma necessidade, negando-lhes proteção legal. Ou, então,

os consideravam subjetivos em demasia, recusando-se a virar

“árbitros de gosto”.

Nos Estados Unidos, por exemplo, os juízes consideravam que a

análise estética de questões coletivas demandariam uma análise

excessivamente subjetiva, variante de acordo com o “gosto de

cada um”, embora jamais tivessem encontrado dificuldades em

reparar o dano estético de uma vítima de erro médico, por

exemplo.

Como se pode perceber, a relatividade da noção de belo foi, durante muito tempo, uma

justificativa para a ausência de tutela dos valores ambientais estéticos, e, embora tal obstáculo

tenha sido transposto na esfera da reparação individual, até hoje é utilizada como escusa na

identificação e quantificação do dano moral difuso.

46

SILVA, 2008, P. 310.

47

BENJAMIN, 2005, não paginado.

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78 Revista da PGM

4.3 A Beleza como valor absoluto e direito fundamental e sua reparabilidade na

esfera do dano

Se considerada no passado como um direito supérfluo a partir de uma ótica elitista e

relativista da concepção de belo, o fato é que a estética urbana assume importante posto tanto no

Direito Ambiental quanto no urbanismo contemporâneos, não só no que toca às edificações e

equipamentos urbanos, mas também nas interações entre esse meio ambiente construído e a

paisagem natural.

Consciente ou inconsciente, para muitos a paisagem deixa de ser a

relevância da beleza de um fragmento natural e ressurge como um atributo

holístico da própria natureza, de toda a natureza48

.

Seja com intuitos preservacionistas, seja com interesses econômicos fulcrados no “turismo

sustentável” o fato é que a paisagem, enquanto noção de belo, a partir da sua função estética,

vem, cada vez mais, ganhando relevo no cenário jurídico nacional e internacional.

As disputas político-econômicas pelo ingresso de determinadas cidades na Lista do Patrimônio

Mundial são um exemplo dos interesses que circundam o patrimônio estético das cidades.

No item 2 do presente trabalho, destacamos algumas das funções da paisagem urbana,

não só com base em critérios de funcionalidade utilitarista, mas também com fulcro na importância

da harmonia dos elementos paisagísticos. No item 4, apontamos as consequências danosas da

poluição visual, que traz prejuízos à saúde física e mental dos indivíduos , com reflexos sobre a

sua esfera individual e social,bem como sobre a coletividade abstratamente considerada.

Assim, apesar da relatividade filosófica da noção de belo, a paisagem possui outras funções

que garantem a ela o status de Direito Fundamental a ser protegido. Dentre essas funções, a

função estética, a beleza propriamente dita, ganha contornos absolutos, que independem de

fatores como gostos, modismos, e critérios outros que variam no tempo e espaço:

Nos últimos anos, sem prejuízo do foco ecológico, países de todo o mundo

vem descobrindo e redescobrindo a paisagem, e, a partir dela, o belo

natural, já não mais no seu sentido convencional de formas, cores e sons,

mas enxergando beleza na própria diversidade da natureza. Podemos

dizer que, na perspectiva atual, o belo deixa de ser somente uma percepção

extrínseca (=cultural e visivelmente perceptiva), em proveito de uma

percepção intrínseca, que valoriza os “segredos” da natureza: a apreciação

estética vai do que vemos, sem grande esforço (as montanhas, o verde

exuberante das florestas, a vitalidade dos rios), ao que não vemos, só

sentimos intuitivamente, ou só notamos com o auxílio dos especialistas

(os serviços ecológicos, a qualidade da água, a diversidade das florestas).

É a posição do observador mais sensível, que compreende e aceita que

“somos da natureza e estamos na natureza49

48

BENJAMIN, 2005, não paginado.

49

BENJAMIN, 2005, não paginado.

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Nº 24 - Dezembro 2010 79

Nessa ótica, a estética é vista como valor absoluto e a beleza da paisagem urbana, por si

só, como Direito Fundamental, essencial à qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

Sendo o Direito à beleza das cidades um direito fundamental corolário dos direitos da

personalidade, pode ser avaliado sob a ótica individual e difusa, consoante já exposto. A violação

das funções da paisagem urbana, em especial, dos seus atributos estéticos pode, então, caracterizar-

se como dano moral coletivo?

Analisa Leite50

que as graves e grandiosas lesões ambientais ocorridas na história mais

recente demonstram que o direito ainda encontra dificuldades na responsabilização civil e nas

reparações ambientais principalmente devido à complexidade do dano ambiental e em virtude de

uma percepção de índole individualista do direito, ligado a interesses intersubjetivos, e não no

trato solidário e difuso do dano ambiental.

A identificação clara das funções ambientais da paisagem urbana, como proposto no

presente, implica na superação dessas dificuldades apontadas. Seguem alguns casos em que se

configura explicitamente o dano extrapatrimonial ambiental:

1. Destruição de sambaqui, através da retirada da barreira do terreno

limítrofe, afetando tanto um patrimônio cultural como um valor

ambiental, ecológico da população;

2. Risco na utilização, distribuição e estocagem do metano,

combustível comprado para suprir a falta de álcool, ofendendo a

coletividade material e extrapatrimonial;

3. Publicidade anti-ambiental, afetando de forma indivisível

interesses extrapatrimoniais da coletividade;

4. Aterro de lagoa, ferindo a paisagem, ocasionando dano ao valor

paisagístico e ambiental da comunidade;

5. A perda de luminosidade solar, em decorrência, por exemplo, de

urbanização;

6. Perda de paisagem significativa51

.

A resposta, então, é indubitavelmente positiva. A identificação das funções da paisagem

urbana, a delimitação da importância da função estética da paisagem e das consequências de

sua deterioração são imprescindíveis ao trabalho do aplicador e afastam quaisquer argumentos

baseados no desconhecimento das funções ambientais ou na impossibilidade de aferição dos

valores desses bens.

Embora na aferição do dano moral ambiental, em sua dimensão difusa, não se possa

partir dos mesmos pressupostos da reparação do dano moral individual, algumas conquistas

do sistema de responsabilidade civil individual no ordenamento jurídico brasileiro podem e

devem ser reivindicadas na configuração de um sistema de responsabilização transindividual,

sob pena de sofrermos retrocessos: a responsabilidade objetiva, a desnecessidade de prova do

prejuízo e a mensuração do quantum indenizatório, que também pode ser feita por

arbitramento, são exemplos. Infelizmente, contudo, o desconhecimento tem levado, na práxis

50

BENJAMIN, 2005, não paginado.

51

LEITE, 2003, P. 297.

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80 Revista da PGM

forense, ao afastamento da responsabilidade ou a fixação de indenizações irrisórias e inaptas à

consecução de sua finalidade inibitória.

Se os Tribunais Pátrios já indenizam o dano moral individual e conseguem, senão

mensurar, mas atribuir valor derivado à honra, à dignidade e à estética individual, não há escusa

válida para a ausência de valoração do dano moral ambiental por lesão que ocasione a perda ou

redução da função estética da paisagem urbana, nem mesmo a indivisibilidade do bem ambiental,

vez que o direito já reconhece a sua existência e presta a ele sua tutela.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A paisagem urbana é um microbem ambiental essencial para a qualidade de vida e, como

tal, a beleza das cidades deve ser considerada como um direito fundamental, corolário do direito

à vida, sendo que função social da cidade prevista no artigo 182 do texto Constitucional está

estritamente vinculada à harmonia dos cenários urbanos.

Já se pode falar na existência de um “estatuto jurídico da paisagem” que assegura a sua

mais ampla proteção, tanto no ordenamento jurídico estrangeiro quanto no nacional.

Buscando guardar coerência com a matriz constitucional, propomos, então, como

critério de responsabilização, a identificação das funções ambientais do microbem lesado (no

caso a paisagem), dentre as quais a função estética, cuja violação terá como consequência

jurídica a reparação dos danos materiais e morais decorrentes da perda ou deterioração do

elemento visual de conexão entre o homem, suas criações e a natureza, bem como de

seus reflexos sobre o macrobem ambiental.

Assim, será passível de reparação qualquer ação que impacte negativamente a harmonia

do meio ambiente, o equilíbrio ecológico, mas sua análise e quantificação se darão a partir da

aferição das funções ambientais do microbem imediatamente lesado e das consequências do

dano sobre o macrobem.

No caso da paisagem, a degradação que ocasione perda ou redução de sua função

estética poderá, conforme o caso, ter reflexos patrimoniais (vocação turística, p. ex.) e

extrapatrimoniais ou morais, estreitamente relacionados à noção de identidade, à segurança e

ao prazer da conectividade que a paisagem proporciona entre o ser humano e o meio ambiente,

à saúde física e psíquica, ao conforto emocional, à tranquilidade que proporciona ao homem

em sua dimensão individual e coletiva, não se limitando à beleza enquanto valor relativo a

depender de subjetivismos e critérios como gosto, tempo e espaço. A beleza das cidades é tida,

pois, como valor absoluto, direito fundamental corolário do direito ao meio ambiente sadio e

atributo da personalidade.

Há ainda que se considerar os reflexos dessa função estética sobre a vida em sociedade.

Explica-se: Apesar do pouco conhecimento científico que a humanidade tem sobre as funções

ambientais em geral, já existem inúmeras pesquisas científicas demonstrando que o “caos urbano”,

o adensamento e a ocupação desordenada das cidades são fatores que causam estresse, insônia,

e contribuem para o aumento da violência e criminalidade. Por outro lado, a paisagem natural ou

a paisagem artificial e suas interações com a natureza, quando adequadamente planejadas, causam

bem-estar e melhoria na qualidade de vida. Assim, a lesão a essa função estética traz reflexos

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Nº 24 - Dezembro 2010 81

negativos à esfera social, hipótese em que se consegue visualizar com clareza elementos para

aferição do “dano moral transindividual” decorrente da degradação ambiental.

Nessa linha, a fundamentalidade da paisagem urbana e de sua função estética, bem como

a sua relevância enquanto bem jurídico tutelado é irrefutável, não havendo como dar-lhe ares de

“Direito supérfluo ou fútil”. Por tal razão, os operadores do Direito devem ficar atentos às lesões

hodiernamente cometidas, utilizando-se de todos os instrumentos postos pelo ordenamento para

a garantia da inviolabilidade desse bem, mormente diante das “armadilhas arquitetônicas” da

pós-modernidade.

Não se pode afastar a reparação do dano estético ambiental, ou do dano extrapatrimonial

ambiental decorrente da perda ou deterioração de sua função estética, em razão das dificuldades

em sua quantificação. A transindividualidade do direito, a indivisibilidade dos bens ambientais, o

desconhecimento científico das funções ambientais e todas as demais dificuldades devem se

constituir em desafios e não óbices à reparação. No caso da paisagem como microbem ambiental,

muitas de suas funções já encontram respaldo científico, afinal, na história da humanidade não é

recente o estudo do “belo”, da estética e de seus efeitos sobre o ser humano.

Ainda temos muitos desafios em matéria de proteção da paisagem urbana. Na ótica das

políticas públicas demanda-se, por exemplo, a recuperação dos centros históricos, que por tantas

décadas foram relegados ao abandono, tanto no que tange aos cuidados com o patrimônio cultural,

quanto no que toca à economia dessas áreas centrais, que ficou limitada, na maioria das cidades,

a um tímido comércio popular. O modelo de recuperação ou “revitalização” ou “requalificação”

dessas áreas deve ser fundado na sustentabilidade. Os padrões estéticos devem atentar para a

identidade de nossas cidades, às nossas peculiaridades sociais e jurídicas, bem diferentes do

modelo “globalizado” que se pretende ver “importado” sem qualquer adequação à realidade

brasileira.52

Há ainda o grave problema do “empachamento”, sobretudo pela utilização abusiva e

indiscriminada de elementos de publicidade externa (outdoors, empenas, street tv) e da poluição

visual causada pela instalação desordenada das antenas de telefonia/Estações Radio-base. Isso

sem falar na poluição luminosa e suas trágicas consequências para a fauna noturna e para a

observação astronômica, pondo em risco a sobrevivência de animais noturnos, aves migratórias e

do “direito de ver estrelas”53

.

É terrível constatarmos que o novíssimo direito ambiental, enquanto ciência, somente

inicia a construção de seus próprios princípios e regras quando seu próprio sujeito-objeto está

em fase avançada de destruição. Essa relação paradoxal entre a construção da ciência/destruição

do sujeito-objeto remete, por razões óbvias, a um nascimento tardio, “pós-maturo”, razão pela

qual há pressa, há uma extrema urgência na sua construção e, principalmente, na efetiva produção

de seus efeitos sobre o “mundo da vida”54

. Não há tempo, pois, para purismos, há necessidade de

52

Sobre as ARES – Áreas de Revitalização Econômica das áreas centrais – ver Projeto de Emenda Constitucional e projeto de Lei Complementar

em http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/Imprensa/reabilitacao-de-areas-urbanas-centrais/noticias-2009/marco/

pec-para-reforma-de-centros-urbanos/?searchterm=ARES, sobre os quais temos severas críticas.

53

SANTOS, Nadia Palacio. O Direito de ver estrelas: a poluição luminosa sob a égide jurídica, urbanística e ambiental. In: BENJAMIN, Antônio

Herman de Vasconcellos e (org). Paisagem, natureza e direito. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2005, v. 2, p. 467.

54

Sobre a noção de mundo da vida e, Habermas ver :HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1990, p. 130.

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trabalho árduo e conjunto com as demais ciências (interdisciplinariedade) e, como se sugeriu no

presente trabalho, de aproveitamento dos avanços já obtidos nas tutelas individuais que guardem

compatibilidade com a proteção coletiva pretendida. Os passos devem se direcionar para frente.

Paralelamente, no campo do reconhecimento das diversas funções ambientais dos também

diversificados microbens ambientais, mais do que a educação ambiental com vistas à

conscientização, é preciso provocar nos operadores do direito um verdadeiro insight. Do mesmo

modo que hoje já se é possível sentir literalmente na pele os efeitos da destruição da

camada de ozônio, é preciso que todos conheçam e atentem para os dramáticos efeitos

do “afeiamento”, da perda de identidade de uma cidade, que vão desde o aumento do

estresse e da violência urbana aos efeitos econômicos decorrentes da perda/redução do

seu valor turístico.

Não há, portanto, dificuldades intransponíveis na identificação e quantificação

do dano extrapatrimonial decorrente da lesão à paisagem urbana. O reconhecimento

de um estatuto jurídico da paisagem impõe tanto ações de prevenção quanto de

reparação.

A utilização e concretização dos instrumentos jurídicos já existentes, no que concerne à

proteção da paisagem urbana, devem assegurar a todos o sagrado direito de usufruir daquela

maravilhosa sensação que temos na aterrissagem do avião ao retornar de uma viagem: a volta

para o aconchego da cidade em que vivemos com sua beleza peculiar. Aquela que pelo destino ou

escolha chamamos de lar.

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Nº 24 - Dezembro 2010 83

O código civil argentino e a determinação

do conceito de estatuto pessoal:

Da contraposição entre Actio e Vindicatio

aos direitos sujetivos 1

Maren Guimarães Taborda2

1

Texto integral da Comunicação apresentada no XII Congreso Internacional, XV Congreso Iberoamericano, Encuentro nacional

extraordinario de profesores de Derecho Romano en homenaje al bicentenario de la Revolución de Mayo, em Buenos Aires, Argentina,

de 26 a 29 de maio de 2010.

2

Mestre e Doutora em Teoria do Estado e do Direito pela UFRGS. Especialista em Gestão Tributária pela Universidad Castilla La Mancha.

Professora de História do Direito e de Direito Constitucional da PUCRS e Fundação do Ministério Público. Procuradora do Município de

Porto Alegre. Coordenadora do Centro de Estudos de Direito Municipal (CEDIM) da PGM de Porto Alegre.

“El método de nuestro Código Civil a sido tomado del

“Esboço” y de Savigny”. (D, Vélez Sarsfield. Derecho Civil, I, 1952)

Resumo: Trata o presente trabalho da recepção, pelo Código Civil Argentino, da principal tese de

Teixeira de Freitas, segundo a qual a distinção entre direitos pessoais e direitos reais, chave de

todas as relações civis, é a organização externa do sistema imanente ao Direito. O estudo também

inventaria o caminho percorrido pelo jurista brasileiro ao fazer a mediação entre o Direito Romano

clássico e a Teoria da Pessoa e dos Direitos Subjetivos.

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Nº 24 - Dezembro 2010 85

Introdução

É sabido que D. Vélez Sarsfield, ao redigir o seu projeto de Código Civil para a República

Federal da Argentina utilizou a experiência de outros povos e principalmente o método de trabalho

de Teixeira de Freitas, produzido após décadas de estudos e meditações. Ao poupar um “esforço

considerável de concepção espiritual”, acolheu D. Vélez Sarsfield o sistema proposto no Esboço e

seu principal princípio técnico, qual seja, a divisão dos direitos em pessoais e reais.3

Freitas, na

segunda metade do século XIX, na Introdução à Consolidação das Leis Civis, trabalho preparatório

à codificação civil brasileira, já advertira que a distinção entre direitos reais e direitos pessoais era

fundamental para o sistema de Direito Civil, ou seja, a “chave de todas as relações civis”, uma

vez que corresponde a uma “arrumação” externa daquilo que é internamente dotado de

organização ou sistema imanente.4

Essas categorias, herdadas do Direito romano e conservadas

pelo Direito romano-germânico até nossos dias, correspondem à contraposição existente no Direito

romano primitivo entre actio e vindicatio ou entre actiones in rem e actiones in personam, isto

é, a formas diversas, porém equivalentes, de tutela judicial. Ao contrário das concepções modernas,

que partem do indivíduo, reconhecem-lhe direitos e os sancionam, os romanos “davam a ação”,

criando, com isso, o Direito.

‘Pessoa’, de outra parte, segundo a teoria tradicional do direito civil, é uma criação do

Direito para designar sujeitos de direito, isto é, quem tem aptidão para ser sujeito - potencial ou

atual - de relações jurídicas. Enquanto noção técnica, começou a ser utilizada no medievo e só se

tornou precisa em correlação com a de ‘sujeito de direito’, operada pela Pandectística, no âmbito

do Direito Privado. A identificação entre as noções de ‘pessoa’ e de ‘sujeito de direito’, em um só

conceito, o de personalidade ou capacidade de direito, entendido como capacidade de possuir

direitos e obrigações, remonta à filosofia prática de Kant, cujo centro é o conceito de dever que se

3

Muito já se escreveu sobre a noção de sistema endossada por Freitas, fruto de sua meditação sobre a obra de Savigny e Leibniz. Ver:

MEIRA, Sílvio. Direito Brasileiro e Direito Argentino. Códigos Comercial e Civil. Influência do “Esboço” de Teixeira de Freitas no Projecto

de Vélez Sarsfield. In: MORAES E BARROS, Hamilton et al. Estudos em Homenagem ao professor Caio Mário da Silva Pereira. Rio de

Janeiro: Forense, 1984 e Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império. 2ª. Ed. Brasília:CEGRAF, 1983;. MARTINS-COSTA, Judith. O

Sistema na Codificação Civil Brasileira: de Leibniz a Teixeira de Freitas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. Vol. 17. Porto Alegre: Síntese, 1999; SCHIPANI, Sandro. Augusto Teixeira de Freitas e il Diritto Latinoamericano.

Atti del Congresso internazionale del centenário di Augusto Teixeira de Freitas. Pádua: CEDAM, 1988; FLORES, Alfredo. O papel de

Teixeira de Freitas no contexto do pensamento jurídico do séc. XIX. The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. Vol

1 (2006), nº 1, Article 3. Disponível in

http://services.bepress.com/lacjls/vol1/iss1/art3 , acessado em 12 de abril de 2010; WALD, Arnold. A obra de Teixeira de Freitas e o Direito

Latino-Americano. Revista de Informação Legislativa nº 41. Brasília: Senado Federal, 2004; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.

Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

4

TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das Leis Civis. 3a

. ed. 1o

. Volume. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1875, pág. XXXIX.

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86 Revista da PGM

revela pelo discernimento moral (onde a necessidade prática exprimida na lei moral implica a

existência de liberdade) e o de ‘relação de dever’, que põe, de um lado, o obrigado, e de outro,

aquele para quem o dever existe, e que é, no caso do dever jurídico, o titular dos direitos subjetivos

respectivos. Os representantes da filosofia clássica alemã, ao adotarem a concepção kantiana de

pessoa, lhe forneceram, contudo, uma nova dignidade, no sentido de conceber os direitos subjetivos

como atributos necessários do homem enquanto pessoa - ser dotado de liberdade - na medida

em que eles garantem o seu agir autônomo.5

A expressão ‘sujeito de direito’, por conseguinte, designa o complexo de direitos e deveres,

cuja unidade é expressa figurativamente no conceito de ‘pessoa’. ‘Pessoa’(natural ou jurídica) é,

então, uma unidade personificada de normas jurídicas que impõem deveres e conferem direitos.

Na maioria dos países que adotam o sistema de direito romano-germânico, as pessoas jurídicas

têm sua natureza descrita conforme imputações de direito privado ou de direito público. No

Direito Romano antigo, a palavra ‘pessoa’ tinha o significado normal de ‘homem’, sem qualquer

alusão à sua capacidade. Embora largamente empregado, o termo persona não tinha um valor

técnico, e tanto era ‘pessoa’ o homem livre quanto o escravo - persona servi - , ainda que este

não fosse considerado sujeito de direito. Para o ser sujeito de direito, além da condição ‘ser

homem’, concorriam mais três, a saber: ser livre, cidadão e senhor de si mesmo - sui iuris. Só

nos textos pós-clássicos é que emerge um emprego diverso do termo, para exprimir uma noção

que se avizinha ao que os modernos entendem por ‘capacidade jurídica’. Na compilação

justinianéia, o termo continuou a ser utilizado de modo genérico e os glosadores civilistas

bolonheses continuaram a não lhe atribuir, em referência ao homem, qualquer particular

significação jurídica.6

Teixeira de Freitas, romanista autodidata e profundo conhecedor da obra da Savigny,

transpôs para o Esboço não só a doutrina romana das obrigações, como o “sistema” inerente à

obra de Gaio, ao afirmar que todo o Direito se refere às pessoas, às coisas e às ações. Mais do que

isso, ao acolher os resultados da doutrina jurídica do séc. XIX e das investigações de Leibniz,

pressupôs e afirmou a existência do Direito como uma substância viva que anima as leis e que

conta com um critério fundamental e universal, derivado da natureza das instituições jurídicas

na realidade: a distinção entre direitos pessoais e direitos reais. Com uma postura metodológica

realista, Freitas proclama a anterioridade racional do Direito Natural (com base na sua

compreensão humanista do Direito), sem que, contudo, as disposições do Direito Positivo resultem

diretamente dele. Inicia o seu trabalho pela determinação do conceito de estatuto pessoal –

vinculado à idéia de ‘pessoa’ – sustentando que “os direitos dos indivíduos se originam tanto no

Direito Natural como no Direito das Gentes, do costume e da civilização.7

5

Cf. STRANGAS, Jean. Les implications philosophiques de la notion de sujet de droit. Archives du Philosophie du Droit. Paris: Sirey,

1990. Ver: KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. 3ª. Ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1999. Tradução espanhola de Metaphysik des

Sitten, por Adela Cortina Orts e Jesus Conill Sancho, pp. 298/299

6

Ver: ORESTANO, Riccardo. Il “Probleme delle persone giuridiche” in Diritto Romano. Turim: Giappichelli, 1990.: IGLESIAS, Juan.

Derecho Romano. Historia e Instituciones. Barcelona: Ariel, 1993, pp. 107/108 e 144 a147; CATALANO, Pierangelo. Diritto e Persone.

Studi Su Origine E Attualità Del Sistema Romano. Turim: Giappichelli, 1990, Capítulo V, pp. 163/188.

7

LEIBNIZ. Novos Escritos sobre o entendimento humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999; Nova Methodus discendae

docendaeque jurisprudentiae, t. IV. Opera omnia. Gèneve, 1768; TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil: esboço. Rio de Janeiro:

Typographia Universal de Laemmert, 1958.

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Nº 24 - Dezembro 2010 87

Pois bem, sem a pretensão de esgotar o assunto, que já foi exaustivamente debatido, este

estudo procura compreender a noção de Pessoa subjacente à legislação civil Argentina, que

encontrando raízes no pensamento de Teixeira de Freitas, faz a mediação entre o Direito Romano

clássico e a Teoria da Pessoa e dos Direitos Subjetivos.

1 . ACTIO IN REM E ACTIO IN PERSONAM NO DIREITO ROMANO CLÁSSICO

No direito romano primitivo, as ações eram facultadas ao cidadão para que, ao término,

investido de poderes (potestas) pudesse dispor de pessoas e bens, como reflexo de sua auctoritas

doméstica. Esta potestas se irradiava em dois planos diferentes: no plano das relações internas

do grupo familiar, implicava poderes de dono e senhor, o que Kunkel e García traduziram por

“direito subjetivo de senhorio”; no plano das relações interfamiliares, que os patresfamilias

constituíam com seus iguais, cada um administrando o patrimônio de suas respectivas famílias,

a potestas se manifestava como um poder apenas sobre determinados atos alheios, de interesse

patrimonial. Por isso, Kunkel chamou estas últimas faculdades de “direito subjetivo de crédito”.

A potestas de senhorio era eficaz contra todos e implicava um dever negativo: abstenção de os

demais interferirem naquela ordem de relações. Poder absoluto,manifestava-se, dentro da

família, como patria potestas, direitos do tutor sobre o pupilo, manus sobre a esposa; exercido

sobre coisas da família, como dominium (mancipium primitivo) ou propriedade, e, ainda,

exercido sobre coisas de outrem, provisoriamente, como fiducia, pignus e hypotheca. Já a

potestas sobre atos alheios de interesse patrimonial era relativa, implicando deveres positivos

dos demais e sujeitando materialmente uma pessoa determinada ou determinável. Suas

manifestações mais evidentes eram as obrigações e o procedimento civil.8

Sendo assim, todas as ações se desenvolveram com base em dois arquétipos: a finalidade

da ação era garantir ou postestas sobre uma coisa (aí incluídas as relações familiares) ou a

potestas sobre uma pessoa (seu comportamento, que podia ser um dar, um fazer, ou uma

omissão). Daí haver, no Direito romano, uma íntima relação entre os poderes de manter, suster,

conter, defender - atuação e defesa exercidos pelo titular do poder - e as fórmulas verbais das

ações da lei, só existindo o ius porque existia uma actio, isto é, aquele era uma decorrência desta

(recurso de tutela processual)..

8

Para o Direito Romano, ver: MIQUEL, Joan. Derecho Romano Privado. Madrid: Marcial Pons, 1992; VILLEY, Michel. Le Droit Romain.

9a

. ed. Paris: Presse Universitaire de France, 1993; WOLF, Hans Julius. Introducción Histórica al Derecho Romano. La Coruña: Imprenta

Moret, 1953.Tradução do inglês Roman Law. An Historical Introduction, 1951; Cf. PUGLIESE, Giovanni. Istituzioni di Diritto Romano.

3a

. ed.Turim: Giappichelli Editore; KUNKEL, Wolfgang. Derecho Romano Privado. Madrid: Editorial Labor, 1937; SCHULZ, Fritz. Principios

del Derecho Romano. Madrid: Civitas, 1990 e Derecho Romano Clássico. Barcelona: Bosch, 1960; MOMMSEN, Teodor. Compendio del

Derecho Publico Romano. Buenos Aires: Editorial Impulso, 1942. ARANGIO-RUIZ, Vicente. Historia del Derecho Romano. 5a

. ed.

Madrid: Reus, 1994; GARCÍA, César Rascón. Manual de Derecho Romano. Madrid: Tecnos, 1992. SURGIK, Aloísio. Lineamentos do

Processo Civil Romano. Curitiba, 1990. D’ORS, Alvaro. Elementos de Derecho Privado Romano. 3a

. ed. Pamplona: Ediciones Universidad

de Navarra e Derecho Romano Privado. Pamplona: EUNSA, 1997; WENGER, Leopoldo. Compendio de Derecho procesal civil romano.

Apêndice à obra de KUNKEL; SILVA, Ovídio A. Baptista. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1996; MEIRA, Silvio A. Lei das XII Tábuas. Fonte do Direito Público e Privado. 5a

. ed. Belém, Edições CEJUP,

1989; BISCARDI, Antonio. Obligatio personae et obligatio rei dans l’histoire du droit romain. Revue Historique de Droit Français et

Étranger, nº 2, Paris: Sirey, 1992; SAVIGNY, Friedrich Karl, in: Metodologia Jurídica. Buenos Aires: Depalma, 1979.

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88 Revista da PGM

O conceito material de actio, todavia, formou-se primeiro em um determinado tipo de

ação, a actio in personam, em que a ação surgia paralelamente à obrigação: actio e obligatio

eram inseparáveis. Ao contrário, o nascimento do domínio ou senhorio não dava origem a nenhuma

ação: só surgia uma obrigação depois da litiscontestatio. A ação real nascia quando havia uma

violação, e só foi verdadeiramente reconhecida uma ação real quando os imperadores Honorio e

Teodósio submeteram a ação real, como todas as demais, à prescrição. Em tempos antigos, quando

a demanda era exercício judicial de potestas de senhorio chamava-se vindicationes. Ao exercício

judicial de direitos de obrigações ou de crédito, por outro lado, dava-se o nome de actiones ou

condictiones. 9

Embora, inicialmente, actiones correspondesse ao exercício judicial de obrigações, logo

a expressão actio se empregou também no sentido de vindicationes, como se vê no texto Gaiano,

da época clássica (4.2,3).Desta forma, por exemplo, se uma pessoa estava vinculada a outra pelo

direito pretoriano (através de ações úteis ou in factum), essa relação vinha expressa com outros

termos, como debere, adstringere, actione teneri, indicando deveres genéricos ou sujeição à

actio outorgada pelo magistrado; de outra parte, quando um dever jurídico podia tornar-se efetivo

mediante uma extraordinaria cognitio, também não se empregavam os termos obligatio e

obligare: constitutivo de obligatio era aquele dever que podia tornar-se efetivo por meio de uma

actio in personam; por fim, os deveres derivados de um ius in rem, podiam tornar-se efetivos

mediante uma actio in rem, também não eram obligationes.10

.

Por essas razões, Texeira de Freitas interpretou ser a distinção clássica entre actio in rem

e actio in personam fruto de uma diferença nas fórmulas: na actio in rem, o direito, objeto do

litígio, era enunciado sem que se nomeasse qualquer obrigado ante o direito reclamado; na actio

in personam, ao contrário, o direito era reclamado contra alguém.11

Daí que a peculiariade da

actio in rem clássica aparece no procedimento, na fase in iure: eram as únicas ações que não

implicavam o dever que tinha o demandando de defender-se, isto é, de aceitar uma fórmula

aprovada pelo pretor e, por via de conseqüência, o iudicium.

9

Código. Livro VII: Título XXXVIII, 3 e Título XXXIX, 3.. GARCÍA DEL CORRAL, D. Ildenfonso. Cuerpo del derecho civil romano. Valladolid:

Lex Nova, 1989. Tomo II, pp. 235, e ss. Ora em diante, todas as citações do Corpus Iuris (Digesto, Institutas, Codex e Novelas) são desta

obra.

10

GAIO, 4,2 e 3. Textos conforme manuscrito veronês in: , Alexandre, SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. Institutas de Gaio

e de Justiniano vertidas para o português, em confronto com o texto latino. São Paulo: Saraiva, 1955; DOMINGO, Rafael (org.) Textos de

Derecho Romano. Navarra: Editorial Aranzadi, 2002; Gaius. Institutes. Paris: Les Belles Lettres, 1979. Na época clássica,. obligatio

passa a ser um termo jurídico conhecido com o mesmo significado de obligare (atar), usado em relação às coisas (obligare rem - atar

a uma coisa, dá-la em garantia) e pessoas (obligare personam - impor um dever a uma pessoa). Daí a afirmação de Biscardi, segundo

a qual, mesmo no antigo direito quiritário, o verbo obligare se aplicava também às coisas, e por isso, no direito justinianeu, pode-se

falar em obrigações pessoais e obrigações reais. As obrigações pessoais primitivas seriam: a) a vadiatura (espécie de caução processual,

em que uma persona se tornava responsável pelo cumprimento do dever de outrem de comparecer em juízo,); b) a praedes litis et

vindiciarum ( forma de garantia aplicada às dívidas contraídas pelos particulares para com o Estado, por razão de tributos ou por

adjudicação de obras públicas. Estendia-se ao processo, em que o praedes garantia a restituição da coisa ou de frutos por parte dos

litigantes que, na posse interina da mesma, viesse a perder o pleito); c) a sponsio; d) instituição do vindex (garantia no momento da

execução de uma actio per manus iniectio e e) o nexum. As obrigações reais mais antigas, em que o débito era assegurado por uma

coisa que ficava vinculada (res obligata), seriam a fiducia cum creditore e o pignus datum.

11

Nas fórmulas das ações in rem, havia, normalmente, uma cláusula nisi restituetur ou neque restituetur, inserida imediatamente

antes da condemnatio. Chamadas pela tradição romanística de arbitrium iudicis, nestas fórmulas, ao invés de um iudex, se nomeva

um arbiter (GAIO, 4, 141 e 163).

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Constata-se, então, ser equivocado dizer que as actiones in rem são aquelas que se davam

contra quem lesionasse um ius in re ou in rem, uma vez que, na actio legis Aquiliae, por

exemplo, se protegia um dominium (ius in re), mas a ação era in personam e não in rem. De

outra parte, em casos em que se discutia herança, como o de petição de herança (hereditatis

petitio), a fórmula criada pelo pretor era própria de uma actio in rem, o que implicava que o

demandado não estivesse obrigado a aceitar o iudicium e fosse livre para abandonar a coisa cuja

posse o mesmo detinha. Se não abandonasse a coisa nem aceitasse o iudicium, o autor podia

utilizar contra ele um interdictum quam hereditatem. Já a actio familiae erciscundae - ação de

qualquer um dos co-herdeiros para exigir a divisão de herança -, a actio communi dividundo -

ação aplicável a qualquer caso de co-propriedade - e a actio finium regundorum - ação em que

se discutiam limites de prédios - ao contrário, eram actiones in personam, porque obrigavam o

demandado a defender-se, ainda que o resultado viesse implicar um domínio sobre determinada

coisa.12

O caso da reinvindicatio clássica - ação pela qual o proprietário quiritário podia exigir a

restituição de uma coisa possuída por outrem - é ainda mais exemplar: havendo duas alternativas

processuais, per sponsionem e per formulam petitioriam, mesmo se fosse o caso da primeira

forma, era considerada uma actio in rem, pois, se o demandado se negasse a defender a coisa

vindicada com as oportunas sponsiones ou aceitando a fórmula petitória, devia abandonar a

coisa.13

Por isso, não se pode afirmar ser direta a relação entre a expressão romana ius in re e o

conceito moderno de direito real. Aliás, afirma Miquel, que, em algumas fontes, a expressão ius

in re se contrapõe “nada menos que a la propiedad, que es el prototipo de los Derecho reales”,14

até porque os romanos confundiam propriedade com a coisa sobre a qual a mesma recai.

Resulta daí que as fórmulas das ações da lei ou das ações honorárias eram in rem ou in

personam, conforme a natureza do dever que, através da ação tornava-se efetivo. Nas fórmulas

das ações obrigacionais, a expressão oportere traduzia a idéia de que somente estas geravam

direitos a uma prestação. Nestas ações, o autor se dirigia a uma pessoa determinada - o devedor

obrigado -, de quem pretendia que desse algo ou que respondesse por algo. Ao contrário, nas

actiones in rem, o autor afirmava: a) que a coisa corporal era sua (ação reinvidicatória); b) ou

que, sobre determinada coisa de outrem, competia-lhe uma determinada potestas de senhorio,

como um uso, um usufruto, uma servidão ou, c) tratava-se de uma ação negativa. Na intentio da

fórmula da actio in personam, apareciam os nomes do devedor e do credor (demandante/

demandado); na actio in rem, ao contrário, se afirmava unicamente que uma coisa pertencia ao

autor, sem que aparecesse na intentio da fórmula qualquer nome. A ação real, então, visava a

coisa, e o demandado era tão-somente um obstáculo que se interpunha entre o autor e a coisa.

12

Ver: LENEL, Otto. Essai de reconstitution de l’édit perpétuel. Tradução francesa por Frédéric Peltier, revisada pelo próprio autor.

Paris: Librairie de La Société du Recueil Général des Lois et des Arrêts, 1901. v.1. p. 236 et seq. MANTOVANI, Dario. Le formule del

processo privato romano: per la didattica delle istituzioni di diritto romano. Padova: CEDAM, 1999. p. 60-61 e p. 201-202. Observe-

se que, de acordo com os textos justinianeus, estas ações - familiae erciscundae, communi dividundo e finium regundorum- são

consideradas ações mistas, o que, segundo a visão de SCHULZ e TEIXEIRA DE FREITAS, é equivocado.

13

Sobre a rei vindicatio per sponsionem e per formulam petitioriam ver GAIO, 4,91 e 4,141 e 163, além de . SCHULZ, op. cit, p. 353.

14

MIQUEL, op. cit., p. 159.

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90 Revista da PGM

No caso desta última, que nascia de uma violação, o usurpador nada devia ao proprietário, vencedor

da reivindicatória (caso mais destacado de actio in rem): ele apenas deveria sofrer a vindicatio

do titular do domínio que vira seu direito proclamado pelo juiz. O dever que se tornava efetivo

nas ações reais, era, então, um dever de conteúdo negativo, que implicava a omissão, o respeito

ao domínio de outrem, e não uma obligatio propriamente dita. Nas ações pessoais, o resultado,

para o demandado, era a condemnatio; nas ações reais, este deveria apenas suportar a tomada

de posse por parte do autor, porque, antes da demanda, nenhuma obrigação existia entre eles.15

Foi na época medieval, no Brachylogo (compêndio composto na Lombardia, em 1110,

cujo autor é desconhecido),16

que as expressões ius in rem e ius in personam, foram utilizadas

para distinguir uma classe de direitos em oposição a outra classe e, a partir daí é que se afirmou

que a ação que tem por objeto um ius in rem se chama ação real e é oposta àquela que tem por

objeto o reconhecimento de uma obrigação, a actio in personam. Já no séc. XVIII, com Pothier,

afirmou-se o conceito de ius in re como equivalente a direito real. O que permitiu a classificação

dos direitos em pessoais e reais, foi, sem dúvida, a longa elaboração, iniciada na Canonística, do

conceito de “Pessoa” e de “Direito Subjetivo”, elaboração esta que se confunde com a própria

constituição da tradição jurídica, acolhida por D. Freitas e, por conseguinte, por D. Vélez Sarsfield,

no Projeto de Código Civil Argentino.

2. ATRIBUIÇÃO DE VALOR TÉCNICO À EXPRESSÃO ‘PERSONA’: PERSONALIDADE

JURÍDICA. E DIREITOS SUBJETIVOS

A construção da noção técnica de ‘pessoa’ permeia a história do pensamento jurídico do

Ocidente.17

A partir da chamada “Era Axial” iniciou um longo caminho que levou o homem a

constatar a sua igualdade essencial, isto é, a revelação de que todos os seres humanos, apesar de

suas diferenças merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, de

descobrir a verdade e criar a beleza. A idéia de que “todos” os homens são iguais,

independentemente de sua origem social, gênero, idade, etc.- pedra angular da ética cristã - só

recebeu formulação concreta, em termos jurídico-políticos, na era das grandes revoluções liberais,

mais precisamente com a “Virgínia Bill of Rights”, de 12.6.1776 O reconhecimento ou a

presunção de uma igualdade natural dos homens, com o corolário de tratamento igualitário,

15

Cf. BAPTISTA DA SILVA, op. cit. p. 65.

16

Cf. TEIXEIRA DE FREITAS, Consolidação...cit.p.. CLXVI.

17

Ver, em geral: ORESTANO, cit., passim. VILLEY, Michel. Leçons d´Histoire de la Philosophie du Droit.(Les origines de la notion de

droit subjetif). Paris: Dalloz, 1957 e “La promotion de la loi et du droit subjetctif dans la seconde escolastique”,in: La seconda

scolastica nella formazione del diritto privato moderno. Coleção Per la storia del pensiero giuridico moderno. GROSSI, Paolo (org.).

Milano: Giuffrè, 1973; TODESCAN, Franco. Le radici teologiche del giusnaturalismo laico Le radici teologiche del giusnaturalismo

laico I (Il problema della secullarizzazione nel pensiero giuridico di Ugo Grozio). Coleção “Per la storia del pensiero giuridico moderno,

14”. GROSSI, Paolo (org). Milano:Giuffrè. , 1983, p. 9. PUFENDORF, Samuel. De los deberes del hombre y del ciudadano según la ley

natural, en dos libros. Madrid: Centro de Estúdios Politicos Constitucionales, 2002; SOTO, Domingo O.P . De la Justicia y del Derecho.

Madrid: Instituto de Estúdios Políticos, 1968. Tomos I e II; MOLINA, Luis De iustitia et iure. Tratado II, Disputación (Sobre a diferença

entre o direito a uma coisa e o direito real). In: FERNANDEZ, Clemente. Los Filosofos Escolásticos de los siglos XVI y XVII. Madrid:

Biblioteca de Autores Cristianos, 1986; PANIÁGUA, Jose Maria Rodriguez. Historia del Pensamiento Juridico. Vol. I. Madrid: Universidad

Complutense, 1988.

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chamada de “igualdade constitucional”, “mandato da igualdade” ou “técnica da igualdade” foi a

novidade fundamental da filosofia racionalista e individualista dos séculos XVII e XVIII, consagrada

em todas as Declarações de Direitos do Homem que se seguiram às Revoluções Liberais.

Os estóicos antigos, muito antes de Hobbes e Rousseau formularam a hipótese de um

“estado de natureza” anterior ao “estado civil”, isto é, de um estado decorrente da comum

participação dos homens no logos divino, do qual resulta a sua igualdade essencial. Segundo tal

concepção, existe um conjunto de princípios éticos que emanam da razão que rege o universo -

da natureza - o chamado direito natural universal, antecedente imediato da teoria cristã da lex

aeterna e da lex naturalis, formulada mais tardiamente por Tomás de Aquino. Cícero, em Roma,

influenciado pelo epicureísmo e pelo estoicismo médio, também considera a existência de uma

lei natural e de um estado de natureza. A segunda fase da elaboração do conceito de pessoa

natural (ou humana) – que Teixeira de Freitas chama de “Pessoas de existência visível” -, ocorre

com Boécio, no início do séc. VI. Foi na canonística, contudo, mais precisamente na obra de

Sinibaldo de Fieschi (futuro papa Inocêncio IV), que se passou a aplicar correntemente o termo

persona para designar também entidades coletivas, com uma configuração unitária e abstrata

distinta de seus membros particulares.

O problema da ‘pessoa jurídica’ permeou toda a civilística do séc. XVI ao séc. XVII, que o

tratou segundo uma concepção naturalística e objetiva. Duarenus (1509-1559) aplica o termo

persona tanto as universitates quanto a seus componentes, antecipando, em muitos anos, um

conceito unitário de ‘personalidade jurídica’. Domat (1625-1696) dedica, nas Loix civiles, um

único título as personnes (comunidades eclesiásticas e laicas), definidas como assembléias de

muitas pessoas unidas em um ‘corpo’ formado com a permissão do príncipe, para um bem

público permanente, distintas das pessoas particulares. Mas foi só no final do séc. XVI que

apareceram as primeiras tentativas de clarificar a relação entre o elemento naturalístico – o

homem enquanto entidade física real – e a sua consideração do ponto de vista do Direito – o

homem quanto entidade juridicamente relevante -, reservando-se, para este último, a qualificação,

cada vez mais específica e técnica, de persona. Puffendorf (1632-1694) elabora, finalmente, o

conceito unitário de persona moralis, destinado a reunir, sob uma única noção geral, as personae

simplices e as personae compositae Na obra de Puffendorf (fruto de uma articulada e original

ontologia jurídica e considerada como um dos modelos do sistema jurídico codificado), as pessoas

‘simples’ ou ‘compostas’ são portadoras de direitos, tais como as obrigações e o dominium,

caracterizado como um direito que pode ser adquirido por vários modos (originários e derivativos).

A passagem para um concepção eminentemente subjetivística iniciou no curso do séc.

XVIII, quando, retomando a temática principal do individualismo jusnaturalista, que fez coincidir

o status hominis naturalis e o status hominis civilis - a noção de homem como um dado

naturalístico e a noção de pessoa como um dado jurídico -, juristas e filósofos sustentaram que

cada homem é, por si mesmo, portador de ‘direitos subjetivos’, que podem se reportar ao seu

‘poder da vontade’, elevado a sinal natural de sua personalidade e a elemento motor das relações

jurídicas que estabelece.

Desde Grotius (1583-1645), já se vinha tratando da idéia de direito subjetivo como

faculdade de querer ou fazer qualquer coisa, enumerando-se, inclusive, os vários tipos de ‘direitos’

que esse poder implica, tais como: poder sobre si mesmo (potestas in se) - liberdade; poder

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sobre outros (potestas in alios, como o pátrio poder) e poder sobre coisas (potestas in res, como

o domínio/propriedade). Embora não se possa afirmar com precisão o momento que o termo ius

passou a significar direito subjetivo, o certo é que é uma noção que marca o nascimento de um

tipo de pensamento jurídico de cunho nitidamente individualista, cuja causa longíqua e profunda

foi o Cristianismo, que revelando o valor do indivíduo, desenvolveu, na Idade Média, novas categorias

jurídicas estabelecidas em função do interesse individual e não mais em função da situação social,

como a das ‘ pessoas miseráveis’ (miserabiles personae).

Ainda que se utilizasse, no medievo, a palavra ius, ela não se aplicava à faculdade de

querer ou de agir, nem denotava a idéia mesma de faculdade: o ius que cada um reivindicava

nada mais era que seu estatuto. As primeiras definições claras da noção de ‘direito subjetivo’

emanaram do grupo de autores da escolástica tardia (Duns Scott e Guilherme d’Occam),

lentamente foram transmitidas a juristas – Grotius e seus comentadores (Pufendorf, Feltmann e

Thomasius) até receberem uma completa formulação por filósofos como Hobbes e Gassendi, na

esteira de um combate da filosofia moderna contra o direito natural concebido por Aristóteles.

Assim, ao antigo direito natural objetivo - uma ordem fixa e imutável estabelecida

pela razão universal, em que cada instituição social tem uma estrutura fixa - foi contraposto um

direito natural novo, cujo conteúdo é negativo: a ausência de vínculos e de regras sociais, de

deveres e de comandos, é dizer, o direito de liberdade do indivíduo, cuja origem é puramente

humana, convencional. A natureza fez os homens indivíduos, separados e livres e tais liberdades

são dados jurídicos primários, que a lei a e convenção modelam em ‘direitos subjetivos’. Por

conseguinte, a noção primordial do direito é aquele que é dado por natureza aos homens, que as

leis civis limitam: é a liberdade, o poder individual. Isso é o resultado de três construções

complexas, quais sejam o ser humano é um indivíduo, dotado de direitos subjetivos (noção ético-

jurídica); o Estado, por sua vez, é instituído por um ato humano fundador (contratualismo

constitucional), como o afirmou Hobbes, e condição de existência dos direitos subjetivos; o

ordenamento jurídico é um sistema, “racionalmente apreensível e manejável por intermédio de

conceitos gerais, dotados de elevadíssimo grau de abstração.”18

Não há dúvida que Teixeira de Freitas absorveu a tradição da Escola do Direito Natural

de sistematização more geometrico da experiência jurídica. Leibniz (1667) foi o primeiro a a

aplicar o método racionalista axiomático ao plano das Institutas, fazendo a crítica ao sistema

romano tradicional, sob a perspectiva de que não se pode fundar a ciência jurídica sobre a

observação dos fatos concretos. Assim, propõe um sistema de verdades primeiras (principios

inatos) que acabam por constituir um saber totalizante e escalonado, imanentes ao “ser” do

Direito. A partir destas regras gerais, é possível fazer a divisão entre gêneros e espécies, e, após, a

divisão dos termos. O “corpo” inteiro do Direito respousa sobre a qualidade moral dos atos jurídicos,

que são relativas ao sujeitos, aos objetos e às causas (modos de aquisição). O plano tripartite das

Institutas é então transformado, segundo a reconstrução da ordem da natureza. Vinnius (1665),

18

MARTINS-COSTA, Judith. Indivíduo, Pessoa, Sujeito de Direitos: contribuições renascentistas para uma história dos conceitos jurídicos.

Philia & Filia. Mutações do Conhecimento: O Renascimento do Homem Moderno. Porto Alegre, vol. 01, nº 1, jan./jun. 2010, p. 71.

Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/philiaefilia/issue/view/

2010, acessada em 06 de abril de 2010.

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por sua vez, ao considerar os iura in rebus (direitos subjetivos), assinala que este podem ser jus

in re e jus ad rem. Puffendorf (1672) reconstrói o ‘sistema de Direito’ a partir de premissas

invidualistas. Os indivíduos têm direitos inerentes à sua pessoa, que são também deveres, fazendo

uma união estreita entre a moral dos deveres e a moral dos direitos. Apresenta um plano sistemático

no qual dos homens possuem deveres de duas naturezas: como indivíduo e em sociedade. Como

indivíduo, tem direitos para com Deus, frente a si mesmo e frente aos outros (convenções); em

sociedade, tem deveres para com a família e para com a cidade. As convenções é que institutem

deveres e direitos como a aquisição da propriedade, a gestão da propriedade e as obrigações ex

contractu. O Plano de Heineccius(1727) não difere muito do de Puffendorf. No entanto, ele

especifica a aquisição de propriedade (que é dever frente aos demais) pode ser derivada ou

originária e é neste particular que surgem os direitos de “guardar a propriedade” e “negociar os

bens próprios” (obrigações ex contractu). Conforme Struve (1760), o Jus (direito subjetivo), ao

ser in re e ad rem, quando se estabelece sobre as coisas, é domínio singular ou dominio universal;

estabelecido sobre pessoas, é “direito pessoal”. No plano de direito natural de Domat (1689), do

amor ao próximo resultam os contratos, e da perpetuação dos direitos naturais, como a sucessão

(ab intestato, por testamento, os legados, as substituições e os fideicomissos). Fleury Argou

(1692) inova ao transformar o sentido do plano tripartite, sob um ponto de vista individualista

(moderno): tudo é estudado em função do indivíduo, sujeito de direitos subjetivos, e que pode

fazer respeitar seus dieritos graças a determinados procedimentos.. Daguesseau (1725) divide a

matéria juridica em três partes, também seguindo, grosso modo, Puffendorf. Assim, para ele,

todos os direitos que os homens podem vir a exercer nas relações com seus semelhantes, se

reduzem a duas espécies: direitos sobre as coisas e os direitos sobre as pessoas. Tal plano será

adotado por Prevôt de la Jannès (1750), que fundará toda a matéria jurídica sobre os direitos

subjetivos existentes a priori, isto é, o Direito civil trata das pessoas e seus direitos: sobre as

coisas, perseguidos pelas ações reais; sobre as pessoas, perseguidos pelas ações pessoais. Pothier

(1750) resolve o encontro da tradição gaiana com o racionalismo axiomático moderno, com os

seguintes passos: partindo da observação do mundo, ele nota a existência de res in commercio,

que se dividem em corpóreas e incorpóreas; no que diz respeito à utilidade dessas coisas para o

Direito, ele adota um ponto de vista segundo o qual os Jura, no sentido de direitos subjetivos, que

podem ter diretamente por objeto as coisas – jura in re/ direitos reais - , ou simplesmente

serem a elas concernentes – juras ad rem/ direitos de crédito. Olivier(1776), a partir da

sistematização feita por Domat, ao conservar o plano tripartite das Institutas, finalmente concebe

a repartição da matéria jurídica em pessoas (I), coisas e modos de aquisição à título lucrativo

(II), meios de adquirir as coisas à título oneroso (III), e as ações (IV).19

Todavia, foi no trabalho de elaboração sistemática da doutrina geral do direito privado,

feito pela Pandectística alemã entre o fim do séc. XVIII e início do séc. XIX, em que este foi,

segundo o espírito e a doutrina da época, concebido e articulado em torno da noção de ‘direito

subjetivo’, isto é, como um ‘sistema de direitos subjetivos’, é que se consolidou a concepção

subjetivística da personalidade jurídica. Tal concepção subjetiva da personalidade ao identificar a

19

Ver ARNAUD, André-Jean. Les origines doctrinales du Code Civil français. Paris: LGDJ, 1969, pp. 134 e ss.

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persona - sujeito de direito - com o seu substrato material (o homem), comportou duas orientações

de pensamento diametralmente opostas e, todavia, ligadas a mesma matriz subjetivística, a saber:

a teoria da ficção e a teoria da realidade. A primeira afirma que só o homem, enquanto ser que

possui uma vontade, pode ser sujeito de direito com existência real, sendo todos os demais sujeitos

artificiais; a segunda, procura demonstrar que todos os ‘sujeitos de direito’ são igualmente dotados

de uma existência e vontade ‘reais’.

No processo de construção sistemática de uma noção geral de ‘sujeito de direito’, apareceu

em 1807, pela primeira vez, a voz ‘pessoa jurídica’ (juristiche Personen), na obra do jurista

alemão Arnold Heise, compreendendo, sob um único conceito, contraposto às pessoas físicas,

tudo o que não fosse o homem singular (Alles, auBer den einzelnen Menschen) e que pudesse

ser reconhecido em um Estado como ‘sujeito de direito’, cujo substrato é constituído do homem

singular (quando exerce determinada função, como nos serviços públicos), de agrupamentos

humanos (universitates), de um conjunto de bens destinados a fins de interesse geral ou quaisquer

outros elementos. Reelaborando a tese de Heise, Savigny afirmou a natureza fictícia da

personalidade jurídica, ao entender que todo direito subjetivo existe a causa da liberdade moral

ínsita ao homem e, por essa razão, o conceito de pessoa como ‘portadora’ (Träger) ou ‘sujeito de

direito’ (Rechtssubject) deve coincidir com o conceito de homem, uma vez que só este é capaz de

direitos. Daí a pessoa jurídica, sujeito artificial, criada por ‘simples ficção’ se distingue das

corporações e das fundações, cujo substrato é uma associação de pessoas ou um complexo de

bens, respectivamente. À diferença dos canonistas e civilistas medievais, Savigny considera tal

ficção não uma criação intelectual da ciência jurídica, mas um “instrumento técnico de que

dispõe o legislador”, que ‘finge’, ante uma associação de homens ou de bens, a existência de uma

unidade, considerada como ‘pessoa’ e como tal, ‘sujeito de direito’. Puchta, por sua vez, aderindo

à tese da ficção, considera haver personalidade jurídica só quando há uma disposição legislativa

que reconhece a condição de ‘sujeito de direito’ de alguém ou algo. Por isso, reagrupa as várias

figuras de pessoas jurídicas sob o único conceito de universitates, distinguindo por universitates

personarum, as corporações, e por univesitates rerum, as fundações.

Teixeira de Freitas, que conhecia não só a obra dos romanistas alemães,como também a

dos civilistas franceses (que, segundo ele, não se tinham ocupado do problema das chamadas

pessoas morais), fez a mediação entre a tradição romanística e a doutrina de sua época a partir

desse conhecimento acumulado, muitas vezes se distanciando ora do Direito Romano, ora de

Savigny , ou mesmo das codificações do séc. XVIII. O certo é que em sua obra principal, o Esboço

para o Código Civil, afirma que são pessoas “todos os entes suscetíveis de aquisição de direitos”

(comentário ao art. 16) e estas se subdividem em pessoas de existência visível e pessoas de

existência ideal. Não há, contudo, um paralelismo absoluto entre a tese de Teixeira de Freitas e a

dicotomia pessoa natural-pessoa jurídica presente na obra de Savigny, uma vez que, para ele, “é

tão natural o mundo visível como o mundo ideal, é tão natural a matéria como o espírito, e tão

natural o corpo do homem como sua alma” (anotação ao art. 17). Por conseguinte, para Teixeira

de Freitas, todo homem é pessoa: “Todos os entes humanos são pessoas, são iguais perante a lei;

ainda que não seja igual a sua capacidade de direito , do mesmo modo que sua capacidadee de

fato ou de obrar – non omnes possumus omnia”. Por isso, já que os direitos existem por causa

das pessoas, e que tais entes são, ao mesmo tempo, individuais e sociais, é possível entender

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porque para ele as exigências normativas da razão, resultantes da natureza humana são anteriores

e condicionantes do direito positivo. Tais exigências se moldam em direitos subjetivos, e muitos

destes, porque são inerentes à liberdade humana, são tido como absolutos (valem adversus

omnes), tais como os direitos de liberdade, segurança, personalidade e propriedade.

O esforço de Teixeira de Freitas, foi, então, apresentar um sistema para a codificação do

Direito Civil, já que o “código” significa “um novo methodus disponendi, em que as matérias

estão metodologicamente organizadas de forma a espelhar o ‘movimento natural da vida’ , as

ações do indivíduo burguês, do momento de seu nascimento à sua morte, de forma encadeada,

de uma maneira que não admite saltos lógicos.”20

Assim, no Plano geral do Esboço, ele articula

um Título Preliminar, que trata do lugar e do tempo das relações jurídicas entre pessoas; na

Parte Geral- Livro I, é preciso descrever os elementos dos direitos (pessoas, coisas e fatos). A

Parte Especial, que trata dos direitos, compreende os direitos pessoais (Livro II), em geral, nas

relações de família e nas relações civis (obrigações); o Livro III da Parte Especial trata dos direitos

reais (em geral, sobre as coisas próprias e sobre as coisas alheias).

No Projeto de Vélez Sarsfield, o sistema de direitos subjetivos está assim concebido: nos

Títulos preliminares estão as disposições sobre as leis e sobre os modos de contar os intervalos

do direito; no Livro I, figuram os preceitos jurídicos que dizem respeito às pessoas (em geral e

nas relações de família); já no Livro II, encontram-se os direitos pessoais nas relações civis

(obrigações); no Livro III, os direitos reais e, finalmente, no Livro IV, as disposições comuns

aos direitos pessoais e reais. Assim, verifica-se que Vélez Sarsfield foi mais além de Teixeira de

Freitas porque completou o plano geral do Esboço, no que se refere às disposições comuns aos

direitos pessoas e reais, o que, nas palavras de Silvio Meira, fez com que a “vigorosa concepção de

Teixeira de Freitas” (...) tenha encontrado “bom seguidor”, atualmente consagrado pela crítica

universal.21

Mais notável ainda é o enquadramento do nascituro como “pessoa por nascer”, conceito

que, acolhido pelo codificador argentino, não encontra similar em outros códigos civis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Examinando-se, sumariamente, a atualidade da tese dos direitos subjetivos, verifica-se

que estes aparecem divididos em duas categorias distintas, conforme um critério patrimonial, de

modo que ou são direitos desprovidos de valor econômico, como o direito à honra, à integridade

corporal, ao nome, etc. ou são diretamente avaliáveis em pecunia, como os direitos de propriedade

e os direitos de crédito. Os primeiros denominam-se direitos subjetivos extra-patrimoniais e são

estreitamente ligados à Pessoa. Nestes, ainda pode-se distinguir duas categorias: os direitos do

indivíduo enquanto tal, como o direito ao nome, à imagem, direitos de autor sobre sua obra, à

privacidade, à honra e à integridade corporal, e os direitos do indivíduo na sociedade, como os

de exercer autoridade sobre os filhos (poder familiar), o direito de votar e ser votado, o direito à

liberdade sindical e à greve (direitos subjetivos públicos). Embora sejam tidos como direitos

extrapatrimoniais, a ocorrência de violação por parte de terceiros poderá ensejar uma reparação

pecuniária, a título de indenização.

20

MARTINS-COSTA, Judith H. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999. p. 189.

21

MEIRA, Sílvio. Direito Brasileiro e Direito Argentino..., cit., p. 378.

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Quanto aos direitos subjetivos patrimoniais, são diretamente avaliáveis em pecunia, isto

é, a eles correspondem valores econômicos: são os bens, corpóreos e incorpóreos – direitos de

crédito, direitos reais e a propriedade intelectual. Então, em sentido técnico, patrimônio é o

conjunto de direitos subjetivos de uma pessoa que importam em valoração econômica positiva

(direitos de crédito, direitos reais) ou negativa (dívidas, ônus de servidão, etc.). Tudo isso, que

hoje é consenso na doutrina civilista latinoamericana, está presente na obra de Teixeira de Freitas

e no Código Civil Argentino em vigor na distinção entre Pessoas (estatuto pessoal, aí compreendido

os direitos pessoais nas relações de família – potestas in alios), Direitos Pessoais nas relações

civis (obrigações) e Direitos Reais (sobre coisas próprias e sobre coisas alheias, potestas in res).

Em síntese, no Direito Romano clássico, porque não havia o conceito técnico de pessoa

(personalidade jurídica) e porque ter “direitos” dependia de ter “ação” e do status , as chamadas

actiones in rem eram utilizadas para garantir a potestas do paterfamilias nas relações

interfamiliares, tanto que a reivindicatio era utilizada para reinvidicar um filho(pessoa livre na

concepção romana) ilegalmente detido. Da mesma forma, a transmissão da potestas familiar era

feita indistintamente pela mancipatio, fosse o objeto de transmissão uma coisa em sentido estrito

(res) ou uma pessoa submetida (alieni iuris). Já as actiones in personam, serviam para assegurar

posições nas relações interfamiliares, de modo que a potestas de que o vencedor da ação era

investido incidia sobre pessoa determinada, e não erga omnes. Por tais razões, obrigação e processo

faziam parte da mesma realidade social.

Teixeira de Freitas, ao par de intuir que a distinção romana derivava da natureza do ser

do Direito, adaptou tal percepção aos conceitos modernos de ‘Pessoa’ e de ‘direito subjetivo’, e

assim, se pode entender que o direito familiar não figure mais no âmbito das ações reais, e esteja

adequadamente classificado como direito pessoal (da ‘Pessoa Humana’) nas relações familiares.

Por outro lado, no direito moderno, por obra da processualística alemã do séc XIX (Pandectística),

através da deturpação do conceito de litiscontestatio, operou-se a transformação radical que

identificou as ações reais e pessoais, isto é, as ações in rem foram absorvidas pelas ações in

personam, de modo que os direitos reais se transformam em obrigações quando submetidos a

um processo,”como se o processo tivesse a virtude de transformar em obrigacional todos os

direitos.”22

Mas isso é tema para outra investigação.

22

BAPTISTA DA SILVA, cit., p. 76. e passim.

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Nº 24 - Dezembro 2010 97

Los derechos de reunión y asociación en el convenio

europeo de derechos humanos

Miguel Ángel Presno Linera1

1

. Doctor en Derecho. Profesor Titular de Derecho Constitucional de la Universidad de Oviedo. [email protected]; blog

jurídico: http://presnolinera.wordpress.com; página académica personal http://www.uniovi.es/constitucional/miemb/

presno.htm

El artículo 11 del Convenio Europeo de Derechos Humanos (en lo sucesivo CEDH) dispone:

“1.Toda persona tiene derecho a la libertad de reunión pacífica y a la libertad de asociación,

incluido el derecho de fundar, con otras, sindicatos y de afiliarse a los mismos para la defensa de

sus intereses. 2. El ejercicio de estos derechos no podrá ser objeto de otras restricciones que

aquellas que, previstas por la Ley, constituyan medidas necesarias, en una sociedad democrática,

para la seguridad nacional, la seguridad pública, la defensa del orden y la prevención del delito, la

protección de la salud o de la moral, o la protección de los derechos y libertades ajenos. El

presente artículo no prohíbe que se impongan restricciones legítimas al ejercicio de estos derechos

para los miembros de las Fuerzas Armadas, de la Policía o de la Administración del Estado”.

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98 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 99

1. LA PLURALIDAD DE DERECHOS PROTEGIDOS: LIBERTADES DE

REUNIÓN Y ASOCIACIÓN, LIBERTAD SINDICAL, RECONOCIMIENTO DE

LOS PARTIDOS POLÍTICOS.

El artículo 11 protege, como se puede deducir con facilidad de su lectura, una pluralidad

de derechos; en tres casos de manera expresa (reunión, asociación y libertad sindical) y en otro

de forma implícita (la creación de partidos políticos y la libertad para afiliarse a ellos). Lo que

hace el artículo 11 del CEDH, de manera similar a otros tratados internacionales (art. 20 de la

Declaración Universal de Derechos Humanos), es refundir en un precepto derechos próximos

que, no obstante, suelen reconocerse en varios artículos en los ordenamientos nacionales; así,

por ejemplo, en cinco preceptos de la Constitución española: artículos 6 (partidos), 7 (sindicatos

y asociaciones empresariales), 21 (derecho de reunión), 22 (derecho de asociación) y 28.1 (libertad

sindical); en cuatro de la italiana: 17 (reunión), 18 (asociación), 39 (libertad sindical) y 49

(partidos) y en cuatro de la brasileña: 5.XVI (reunión);

5.XVII a XXI (asociación), 8 (libertad sindical), 17 (partidos políticos); en tres de la alemana:

8 (reunión), 9 (asociación y sindicatos) y 21 (partidos), etc.

No obstante, el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos separa en preceptos

consecutivos (artículos 21 y 22) las libertades de reunión y asociación. La Carta de Derechos

Fundamentales de la Unión, incluida en el Tratado por el que se establece una Constitución para

Europa, agrupa en un precepto todas las libertades aquí comentadas, mencionando de manera

expresa a los partidos: “Toda persona tiene derecho a la libertad de reunión pacífica y a la libertad

de asociación en todos los niveles, especialmente en los ámbitos político, sindical y cívico, lo que

supone el derecho de toda persona a fundar con otras sindicatos y a afiliarse a los mismos para la

defensa de sus intereses. 2. Los partidos políticos a escala de la Unión contribuyen a expresar la

voluntad política de los ciudadanos de la Unión” (artículo 12). Según las explicaciones del

Praesidium de la Convención, “las disposiciones del apartado 1 de este artículo corresponden a

lo dispuesto en el artículo 11 del CEDH... tienen el mismo sentido y alcance que las del CEDH,

pero su ámbito de aplicación es más amplio dado que pueden aplicarse a todos los niveles, incluido

el europeo. Conforme al apartado 3 del artículo 52 de la Carta, las limitaciones a este derecho no

pueden sobrepasar las que el apartado 2 del artículo 11 del CEDH considera que pueden ser

legítimas. Este derecho se basa también en el artículo 11 de la Carta Comunitaria de los Derechos

Sociales Fundamentales de los Trabajadores”.

No es casual la inmediatez del artículo 11 del Convenio respecto al reconocimiento de las

libertades ideológicas (artículo 9) y de expresión (artículo 10), por las conexiones históricas y

actuales existentes entre ellos y, sobre todo, por su importancia en un sistema democrático, como

ha recordado el Tribunal Europeo de Derechos Humanos (entre otros, en los asuntos Ezelin c.

Francia, de 26 de abril de 1991); Vogt c. Alemania, de 26 de septiembre de 1995; Refah Partisi

y otros c. Turquía, de 13 de febrero de 2003; Partidul Comunistilor (nepeceristi) y Ungureanu

c. Rumanía, de 3 de febrero de 2005)2

y, en esta línea, varios Tribunales Constitucionales, como

2

. Las sentencias del Tribunal Europeo de Derechos Humanos pueden consultarse, en francés e inglés, en http://

www.echr.coe.int/echr

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100 Revista da PGM

el español (STC 85/1988, de 28 de abril, F. 2)3

o el francés (Decisión del Consejo Constitucional

94-352, de 18 de enero de 19954

.

“el Tribunal ya ha señalado que la protección de las opiniones y de la

libertad de expresarlas en el sentido del artículo 10 del Convenio constituye uno

de los objetivos de la libertad de reunión y de asociación consagrada por el artículo

11, más aún en el caso de los partidos políticos, teniendo en cuenta su relevancia

para el mantenimiento de pluralismo y el buen funcionamiento de la democracia”

(asunto Refah Partisi y otros c. Turquía, de 13 de febrero de 2003, p. 88).

Los derechos amparados por el artículo 11 tienen una serie de elementos comunes,

además de su “relevancia para el mantenimiento de pluralismo y el buen funcionamiento de la

democracia” (Refah Partisi y otros c. Turquía, cit., p. 89): se trata en todos los casos de derechos

de titularidad y ejercicio individual y colectivo, pues se reconocen a “toda persona” privada (física

o jurídica) para reunirse o asociarse con otras y para desarrollar conductas tanto individuales

(afiliarse, o no, a un partido o sindicato) como colectivas (celebración de una manifestación).

En particular, el Tribunal ha dicho que “el modo en que la legislación nacional protege la

libertad de asociación y la manera en la que las autoridades del Estado aplican las disposiciones

pertinentes en la práctica, da una indicación del desarrollo de la democracia en el país en cuestión”

(asunto Gorzelik y otros c. Polonia, de 20 de diciembre de 2001, p. 55).

Una diferencia tan obvia que ni siquiera ha sido destacada por el TEDH es el carácter

permanente en un caso (asociación) y transitorio en otro (reunión), si bien este último puede

tener cierta duración en el tiempo (en el asunto Cisse c. Francia, de 9 de abril de 2002, se

enjuició la desocupación por la policía de un grupo de 200 extranjeros de la iglesia de San Bernardo,

en París, después de 56 días).

2 EL OBJETO DE LOS DERECHOS RECONOCIDOS EN EL ARTÍCULO 11.

El precepto protege, en primer lugar, la “libertad de reunión pacífica”, ámbito que debe

ser interpretado de manera amplia, incluyendo la libertad para organizar las reuniones y para

asistir a ellas.

Es importante destacar la dimensión objetiva de este derecho, lo que, como es sabido,

significa que además de la obligación negativa de los poderes públicos de no lesionarlo, existe

también la obligación positiva de contribuir a su efectividad, incluso en el ámbito de las relaciones

individuales; así, se ha dicho que “los Estados parte deben tomar medidas razonables y adecuadas

para el desarrollo pacífico de las manifestaciones legales” (asunto Plattform Ärzte für das Leben

c. Austria, de 21 de junio de 1988, p. 34). Y es que:

“Sucede a veces que una determinada manifestación molesta o irrita a

personas contrarias a las ideas o reivindicaciones que promueve. Sin embargo,

3

. Sentencias disponibles en http://www.tribunalconstitucional.es

4

. Sentencias disponibles en http://www.conseil-constitutionnel.fr

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Nº 24 - Dezembro 2010 101

los participantes deben poder celebrarla sin temer los posibles actos violentos de

sus oponentes, ya que este temor podría disuadir a las asociaciones o a otros

grupos que defienden sus opiniones o intereses comunes de expresarse

abiertamente sobre cuestiones palpitantes de la vida de la sociedad. En una

democracia, el derecho de contramanifestación no puede llegar hasta paralizar

el ejercicio del de manifestarse. Por consiguiente, la libertad real y efectiva de

reunión pacífica no se reduce a un mero deber de no interferirse por parte del

Estado; una concepción simplemente negativa no estaría de acuerdo con el objeto

y la finalidad del artículo 11. Este precepto requiere, a veces, medidas positivas

incluso, si es necesario, en el ámbito de las relaciones entre individuos (véase,

mutatis mutandis, la Sentencia X e Y c. los Países Bajos, de 26 de marzo de

1985) (asunto Plattform Ärzte für das Leben c. Austria, cit., p. 32).

El Tribunal ha amparado diversas formas de ejercicio de este derecho: reuniones,

concentraciones, manifestaciones, desfiles,…, pero siempre que sean “pacíficas”, exigencia que

constituye un claro límite positivo al derecho, excluyendo de su objeto las reuniones y

manifestaciones violentas. Con esta dicción del artículo 11 del Convenio, ya no es necesario que

una ley interna excluya ese tipo de reuniones para que carezcan de protección. El propio Convenio

ya lo ha hecho. No obstante, nada impide que el legislador interno pueda concretar en una norma

con rango de ley qué ha de entenderse por reunión violenta o, a falta de norma con rango de ley,

que un juez o un funcionario de policía puedan realizar la misma interpretación en el caso concreto.

Esta previsión constituye parte esencial de la delimitación del objeto del derecho de reunión

porque comprende expectativas no garantizadas.

Cumplido el presupuesto de que la reunión sea pacífica, su ejercicio será legítimo por lo

que no cabrá sanción alguna, ni corporativa (Ezelin c. Francia, cit.) ni mucho menos penal (a

contrario, Osmani y otros c. ex República yugoslava de Macedonia, de 11 de octubre de 2001),

amparándose incluso “el hecho de protestar pacíficamente contra una legislación que alguien

infringe” (asunto Cisse c. Francia, cit., p. 50).

En lo que respecta al objeto protegido por la “libertad de asociación”, el “aspecto más

importante es que los ciudadanos deberían poder crear una entidad legal para actuar de manera

colectiva en un campo de interés mutuo. Sin esto, este derecho no tendría un significado práctico”

(asunto Gorzelik y otros c. Polonia, de 20 de diciembre de 2001, p. 55).

Se incluye tanto la libertad positiva (crear una asociación, integrarse en una ya existente,

desarrollar las actividades previstas en los estatutos, abandonar la asociación, etc.), como la vertiente

negativa de no pertenecer a entidades asociativas voluntarias (asuntos Sigurdur A. Sigurjönsson

c. Islandia, de 30 de junio de 1993, donde se declaró contraria al Convenio la integración obligatoria

en una asociación de taxistas para obtener la licencia correspondiente, y Chassagnou y otros c.

Francia, de 29 de abril de 1999, que amparó a los demandantes ante la obligación de inscribirse

en una asociación de caza).

El Tribunal Europeo excluye del objeto del artículo 11 la colegiación obligatoria para el

ejercicio de una profesión, pues la naturaleza jurídica de los colegios profesionales, así como

ciertas funciones públicas que cumplen, le permiten concluir que no son entidades asociativas en

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102 Revista da PGM

el sentido de ese precepto (asuntos Le Compte, Van Leuven y De Meyere c. Bélgica, de 23 de

junio de 1981, y Albert y Le Compte c. Bélgica, de 10 de febrero de 1983, sobre la colegiación

obligatoria de los médicos, y Bota c. Rumanía, de 12 de octubre de 2004, sobre la de los abogados)5

.

Tampoco protege este derecho frente a las posibles infracciones cometidas por unos

asociados frente a otros, pues se trata de asuntos internos de la entidad que no están amparados

por el Convenio, que tampoco impone, a diferencia de lo que sucede en la legislación española,

una estructura interna y un funcionamiento democráticos (artículo 2.5 de la Ley Orgánica 1/

2002, de 22 de marzo, de asociación).

Sí forma parte del ámbito protegido por el Convenio la inscripción de las asociaciones en

el registro correspondiente, sin que sea admisible la negativa de las autoridades a realizar el

registro presumiendo intenciones diferentes a las declaradas en los estatutos (asunto Sidiropoulos

y otros c. Grecia, de 10 de julio de 1998).

A continuación, el artículo 11 reconoce el derecho a “fundar, con otras [personas],

sindicatos y de afiliarse a los mismos para la defensa de sus intereses”. En la medida en que es

una forma especial de asociación, forma parte del objeto del derecho de libertad sindical la

posibilidad de crear sindicatos o afiliarse a uno ya existente, el desarrollo de la actividad sindical,

[…] si bien es importante tener en cuenta el añadido final –“para la defensa de sus intereses”-

para delimitar con mayor precisión el objeto protegido, pues, como ha declarado el Tribunal no

se trata de una frase redundante:

“Dicha expresión indica claramente un fin y muestra que el Convenio protege la

libertad de defensa de los intereses profesionales de los adherentes a un sindicato

mediante la acción colectiva del mismo, acción cuyo desarrollo debe ser

posibilitado por los Estados parte. El Tribunal entiende, por tanto, que los

miembros de un sindicato tienen derecho a que el mismo sea oído para la defensa

de sus intereses. El artículo 11.1 deja a cada Estado la elección de los medios a

emplear a este fin; la consulta es uno de ellos, pero existen otros. Lo que exige el

Convenio es que la legislación nacional permita a los sindicatos luchar por la

defensa de los intereses de sus miembros, de acuerdo con modos de acción que

no sean contrarios al artículo 11” (asunto Sindicato Nacional de la Policía Belga

c. Bélgica, de 27 de octubre de 1975, p. 39).

Así pues, este derecho “no garantiza ni a los sindicatos, ni a sus miembros un trato

específico por parte del Estado y, en concreto, el derecho a ser consultados por éste. No sólo este

último derecho no se menciona en el artículo 11.1, sino que tampoco se podría afirmar que los

Estados parte lo consagren todos en su legislación y práctica internas, ni que el mismo sea

imprescindible para el ejercicio eficaz de la libertad sindical” (asunto Sindicato Nacional de la

Policía Belga c. Bélgica, cit., p. 38).

5

En la STC 89/1989, de 11 de mayo, el Tribunal Constitucional español se remite a estas sentencias para concluir que “la

obligación de inscribirse los profesionales en el Colegio y someterse a su disciplina no supone una limitación injustificada,

y menos una supresión del derecho garantizado en el art. 22 C.E. y reconocido en el 11 del Convenio Europeo de

Derechos Humanos” (F. 8).

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Nº 24 - Dezembro 2010 103

El Tribunal recuerda también, en esta misma sentencia, que “las cuestiones relativas a

los sindicatos han sido tratadas con mayor detalle en otro convenio elaborado también en el

marco del Consejo de Europa: la Carta Social de 18 de octubre de 1961. El artículo 6.1 de dicho

instrumento obliga a los Estados parte “a favorecer la consulta paritaria entre trabajadores y

patronos”. La prudencia de los términos utilizados muestra que la Carta no reconoce un verdadero

derecho de consulta; según el artículo 20, un Estado que lo ratifica puede no aceptar el compromiso

que resulta de artículo 6.1. Por tanto, no se puede comprender que un derecho de tal naturaleza

se derive implícitamente del artículo 11.1" (p. 38).

El Tribunal no consideró protegido por este precepto el derecho a la negociación colectiva

(asunto Sindicato sueco de maquinistas c. Suecia, 6 de febrero de 1976, p. 39), a beneficiarse

de las condiciones aprobadas en un convenio colectivo (asunto Schmidt y Dahlström c. Suecia,

de 6 de febrero de 1976, p. 34), ni a la duración ilimitada de los convenios (Sindicato sueco de

trabajadores del transporte c. Suecia, de 30 de noviembre de 2004) ya que no aparecen

mencionados en ese artículo ni se consideran indispensables para el ejercicio de la libertad sindical

(asunto Wilson, National Union of Journalists y otros c. Reino Unido, de 2 de julio de 2002). En

definitiva, “lo que exige el Convenio es que la legislación nacional permita a los sindicatos luchar

por la defensa de los intereses de sus miembros, de acuerdo con modos de acción que no sean

contrarios al artículo 11”, entre los que tampoco está necesariamente el derecho de huelga

(asunto Schmidt y Dahlström c. Suecia, cit., p. 36).

No obstante, parece abrirse una puerta a la inclusión de la negociación colectiva a partir

del asunto Gustafsson c. Suecia, de 25 de abril de 1996, donde se habla de su reconocimiento en

diversos tratados internacionales, en particular en el artículo 6 de la Carta Social europea, en el

artículo 8 del Pacto Internacional de derechos económicos sociales y culturales, de 1966, y en los

Convenios 87 y 98 de la Organización Internacional del Trabajo, el primero relativo a la libertad

sindical y a la protección de este derecho, y el segundo al derecho de organización y a negociación

colectiva (p. 53). En esta línea, en el asunto Wilson, National Union of Journalistes y otros c.

Reino Unido, cit., el Tribunal consideró que la práctica consistente en entregar incentivos

económicos para animar a los trabajadores a abandonar la negociación colectiva constituye una

violación por el Estado de su obligación positiva de garantizar la aplicación efectiva de los derechos

reconocidos en el artículo 11.

Un aspecto que también ha suscitado controversias es la “libertad sindical negativa”, en

especial con ocasión de la existencia en algunos Estados de cláusulas que obligan a la afiliación

sindical (closed shop), bien para ser contratado o para permanecer en la empresa. El TEDH no ha

sido rotundo al respecto, alegando que no es su función pronunciarse sobre esas cláusulas en

abstracto, sino resolver los asuntos concretos que susciten; de esos pronunciamientos (asuntos

Young, James y Webster c. Reino Unido, de 13 de agosto de 1981; Sibson c. Reino Unido, de 20

de abril de 1993, y Gustafsson c. Suecia, de 25 de abril de 1996) cabe deducir lo siguiente: el

artículo 11 no reconoce una dimensión negativa del derecho de la misma intensidad que la

positiva, si bien, atendidas las circunstancias, la obligación de afiliación a un sindicato puede ser

contraria al Convenio, lo que sucede si la no afiliación implica un despido que supone la pérdida

de la forma de subsistencia, como ocurría en Young, James y Webster, pero no en Sibson.

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104 Revista da PGM

En cuanto a los partidos políticos, existe una copiosa y reciente jurisprudencia, que ha

tenido rápida acogida en la doctrina del Tribunal Constitucional español, si bien el primer asunto

se remonta al caso Partido comunista de Alemania c. República federal de Alemania, decidido

por la Comisión el 20 de julio de 1957.

En especial en la STC 48/2003, de 12 de marzo, que decidió el recurso de

inconstitucionalidad planteado por el Gobierno Vasco contra la Ley Orgánica 6/2002, de 27 de

junio, de partidos políticos. Esta sentencia se dictó justo un mes después de la resolución por la

Gran Sala del Tribunal Europeo de Derechos Humanos del Asunto Refah Partisi c. Turquía, que

es de 13 de febrero de 2003, si bien una Sala de la Sección Tercera del Tribunal dictó una primera

sentencia el 31 de julio de 2001.

Su inclusión en el ámbito protegido por el artículo 11 no ofrece dudas para el Tribunal;

así, en el asunto Partido Comunista Unificado de Turquía c. Turquía, de 13 de enero de 1998,

concluye que:

“la redacción del artículo 11 da un primer elemento de respuesta a la cuestión de

saber si los partidos políticos pueden invocar esta disposición... si el artículo 11

evoca «la libertad de asociación, incluido el derecho de fundar, con otras,

sindicatos», la conjunción «incluido» muestra claramente que no se trata más

que de un ejemplo entre otros de la forma que puede tomar el ejercicio del

derecho a la libertad de asociación. No se podría, por lo tanto, concluir, como lo

hace el Gobierno, que al mencionar a los sindicatos -por razones basadas

principalmente en debates en curso en la época-, los autores del Convenio hayan

pensado excluir a los partidos políticos del campo de aplicación del artículo 11.

Sin embargo, más aún que a la redacción del artículo 11, el Tribunal da valor al

hecho de que los partidos políticos representan una forma de asociación esencial

para el buen funcionamiento de la democracia. Teniendo en cuenta la importancia

de ésta en el sistema del Convenio no se podría tener ninguna duda de que entran

en el ámbito del artículo 11” (p. 25 y 26).

No se protege únicamente la creación de partidos, sino también su vida y el ejercicio de

sus actividades: “el derecho consagrado por el artículo 11 se revelaría eminentemente teórico e

ilusorio si sólo cubriese la fundación de una asociación, pudiendo las autoridades nacionales

poner fin, en seguida, a su existencia sin tener que atenerse al Convenio. Se deriva de ello que la

protección del artículo 11 se extiende a toda la duración de la vida de las asociaciones y que su

disolución por parte de las autoridades de un país debe satisfacer, en consecuencia, las exigencias

del párrafo 2 de esta disposición” (asunto Partido Comunista Unificado…, cit., p. 33).

Los promotores del partido tienen derecho a elegir una denominación y a su inscripción

registral, por lo que la negativa de las autoridades a realizarla, “tomada incluso antes de que

hubiese iniciado sus actividades, no parece proporcional al fin perseguido y, por tanto, necesaria

en una sociedad democrática”. Asimismo, tienen derecho a “hacer campaña a favor de un cambio

de la legislación o de las estructuras legales o constitucionales del Estado, bajo dos condiciones:

(1) los medios utilizados a este efecto deberán ser desde todos los puntos de vista legales y

democráticos; (2) el cambio propuesto deberá ser compatible con los principios democráticos

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Nº 24 - Dezembro 2010 105

fundamentales” y, en consecuencia, es perfectamente posible que se proclamen de ideología

comunista (asunto Partidul Comunistilor (nepeceristi) y Ungureanu c. Rumanía, de 3 de febrero

de 2005, p. 60, p. 47, p. 55 y 58; sobre la negativa al registro como supuesto que vulnera el

artículo 11, asunto Partido Presidencial de Mordovia c. Rusia, de 5 de octubre de 2004).

Entre los fines que pueden defender está el derecho de autodeterminación y de separación

de partes de un Estado (asunto Partido Socialista de Turquía c. Turquía, de 25 de mayo de 1998,

p. 47), valiéndose de críticas severas y hostiles a entidades públicas y a las fuerzas de seguridad

aunque coincidan con las empleadas por organizaciones terroristas, pues en otro caso “disminuiría

la posibilidad de tratar tales cuestiones en el marco de un debate democrático y se permitiría a los

movimientos armados monopolizar la defensa de esos principios” (asunto Yazar, Karata, Aksoy

y Partido del Trabajo del Pueblo c. Turquía, de 9 de abril de 2002, p. 57 y 59).

En el mismo sentido, pero a propósito del ejercicio del derecho de reunión, véase el asunto

Stankov y Organización Macedonia Unida “Ilinden” c. Bulgaria, de 2 de octubre de 2001.

Extendiendo a los partidos la protección propia de la libertad de expresión, el Tribunal

concluye que “una formación política no puede verse inquietada por el solo hecho de querer

debatir públicamente la suerte de una parte de la población de un Estado e implicarse en la

vida política de éste a fin de encontrar, dentro del respeto a las reglas democráticas, soluciones

que puedan satisfacer a todos los actores afectados” (Asunto Refah Partisi c. Turquía, de 13 de

febrero de 2003, p. 7).

Como es obvio, forma parte del objeto del derecho la facultad de afiliarse a la formación

política que se desee (asunto Ahmed y otros c. Reino Unido, de 2 de septiembre de 1998, p. 70),

si bien, como luego se verá, pueden excluirse determinadas categorías de personas que desempeñan

ciertas funciones públicas (policías, militares, funcionarios).

3 LAS RESTRICCIONES AL EJERCICIO DE ESTOS DERECHOS Y LOS

LÍMITES A LOS LÍMITES.

Como es conocido, el apartado 2 del artículo 11 dispone que “el ejercicio de estos derechos

no podrá ser objeto de otras restricciones que aquellas que, previstas por la Ley, constituyan

medidas necesarias, en una sociedad democrática, para la seguridad nacional, la seguridad pública,

la defensa del orden y la prevención del delito, la protección de la salud o de la moral, o la

protección de los derechos y libertades ajenos”.

El Convenio incorpora así una habilitación a los poderes públicos nacionales para que

concreten en una norma interna las restricciones al ejercicio de estos derechos, siempre que

respondan a los fines, por lo demás muy genéricos, previstos en esta disposición y sean necesarias

en una sociedad democrática.

Si bien el Tribunal ha sostenido que “la excepciones que establece el artículo 11 deben

ser interpretadas de forma estricta; únicamente razones convincentes y poderosas pueden justificar

restricciones a la libertad de asociación” (asunto Gorzelik y otros c. Polonia, p. 58), en alguna

ocasión ha considerado como fin legítimo la “integridad territorial” (asunto Partido Comunista

Unificado c. Turquía, cit., p. 40).

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106 Revista da PGM

Como se ha anticipado, las limitaciones han de estar previstas en una norma interna, lo

que, en palabras del Tribunal (asuntos “Sunday Times” c. Reino Unido, de 26 de abril de 1979,

y Silver y otros c. Reino Unido, de 25 de marzo de 1983) implica las siguientes exigencias:

“primer principio: la injerencia debe basarse en el Derecho interno... El segundo

principio es que la ley pueda conocerse: el ciudadano tiene que disponer de

informaciones suficientes, dadas las circunstancias sobre las normas jurídicas

aplicables a un determinado caso... Tercer principio: sólo se puede considerar

como ley una norma expresada con la precisión suficiente para que el ciudadano

pueda acomodar a ella su conducta; y pueda ser capaz, en su caso recabando

asesoramientos autorizados, de prever, en la razonable medida que permitan las

circunstancias, las consecuencias que pueda producir un acto determinado […]”

(asunto Silver y otros c. Reino Unido, cit., p. 86, 87 y 88).

Para el Tribunal “importa poco, a este respecto, que se enjuicien disposiciones

constitucionales (véase, por ejemplo, la Sentencia Gitonas y otros c. Grecia, de 1 julio 1997), o

simplemente legislativas (véase, por ejemplo, la Sentencia Mathieu-Mohin y Clerfait c. Bélgica,

de 2 marzo 1987). Desde el momento en que el Estado en cuestión ejerce a través de ellas su

«jurisdicción», éstas se encuentran sometidas al Convenio”.

Así pues, en los asuntos de que conozca, el Tribunal analizará las normas limitativas

internas verificando si se incluyen en los fines legítimos previstos en el Convenio y si las medidas

adoptadas son necesarias. En suma, el Tribunal valora las normas, los hechos acaecidos y el

enjuiciamiento de los tribunales nacionales, incluida la jurisdicción constitucional, si bien ha

matizado que “no tiene como tarea sustituir a los tribunales internos competentes, sino verificar

bajo el ángulo del artículo 11 las decisiones que éstos han dictado en virtud de su poder de

apreciación”. Para resumirlo en pocas palabras, el Tribunal llevará a cabo un juicio de

proporcionalidad de la actuación estatal, analizando “el conjunto del asunto para determinar si

era «proporcionada al fin legítimo perseguido» y si los motivos invocados por las autoridades

nacionales para justificarla son «pertinentes y suficientes»” (asunto Partido Comunista Unificado

c. Turquía, cit., p. 30 y 47)6

.

6

Es conveniente destacar que el Tribunal Constitucional español (STC 48/2003, de 12 de marzo) ha analizado la

constitucionalidad de la Ley Orgánica 6/2002, de 27 de junio, de partidos políticos, sirviéndose de estos mismos criterios

(F. 12): “Se respetan, en definitiva, los criterios sentados por la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos

en materia de disolución de partidos políticos (SSTEDH de 30 de enero de 1998, Partido Comunista Unificado de

Turquía c. Turquía; 25 de mayo de 1998, Partido Socialista c. Turquía; 8 de diciembre de 1999, Partido de la Libertad

y la Democracia c. Turquía; 31 de julio de 2001 y 13 de febrero de 2003, partido de la Prosperidad c. Turquía; 9 de

abril de 2002, Yazar y otros c. Turquía; 10 de diciembre de 2002, DEP c. Turquía), que exige como condición de su

ajuste al Convenio: a) la previsión por ley de los supuestos y causas de disolución (que, obviamente, se cumple por las

normas impugnadas, incluidas en una ley formal; b) la legitimidad del fin perseguido (que, como queda dicho, en el

caso examinado es la garantía de los procesos democráticos de participación política mediante la exclusión como partido

de aquel ente asociativo que no se ajuste a las exigencias que respecto a la actividad, dimanan de la concepción

constitucional del partido político); y c) el carácter necesario de la disolución en una sociedad democrática (acreditado

por el examen precedente de las concretas causas de disolución establecidas en la Ley)”.

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Nº 24 - Dezembro 2010 107

El principio de proporcionalidad se ha aplicado tanto al derecho de reunión (asunto

Cisse c. Francia, cit., p. 53) como al de asociación, en especial para enjuiciar la disolución

de partidos políticos, ámbito en el que el Tribunal ha parecido guiarse por un especial celo,

declarando que “los Estados contratantes sólo disponen de un margen de apreciación

reducido, que se duplica con un control europeo riguroso que afecta a la vez a la ley y a las

decisiones que la aplican, incluidas las de un tribunal independiente. El Tribunal ya indicó

la necesidad de tal control a propósito de la condena de un parlamentario por injurias (asunto

Castells c. España, de 23 de abril de 1992, p. 42); con más motivo tal control se impone

cuando se trata de la disolución de todo un partido político y de la prohibición que afecta a

sus responsables de ejercer en el futuro cualquier otra actividad similar” (asunto Partido

Comunista Unificado c. Turquía, cit., p. 46).

En su enjuiciamiento, el Tribunal tiene muy en cuenta las circunstancias que rodean el

caso sometido a su examen, lo que es ineludible para determinar, por ejemplo, si se dan las

condiciones que avalan la prohibición de celebrar una manifestación (asunto Rai y otros c. Reino

Unido, de 6 de abril de 1995) o si tales razones no existen (asunto Stankov y Organización

Macedonia Unida “Ilinden” c. Bulgaria, de 2 de octubre de 2001).

Respecto a las medidas restrictivas contra los partidos políticos, el Tribunal ha afirmado

que su proporcionalidad ha de valorarse teniendo en cuenta una serie de datos, sin desdeñar ni

mucho menos “las dificultades unidas a la lucha contra el terrorismo” (asuntos Irlanda c. Reino

Unido, de 18 de enero de 1978, p. 11 y siguientes; Aksoy c. Turquía, de 18 diciembre de 1996, p.

70 y 84, y Partido Comunista Unificado c. Turquía, cit., p. 59), lo que nos ofrece varios ejemplos

de “control laxo” sobre la medida restrictiva del derecho.

Esos datos son: a) “los estatutos y el programa de la formación política”; b) “si los actos

y discursos de los dirigentes y miembros del partido político, tomados en consideración en el

marco del asunto, son imputables al conjunto del partido”; c) “si los actos y discursos imputables

al partido político constituyen un conjunto que ofrece una clara imagen de un modelo de sociedad

concebido y predicado por el partido y que estaría en contradicción con el concepto de sociedad

democrática”; d) “si existen indicios que muestren que el riesgo de atentado a la democracia, a

reserva de ser probado, está suficiente y razonablemente próximo” (asunto Refah Partisi c.

Turquía, cit., p. 104)7

.

A la vista de todas estas circunstancias valoradas en conjunto, el Tribunal Europeo de

Derechos Humanos concluyó, en un caso, que “una medida tan radical como la disolución

inmediata y definitiva del TBKP, decretada antes incluso de sus primeras actividades y completada

con una prohibición a sus dirigentes de ejercer cualquier otra responsabilidad política, se muestra

7

Parece obvia la proximidad de esta exigencia con la doctrina del clear and present danger, acogida también por el

Tribunal Constitucional español en la sentencia sobre la ley de partidos (STC 48/2003, de 12 de marzo, F. 12): “En el

mismo sentido, el Tribunal Europeo de Derechos Humano, considera que si bien el margen de apreciación de los

Estados debe ser escaso en materia de disolución de partidos políticos, cuando el pluralismo de las ideas y los partidos,

que es inherente a la democracia, está en peligro, el Estado puede impedir la realización o continuación del proyecto

político que ha generado ese peligro (STEDH, de 31 de julio de 2001, caso Refah Partisi (Partido de la Prosperidad) c.

Turquía)”.

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108 Revista da PGM

desproporcionada al fin pretendido y, por lo tanto, no necesaria en una sociedad democrática”

(asunto Partido Comunista Unificado c. Turquía, cit., p. 61). En este caso,

“el programa del TBKP apenas habría podido verse desmentido por acciones

concretas ya que, disuelto desde su fundación, el partido no ha tenido tiempo de

llevarlas a cabo. Ha sido así sancionado por un comportamiento que entra dentro,

únicamente, del ejercicio de la libertad de expresión” asunto Partido Comunista

Unificado c. Turquía, cit., p. 58).

En otro supuesto el Tribunal estimó que:

“los actos y discursos de los miembros y dirigentes del Refah eran imputables al

conjunto del partido, que estos actos y discursos revelaban el proyecto político a

largo plazo del Refah tendente a instaurar un régimen basado en la charia en el

marco de un sistema multijurídico, y que el Refah no excluía el recurso a la

fuerza a fin de realizar su proyecto y mantener el sistema previsto por él.

Considerando que estos proyectos estaban en contradicción con la concepción

de la sociedad democrática y que las posibilidades reales del Refah de aplicarlos

hacía más tangible e inmediato el peligro para la democracia, la sanción impuesta

a los demandantes por el Tribunal Constitucional, incluso en el marco del reducido

margen de apreciación de que disponen los Estados, se puede razonablemente

considerar que respondía a una necesidad social imperiosa. En consecuencia,

como resultado de un control riguroso en cuanto a la presencia de motivos

convincentes e imperativos que pudieran justificar la disolución del Refah y la

prescripción temporal de ciertos derechos políticos pronunciada contra los demás

demandantes, el Tribunal considera que estas injerencias correspondían a una

necesidad social imperiosa y eran proporcionales a los fines perseguidos. Por lo

tanto, la disolución del Refah puede considerarse necesaria en una sociedad

democrática en el sentido del artículo 11.2” (asunto Refah Partisi c. Turquía,

cit., p. 132 y 135).

A continuación, recuerda el Tribunal en sus fundamentos que:

“el Refah, fundado en 1983, participó en varias elecciones legislativas o

municipales, y que obtuvo aproximadamente el 22% de los votos en las elecciones

legislativas de 1995, lo que le permitió ocupar 158 escaños en la Gran Asamblea

nacional de Turquía (que contaba con un total de 450 escaños en la época de los

hechos). Tras su participación en el poder en el marco de una coalición, el Refah

obtuvo cerca del 35% de los votos en las elecciones municipales de noviembre de

1996. Según un sondeo de opinión efectuado en enero de 1997, si se hubiesen

celebrado elecciones en ese momento, el Refah habría obtenido el 38% de los

votos. Según los pronósticos del mismo sondeo, el Refah habría podido obtener

el 67% de los votos en las elecciones generales que debían probablemente

celebrarse cuatro años más tarde. Pese al carácter aleatorio de algunos sondeos,

estas cifras atestiguan un aumento considerable de la influencia del Refah como

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Nº 24 - Dezembro 2010 109

partido político y de sus posibilidades de acceder en solitario al poder… El Tribunal

deduce de ello que el Refah disponía, en la fecha de su disolución, de un potencial

real de apoderarse del poder público, sin verse limitado por los compromisos

inherentes a una coalición. En la hipótesis de que el Refah hubiese propuesto un

programa contrario a los principios democráticos, su acceso en solitario al poder

público le habría permitido establecer el modelo de sociedad enfocado en dicho

programa” (p. 107, 108).

4 LA TITULARIDAD DE LOS DERECHOS

Como se puede deducir de lo visto hasta ahora, los derechos reconocidos en el artículo

11 son de titularidad individual y colectiva (“Toda persona…”), pudiendo ejercerlos tanto personas

físicas como jurídicas (sindicatos, asociaciones, partidos políticos, etc.). Entre las personas físicas

se incluyen tanto mayores como menores de edad, nacionales de los Estados parte y extranjeros,

y personas con permiso de residencia o sin él, pues como ha admitido el Tribunal en el ya citado

asunto Cisse c. Francia está protegido “el hecho de protestar pacíficamente contra una legislación

que alguien infringe” (p. 50).

No obstante, debe recordarse que, de conformidad con lo previsto en el artículo 16 del

Convenio, “ninguna de las disposiciones de los artículos 10, 11 y 14 podrá ser interpretada en el

sentido de que prohíbe a las Altas Partes Contratantes imponer restricciones a la actividad política

de los extranjeros”. Además, como se ha anticipado, el apartado segundo concluye afirmando

que “el presente artículo no prohíbe que se impongan restricciones legítimas al ejercicio de estos

derechos para los miembros de las Fuerzas Armadas, de la Policía o de la Administración del

Estado”. Se trata de personas que están en una relación de sujeción especial, lo que, como es

bien sabido, hace referencia a la situación jurídica en la que se encuentran los individuos sometidos

a una potestad administrativa de autoorganización más intensa de lo normal.

En estas relaciones el contenido de ciertos derechos fundamentales puede tener una

extensión menor, debido a su coexistencia con los bienes y funciones constitucionales para cuyo

servicio se ha instituido la relación de sujeción: piénsese en la profesión militar, cuya especial

sujeción se encuentra al servicio de la jerarquía y la eficacia necesarias para el adecuado

cumplimiento de las funciones constitucionales que tiene atribuidas la Administración militar.

España ha formulado una reserva al artículo 11 del Convenio en la medida en que sea

incompatible con lo dispuesto en los artículos 28 y 127 de la Constitución de 1978; es decir,

con el derecho fundamental que reconoce y, para algunas profesiones, limita la libertad sindical

y con el precepto que prohíbe la pertenencia de los jueces, magistrados y fiscales a partidos

políticos y sindicatos.

A nuestro juicio, y teniendo en cuenta lo resuelto hasta la fecha por el Tribunal Europeo,

no se observan contradicciones entre el Convenio y los mencionados preceptos constitucionales,

pues las restricciones a las que alude el artículo 11 afectan a los mismos colectivos profesiones

(fuerzas armadas, policía, miembros de la Administración) que los mencionados en el artículo

28 y 127 (miembros de las fuerzas o institutos armados o personas sometidas a disciplina militar,

funcionarios públicos en general y jueces, magistrados y fiscales en particular).

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110 Revista da PGM

No obstante, si el Convenio permite estas restricciones, es obvio también que el Legislador

interno no está obligado a introducirlas y que, en cada Estado, únicamente deberá hacerlo

cuando esos límites respondan a los principios constitucionales de organización de la

función pública, del poder judicial, de las fuerzas de seguridad y de la institución militar. Al

hacerlo, debe acreditar que el recorte que experimentan los derechos es necesario para el fin

legítimo previsto, proporcionado para alcanzarlo y respetuoso con el contenido esencial del derecho

fundamental restringido.

Así, el Tribunal, en el asunto Ahmed y otros c. Reino Unido, de 2 de septiembre de 1998,

analizó un reglamento que limitaba la posibilidad de ejercer actividades políticas para los

funcionarios locales que ocuparan “puestos sometidos a restricciones en el plano político”.

El Tribunal consideró que las injerencias resultantes de la aplicación del reglamento a los

demandantes perseguían el objetivo legítimo de proteger los derechos de terceros —incluidos los

miembros de las asambleas locales y los electores— a un régimen político auténticamente

democrático a nivel local. Para el Tribunal, la intención del reglamento era reforzar la larga tradición

de neutralidad política de los funcionarios locales.

Señaló, además, que las medidas en cuestión se aplicaban únicamente a categorías

estrictamente delimitadas de altos funcionarios, que ejercían actividades en las que era esencial

la necesidad de una imparcialidad política. Además, el reglamento no había sido diseñado para

prohibir cualquier comentario sobre cuestiones políticas, controvertidas o no. Lo único que

intentaba era evitar los comentarios de carácter partidario que, juzgados de manera razonable,

podrían interpretarse como algo a favor o en contra de las tesis de un partido político El derecho

de los demandantes de adherirse a un partido político no era objeto de limitación alguna.

En el asunto Rekvényi c. Hungría, de 20 de mayo de 1999, sobre las actividades políticas

de los policías, declaró lo siguiente:

“las garantías incluidas en el artículo 10 del Convenio se aplican al personal

militar y a los funcionarios (asunto Engel y otros c. Países Bajos, de 8 de junio

de 1976, y asunto Vogt c. Alemania, de 26 de septiembre de 1995). El Tribunal

no encuentra ninguna razón para excluir a los policías de esta conclusión,... La

obligación impuesta a ciertas categorías de funcionarios, especialmente a los

policías, de abstenerse de actividades políticas se dirige a la despolitización de los

servicios afectados y, de hecho, contribuye a la consolidación y al mantenimiento

de la democracia pluralista en el país... el deseo de velar por que el papel crucial

de la policía en la sociedad no resulte comprometido por la erosión de la

neutralidad política de sus funcionarios se concilia con los principios

democráticos. Teniendo en cuenta el papel de la policía en la sociedad, el Tribunal

ha reconocido que contar con fuerzas policiales políticamente neutrales constituye

un fin legítimo para cualquier sociedad democrática. Vista la historia particular

de ciertos Estados parte, sus autoridades nacionales pueden, para asegurar la

consolidación y el mantenimiento de la democracia, estimar necesario disponer

de ciertas garantías constitucionales que restrinjan la libertad de los policías para

ejercer actividades políticas y, en especial, para participar en el debate político.

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Nº 24 - Dezembro 2010 111

Falta determinar si las concretas restricciones pueden ser consideradas

«necesarias en una sociedad democrática»…. Los policías tienen siempre el

derecho de ejercer actividades que les permitan expresar sus opiniones y

preferencias políticas. Es del todo evidente, incluso si los policías están sometidos

a restricciones en interés del servicio, que tienen el derecho… de votar...”

5 LAS GARANTÍAS DEL DERECHO.

Conviene recordar que la legitimación ante el Tribunal para la defensa de éste y los otros

derechos está reservada (artículo 34 del Convenio) a “cualquier persona física, organización no

gubernamental o grupo de particulares que se considere víctima de una violación, por una de las

Altas Partes Contratantes, de los derechos reconocidos en el Convenio o sus Protocolos”, por lo

que no serán admitidas las demandas presentadas por “organizaciones gubernamentales”

entendiendo por tales “no solamente los órganos centrales del Estado, sino también las autoridades

descentralizadas que ejercen «funciones públicas», cualquiera que sea su grado de autonomía en

relación a dichos órganos; sucede lo mismo con las colectividades territoriales” (asunto Gobierno

de la Comunidad autónoma del País Vasco c. España, de 3 de febrero de 2004, sobre la presunta

vulneración por algunas disposiciones de la Ley Orgánica 6/2002, de partidos políticos, de, entre

otros, el artículo 11; en el mismo sentido, Ayuntamiento de Rothenthurm c. Suiza, de 14 de

diciembre de 1988, Ayuntamiento de Mula c. España, de 1 de febrero de 2001, y Ayuntamiento

de Dandeyds c. Suecia, de 7 de junio de 2001).

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112 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 113

1

Procurador do Município de Porto Alegre, professor do Curso de Direito da UNISINOS, Mestre em Teoria do Direito pelo

PPG em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O direito natural aplicado ao homem do futuro:

Uma (re)formulação dos direitos de personalidade no

código civil, suas implicações frente às nanotecnologias

Nelson Nemo Franchini Marisco1

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114 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 115

Introdução

O termo nanotecnologia vincula-se à manipulação da matéria na escala molecular. A

nanotecnologia refere-se a tecnologias em que produtos apresentam uma dimensão de 1/10 de

mícron, cem nanômetros ou cem bilionésimos de metro. A nanotecnologia está associada a várias

áreas de pesquisa e produção em escala atômica (medicina, eletrônica, computação, engenharia

física, química, biologia, etc.).

A manipulação de átomos nesta escala apresentará diferentes propriedades. Não se tem

certeza científica quanto ao potencial perigo que as atividades de pesquisa e exploração destas

tecnologias trarão para a espécie humana.

Esse cenário é preocupante, pois em muitas áreas, como a da saúde, farmacologia, química

industrial, informática, cosmética, as nanotecnologias já estão incorporadas. Esse é o cenário

atual das nanotecnologias: grandes possibilidades econômico-financeiras e científicas, riscos a

serem descobertos (que poderão afetar a saúde humana), e a necessidade de criação de marcos

regulatórios, tanto para as pesquisas quanto para os produtos finais do processo. Assim, as

nanotecnologias, nas múltiplas formas de aplicação citadas afetarão os Direitos da Personalidade

previstos no Código Civil de 2002.

A doutrina moderna do direito civil utiliza em larga escala as chamadas cláusulas gerais.

A cláusula geral de tutela dos direitos de personalidade, fundamentada no substrato axiológico do

princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pode ser utilizada para proteção das conseqüências à

saúde, psique e outros malefícios à pessoa causados pelas Nanotecnologias.

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116 Revista da PGM

I - O homem do futuro ou “o que estamos fazendo”?

O homem do futuro. A humanidade, tal como conhecemos, ainda está presa a terra. Até

que ponto a ciência realizará e afirmará os sonhos do homem?

Na Revista Veja de 28 de julho de 2010, consta material de divulgação da Sociedade

Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, cujo tema é a Nanobiotecnologia, indicando

que o futuro já começou. Informa que a tecnologia que lida com a manipulação da matéria no

plano molecular está na base de novos recursos diagnósticos. Já se prometem microrrobôs capazes

de se autoduplicar, que circulariam pelo corpo humano unindo-se aos tecidos orgânicos para

deter processos de envelhecimento ou estimular funções do cérebro. Essa realidade da nova era

que inicia é assim transmitida:

Robôs microscópicos que navegam pela corrente sanguínea e mandam

informações do corpo humano para equipamentos. Medicamentos

inteligentes que agem exclusivamente nas células doentes.

Nanopartículas injetáveis que possibilitam, em casos de câncer,

localizar metástases até então não visualizadas nos exames de

imagem. Parece ficção científica? Essas possibilidades já são realidade

nos laboratórios de pesquisa, acenando com promessas de utilização

médica no futuro. O fato é que a nanobiotecnologia vem transpondo

às fronteiras da imaginação para ganhar terreno em aplicações reais,

fazendo emergir um admirável mundo novo na medicina.

O ser humano e sua vida já estão sofrendo as conseqüências das experiências científicas.

A vida perde o seu caráter natural e passa a ser mesclada com a máquina, com a prótese, com o

implante, com as nanomáquinas inseridas no corpo humano. Segundo Gilberto Dupas (DUPAS,

2009, ps. 57-58):

Os patronos dessas técnicas garantem, para um futuro próximo,

nanorrobôs circulando pelo sangue humano para reparar células,

capturar micróbios ou combater cânceres; todo o acervo das bibliotecas

mundiais contido num dispositivo do tamanho de um torrão de açúcar;

materiais dez vezes mais resistentes e cem vezes menos pesados que o

aço; e armas e aparelhos de vigilância milimétricos e potentíssimos.

Anunciam a implantação de nanochips no organismo humano para

substituir ou adicionar células ou competências, abrindo espaço para

uma primeira geração de pós-humanos. E seus oráculos mais

delirantes prometem a completa regeneração celular; no limite, a

imortalidade.

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Nº 24 - Dezembro 2010 117

Os aspectos desumanizadores do progresso científico e material foram preconizados por

Aldous Huxley (HUXLEY, 2009) em Admirável Mundo Novo, publicado em 1931. Huxley (rectius:

os Dirigentes da Nova Europa) da mesma forma que Thomas Hobbes, sublima a estabilidade do

Estado, porém, ao contrário do pensamento do filósofo precursor do liberalismo, pressagia a

idéia que o Estado deverá controlar até mesmo a forma de reprodução humana, visto que seria

possível multiplicar os embriões tantas vezes quantas fossem possíveis (pelo método bokanovski),

para que houvesse mão-de-obra para a indústria que estava florescendo na época de Huxley

(ARENDT, 2001, p. 10):

O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo

o ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora

desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado

a todos outros organismos vivos.

O mundo em que vivemos hoje é muito mais artificial, fabricado pelo homem, que natural.

Quase todos os elementos do nosso ambiente mostram provas do artifício humano (SIMON,

1981, p. 23).

Esse homem do futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um

século parece movido por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada por

algo produzido por ele mesmo. Segundo Hannah Arendt (ARENDT, 2001, p. 16), não há razões

para duvidar de que sejamos possíveis de realizar essa troca, como “não há motivo para duvidar

de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da terra”.

Artificialismo da existência humana – o trabalho produz um mundo artificial de coisas

nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. “O trabalho e seu produto, o artefato humano,

emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do

tempo humano” (ARENDT, 2001). Logo, devemos ser cuidadosos ao igualar “biológico” com

“natural”, porque as coisas que chamamos de artefatos não estão fora da natureza.

Os homens são seres condicionados segundo Hanna Arendt. Tudo aquilo que com eles

entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência (ARENDT, 2001):

O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas

produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas

que devem sua existência exclusivamente aos homens também

condicionam seus autores humanos. Além das condições nas quais a

vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os

homens criam suas próprias condições que, a despeito de sua

variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força

condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida

humana ou entre em duradoura relação com ela, assume

imediatamente o caráter de condição da existência humana.

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118 Revista da PGM

De que forma a nanotecnologia irá condicionar a vida humana, a natureza do homem e

suas relações pluripessoais? E de que forma a nanotech irá trazer maior felicidade a vita activa

do homem? O que está em questão não é o que nós fazemos com a Nanotech ou o que nós

deveríamos fazer, mas o que, como diz Gadamer, “ultrapassando nosso querer e fazer, nos

sobrevém, ou nos acontece” (GADAMER, 1997, p. 14).

Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais perdeu

sua conotação negativa de inquietude (ARENDT, 2001, P. 24).

O homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz. E o homem “só pode procurar o

comum de todas as maneiras de compreender e mostrar que a compreensão jamais é um

comportamento subjetivo frente a um objeto dado, mas frente à história efeitual” (GADAMER,

1997, p. 19). Cabe ao intérprete jusfilosófico dizer se as nanotechs são uma representação da

realidade, uma reprodução, e de que forma poderemos interpretá-las.

Desde sempre a técnica acompanhou a existência do homem sobre a terra. Como disse

Engelmann, citando Paulo Becchi, “quando o homem descobre as relações causais da natureza,

passa a imitá-la, além de recriar com seu conhecimento novas técnicas e máquinas que foram

capazes de suprir e controlar os seus efeitos” (ENGELMANN, 2009).

A técnica tem uma função complementar à natureza, ajudando a cumprir o que a natureza

não consegue fazer por si só. Segundo Paolo Becchi, a natureza se transforma em uma grande

máquina movida por conexões causais que, descoberto o mecanismo, o ser humano está em

condições não somente de imitá-la, mas também de recriá-la com suas próprias mãos (BECCHI,

2002, p. 117).

Importante identificar o que distingue o artificial do natural. Simon estabelece as seguintes

fronteiras das ciências do artificial (SIMON, 1981, p. 40):

1. As coisas artificiais são sintetizadas (apesar de nem sempre, e nem

mesmo usualmente, com total premeditação) pelo homem;

2. As coisas artificiais podem ter a aparência de naturais, carecendo

em muitos aspectos da realidade destas.

3. Os objetos artificiais podem ser caracterizados em termos objetivos,

funções, adaptações.

4. Os objetos artificiais são normalmente discutidos, particularmente

durante a concepção, em termos imperativos assim como descritivos.

A artificialidade inclui similitude preceitual mas diferença essencial, semelhança mais

evidente a partir do exterior que do interior. Pode-se dizer que o objeto artificial imita o real voltando

a mesma face para o exterior, adaptando-se a classes comparáveis de tarefas externas, na perseguição

dos mesmos objetivos. A imitação (e isto deve valer para as nanotechs) por poderem ser organizados

sistemas físicos distintos que exibem comportamentos quase idênticos (Simon, 1981).

A percepção que emerge do contexto das nanotecnologias mostra o lado violento da ciência

moderna, pois tudo se quer invadir, inventariar, copiar, transformar, adaptar, em última análise,

dominar (ENGELMANN, 2010). O poder sobre a vida assim caracterizado é próprio de uma

determinada época histórica: a modernidade.

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Nº 24 - Dezembro 2010 119

A partir das nanotecnologias, em verdade a partir da explosão de novas técnicas, e em

face da sujeição da vida aos influxos tecnológicos, surge o bio-poder (exercício do poder estatal

sobre a vida), não mais preocupado apenas com a vida humana, mas com as novas tecnologias,

sua pesquisa, desenvolvimento e comercialização (ENGELMANN, 2010).

Pelo que já foi referido verifica-se que o maior risco nas inovações tecnológicas, como as

nanotecnologias, é que a ambição econômico-financeira se sobreponha às questões relacionadas

aos seres humanos. Nesta parte cabe situar o alerta dado por Wilson Engelmann no Simpósio

Internacional “O (des)governo biopolítico da vida humana” ocorrido na Universidade do Vale

do Rio dos Sinos em setembro de 2010:

Portanto, a encruzilhada é justamente esse se dar conta de que a partir

da liberdade o homem será capaz de preservar a essência que é a

humanidade do humano em melhores condições de viver. A liberdade

de escolha permitirá, na sua essência, o aparecimento dos efetivos

resultados das investigações. Por isso, não se trata de fazer a crítica

aos avanços nanotecnológicos. Eles são necessários e representam a

criatividade da espécie humana-racional. No entanto, o progresso

deverá vir acompanhado da liberdade para avançar, recuar, parar

ou retroceder, dependendo dos resultados que vão sendo obtidos.

E aqui voltamos à pergunta inicial, formulada não em termos de indivíduo, mas em

termos de sociedade. Estamos vivendo em uma sociedade pós-humana? Segundo Engelmann

(ENGELMANN, 2009, p. 546):

Aí é que é necessário o “estranhamento” heideggeriano, ou seja, torna-

se fundamental a reflexão sobre o futuro-hoje das pesquisas

nanotecnológicas. Heidegger faz uma série de considerações,

pertinentes para o momento que estamos vivenciando. Não se deve

esquecer um ponto central: “a técnica é meio para um fim” e a “técnica

é uma atividade do homem” (Heidegger, 2001, p. 11). A relação entre

meio e fim é muito significativa e poderá ser enriquecida pela

contribuição de Kant: “age de tal maneira que uses a humanidade,

tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e

simultaneamente como fim m e nunca simplesmente como meio”

(Kant, 1980, p. 135). As possibilidades das pesquisas nanotech deverão

sempre ser um meio para que as necessidades humanas possam ser

atendidas dentro do melhor nível.

Jürgen Habermas clamou no deserto ao tentar fazer compreender às elites contemporâneas

e às poderosas corporações globais que a programação genética contém um elemento irreversível,

estreitando o espaço de liberdade dos homens (DUPAS, 2009, p. 62). Coloca-se aqui as seguintes

perguntas:

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120 Revista da PGM

- intervir no genoma humano ou implantar nanochips no cérebro humano para modificá-

lo é algo que precisa ser normativamente regulamentado ou deixaremos essas ações ao sabor de

preferência dos mercados?

- devemos garantir que a combinação imprevisível de duas sequências imprevisíveis de

cromossomas continue a determinar o direito de vir a ser por meio da lógica da natureza?

- ou aceitaremos que o arbítrio de alguém, que deseja um design apropriado de um novo

ser, com nanopróteses e chips possa interferir nos fundamentos somáticos e na liberdade ética de

outra pessoa que ainda não existe e não pode ser consultada?

- será que o direito a uma herança genética sem manipulação pode ser possível de uma

proteção jurídica, ainda que o maior interesse ainda não tenha nascido?

- que efeitos terão na autocompreensão da nossa espécie os implantes de chips e a

nanotecnologia, que prepara a fusão do homem a máquina?

- e como manter as universidades conectadas com essa perspectiva inovadora e não mantê-

las a serviço de um esquema de dominação que as transforma em empresas fornecedoras de

mão de obra?

- que tipo de transformações ainda podem ser atualizadas nesses hardwares e softwares

mantendo-se a dignidade humana? 2

Ao tornarem incerta a identidade da espécie, os desenvolvimentos das tecnologias

bionanogenéticas afetam a imagem que havíamos construído de nós mesmos enquanto seres

culturais da espécie homem. Gilberto Dupas traz o discurso dos adeptos do “pós-humano”

(DUPAS, 2009, p. 76):

O ser humano é um hardware precário que contém um software

insuficiente. Os avanços notáveis da ciência e da técnica –

nanotecnologias, robótica e próteses profundas – revolucionarão o

organismo do homem, criando um pós-humano habilitado a imensas

conquistas cósmicas.

Uma discussão fundamental é a dos espaços que se abrirão à civilização humana a partir

dessa revolução já iniciada. Usando como referência a citação supra, o pós-humano seria a

superação do humano que, tal como existe hoje, estaria obsoleto.3

2

As perguntas foram extraídas de DUPAS, Gilberto. Uma Sociedade Pós-humana? Possibilidades e riscos da

nanotecnologia. IN: NEUTZLING, Inácio. ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de. Uma Sociedade Pós-Humana.

Possibilidade e Limites das Nanotecnologias. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 62.

3

Fazendo uma necessária referência ao filme Avatar, de James Cameron, há que se citar as alternativas básicas sugeridas

por Dupas par apensar o pós-humano: “Na primeira, o pressuposto é de que o corpo é um hardware falho e ultrapassado;

seria preferível fazer um download da nossa mente para um corpo que fosse melhor. A atualização do corpo dar-se-ia

aos poucos, modificando o organismo mediante a incorporação de próteses para lidar com as novas exigências. Entre

outras razões para essas modificações estaria a de que o homem precisará poder viver em ambientes que não são seu

habitat natural, até porque nosso próprio modelo civilizacional poderá dar cabo final do ecossistema original da Terra.

(...) A segunda maneira inaugura aquilo que alguns estão chamando de um novo tipo de eugenia. Na eugenia negativa

havia a purificação da raça através da eliminação daqueles caracterizados como ‘humanos’ deficientes’. Na eugenia

positiva, existira a possibilidade de se “melhorar” o patrimônio genético por meio de transformação nas células, obtendo

uma segunda linha de evolução do humano.” (DUPAS, op. cit., ps. 76-77).

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Nº 24 - Dezembro 2010 121

Habermas pensa que a manipulação genética poderá alterar nossa autocompreensão

enquanto séries da espécie. As técnicas genéticas que visam à seleção e à alteração das características

deslocam os limites entre o que somos e o modo como lidamos com essa herança sob nossa própria

responsabilidade, entre o acaso e a livre decisão dos homens. As intervenções eugênicas e as

nanotecnologias podem alterar a estrutura da nossa experiência moral e jurídica (HABERMAS, 2004).

E aqui se tem uma nova questão: quais os impactos na estrutura psíquica de um indivíduo

em crescimento ao saber-se design de outra pessoa?4

A pessoa programada não é capaz de entender

a intenção do programador, inserida nela por meio do genoma alterado5

.

II - Direitos Naturais e Nanotecnologia: uma primeira aproximação.

Será preciso utilizar uma ferramenta hermenêutica para proteger a dignidade humana e

os chamados direitos da personalidade. Os direitos da personalidade compreendem os direitos

atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade.

Tem-se a personalidade como um conjunto de características e atributos da pessoa

humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico. A pessoa há

de ser tutelada das agressões que afetam a sua personalidade, identificando a doutrina a existência

de situações jurídicas subjetivas oponíveis erga omnes (TEPEDINO, 2004, p. 27).

Utilizar-se-á a “razoabilidade prática” de John Finnis para interpretação e atualização dos

direitos de personalidade (FINNIS, 2002). O cerne da obra de Finnis está nas exigências básicas

da razoabilidade prática. Mas, o que vem a ser a razoabilidade prática? O autor identifica sete

formas básicas de bem humano, formas estas que podem ser promovidas de muitas maneiras e

combinações na vida de um indivíduo. Diante de muitas possibilidades, o autor aduz que há boas

razões para eleger compromissos, projetos e ações, sabendo que a eleição exclui muitos

compromissos, ações e projetos alternativos, que são razoáveis ou possíveis. 6

Em razão da importância do tema para o desenvolvimento do projeto, que procura

esclarecer de que forma a razoabilidade prática atualiza os preceitos do Direito Natural para a

formulação dos chamados direitos da personalidade, faz-se relevante citar excerto da obra de

Tomás de Aquino7

:

Naquelas coisas, porém, que caem na apreensão de todos, acha-se certa

ordem. Com efeito, o que por primeiro cai na apreensão é o ente, cuja

intelecção está inclusa em todas aquelas coisas que alguém apreende.

4

Gilberto Dupas acresce a seguinte pergunta à anterior: “Como se sentirá um adolescente que é homem mas desejaria

ser mulher, ao saber que isto lhe foi imposto pelos pais?” (DUPAS, 2009, p. 80).

5

Ver o filme “Gattaca - A Experiência Genética”, de Andrew Niccol, de 1997, que já levantava as questões aqui abordadas.

6

Finnis salienta que ao falar de “bem”, “bem básico”, “valor”, “bem estar”, não está dizendo “bem moral”. As formas

básicas de bem para Finnis são a vida, o conhecimento, o jogo, a experiência estética, a sociabilidade (amizade), a

razoabilidade prática e a religião. É preciso deixar claro que Finnis disse ter identificado sete formas básicas de bem

humano, mas que elas são muitas ((FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. Reino Unido: Oxford University

Press, 2002, p. 86-100).

7

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 94, a. 2.

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122 Revista da PGM

E assim o primeiro princípio indemonstrável é que ‘não se pode afirmar

e negar ao mesmo tempo’, que se funda sobre a razão de ente e não

ente, e sobre esse princípio todas as outras coisas se fundam, como se

diz no livro IV da Metafísica. Assim como o ente é o primeiro que cai na

apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na

apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com

efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o

primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de

bem que é ‘Bem é aquilo que todas as coisas desejam’. Este é, pois, o

primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal,

evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da

natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas

ou evitadas pertencem, aos preceitos da lei de natureza, que a razão

prática naturalmente apreende ser bens humanos.

O bem da razoabilidade prática, que é um dos sete bens básicos para John Finnis, serve

justamente para possibilitar a participação nos outros bens básicos, pois servirá para orientar os

compromissos, a seleção de projetos, disposições e ações. Mas, como pode alguém saber que

uma decisão é razoável de forma prática?

Essa pergunta John Finnis responde com os representantes clássicos da ética (e da Teoria

da Lei Natural). Eles enfatizam que uma resposta adequada a esse problema somente pode ser

formulada por quem tem experiência e inteligência e um desejo de razoabilidade mais forte que

os desejos e paixões humanas.

Tomás de Aquino distinguiu claramente um tipo de princípios práticos que ele considerava

evidentes por si mesmos para qualquer um com experiência e inteligência suficiente para

compreender as palavras com que se formulam. Ele enfatizou que os princípios morais tais como

os contidos nos Dez Mandamentos são conclusões a partir dos princípios primários evidentes por

si mesmos, que raciocinar até alcançar tais conclusões exige um bom juízo, e que há muitas

outras normas morais mais complexas e particulares que hão de seguir-se e muitos juízos e

decisões morais que hão de fazer-se, todos os quais exigem um grau de sabedoria prática que

poucos homens de fato possuem (FINNIS, 2002, p. 101).

Tomás de Aquino realizou uma categorização tripartite dos princípios da lei natural. Em

primeiro lugar existem os princípios mais gerais (communissima), que são os fins ou o sentido

dos preceitos. Eles expressam as formas básicas de bem humano e, na medida em que se referem

ao bem próprio de cada um, são reconhecidos por qualquer indivíduo que tenha uso da razão e

suficiente experiência para saber a que se referem e não podem, enquanto princípios gerais, ser

eliminados do coração humano. Equivale a dizer que qualquer pessoa mentalmente sã é capaz de

ver que a vida, o conhecimento, o companheirismo, filhos, são bons e dignos de serem possuídos.

A exigência da justiça é um conjunto de exigências da razoabilidade prática que existem

porque a pessoa humana deve buscar realizar e respeitar os bens humanos, não simplesmente

em razão de si mesma e em seu próprio benefício, mas também em comum, isto é, em comunidade

- entendimento compartilhado por todos os seus membros (BAUMAN, 2003, p. 15).

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Nº 24 - Dezembro 2010 123

A exigência da justiça é, pois, uma exigência da razoabilidade prática. Muitas de nossas

responsabilidades, obrigações e deveres morais concretos têm por base a oitava exigência básica

da razoabilidade prática:8

a exigência de promover o bem comum da própria comunidade (FINNIS,

2002, p. 125). A pessoa humana deve realizar e respeitar os bens humanos não simplesmente

por si mesma e em seu próprio benefício, mas também em benefício da comunidade.

As exigências da justiça são as implicações concretas da exigência básica da razoabilidade

prática, segundo a qual alguém há de favorecer e promover o bem comum de suas próprias

comunidades (FINNIS, 2002, p. 164). Esse princípio relaciona-se estreitamente com o valor básico

da amizade e com o princípio da razoabilidade prática que exclui a auto-preferência arbitrária na

busca do bem.

Esse princípio, segundo o qual cada um há de favorecer e promover o bem comum de

suas próprias comunidades, contém os três elementos já analisados: orientação-para-o-outro,

em referência à comunidade ou comunidades nas quais a pessoa participa, como ajuda para

alcançar o bem comum; o dever, por ser uma exigência da razoabilidade prática; e a igualdade ou

proporcionalidade, já que (a) o princípio visa ao bem comum da comunidade em questão, e (b)

o princípio visa ao bem comum, que implica uma referência a critérios de conveniência ou

adequação em relação aos aspectos básicos da plena realização humana (FINNIS, 2002, p. 164).

Tratar de algo como a justiça é tratar de algo que diz respeito a como as pessoas devem

tratar os outros, no sentido do modo como os outros merecem ser tratados, têm direito de ser

tratados. Requerimentos sobre a justiça são identificados não pelo próprio caráter das pessoas,

mas considerando o que será estabelecido como relacionamento razoável e de igualdade

proporcional entre elas, em relação a algum ato, abstenção, ordem ou outro assunto que seja

externo, em relação ao olhar do outro, em relação ao que afeta o outro.

Esses são os pontos que John Finnis entende como relevantes para que se estude a justiça:

“[...] viver em comunidade uns com os outros, em cumprir minha parte em tais encargos e

responsabilidades e em administrar, explorar e dispor de recursos naturais” (FINNIS, 2002, p. 188).

Mireille Delmas-Marty pede “uma paisagem em ordem” (DELMAS-MARTY, 2004, p. 3). É

isto o que também se quer quando se utiliza a razoabilidade prática de Finnis, que nada mais é do

8

Finnis entende que o bem da razoabilidade prática estrutura nossa busca de bens. A primeira exigência da razoabilidade

prática é o que John Rawls chama de um plano de vida racional. Em seguida, não se deve deixar de lado nenhum dos

valores humanos básicos, em que pese o fato de qualquer compromisso com um plano de vida coerente implicar algum

grau de concentração em uma ou algumas das formas básicas de bem, em detrimento das outras (FINNIS, 2002, p.

105). A terceira exigência é a imparcialidade fundamental entre os sujeitos humanos, que são ou podem ser partícipes

das formas básicas de bem. A quarta e a quinta exigência se complementam entre si: com o fim de estar suficientemente

aberta a todas as formas básicas de bem em todas as diferentes circunstâncias ao largo de uma vida, e em todas as

relações freqüentemente imprevisíveis, de cada pessoa com as outras, ela deve ter certo desprendimento em relação a

todos os projetos que assume. Não é razoável, para Finnis, que uma pessoa entenda que não tem mais sentido a sua vida

em razão de um fracasso qualquer. A quinta exigência estabelece o equilíbrio entre o fanatismo e a apatia ou omissão. É

a exigência de que, assumido um compromisso, a pessoa não o abandone em face de uma ligeira dificuldade. A sexta

exigência trata da necessidade de que a pessoa cause bem ao mundo (à sua própria vida e à vida das demais pessoas)

mediante ações que sejam eficientes para alcançar seus propósitos. A sétima exigência é a adoção de uma atitude como

um meio para promover ou proteger um ou mais dos bens básicos em um ou mais de seus aspectos. A oitava exigência

é favorecer o bem comum das comunidades. A nona é “atuar de acordo com sua própria consciência”.

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124 Revista da PGM

que a aplicação da phronesis aristotélica e da prudentia do Aquinate. De que forma o direito

poderá proteger o humano – a dignidade do humano – das transformações que se operam diante

de nós? Pede-se ao direito um pouco de ordem.

Para fundamentar o pedido de ordem na estruturação das pesquisas nanotechs (DELMAS-

MARTY, 2004, p. 3):

Em primeiro lugar, que ele coloque marcos, que trace limites. E limite

a si mesmo, “a fim de que não faltem orlas ao mar”, dizia Portalis no

célebre Discours préliminaire au projet de Code Civil (1804), cioso de

não “regular tudo pelas leis” e de assim dar segurança à sociedade

contra as flutuações da ciência. Pois a ciência, dizia ele, “abandonada

à disputa, só oferece um mar sem orlas”, embora também seja verdade

que, recusando todo limite, a ciência (tal como a arte) trabalha para

vencer a desordem, avançando a exploração na direção certa.

Embora certos biólogos considerem que a biologia tem pouco a dizer sobre a pessoa, ou

seja, sobre aquilo pelo qual um individuo da espécie humana se torna uma pessoa, ou pelo

menos é reconhecido como tal, permanece o mistério sobre a definição da pessoa (DELMAS-

MARTY, 2004, p. 31).

Como se constrói a relação entre os Direitos Naturais e os Direitos da Personalidade?

Segundo o professor da Unisinos, coordenador do Grupo JUSNANO (ENGELMANN, 2010, p. 135):

Ao se referir que os Direitos Humanos e os Direitos Naturais têm uma

perspectiva moral geral, significa aceitar que o seu conteúdo, mesmo

sem estar positivado, deverá ser observado, posto ser o elemento básico

para a caracterização e a preservação axiológica em qualquer

evolução tecnológica.

Como já referido, as nanotecnologias trarão consigo uma nova fase de poder, o poder

biotecnológico, o que certamente irá refletir nos chamados direitos da personalidade. Os direitos

da personalidade são a expressão dos direitos naturais-humanos, assentados no valor maior que

é a dignidade da pessoa humana (ENGELMANN, 2010, p. 139).

O Código Civil brasileiro dedica todo um capítulo aos direitos da personalidade, categoria

da qual o legislador se ocupa pela primeira vez. Seu posicionamento, na parte geral do Código,

reflete uma mudança paradigmática do direito civil, que se reconhece como parte de um

ordenamento cujo valor máximo é a proteção da pessoa humana (DONEDA, 2007, p. 135).

Adriano de Cupis refere-se a “direitos essenciais”. Afirma o seguinte (DE CUPIS, 1982, p.

13):

Vi sono certi diritti, vale a dire, dei quali la personalità rimarrebbe

um’attitudine completamente insoddisfatta, priva do ogni concreto

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Nº 24 - Dezembro 2010 125

valore; diritti, scompagnatti daí quali tutti gli altri diritti soggettivi

perderebbero ogni interesse rispetto all’individuo: tanto da arrivarsi

a dire Che, se essi non esistessero, la persona non sarebbe più tale.

Sono essi i ‘diritti essenziali’, com cui si identificano precisamente i

diritti della personalità.

Em uma concepção, que não é patrimonialista, da modernidade, afirma-se que os

chamados direitos da personalidade são direitos supremos do homem. Francisco Ferrara, citado

por Tepedino, aduz que “os direitos da personalidade garantem a fruição de nós mesmos,

asseguram ao indivíduo a senhoria da sua pessoa, a atuação das próprias forças físicas e espirituais”

(TEPEDINO, 2004, p. 14).

Na medida em que a pessoa humana torna-se objeto de tutela nas relações de direito

privado, com o estabelecimento de direitos subjetivos para a tutela de valores atinentes à

personalidade, trataram os civilistas de delinear um direito inspirado pelo paradigma da propriedade

(TEPEDINO, 2004, p. 32).

Não se está a tratar aqui, segundo a doutrina privatista capitaneada por Gustavo Tepedino,

dos Direitos Humanos, enquanto proteção do homem às arbitrariedades do Estado, mas, sob o

ângulo do Direito Privado, direitos do homem que se protegem entre as relações dos particulares,

para defendê-los dos atentados perpetrados por outra(s) pessoa(s).

Costuma-se distinguir os direitos da personalidade em dois grupos: os direitos à integridade

física (o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver) e os direitos à integridade

moral (direito à honra, direito à liberdade, direito à imagem).

A consideração da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da

República Federativa do Brasil (art. 1º, II e III da CRFB/88). A garantia de igualdade, do artigo 3º,

III, e, especialmente, do artigo 5º, caput, também da Constituição da República, condicionam o

intérprete e o legislador, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua

axiológica estabelecida pelo poder constituinte originário, e marcam, de acordo com Gustavo

Tepedino, a presença em nosso ordenamento de uma cláusula geral de personalidade

(DONEDA, 2007, p. 46).

Existe uma cláusula geral nos dispositivos do Código Civil – artigos 11 ao 21 – que

estabelece que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do

interessado, adorará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato

contrário a esta norma. Ao que parece, as questões atinentes à inovação tecnológica fazem com

que esta norma surja como uma forma de escudo de proteção para eventuais danos à pessoa

humana.

Fatos novos da sociedade moderna surgem a cada dia, desafiando a dogmática tradicional

e a técnica regulamentar – marcos regulatórios. O projeto de pesquisa visa estabelecer esta conexão

entre à proteção da pessoa humana, sob a ótica dos direitos da personalidade, em relação às

inovações tecnológicas, especialmente, as relacionadas às nanotecnologias.

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126 Revista da PGM

O tema dos direitos da personalidade envolve, no que é pertinente ao presente trabalho,

a questão de suas fontes. A verificação de se os direitos da personalidade são direitos naturais, tal

e qual prescrito no Código Civil português.

A doutrina contemporânea entende, todavia, que tal circunstância não se justifica

mais, ou, melhor, que pode se justificar por razões metajurídicas, mas não por razões técnico-

jurídicas.9

O que importa dizer é que a tutela da pessoa humana, além de superar a perspectiva

setorial (direito público e direito privado), não se satisfaz com as técnicas ressarcitórias e repressivas

(binômio lesão-sanção), exigindo instrumentos de promoção do homem (da dignidade humana),

considerado em qualquer situação jurídica de que participe, contratual ou extracontratual, de

direito público ou de direito privado.

Veja-se que a regulamentação das relações jurídicas patrimoniais, incluso os marcos

regulatórios das nanotecnologias, a dignidade humana terá que ser o limite interno capaz de

definir as bases da referida regulamentação. O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece

sempre os limites intransponíveis, o que significa dizer que além destes limites estaríamos no

campo da ilicitude. Como já disse Gustavo Tepedino (TEPEDINO, 2007, p. 54):

Por outro lado, a incidência normativa não se resume às situações

que configuram delito ou que causam dano injusto – momento

patológico de tutela da personalidade -, mas se estende a todos os

momentos da atividade econômica, daí decorrendo que a validade

dos atos jurídicos, por força da cláusula geral de tutela da

personalidade, está condicionada à sua adequação aos valores

constitucionais e à sua funcionalização ao desenvolvimento e

realização da pessoa humana.

Passa-se a tentativa de gerar-se algumas linhas conclusivas sobre o assunto aqui abordado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que o homem está fazendo é ainda uma incógnita. Que o futuro já está no meio de

nós, parece não haver dúvidas. O que fazer? Como se proteger? O que o jurista, o filósofo e

os demais cientistas podem pensar são em maneiras de minimizar ou evitar que as

experiências, sejam genéticas, sejam apenas moleculares, afetam a vida e a dignidade do ser

humano. As formas de abordagem do assunto ainda são incipientes, mas, a dignidade do ser

humano, alçada a princípio constitucional certamente será o paradigma da proteção dos

direitos de toda a humanidade.

9

DONEDA, 2007, p. 41, citando Adriano De Cupis, I diritti della personalità, que aduz que “qualquer situação jurídica

só pode nascer do lado positivo, ou seja, de uma lei”.

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Nº 24 - Dezembro 2010 127

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Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

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Nº 24 - Dezembro 2010 129

1

Procuradora do Município de Porto Alegre, mestre em Direito pela PUC/RS, especialista em Direito Municipal, Professora

de Direito, Municipal, Urbanístico e Ambiental

Formas não tributáveis de financiamento

das cidades

Vanêsca Buzelato Prestes1

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130 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 131

Introdução

A Constituição de 1988 tratou os Municípios como entes federativos2

e atribuiu-lhes uma

série de competências constitucionais, sobretudo nas denominadas políticas públicas municipais,

das quais os municípios passam a ser partícipes e executores. O aumento das atribuições

constitucionais foram maiores do que a redefinição constitucional das receitas próprias e dos

recursos constitucionalmente destinados aos Municípios, motivo que gera a necessidade de gestão

com muita criatividade e busca de alternativas.

Ao mesmo tempo em que passamos por escassez de recursos, vivemos um momento em

que há uma redefinição do espaço e do lugar das cidades, além do modo de vida nestas. Questões

que no passado não eram valoradas economicamente passam a ter valorização. O silêncio, o

descanso, os espaços de lazer, a paisagem, a areação, a luminosidade constituem-se exemplos de

situações atualmente valorizadas economicamente. Viver em frente a um parque, adquirir um

imóvel próximo a espaço de lazer que propicie contato com natureza, espaço para caminhada ou

próximo a um shopping valoriza e altera o valor do imóvel.

De outra parte, as cidades passam a ser um mercado consumidor importante. Os serviços

precisam ser prestados localmente, pois é onde estão as pessoas, situa-se o mercado consumidor,

onde tudo ocorre. Assim, redes de serviços precisam ser implantadas, a interação destes serviços

com a cidade e os cidadãos ocorre, inclusive grandes empresas utilizam em seu marketing a

proximidade com as pessoas e os valores da cidade.

Todos estes aspectos contribuem para gerar uma identidade da cidade.

Visto de outro modo, fazem também com que os gestores locais tenham que enfrentar de

um lado a escassez de recursos, e de outro, compreender que as cidades que administram podem

e devem ser um indutor de comportamentos privados, de modo a possibilitar a recuperação das

mais valias decorrentes do processo de urbanização.

Neste sentido, as parcerias público-privadas, os instrumentos previstos no Estatuto da

Cidade, Lei Federal N. 10.257, as medidas compensatórias decorrentes do licenciamento ambiental

são importantes instrumentos que, se aplicados para além da perspectiva pontual, mas tendo em

vista um olhar global para a cidade na dimensão de seu território, podem ser revertidas em prol

da construção de cidades mais sustentáveis e agradáveis para se viver.

Visa o presente artigo de um lado, discorrer sobre os instrumentos jurídicos que podem

ser manejados para angariar direta e indiretamente recursos para nossas cidades, com o fim de

dar cumprimento às competências constitucionais e, de outro, demonstrar que os instrumentos

existentes precisam ser utilizados na perspectiva da gestão e não fragmentadamente, pois, a cidade

é um todo.

2

Art. 1º. E art. 18 CF

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132 Revista da PGM

1. INSTRUMENTOS NÃO TRIBUTÁRIOS: CONCEITO

Para tratarmos dos instrumentos não tributários vale rememorar que nossa Constituição

Federal desenhou um sistema tributário constitucional rígido, no qual aos Municípios estão

destinados os seguintes tributos próprios: a) Impostos (art. 156 CF); b)Taxas (145, II CF, exercício

de poder de polícia e prestação de serviços públicos específicos e divisíveis); c)Contribuições de

Melhoria (145, III CF); d) Contribuições previdenciárias para custeio da previdência pública (§ 1º

do art. 149 da CF); e) Contribuição para custeio da iluminação pública (art. 149-A da CF)

Além dos tributos próprios, a Constituição regrou o que se denomina repartição de receitas

tributárias, sendo que cabem aos Municípios as seguintes receitas, nos termos do art. 158 da Constituição

Federal(CF): a) IR e proventos incidente na fonte sobre rendimentos pagos pelos municípios, suas

autarquias e fundações que instituírem e mantiverem; b) 50% ITR; c) 50% IPVA licenciados em seus

Municípios; d) 25% ICMS. O art. 159 da CF, também define a forma de repartição de receita tributária

relativa ao Fundo de Repartição dos Municípios, nos termos das alíneas “b” e “d” .

Para o financiamento da saúde3

e da educação4

a Constituição definiu percentuais do orçamento

destinados a estas políticas públicas, gerando uma vinculação constitucional das receitas públicas.

As receitas acima identificadas são constitucionalmente dos Municípios, seja na modalidade

de tributos próprios ou de transferências constitucionais.

As demais formas de arrecadação de receitas são as denominadas não tributárias, ou

seja, não fazem parte do rol acima especificado, exigindo criatividade, compreensão do sistema

jurídico, bem como a aplicação dos instrumentos jurídicos existentes para serem implementados.

A seguir, sem a pretensão de esgotar, mas pretendendo abrir o debate, apresentamos alguns

instrumentos não tributários e também não decorrentes das transferências obrigatórias.

2. INSTRUMENTOS NÃO TRIBUTÁRIOS DO ESTATUTO DAS CIDADES

As parcerias destinadas a implantar empreendimentos urbanísticos são reguladas pelo

Estatuto das Cidades, Lei Federal 10.257/01. Dos instrumentos destacamos a outorga onerosa do

direito de construir, a transferência do direito de construir e a operação urbana consorciada.

O regime urbanístico das cidades tem valor econômico. Permitir construir 05, 10 ou

20 andares faz muita diferença. Atribuir regime urbanístico a áreas que não o tinham, permitindo

a sua utilização com potencial econômico, também faz muita diferença5

. Os franceses

3

Art. 198 CF

4

Art. 212 CF

5

Vide o que ocorreu em Porto Alegre na área onde hoje funciona o estádio do Grêmio e que está sendo proposta a

construção de habitações. Ou , na área do Inter em que será permitida a construção de hotel, com vista para o rio. Não

estou dizendo que não são importantes para a cidade estas modificações. Isto é meritório, especialmente quando estamos

tratando de uma sede da Copa do Mundo. Queremos a Copa aqui, mas é possível fazer de maneira diferente, revertendo

mais benefícios para a cidade. Dizer que Grêmio e Inter farão tudo em suas sedes (Grêmio arena nova e Inter modificações

para atender requisitos da Copa do Mundo) às suas expensas, sem recursos públicos, é não reconhecer que o regime

urbanístico tem forte valor econômico. Aliás, ambas as situações mais se prestam a Operações Urbanas Consorciadas do

que simples alteração de regime urbanístico, na qual o Município e a comunidade perdem o protagonismo nas profundas

alterações que ocorrerão. No caso, mudando o regime urbanístico, apenas assiste-se o resultado. Na Operação Urbana

são todos os atores partícipes e beneficiários deste resultado.

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Nº 24 - Dezembro 2010 133

compreenderam isto desde o início do século passado. Lá não há um direito originário de

construir e o instrumento do solo criado6

que separa o direito de propriedade do direito de

construir e de cuja concepção origina-se a outorga onerosa e a transferência de potencial

construtivo, nasce inspirado nesta concepção. Desta forma, compreendendo que a cidade é

um mercado e que precisa ser regulada, o Município deve controlar o regime urbanístico, de

modo a valorizá-lo. É urbanística e juridicamente equivocada, errônea, a concepção que não

tem custo para cidade a adoção de regime urbanístico maior, pois este tem valor de mercado.

Mudar uso sem contrapartida, permitir construção maior sem contrapartida, são exemplos da

falta de compreensão do que estes instrumentos urbanísticos significam.

Muitas cidades já compreenderam esse fenômeno e trabalham com esta variável. O Prefeito

Kassab em São Paulo, tem divulgado que vai fazer operações consorciadas para poder fazer

melhorias urbanas e ambientais. Portanto, compreender que a cidade não é abstração, tem

conteúdo e vale pelo seu todo e que os instrumentos urbanísticos podem ser auxiliares para

reforçar esta idéia-força é fundamental para não permitir que simplesmente toleremos aumento

de altura, alteração de regime ou de uso como se fosse direito individual, ou, utilizado de forma

destacada do planejamento da cidade.

2.1. OUTORGA ONEROSA E TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR

A outorga onerosa do direito de construir e a transferência do direito de construir são

institutos jurídico-urbanísticos que separam o direito de propriedade do direito de construir. Dito

de outra forma, o proprietário do solo não será necessariamente o do subsolo ou do espaço

aéreo, o acessório nem sempre segue o principal, em se tratando de utilização da coisa.

A Carta de Embu de 1976 definiu as diretrizes para utilização do solo criado no Brasi,

somente incorporado a nossa legislação a partir das definições de outorga onerosa do direito de

construir e transferência do direito de construir previstos no Estatuto da Cidade.

O solo criado é o resultado da criação de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas

diretamente sobre o solo natural7

. Segundo Hely Lopes Meirelles, “o solo criado será sempre um

acréscimo ao direito de construir, além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela

lei. Acima deste coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não

terá o direito originário de construir, mas poderá adquiri-lo do Município”8

.

Esta aquisição do Município se dá de forma onerosa, revertendo recursos para os cofres

públicos municipais, que devem ser utilizados na política urbano-ambiental. De outra quadra,

6

"O solo criado é o resultado da criação de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre o solo natural.

(Eros Grau,)”

“O solo criado será sempre um acréscimo ao direito de construir, além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido

pela lei. Acima deste coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não terá o direito originário

de construir, mas poderá adquiri-lo do Município. (Hely Lopes Meirelles)”

7

Nesse sentido, GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: Regiões Metropolitanas, Solo Criado, Zoneamento e Controle

Ambiental, Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.

8

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 7ª edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo. São Paulo, Malheiros

Editores, 1996.

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134 Revista da PGM

toda a noção de solo criado está diretamente vinculada a função social da propriedade urbana,

indicando que não há um direito natural de construir e que o exercício do direito de construir

depende das regras das cidades. No caso brasileiro, depende da definição prevista pelos Planos

Diretores que são os instrumentos jurídicos que definem a função social da propriedade em

nosso país, a teor do que dispõe o art. 182 da Constituição Federal.

Tanto a outorga onerosa quanto a transferência do direito de construir somente tem

sentido se vinculado a uma concepção urbanística.

A outorga onerosa do direito de construir implica na fixação de áreas no Plano Diretor

nas quais o direito de construir poderá ser acima do coeficiente de aproveitamento9

. O

coeficiente pode ser único ou diferenciado e há necessidade de monitoramento do

adensamento , decorrente da utilização deste instrumento de intervenção urbanística, a

teor do que dispõe 0 § 3º, art.28 do Estatuto da Cidade. Nestas áreas em que pode ser

construído além do coeficiente, os interessados devem adquirir este direito de construir do

Município, sendo que os recursos auferidos com esta alienação tem utilização vinculada a

finalidades urbanísticas e ambientais.

Já a transferência do direito de construir implica na possibilidade do proprietário exercer

o direito de construir em outro local.

Depende de lei municipal e está vinculado a finalidade específica.

Ainda, pode ocorrer a alienação deste direito mediante escritura pública.Este instrumento

é extremamente relevante e se bem utilizado pode ser implementador de políticas públicas

estruturais das cidades. Em Porto Alegre, por exemplo, o pagamento das áreas para alargamento

viário decorrente da implantação da 3ª Perimetral se deu essencialmente com a transferência do

direito de construir.

Para ambos os instrumentos de intervenção urbanística acima elencados, alerta-se

que sua utilização precisa refletir uma concepção urbano-ambiental de desenvolvimento da

cidade. Utilizá-los de forma pontual e fragmentada é a antítese da sua concepção e pode, no

tempo, comprometer sua aplicação, por representar o anti-planejamento. Bairros cujo Plano

Diretor indica construções de baixa densidade e altura, por exemplo, não podem se socorrer

destes instrumentos para aumentar estes elementos do regime urbanístico. A visão

instrumental exige que o instrumento esteja a serviço da concepção de cidade e não a cidade

se adeque ao instrumento.

De qualquer sorte, para o fim deste estudo, importante destacar que tanto a outorga

onerosa quanto a transferência do direito de construir são instrumentos de intervenção

urbanística que, se bem aplicados, podem representar formas de financiamento de políticas

públicas urbano-ambientais, pois os recursos auferidos com a alienação do direito de construir

devem ser revertidos para finalidades urbano-ambientais, na forma do que dispõe o art. 31 e

art. 35 do Estatuto da Cidade.

9

Coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno, nos termos do §1º do art. 28 do

Estatuto da Cidade, Lei Federal No 10.257/2001

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Nº 24 - Dezembro 2010 135

2.2. OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS

Na doutrina brasileira a utilização da nomenclatura Operações Urbanas foi

utilizada para identificar a relação entre Poder Público e iniciativa privada, na qual o

segundo aporta contrapartidas em troca possibilidade de um modelo urbanístico mais

flexível10

. Nos relatos de Maricato e Ferreira (2002) utilização de transferência de potencial

construtivo11

, aplicação de medidas mitigadoras e compensatórias no âmbito do

licenciamento ambiental12

e pequenas operações resultantes de acordos formais entre

Poder Público e a iniciativa privada, materializados em contratos, que geram recursos

diretos e indiretos, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro, estão englobadas neste

conceito.

Ao longo da história urbanística brasileira tivemos, também, as Operações

Interligadas de São Paulo, amplamente relatadas na doutrina e que influenciaram a redação

do Estatuto da Cidade, hoje em vigor. A Operação Urbana Consorciada regulada no estatuto

da Cidade e que nasceu a partir das experiências existentes tem requisitos próprios, que dão

o tom, estabelecem os requisitos, da relação entre o Poder Público e os particulares a ser

estabelecida.

Nesta quadra, a partir do advento do Estatuto da Cidade tem-se uma formulação

jurídica distinta, com princípios inerentes às Operações Urbanas Consorciadas. Exemplo

disso é a destinação dos recursos nas Operações interligadas de São Paulo. Lá, os recursos

podiam ser destinados para intervenções fora da área delimitada para a Operação. Aqui, por

força do que dispõe o Estatuto da Cidade, não há esta possibilidade. Os recursos devem ser

utilizados no âmbito e em benefício da própria Operação. Outro aspecto, é a cogência de

realização de Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), instrumento que tem por função avaliar

a relação da cidade com o empreendimento e do empreendimento com a cidade. Do comando

que exige a elaboração prévia de EIV para a Operação Urbana Consorciada, decorre que este

estudo deve ser parte integrante do projeto de lei que propõe a Operação Urbana Consorciada.

Esta exigência é similar às hipóteses de alienação de bens imóveis que exigem laudo com

avaliação prévia do bem. Neste caso o laudo é um anexo do projeto que lei, cuja inexistência

implica na ausência de exame do respectivo projeto, em face da ausência de um pré-requisito

deste.

10

Nesse sentido ver experiências com Operações Urbanas relatas por MARICATO, Ermínia e FERREIRA, João Sette

Whitaker. Operação urbana Consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade?

In: OSORIO, Letícia Marques (org). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras.

Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 215

11

Operação faria Lima, citada por Maricato e Ferreira

12

Relato instalação Shopping Center em Porto Alegre, citado por Maricato e Ferreira

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136 Revista da PGM

As operações urbanas consorciadas13

estão definidas como um conjunto de intervenções

coordenadas pelo Poder Público, envolvendo diversos interessados, visando melhorias urbanas e

valorização ambiental. Para realizar uma operação urbana consorciada, faz-se necessária a

aprovação de lei específica, articulada com o plano diretor. São requisitos da lei: a forma de

controle da operação partilhado com a sociedade civil e a realização de estudo de impacto de

vizinhança, apontando os aspectos positivos e os negativos deles. Pode estar previsto na lei a

transferência de potencial construtivo no âmbito da operação, bem como certificados de potencial

adicional de construção, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento

das obras necessárias à própria Operação14

. Importante destacar que, em se tratando de lei

específica, afasta leis de gerais, a exemplo das leis de uso do solo que vigoram nas cidades15

.

A operação urbana consorciada do Estatuto da Cidade exige participação popular no

planejamento, gestão, acompanhamento e avaliação desta, sendo expressão do princípio da

democracia participativa na gestão urbano-ambiental. E, necessariamente como corolário de uma

operação urbana, que exige planejamento urbanístico, ambiental, econômico e social com todos

13

Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações

consorciadas.

§ 1o

Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público

municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o

objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.

§ 2o

Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas:

I – a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações

das normas edilícias, considerado o impacto ambiental delas decorrente;

II – a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente.

Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o plano de operação urbana consorciada,

contendo, no mínimo:

I – definição da área a ser atingida;

II – programa básico de ocupação da área;

III – programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação;

IV – finalidades da operação;

V – estudo prévio de impacto de vizinhança;

VI – contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização

dos benefícios previstos nos incisos I e II do § 2o

do art. 32 desta Lei;

VII – forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade civil.

§ 1o

Os recursos obtidos pelo Poder Público municipal na forma do inciso VI deste artigo serão aplicados exclusivamente

na própria operação urbana consorciada.

§ 2o

A partir da aprovação da lei específica de que trata o caput, são nulas as licenças e autorizações a cargo do Poder

Público municipal expedidas em desacordo com o plano de operação urbana consorciada.

14

Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão pelo Município de quantidade

determinada de certificados de potencial adicional de construção, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente

no pagamento das obras necessárias à própria operação.

§ 1o

Os certificados de potencial adicional de construção serão livremente negociados, mas conversíveis em direito de

construir unicamente na área objeto da operação.

§ 2o

Apresentado pedido de licença para construir, o certificado de potencial adicional será utilizado no pagamento da

área de construção que supere os padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo, até o limite fixado

pela lei específica que aprovar a operação urbana consorciada.

15

Nesse sentido, CABRAL, Lucíola. Operação Urbana Consorciada: possibilidades e limitações. In Revista Magister de

Direito Ambiental e Urbanístico. V. 19 (ago/set 2008). Porto Alegre: Magister, 2005

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Nº 24 - Dezembro 2010 137

aqueles envolvidos na operação – proprietários, possuidores, moradores, comerciantes etc. da

área atingida – temos a expressão do princípio da sustentabilidade urbano-ambiental. Operação

urbana, realizada na forma do Estatuto da Cidade, que não observe os princípios do Estado

Socioambiental, descumpre a finalidade para a qual foi criada.

Para além de um regime urbanístico mais flexível, efetivamente o seu resultado precisa

demonstrar as melhorias urbanísticas e ambientais, sob pena de estarem eivadas de ilegalidade.

2.2.1. CONTRAPARTIDAS

Contrapartida é a denominação atribuída pelo Estatuto da Cidade para estabelecer a valoração

de algo antes intangível e que passa a ter valor, na medida em que terá benefício direto ou indireto

com a realização da Operação Urbana Consorciada. Não é tributo nem preço público e também não

se confunde com as medidas compensatórias decorrentes do licenciamento ambiental.

Em geral, as contrapartidas se perfectibilizam em obras públicas vinculadas às finalidades

da Operação (vias, urbanização de praças, implantação de esgotamento sanitário, estação de

tratamento de esgoto etc.), destinação de bens imóveis no âmbito da Operação Urbana para

cumprir com as finalidades desta (criação de unidade de conservação), destinação de habitação

de interesse social e oferta de lotes a preço compatível com a renda da demanda habitacional

prioritária, ou contrapartida financeira, destinada à conta vinculada à Operação Urbana

Consorciada. O importante é que ocorra uma equação econômico-financeira que demonstre a

adequação e a compatibilidade entre o valor auferido com a Operação e a contrapartida ofertada.

2.2.2. PROBLEMAS JURÍDICOS RELACIONADOS COM AS CONTRAPARTIDAS

O histórico das Operações urbanas realizadas no Brasil dá conta de uma série de problemas

jurídicos relacionados ao valor da operação, da garantia do pagamento deste valor e da destinação

adequada desses recursos.

Por isso, é imprescindível que instrumentos jurídicos sejam incorporados à prática das

OU, a fim de que sejam uma forma de garantia jurídica quanto à execução desta. Há relatos, por

exemplo, de flexibilização de regime urbanístico, desde que fossem feitas melhorias viárias, mas

que no plano dos fatos não se realizaram. Contudo, sem estabelecer o quando, o como e com

qual valor esta pretensa contrapartida fica vazia, inclusive sem possibilidade de ser cobrada pelo

Poder Público. Se for melhoria viária, por exemplo, a área na qual a via pública será executada já

foi desapropriada? Se não foi, quem pagará pelo valor desta? Em que momento (prazo) deverá ser

feita a via e quais as condições (tamanho da caixa, tipo de pavimento etc.). Essas questões são

preliminares e devem compor e integrar a decisão que exige a contrapartida.

A contrapartida não pode nem ser vil, nem extorsiva. Precisa ser proporcional, razoável.

Além disso, precisa ser certa, líquida e exigível. Para tanto, tem-se usado os Termos de

Compromisso, previstos no art. 585, II, do CPC16

, que são uma forma de juridicamente atribuir

16

Código de Processo Civil.

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138 Revista da PGM

um caráter contratual às parceiras estabelecidas pelo Poder Público com os particulares. Na forma

do CPC, estes Termos são título executivo extrajudicial, o que permite a sua execução, na hipótese

de descumprimento. As responsabilidades precisam estar claras e definidas nestes Termos; as

obrigações e os prazos para a sua implementação são requisitos para que possam ser cobradas

posteriormente.

Outra possibilidade é utilizar subsidiariamente a Lei Federal nº 11.079/04, que regra as

parcerias público-privadas no Brasil, sendo que as OU são uma espécie deste gênero. Aplica-se

essa lei naquilo que não for contrário ao que dispõe o Estatuto da Cidade sobre as OU.

É importante, ainda, ter presente que a valorização ambiental e melhorias sociais são

elementos intrínsecos à operação, sendo que a inexistência destes gera conseqüências jurídicas.

Ademais, flexibilizar não é desregrar, sendo que no Brasil o poder regulamentar não cria direitos.

Regime urbanístico é matéria de lei e não de regulamento, por isso, delegações completas na lei

são incompatíveis no sistema brasileiro.

Por último, o Plano da Operação é fundamento desta; não é mera declaração de intenções.

Os princípios vigem e muitas vezes derrogam regras isoladas.

2.3. ALTERAÇÃO DE USO PREVISTO NO PLANO DIRETOR

O Estatuto da Cidade tem como diretrizes a justa distribuição dos benefícios e ônus

decorrentes do processo de urbanização17

e a recuperação dos investimentos do Poder Público de

que tenha resultado valorização de imóveis urbanos, tendo em vista a necessidade da construção

de uma cidade para todos e com fruição de todos os cidadãos. A essência destes comandos decorre

do princípio da equidade. Na lição de Rosângela Cavalazzi do princípio da equidade derivam

outros dois: 1) a afetação das mais-valias do custo da urbanização e 2. A justa distribuição dos

benefícios e encargos/ônus decorrentes da atuação urbanística.18

Inserido neste contexto está expressamente previsto o pagamento de contrapartida em

decorrência da alteração de uso19

, tudo com base no Plano Diretor da cidade. Assim áreas de

expansão urbana, por exemplo, para serem transformadas em urbanas devem observar esta

contrapartida. Isto porque, o regime urbanístico será diferente. Em áreas urbanas há necessidade

de serviços públicos com maior intensidade (drenagem, esgoto, via pública), diferente da área de

expansão urbana, cuja essência é ser uma transição. O mesmo raciocínio se aplica à mudança de

uso da área rural para urbana, da área comercial para industrial, da área que não tem regime

urbanístico por ser funcional para área com regime urbanístico. De rural para urbana talvez seja

o exemplo mais gritante. O imóvel que tinha valor em hectare passa a ser valorado e vendido em

metro quadrado.

17

Art. 2º inc. IX e inc. XI

18

CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e

obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In Direito da Cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço

social urbano. COUTINHO, Ronaldo e BONIZZATO, Luigi, orgs. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

19

Lei Federal No 10.257/01, Art. 29. “O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso

do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”.

Revista PGM de POA - Miolo

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Nº 24 - Dezembro 2010 139

Mas, não é diferente a definição de regime urbanístico para área originalmente sem regime

e afetada à finalidade específica (ex. estádio de futebol, porto, estaleiro, cemitério, etc). A indicação

de um regime urbanístico agrega valor ao imóvel, porque define o que é possível construir no

local.

No planejamento urbano é comum as alterações de uso e a existência de áreas sem

regime urbanístico que mudam de finalidade, porque a dinâmica da cidade assim exige ou porque

as oportunidades de negócio surgem. A cidade muda, cresce, se modifica, áreas antes sem valoração

econômica passam a ter valoração e ser importantes para o mercado. Por estes motivos o regime

urbanístico também deve mudar.

Reconhecendo que a cidade se modifica é que o legislador previu a necessidade cobrança

pela alteração de uso20

, na medida em que a propriedade, por força de alteração da lei municipal,

também muda seu preço, sendo mais valorizada. Neste sentido, os proprietários beneficiados por

alterações de uso e valorização monetária da propriedade por força de alteração da lei municipal

devem contribuir, pagar o valor previsto nas respectivas leis municipais. Este instrumento concretiza

o princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização21

3. PRINCÍPIO POLUIDOR-PAGADOR

Na experiência internacional o princípio do poluidor-pagador tem se perfectibilizado na

adoção do imposto verde. Aragão22

, contrariando este entendimento, sustenta que as “ecotaxas”

não são os únicos instrumentos de aplicação do princípio do poluidor-pagador. Ao desenvolver

seu raciocínio aponta que a origem do princípio poluidor-pagador (PPP) foi na economia. Todavia,

atualmente é um princípio normativo, para além da economia . Diz a autora:

“Pensamos, com efeito, que, longe de ser ele próprio um instrumentos

de política de ambiente, o PPP é um princípio normativo que fornece

critérios para a escolha de instrumentos de proteção do ambiente,

econômicos ou oputros, de acordo com uma certa orientação normativa

assumida, comprovadamente eficaz e justa”.

A obra da citada autora, tem por objeto de reflexão a comunidade européia. Aponta

que o poluidor-pagador “paga” de diversas formas e não somente por intermédio de tributos.

E este pagamento é uma obrigação, sendo que o Estado somente subsidiariamente pode fazê-

lo, pois a responsabilidade é do poluidor. Diz que os pagamentos a que os poluidores podem

20

Lei Federal 10.257/01. Art. 30. “Lei Municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para a outorga

onerosa do direito de construir e de alteração de uso, determinando:

I – a fórmula de cálculo para a cobrança;

II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga;

III – a contrapartida do beneficiário.”

21

Art. 2º, inc. IX do Estatuto da Cidade

22

ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do

ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 174.

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140 Revista da PGM

estar sujeitos, podem se revestir de formas, dentre as quais pode ocorrer os investimentos em

bens (ex. poluidor obrigado a introduzir filtros ou isolamento), pagamentos em contrapartida

direta, lucros cessantes, etc.23

Aduz que o PPP “começou por ser apenas um princípio econômico, visando alcançar

a máxima eficácia na internalização dos custos, mas ascendeu posteriormente a princípio

geral de direito do ambiente, podendo considerar-se actualmente um princípio de ordem

pública ecológica”.24

No Brasil, por força do sistema tributário vigente, que é analítico, tipificado na Constituição

e com tributos previamente definidos, há dificuldade da adoção da experiência internacional.

Assim a pergunta que devemos nos fazer é se no Brasil há outras espécies de aplicação do

princípio poluidor-pagador alheias a órbita tributária, na forma sustentada por Maria Alexandra

de Souza Aragão. Entendemos que sim. Para refletir sobre o tema, importante ter presente que:

(a) no mundo contemporâneo a noção de esgotabilidade de recursos naturais que outrora eram

entendidos como infinitos atribui valor econômico a coisas que anteriormente estavam fora do

mercado; (b) a noção de direitos difusos e de meio ambiente como bem de interesse de uso

comum do povo (art. 225 da CF) exige uma profunda reflexão para os paradigmas que estão

sendo superados e a exigência de reinterpretação dos institutos jurídicos que pré-existiam, antes

da percepção destes novos paradoxos.

O valor econômico que os bens ambientais passam a ter devido ao seu escasseamento é o

primeiro ponto polêmico a ser examinado. O subsolo, por exemplo, por onde passa as ruas, começa

a ser utilizado para a colocação de uma série de infraestruturas (água, luz, esgoto, telecomunicações,

tv à cabo) de várias empresas. Todavia, este espaço é limitado por lençol freático, rochas, entre

outros aspectos físicos do que decorre o seu esgotamento e a necessidade de administrá-lo emerge

de forma evidente. Aqui claramente bem público que estava fora do mercado, que não tinha valor

econômico, passa a tê-lo. E, em nosso entendimento o pagamento para colocar as infra-estruturas

respectivas não é um tributo, mas um preço público decorrente desta nova realidade.

Já a água potável é um bem escasso já admitido por todos e que passa a ter valor econômico

e deve ser cobrada para ser utilizada. Há quem preconize que a cobrança prevista na lei nacional

dos Recursos Públicos é um tributo. Todavia, temos que nesta hipótese também trata-se de preço

público.

A transferência do potencial construtivo de uma área para outra na cidade e a outorga

onerosa do direito de construir são outros exemplos interessantes incorporados na nossa legislação

e na prática das cidades brasileiras que merecem reflexão acerca da natureza jurídica da respectiva

cobrança. Temos que nestas hipóteses a natureza é contratual, pois o particular para adquirir este

solo criado faz uma clara opção de aquisição. Não há compulsoriedade. É um ônus a ser assumido

por quem quer usufruir de maior coeficiente construtivo do que está previsto, tendo natureza

indenizatória.

23

ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do

ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 171.

24

ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do

ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 211.

Page 141: Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegrelproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/pgm/usu_doc/revista_pgm_de... · João Batista Linck Figueira Judith Hoffmeister Martins

Nº 24 - Dezembro 2010 141

Ainda, talvez o exemplo mais polêmico trazido à colação é natureza jurídica da

compensação ambiental prevista no art. 36, § 1º25

da Lei 9.985/2000, que cria o Sistema Nacional

das Unidades de Conservação. O Judiciário tem debatido a matéria, em face da provocação da

Confederação Nacional da Indústria que ajuizou Adin e a Associação Brasileira de concessionárias

de Energia Elétrica Mandado de Segurança visando afastar a referida cobrança. O argumento é

que trata-se de norma de natureza tributária, porque é compulsório, devendo ser pago em moeda

corrente e cujo valor deve ser previamente definido, por força do princípio da legalidade, não

podendo ficar a critério do órgão ambiental a sua fixação.26

Somos de opinião que a compensação

prevista no SNUC não tem natureza tributária. Trata-se de indenização paga antecipadamente,

que tem no princípio do poluidor-pagador o seu fundamento. Pode também ser entendido como

preço público decorrente da fruição de bem público de uso comum do povo (meio ambiente), da

mesma forma que os exemplos anteriores.

Temos que na dimensão atual, no tempo contemporâneo no qual os bens ambientais

possuem conotação distinta do período em que se pensava que eram inesgotáveis, o conceito de

preço público para sua utilização precisa ser redimensionado. Já, procurar enquadrá-los em

forma de tributo, não encontra espaço em nosso sistema. Primeiro, porque os tributos são dotados

de tipicidade e rigidez desde a Constituição não abrindo possibilidade para tributos novos. Segundo,

porque em nosso sistema notadamente o poluidor-pagador se perfectibiliza de forma diferente de

outros sistemas jurídicos com características distintas de sistema tributário e na forma de atuação

na política pública ambiental. Terceiro porque a opção do legislador brasileiro, nas leis que criaram

os institutos jurídicos antes mencionados, inspirados no princípio do poluidor-pagador foi exigir

destes o pagamento por intermédio de outras formas que não a tributária.

Socorrendo-nos novamente da lição de Maria Alexandra de Souza Aragão, temos que

nesta opção legislativa está a legitimação para as respectivas formas de cobrança. No dizer da

autora: “o PPP é também um princípio relativamente indeterminado, porque a sua formulação

não transmite com precisão o seu conteúdo, e daí que possam surgir dúvidas na sua

concretização legislativa. Ora, sendo os poderes públicos os destinatários diretos do PPP e os

poluidores apenas os seus destinatários indirectos, a intervenção concretizadora do legislador

deve servir para definir o âmbito subjectivo, o conteúdo, a extensão e os limites das obrigações

dos poluidores.”27

Foi isto o que ocorreu no Brasil. A mediação do Poder Legislativo resultou nas

leis que definem o percentual de compensação ambiental na Lei do Sistema Nacional das Unidades

de Conservação, a cobrança prevista pela Lei Nacional do Recursos Hídricos e a transferência de

25

Art. 36. “Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim

considerados pelo órgão ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental e respectivo relatório

– EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do grupo de

Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei.

§ 1º. O montante de recursos s ser destinado pelo empreendedor para esta finalidade não pode ser inferior a 0,5% (meio

por cento) dos custos totais previstos para a implantação do empreendimento, sendo o percentual fixado pelo órgão

ambiental licenciador, de acordo com o grau de impacto ambiental causado pelo empreendimento.”

26

Agravo de Instrumento Nº 2005.01.00.060479-0/DF, Processo de Origem 200534000186630

27

ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do

ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 213.

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142 Revista da PGM

potencial construtivo onerosa prevista no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01. A nosso ver

e com base no exposto no presente estudo, não há óbice a esta formulação porque o princípio do

poluidor-pagador no Brasil assume outras formas que não a tributária.

4. MEDIDAS COMPENSATÓRIAS NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Após a análise dos impactos ambientais, constatada a possibilidade de execução do

empreendimento, deverão ser definidas medidas mitigadoras para implementação do

empreendimento. Tais medidas devem constar na Licença Ambiental. Estas medidas decorrem

da análise dos impactos efetuada pelo órgão ambiental na fase anterior. São assim identificadas

por Édis Milaré:28

Definição de medidas mitigadoras. Busca-se aqui explicitar as medidas

que visam a minimizar os impactos adversos identificados e quantificados

no item anterior, as quais deverão ser apresentadas e classificadas quanto:

- à sua natureza preventiva ou corretiva, avaliando-se, inclusive, a

eficiência dos equipamentos de controle de poluição em relação aos

critérios de qualidade ambiental e aos padrões de disposição de efluentes

líquidos, emissões atmosféricas e resíduos sólidos;

- à fase do empreendimento em que tais medidas deverão ser adotadas:

planejamento, implantação, operação e desativação, e para os casos de

acidentes;

- ao fator ambiental a que se destinam: físico, biológico ou sócio-

econômico;

- ao prazo de permanência de suas aplicações: curto, médio ou longo;

- à responsabilidade pela implementação: empreendedor, Poder Público

ou outros;

- ao seu custo.

Os impactos adversos que não podem ser evitados ou mitigados deverão ser compensados,

de modo que a sociedade seja retribuída pela utilização do bem ambiental. São exemplos de

medidas mitigadoras a implantação ou a ampliação de vias públicas se ocorrer impacto no trânsito,

a construção de obras de drenagem, na hipótese de alagamentos, a execução de obras viárias ou

28

MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição, São Paulo, 2000.

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Nº 24 - Dezembro 2010 143

de engenharia de tráfego, entre outras peculiares ao meio urbano. Como medidas compensatórias

a plantação de espécies vegetais, a contribuição para o fundo de meio ambiente, etc.

Essencialmente as medidas compensatórias estão ligadas a noção de fruição de um espaço

já consagrado e constituído e cujo esgotamento vem ocorrendo paulatinamente. Em suma, quem

utiliza este espaço, que é a cidade, contribui. Evidentemente que esta contribuição deve ser

proporcional e motivada ao grau de potencial risco ou de degradação da respectiva atividade ou

empreendimento. A compensação não é monetariamente ou percentualmente igual para todos

os empreendimentos ou atividades e depende do que está consignado na lei respectiva. Todavia,

o que deve ficar claro, é que há fundamento para aplicação destas medidas desde que sejam

adequadas e proporcionais.

5. PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS

A crise do Estado nos anos 90 levou a modificação do modelo de gestão estatal

concentrado, gerando diversas formas de participação social de outros setores nas tarefas públicas.

Sem entrar no mérito do que isto tem significado para o Estado brasileiro, tem-se que as

parceiras público-privadas em sentido amplo representam a forma jurídica desta participação.

Sundfeld29

, alerta que há uma base legal múltipla destas denominadas parceiras público-

privadas, sendo a lei de concessão a mais conhecida delas. No âmbito urbanístico a expressão das

parceiras são os instrumentos acima examinados.

O mesmo autor cita que o que conhecemos por lei das PPPs , não é um lei geral de

parceiras, mas uma lei que regula duas espécies: a concessão patrocinada e a concessão

administrativa, que não estavam reguladas na lei de concessão . E define:

“Em sentido amplo, PPPs são os múltiplos vínculos negociais de trato continuado

estabelecidos entre a Administração Pública e particulares para viabilizar o desenvolvimento, sob

a responsabilidade destes, de atividades com algum coeficiente de interesse geral (concessões

comuns, patrocinadas e administrativas; concessões e ajustes setoriais; contratos de gestão com

OSs; termos de parcerias com OSCIPs; etc). Seu regime jurídico está disciplinado nas várias leis

específicas.

Em sentido estrito, PPPs são os vínculos negociais que adotem a forma de concessão

patrocinada e de concessão administrativa, tal qual definidas pela Lei federal 11.079/04. Apenas

estes contratos sujeitam-se ao regime criado por essa Lei.”

Para o fim deste estudo, importa salientar que as PPPs são importantes instrumentos

incorporados a legislação brasileira para viabilizar e contratualizar a realização de tarefas públicas,

de serviços e obras públicas por particulares. As PPPs adentram no sistema jurídico com regras

próprias, sem, contudo, se afastar do sistema. Representam também, um importante instrumento

na perspectiva do financiamento das cidades, sem, contudo, implicar em completa desoneração

do Estado na realização das tarefas públicas, mas parceria, por suas diversas formas, na consecução

destas.

29

SUNDFELD, Carlos Ari, coord. Parceiras Público-Privadas. São Paulo, Malheiros editores, 1ª edição, 2ª tiragem, 2007

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144 Revista da PGM

CONCLUSÕES

Estamos em meio a um modelo de esgotamento do sistema tributário brasileiro, na

medida em que notoriamente paga-se uma enorme gama de tributos diretos e indiretos. Aumentar

ou criar novos tributos representa um desgaste para o governante.

Ao mesmo tempo, o reconhecimento de que há outras formas não tributárias de

financiamento das cidades é uma realidade jurídico e política que vem se afirmando

paulatinamente.

Os gestores ainda não utilizam os instrumentos previstos no Estatuto da Cidades com a

ostensividade que deveriam. Muitos são os fatores que contribuem. Desconhecimento e dificuldade

com inovações são dois deles. Todavia, um terceiro é o apego à defesa da propriedade que

culturalmente faz parte da conduta dos cidadãos, dos gestores e dos servidores públicos.

Compreender que a função socioambiental da propriedade no Brasil implica um revisitar de

conceitos e pré-compreensões que permeiam as aprovações urbanísticas municipais faz-se

necessário. Perceber que os elementos do regime urbanístico implicam valor econômico, que a

cidade tem um valor intrínseco e que o modelo de esgotamento dos recursos naturais traz inovações

e exigências estruturais, faz parte deste revisitar de conceitos. Pagamento pela mudança de uso,

valor econ6omico do regime urbanístico, outorga onerosa do direito de construir, transferência

de potencial construtivo, operações urbanas consorciadas, são instrumentos inovadores e que

dependem de concreção no âmbito municipal.

Neste estudo examinamos instrumentos e institutos que podem e devem ser aplicados

pelos gestores como forma de financiamento das políticas públicas nas cidades, a partir da

compreensão e dos princípios do Estado Socioambiental que está densificado na legislação

infranconstitucional, em especial no Estatuto da Cidade.

Todavia, muito pouco adianta este elencar de instrumentos se o gestor e os servidores

que aplicam, concretizam a norma, usarem “roupa nova” para práticas velhas. A grande essência

destes instrumentos é a sustentabilidade das cidades que tem como fio condutor a dignidade da

pessoa humana e como meta cidades ambientalmente mais adequadas. A utilização isolada e

fragmentadamente dos instrumentos é a antítese da construção das cidades sustentáveis que

precisamos construir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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comunitária do ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 213.

CABRAL, Lucíola. Operação Urbana Consorciada: possibilidades e limitações. In Revista Magister

de Direito Ambiental e Urbanístico. V. 19 (ago/set 2008). Porto Alegre: Magister, 2005

CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico

Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In Direito da Cidade:

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Nº 24 - Dezembro 2010 145

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BONIZZATO, Luigi, orgs. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

DE CESASE, Claudia e CUNHA, Eglaísa Micheline Pontes Cunha. Financiamento das Cidades:

Instrumentos Fiscais e de política Urbana – Seminários Nacionais. Brasília: Ministério das

Cidades: 2007

GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: Regiões Metropolitanas, Solo Criado, Zoneamento e Controle

Ambiental, Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

1983.

MARICATO, Ermínia e FERREIRA, João Sette Whitaker. Operação urbana Consorciada:

diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade? In: OSORIO, Letícia

Marques (org). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades

Brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 215

MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição, São Paulo, 2000.

SUNDFELD, Carlos Ari, coord. Parceiras Público-Privadas. São Paulo, Malheiros editores, 1ª edição,

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PRESTES, Vanêsca Buzelato (coord). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum,

2006

______________e VIZZOTTO, Andrea. Direito Urbanístico. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009

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146 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 147

Revista da

Procuradoria-Geral

do Município de Porto Alegre

Pareceres e

Informações

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148 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 149

Valor da FG de servidor cedido ao

Legislativo Municipal

Edmilson Todeschini

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150 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 151

PARECER Nº 1156/2010

PROCESSO Nº 4.001029.08.8

INTERESSADA: Coordenação Jurídica do DEMHAB

ASSUNTO: Valor da FG de servidor cedido ao Legislativo Municipal

“Servidor autárquico cedido para a Câmara Municipal com ônus para

a origem e com complementação remuneratória pelo cessionário.

Valor distinto da Função Gratificada de nível “5” entre cedente e

cessionário. Impossibilidade de incorporação de valor distinto que o

correspondente na autarquia de origem. Inviável a aplicação híbrida

dos planos de carreira do DEMHAB e da Câmara. Possibilidade de

revisão do nível da FG, considerando as atividades efetivamente

exercidas no órgão cessionário.

1 – Relatório e análise de precedentes

A Coordenação Jurídica do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB consultou

esta Procuradoria objetivando equacionar a divergência entre seus pronunciamentos técnicos e o

parecer emitido pelo Conselho Municipal de Administração de Pessoal – COMAP, acerca do mesmo

caso concreto.

A matéria enfrentada pelo presente parecer é a (im)possibilidade jurídica de um servidor

autárquico, cedido à Câmara Municipal, incorporar Função Gratificada de nível “5”, da autarquia,

com o valor que corresponde ao nível “5” da Câmara.

Em sede de análise de precedentes, registra-se que a única manifestação jurídica emitidas

por esta Procuradoria Municipal, enfrentando a questão semelhante à presente foi a informação

de fls. 109-114, subscrita pelo Procurador Marcelo Dias Ferreira. Os Pareceres da PGM de nºs

964/1997 e 975/1997, referidos nos autos do expediente administrativo em epígrafe, tratam de

matérias distintas do presente, como será comentado adiante.

Findo este breve relatório, passa-se a responder a consulta.

2 – Diferenças em relação às manifestações da

PGM invocadas como paradigma

No que pese o interessado ter invocado a Sra. Jane de Araújo Schenkel como paradigma,

as duas situações são deveras distintas. Naquela, não se fazia presente qualquer cedência, nem

pedido de aplicação híbrida de Planos de Cargos e Funções de distintos entes da administração

municipal. Referido caso tratava tão somente da possibilidade de o servidor investido em cargo de

nível médio incorporar vantagem pecuniária exclusiva do nível superior.

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152 Revista da PGM

Também é inconfundível com o tratamento dispensado a Luiz Carlos Bertotto, pois referido

parecer tratou da possibilidade da contagem do tempo de exercício de cargo comissionado para

fins de incorporação de vantagem vencimental.

Por fim, em relação à servidora Maria Cristina Utzig Piovezan, a situação jurídica

enfrentada foi a possibilidade de compatibilização das atividades exercidas na entidade

cessionária, em relação àquelas da cedente, para fins de cômputo do tempo necessário á

incorporação de gratificação.

3 – Incomunicabilidade entre os planos de carreira do

DEMHAB e da CMV

Embora o Estatuto de Servidores Municipais adotado pela Câmara Municipal de Porto

Alegre seja o mesmo das administrações centralizada e autárquica do Poder Executivo, eles adotam

Planos de Classificação de Cargos e funções distintos. No DEMHAB a matéria é regrada pela Lei

6.310/88, que “Estabelece o Plano de Carreira dos Funcionários do DEMHAB”. Já na Câmara

Municipal está tratada pela Lei nº 5.811/86.

Ora, quando do provimento de determinado cargo público, seja pela forma originária

(nomeação), seja por qualquer das modalidades derivadas (transposição, readaptação, etc.), o

servidor vincula-se integralmente à legislação do ente em que o cargo está inserido. Significa

afirmar que o plano de carreira de um ente, de um órgão ou de uma pessoa jurídica não se

comunica com o de outro, nem para o estabelecimento de vantagens, nem para a atribuição de

outras obrigações.

Assim, o servidor Franco Sessa, vinculado ao DEMHAB, fica inteiramente excluído do

abrigo legal dos servidores da Casa Legislativa, no que pese exercer atividades similares aos

servidores desta e distintas daquelas desempenhadas pelos servidores do ente de origem.

Assim, eventual cedência não implica no rompimento do vínculo com o órgão de origem,

nem no estabelecimento de liame com o ente cessionário. A pretensão do estabelecimento de

novo vínculo funcional, em decorrência da designação para ente ou órgão diverso daquele em

que o servidor está investido, evidenciaria lesão ao constitucional princípio do concurso público,

dentre outros. A título exemplificativo, veja-se o acórdão que segue:

“SERVIDOR PÚBLICO. MAGISTÉRIO. FUNÇÃO GRATIFICADA.

INCORPORAÇÃO. LEI-CRISTAL Nº 370/95. POSSIBILIDADE. IMPLEMENTO

DO REQUISITO TEMPORAL DEMONSTRADO. CEDÊNCIA DO MUNICÍPIO

PARA O ESTADO QUE NÃO AFASTA O VÍNCULO COM O MUNICÍPIO.

A incorporação de Função Gratificada aos vencimentos da servidora

encontra amparo na Lei -Cristal nº 370/95 e exige a implementação do

lapso temporal que restou comprovado.

A cedência da servidora municipal para exercer a função de direção e

vice-direção em escola estadual não a desvincula do Município de Cristal,

inclusive pelo fato de a percepção dos vencimentos ter sempre se dado

pelos cofres municipais.

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Nº 24 - Dezembro 2010 153

Manutenção da sentença de procedência.

APELAÇÃO IMPROVIDA.”

(Ap. Cív. 70013456983, 3ª C.C., TJRS, Rel. Des. Nelson Antonio Monteiro

Pacheco, Julgado em 28/9/2006)

Maior flexibilidade comportaria a situação daqueles servidores que prestaram concurso

unificado para a centralizada e para as autarquias, podendo ser nomeados originalmente em

qualquer delas, conforme a vaga existente quando do provimento do cargo. Tal situação legitima

a migração dos servidores de um ente para o outro, observado o rol daqueles para os quais

prestou concurso. No que pese a singularidade da situação aqui enfrentada, necessário ponderar

que inclusive nesta hipótese é inadmissível a aplicação híbrida de 2 distintos planos de carreira

para os servidores incorporarem vantagens.

Ocorre que o caso em tela, o servidor Franco Sessa prestou concurso público que não o

habilitava a eventual nomeação originária na Câmara Municipal. Por conseguinte, não restou

habilitado a ingressar na Câmara via transposição. Logo, a incomunicabilidade do Plano de Cargos

da Câmara com o do DEMHAB é ainda mais sólida que a habitualmente verificada no caso daqueles

servidores que prestaram concurso unificado.

A admitir-se a possibilidade de os servidores cedidos incorporarem as vantagens

distintas da legislação a que estão vinculados, com abrigo legal na legislação do cessionário,

todos os servidores federais e estaduais, assim como os municipais de outros entes, quando

cedidos ao Município de Porto Alegre, acabariam incorporando as vantagens exclusivas do

cessionário. Seus atos de inativação registrariam parcelas com códigos e valores inexistentes

do órgão de origem, o que tenderia a ensejar a negativa de registro das aposentadorias pelo

Tribunal de Contas.

4 – Legalidade da despesa Pública

O valor da FG 5, do DEMHAB, deve ser pago, necessariamente, pela tabela de valores

válidos para aquela autarquia. Pelo constitucional princípio da legalidade, o código que lhe

corresponde só abriga o dispêndio de determinado valor mensal.

Imprescindível considerar que cada código de cargo, de gratificação, de auxílio, de vale e

de todas as demais espécies remuneratórias e indenizatórias têm a exata correspondência em

valor pecuniário, não podendo abrigar o pagamento de valor diverso.

Então, se o código de determinada FG só autoriza o erário gastar determinado valor mensal,

o eventual pagamento de montante maior que o autorizado implica na efetivação de despesa

ilegal e, por conseguinte nula. Tal ilegalidade, se levada a cabo, enseja a responsabilização

patrimonial tanto do autorizador quanto do beneficiário.

Assim, a eventual utilização de um código autorizador de determinado valor pecuniário

para abrigar o pagamento de maior monta pecuniária implicará no ferimento de princípio norteador

do Direito Financeiro. Por isso, o pedido do servidor há de ser negado.

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154 Revista da PGM

5 – Revisão do nível da função gratificada

No que pese a impossibilidade de conferir à FG de nível 5, do DEMHAB, valor maior que

aquele que lhe corresponde na referida autarquia, apresenta-se viável, para caso corrente a

aplicação de solução diversa.

As atividades descritas pela Câmara Municipal, como efetivamente desempenhadas pelo

servidor Franco Sessa, no exercício da função gratificada, se fossem desempenhadas na autarquia

ensejariam a percepção da “FG 6”, conforme elementos informativos constantes da fl. 125, nos

seguintes termos:

“Conforme solicitado à fl. 123, as atividades desempenhadas pelo servidor

FRANCO SESSA, na Câmara Municipal de Porto Alegre, descrita às fls.

124, constituem atribuições, se exercidas nesse Departamento, ao Cargo

de Assessor de Desenvolvimento e Gestão (2.4.2.6) correspondente a

uma FG – Nível 6, conforme o que consta no Regimento Geral, do

Departamento Municipal de habitação – DEMHAB, Decreto nº 14239, de

16/07/2003.”

Por tais razões, endossando a manifestação jurídica de fls. 109-114, entende-se possível,

à luz da primazia da realidade fática em relação aos formalismos, deferir ao servidor a incorporação

de “FG 6”, com o valor que lhe corresponde no DEMHAB.

6 – Conclusões

1ª – Os Planos de Carreira ou Planos de Cargos e Funções dos diversos entes ou pessoas

jurídicas que integram o Município de Porto Alegre são incomunicáveis entre si para fins concessão

de vantagens funcionais;

2ª – A cedência de servidor não lhe confere a incorporação das vantagens do Plano de

Carreira do cessionário, se distintas, tanto no nível como no valor, das gratificações previstas na

legislação que rege a relação funcional ente de origem;

3ª – Impossível incorporar FG de nível “5”, do DEMHAB com valor a maior em relação

àquele que lhe corresponde no ente de origem, em razão da legalidade da despesa pública e dos

princípios do Direito Financeiro;

4ª - Possível a revisão do nível da FG do servidor para o “Nível 6”, de modo a que ela

abrigue as atividades por ele exercidas no órgão cessionário.

É o parecer.

À superior consideração.

Porto Alegre, 3 de dezembro de 2009.

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Nº 24 - Dezembro 2010 155

EDMILSON TODESCHINI

Procurador do Município

Matr. 39335.9 – OAB/RS 31.344

HOMOLOGAÇÃO

HOMOLOGO o Parecer nº 1156/2010, da lavra do Procurador Edmilson Todeschini,

que versa acerca da possibilidade de um servidor autárquico, cedido à Câmara Municipal,

incorporar Função Gratificada de nível “5” da autarquia, com o valor que corresponde ao nível

“5” da Câmara. Conclui-se que: 1) os planos de carreira e de cargos dos diversos entes ou pessoas

jurídicas que integram o Município são incomunicáveis entre si para fins de concessão de vantagens

funcionais; 2) a cedência de servidor não lhe confere a incorporação das vantagens do plano de

carreira do cessionário, se distintas, tanto no nível como no valor, das gratificações previstas na

legislação; 3) impossibilidade de incorporar FG de nível “5”, do DEMHAB, com valor a maior em

relação àquele que lhe corresponde no ente de origem; e 4) possibilidade de revisão do nível da

FG do servidor para o nível “6”, de modo a que ela abrigue as atividades por ele exercidas no

órgão cessionário.

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de

Pessoal, Contratos e Serviços Públicos; Procuradoria de Pessoal Estatutário e à Assessoria Jurídica

do DEMHAB estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 06 de abril de 2010.

João Batista Linck Figueira

Procurador-Geral do Município

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156 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 157

Concurso Público nº 333 - Biólogo

Alexandra Cristina Giacomet Pezzi

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158 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 159

PARECER Nº 1157

PROCESSO Nº 1.050971.09.3

INTERESSADA: Coordenação da Coordenadoria Geral de Vigilância em

Saúde (CGVS) da Secretaria Municipal de Saúde

ASSUNTO: Concurso Público nº 333 - biólogo

Concurso público para provimento de vagas de biólogo. Edital de

Abertura nº 248/1998. Segunda etapa do certame anulada por

decisão judicial. Chamamento dos aprovados para nova

apresentação dos títulos. Alteração da ordem classificatória. Nova

homologação, tornada pública em 09 de julho de 2009.

Questionamento quanto ao prazo de validade.

A CGVS solicitou que a Procuradoria do Município de Porto Alegre estude a possibilidade

de nomeação de três biólogos dentre os aprovados em concurso público realizado em 1998.

Esse certame, de número 333, teve, por força de decisão judicial, anulada a sua

segunda etapa.

Consta da sentença, referente aos processos nº 100713602, autuação atual nº

1.05.21959628 (ação declaratória) e 100605311 (cautelar inominada), ambas movidas

exclusivamente pela candidata Simone Portela de Azambuja:

“Pelo expendido JULGO PROCEDENTES a ação ordinária e cautelar

inominada, e declaro nula a segunda etapa do concurso nº 333/98,

referente à prova de títulos, para biólogo, devendo o ato ser refeito,

tornando definitiva a liminar deferida. (...) Porto Alegre, 20 de julho de

1999. Eliziana da Silva Perez, Juíza de Direito Substituta.”

Contra a decisão o Município interpôs todos os recursos possíveis e, por fim, uma ação

declaratória de ineficácia (da sentença), sob o argumento de que não restou observada norma

processual de caráter cogente que determina a inclusão na lide dos litisconsortes necessários, a

teor do artigo 47, caput, do Código de Processo Civil.

Essa ação foi julgada extinta, com julgamento do mérito, nos termos do artigo 269, inciso

IV, do CPC, não tendo sido reformada pelos sucessivos recursos interpostos pelo ente público.

Foi então determinado que o Município cumprisse integralmente o decisum, sob pena

de multa diária.

Por meio do Edital nº 168, publicado no Diário Oficial do Município de 16 de dezembro

de 2008, todos os candidatos habilitados à 2ª etapa foram convocados a reapresentarem os títulos

que possuíam naquela data.

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160 Revista da PGM

A renovação do ato implicou, conforme a Coordenação de Seleção e Ingresso da Secretaria

Municipal de Administração, pequenas alterações na ordem classificatória, tendo sido lavrado

novo edital de homologação final, publicado no DOPA de 10 de julho de 2009.

Tal situação, deveras sui generis, suscitou questionamentos quanto ao prazo de validade

do concurso, em face do novo ato homologatório.

A carência de biólogos por parte da Administração Municipal é permanente, inclusive para

atender às novas atribuições da Equipe de Vigilância em Saúde Ambiental e do Trabalhador (EVSAT)

e, segundo consta do expediente nº 001.033936.09.9, ao programa “Minha Casa, Minha Vida”.

Não existe, conforme a Coordenação de Seleção e Ingresso da Secretaria Municipal de

Administração, outro concurso em andamento para provimento de cargos de biólogo. Na verdade,

desde o concurso público nº 333, de 1998, nenhum outro foi realizado com essa finalidade,

sendo compreensível o interesse manifestado por Secretarias de aproveitamento da reserva técnica

daquele certame.

Contudo, se é certo que as necessidades públicas devem ser atendidas e que o serviço

público não pode sofrer solução de continuidade1

, também não resta dúvida de que o

equacionamento da questão, nos termos preconizados, reclama cautela, a fim de que os novos

atos de admissão não venham a ser impugnados pelo Tribunal de Contas.

O concurso público nº 333, é importante que se diga, contou com 135 candidatos aprovados

e permaneceu válido, em virtude de sua prorrogação, até 21 de fevereiro de 2003.

Nesse período, foram nomeadas vinte e quatro (24) pessoas, cuja boa-fé não foi objeto

de discussão e que tiveram, por isso mesmo, preservado o seu vínculo com o Município, para

todos os fins.

Destas, apenas a 21 e a 22ª tiveram a sua situação alterada devido ao refazimento da

prova de títulos, passando para a 56ª e 39ª colocação, respectivamente. No entanto, desistiram da

vaga, como comprovado nos autos pela Secretaria Municipal de Administração, pelo que a situação

restou equacionada. Portanto, não se há que falar em preterição de candidatos.

Caso autorizado, as nomeações recomeçariam do 22º lugar, considerando-se agora a

ordem instituída pelo Edital nº 125, de 09 de julho de 2009.

A questão se coloca é: pode a Administração Municipal atender necessidades atuais de pessoal

por meio da nomeação de candidatos aprovados em concurso público realizado em 1999, segundo

regramento adequado àquele contexto2

? Em caso positivo, qual o prazo aplicável às nomeações?

Não se ignora que a Constituição Federal, em seu artigo 37, inciso III, prescreve que “o

prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual

período”.

In casu, já se deu a fluência desse prazo, com a nomeação de candidatos segundo a

necessidade e as possibilidades orçamentárias da Administração Pública na época dos fatos.

1

"O serviço público deve ser prestado de maneira contínua, o que significa dizer que não é passível de interrupção. Isto

ocorre pela própria importância de que o serviço público se reveste, o que implica ser colocado à disposição do usuário

com qualidade e regularidade, assim como com eficiência e oportunidade.” BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito

administrativo. 2. ed.. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 165.

2

Quanto ao número de cargos vagos, que era de nove (09), atribuições legais, etc.

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Nº 24 - Dezembro 2010 161

Ao pedido da CGVS a Assessoria Jurídica da SMA respondeu, em duas oportunidades, o

seguinte:

“4. Quanto ao prazo de validade do concurso, como a homologação final

foi refeita através do Edital nº 125, em razão de decisão judicial já

explicitada, abriu-se novo prazo de validade para o Concurso nº 333.

(...)

Importante salientar, no entanto, que, embora o concurso em questão

esteja válido até 09/07/2011, o Município não tem o dever de prorrogar

o prazo por igual período, podendo assim proceder se houver interesse

da Administração da admissão dos candidatos, conforme disponiblidade

orçamentária,...”

“5. O novo rol de classificados, seguido da conseqüente nova homologação

final, aplacou o prazo de validade do concurso, cujo encerramento,

conforme o item 13 do Edital nº 248/1998, acontecerá em 10 de julho

de 2011, isso considerando a hipótese de não se admitir a prorrogação

automática, recomendação que fiz verbalmente à Secretária de

Administração e à Supervisora de Recursos Humanos”

Em vista dessas manifestações, a Secretária Municipal de Administração determinou, em

06 de abril de 2010, nos autos do processo nº 1.033936.09.9:

“Assim, estando válido o aludido concurso – ao menos, até 10 de julho

de 2011 -, determino sejam tomadas as providências para atendimento

dos pedidos de nomeação de biólogos, de acordo com o rol de classificados

do Edital nº 125, publicado na Edição nº 3557, no dia 10 de julho de

2009, do Diário Oficial de Porto Alegre.”

Com o devido respeito, adoto posição em sentido contrário.

Por primeiro: O comando sentencial se limitou a declarar a nulidade da segunda etapa do

aludido concurso e a determinar a repetição do ato.

Tanto é assim que, ao pedido da autora, Simone Portela de Azambuja, nos autos do processo

1.05.2195962-8, de que o juízo determinasse ao Município, de forma expressa, tendo em vista a

literalidade da claúsula 13 do Edital nº 248 e a existência de reserva técnica, que a validade do

concurso é de dois (02) anos a partir da publicação da homologação final, ocorrida em 10 de

julho de 2009, sendo ainda passível de prorrogação uma vez, por igual período, foi proferido

despacho no seguinte sentido:

“Vistos. Incabível o pedido das fls. 359-60, pois diverso do que concedido

à autora no julgamento da ação”.

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162 Revista da PGM

Em decorrência, entendo que a anulação judicial da prova de títulos não impõe a

reabertura do prazo de validade do concurso, extrapolando o limite constitucional de quatro

anos (dois mais dois). A referida decisão visou apenas garantir o chamamento de candidato

que eventualmente tenha tido a sua nota majorada e que não se encontrava no rol de

nomeados.

Outro fundamento, ainda que de menor importância, é o provável desinteresse na vaga

por parte dos candidatos subseqüentes, dado o tempo decorrido. Isso é o que demonstra a

experiência, sobretudo da SMA, na condução de concursos públicos.

Em assim sendo, as vagas de biólogo porventura existentes deverão ser supridas por

meio de novo concurso público, cuja realização recomendo, em caráter de urgência.

À apreciação superior.

Procuradoria de Pessoal Estatutário, 10 de maio de 2010.

Alexandra Cristina Giacomet Pezzi

Procuradora.

OAB/ RS 52.989

HOMOLOGAÇÃO

Homologo o Parecer nº 1157/2006, da lavra da Procuradora Alexandra Giacometti Pezzi,

que versa acerca da impossibilidade de prorrogação de prazo em concurso público para provimento

de cargos do quadro efetivo do Município em decorrência da decisão judicial que determina o

refazimento de etapa do certame, devendo prevalecer no caso concreto o regramento constitucional

de vigência máxima dos concursos públicos limitado a quatro anos (dois anos,prorrogáveis por

mais dois anos).

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta

de Pessoal, Contratos e Serviços Públicos: à Procuradoria de Pessoal Estatutário; e à Secretaria

Municipal da Administração, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos

similares.

PGM, 01 de junho de 2010.

César Emílio Sulzbach

Procurador-Geral do Município, em exercício.

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Nº 24 - Dezembro 2010 163

Normas sobre acessibilidade. Lei Federal Nº 10.048/

2000 e Decreto Nº 5.296/2004

Vanêsca Buzelato Prestes

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164 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 165

PARECER Nº 1159/2010

PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº 002.323798.00.2.05882

INTERESSADO: CADAHAP/ Coordenação

ASSUNTO: Normas sobre acessibilidade. Lei Federal Nº 10.048/2000 e

Decreto Nº 5.296/2004

Acessibilidade universal. Conteúdo da Ordem urbanística.

Direito difuso. Lei Federal Nº 10.048/2000. Norma geral que se

aplica ao Município. Decreto Federal Nº 5.296/04. Programa

Minha Casa, Minha Vida. Incidência da Legislação no processo

de aprovação urbanística. Habitação de Interesse Social. Regras

específicas previstas no art. 28 do Decreto Federal Nº 5296/04.

Interpretação inc. II do art. 28. Diferença entre unidades

acessíveis no piso térreo e todas unidades do piso térreo

acessíveis. Inexistência de percentual para exigência de

acessibilidade nas unidades habitacionais destinadas à

habitação de interesse social na norma existente. Necessidade

de identificar no projeto as unidades acessíveis do piso térreo.

Precedentes PGM. Informação PUMARF 320/09.

Por designação do Procurador Geral, tenho participado das reuniões da CADHAP, Comissão

de Aprovação de empreendimentos destinados a habitação interesse social, no Município de Porto

Alegre.

Esta Comissão foi constituída para dar conta da demanda habitacional prioritária,

especialmente decorrente do Projeto Minha Casa, Minha Vida que destina uma série de recursos

federais, repassados pela Caixa Econômica Federal, para habitação popular.

Uma das questões que vem sendo debatidas e que geraram dúvidas quanto a regra a ser

aplicada decorre das normas de acessibilidade. Segundo o representante da SEASIS (Secretaria

Especial de Acessibilidade do Município de Porto Alegre) na Comissão todas as habitações do

pavimento térreo deveriam ser acessíveis universalmente, o que implica em padrões edilícios

distintos, desde o tamanho das portas, até a configuração do banheiro. A aplicação a todas as

habitações do pavimento térreo implicará no aumento do custo e na diminuição das unidades

habitacionais.

Por sua vez, a Caixa Econômica Federal informa que aplica a exigência que consta no

Estatuto do Idoso, o qual destina 3% das habitações dos empreendimentos aos idosos1

.

1

Art. 38. Nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, o idoso goza de prioridade na

aquisição de imóvel para moradia própria, observado o seguinte:

I – reserva de 3% (três por cento) das unidades residenciais para atendimento aos idosos;

II – implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso;

III – eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso;

IV – critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão.

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166 Revista da PGM

Frente a dúvida sobre qual a exigência a aplicar a Coordenadora da CADHAP enviou consulta

à PGM questionando este ponto e salientando que na demanda prioritária não se faz razoável ter

exigência maior do que aquelas imputadas à cidade formal.

À época da consulta a signatária exarou a Informação PUMARF Nº 320/09, para esclarecer

os pontos que causavam a dúvida. Por ora, retorna o expediente com a seguinte solicitação: “

Solicitamos que a Informação PUMARF 320/09 possa ser transformada em Parecer-PGM, a

fim de dar respaldo jurídico ao trato do tema “ acessibilidade nos empreendimentos Minha

Casa, Minha Vida” .

Em face desta solicitação o expediente foi novamente distribuído à signatária em 22.01.10.

É o relatório.

A questão da acessibilidade universal compõe o conteúdo de direito difuso integrante da

ordem urbanística. Nesta perspectiva deixa de ser um problema individual e passa a ser tema da

coletividade, problema e responsabilidade de todos.

A noção de acessibilidade nasce da necessidade de inclusão social das pessoas portadoras

de deficiência2

, inseridas nas Constituições democráticas que tem como fio condutor a dignidade

da pessoa humana e corolário a inclusão social e a universalidade das políticas públicas. Todavia,

em que pese ter se originado na necessidade dos portadores de deficiência hoje também contempla

aqueles com mobilidade reduzida que não necessariamente são portadores de deficiência ou

com deficiência. Na categoria mobilidade reduzida estão os idosos.

Densificando os dispositivos constitucionais e as normas integradas ao ordenamento

jurídico brasileiro decorrentes da firmatura e incorporação de Tratados Internacionais está em

vigor a Lei Federal 10.048/2000.

A Lei Federal 10.048/2000 disciplina a prioridade de atendimento a determinadas pessoas,

estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas

portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. Por se tratar de norma geral, aplica-se aos

demais entes federativos - leia-se Estados e Municípios - sem ferir a autonomia municipal, eis

que não adentra em especificidade local.

Já o Decreto 5.296 de 2004 regulamenta estas leis. No âmbito municipal já temos uma

série de dispositivos sobre acessibilidade. Conforme Saibert3

“a Lei Municipal Nº 8.317/99 dispôs

sobre a eliminação de barreiras arquitetônicas nas edificações de uso público”4

Conforme esclarecido, a Lei Federal Nº 10.048/2000 foi regulamentada pelo Decreto N.

5.296/04. Este Decreto adota conceitos e tem uma seção que dispõe especificamente sobre

habitação de interesse social.

2

Sobre o tema ver: SAIBERT, Candida Silveira. O Controle do uso e Ocupação do Solo urbano pelo Município: Acessibilidade

como Limitação urbanística ao Direito de Construir. Trabalho de Conclusão Especilaização. PUC/RS, 2006 e MAZZILLI,

Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 2008. 21ª edição, revista, ampliada e atualizada

3

SAIBERT, Candida Silveira., In PRESTES , Vanêsca Buzelato (org). Temas de Direito Urbano- Ambiental. Belo

Horizonte:Forum, 2006.

4

Art. 3º. As adequações de que trata o art. 1º. Desta lei serão definidas em conformidade com o disposto na Norma

Brasileira (NBR) 9.050/94 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou a que vier substituí-la”.

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Nº 24 - Dezembro 2010 167

O objeto da consulta e deste Parecer são as regras aplicáveis aos expedientes que tramitam

na CADHAP, Comissão que aprova empreendimentos para habitação de interesse social. Contudo,

as regras atinentes à acessibilidade e que resultam da Lei e do Decreto acima citados aplicam-se

ao processo de aprovação de modo geral.

Sobre acessibilidade, o art. 8º I estabelece que:

I – acessibilidade: condição para utilização, com segurança e

autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos

urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos,

sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa portadora

de deficiência ou mobillidade reduzida;

...

VII – edificações de uso coletivo: aquelas destinadas às atividades de

natureza comercial, hoteleira, cultural, esportiva, financeira, turística,

recreativa, social, religiosa, educacional, industrial e de saúde,

inclusive as edificações de prestação de serviços de atividades da

mesma natureza;

VIII – edificações de uso privado: aquelas destinadas à habitação,

que podem ser classificadas como unifamiliar ou multifamiliar;e

IX – desenho universal: concepção de espaços, artefatos e produtos

que visam a atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes

características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma,

segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que

compõem a acessibilidade.

Veja-se que a idéia é conceber espaços acessíveis para todos e não só para os

portadores de deficiência. Por isso, o conceito de mobilidade reduzida que engloba categoria

maior. Para além disso, incorpora-se ao urbanismo a idéia de circulação ampla, sem

obstáculos colocados pelo homem (degraus, mobiliário urbano, etc). Assim, a acessibilidade

é ampla e visa trabalhar a autonomia, a viabilização da mobilidade daqueles com mobilidade

reduzida, motivo pelo qual há forte incidência e cogência das regras nos locais públicos e de

acesso público.

Especificamente com relação a habitação de interesse social temos o seguinte dispositivo:

Art. 28. Na habitação de interesse social, deverão ser promovidas as

seguintes ações para assegurar as condições de acessibilidade aos

empreendimentos:

I – definição de projetos e adoção de tipologias construtivas livres de

barreiras arquitetônicas e urbanísticas;

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168 Revista da PGM

II – no caso de edificação multifamiliar, execução das unidades

habitacionais acessíveis no piso térreo e acessíveis ou

adaptáveis quando nos demais pisos; (grifei)

III – execução das partes de uso comum, quando se tratar de edificação

multifamiliar, conforme as normas técnicas de acessibilidade da ABNT;

IV – elaboração de especificações técnicas de projeto que facilite a

instalação de elevador adaptado para uso das pessoas portadoras de

deficiência ou com mobilidade reduzida.

Parágrafo único. Os agentes executores dos programas e projetos

destinados à habitação de interesse social, financiados com recursos

próprios da união ou por ela geridos, devem observar os requisitos

estabelecidos neste artigo.

As áreas de uso comum devem seguir rigorosamente as normas de acessibilidade dispostas

na ABNT. Não há dúvida quanto a isso, justamente porque atendem e dialogam com o pressuposto

da autonomia do indivíduo, da acessibilidade de todos na cidade sustentável e inclusive que

caracteriza a Constituição Democrática de 1988.

A dúvida que exsurge refere-se ao inciso II. Segundo a SEACIS a locução deste artigo

implica que todas as habitações no piso térreo sejam acessíveis internamente, inclusive. Segundo

os técnicos que compõem a CADHAP esta acessibilidade interna pressupõe marcos de portas

mais largos, espaço interno de circulação e dos cômodos, incluindo banheiro, além de outras

modificações que não constam no regramento municipal como cogentes e aplicáveis a todas as

habitações, conforme pretende a SEACIS.

Respeitando entendimento contrário, não comungamos do entendimento da SEACIS.

Isto porque, a interpretação da locução – execução das unidades habitacionais acessíveis no piso

térreo - é completamente diferente de todas unidades do piso térreo deverão ser acessíveis,

forma traduzida pela Secretaria. Existirem unidades habitacionais acessíveis no piso térreo é a

obrigação que decorre da norma citada em epígrafe. Contudo, todas as unidades habitacionais do

piso térreo serem acessíveis é diferente de terem unidades acessíveis. Dito de outra forma, se no

projeto arquitetônico há 20 unidades habitacionais no piso térreo, há que ter unidades que sejam

internamente acessíveis. Todavia, a regra não exige que todas as 20 sejam acessíveis . Neste

particular, cabe agregar uma informação técnica apreendida nas reuniões da comissão. Estes

empreendimentos são construídos em blocos. Isto implica dizer que os andares são idênticos,

tem a mesma coluna para passagem das redes de água, esgoto e luz, inclusive para se enquadrar

ao custo do financiamento previsto para o Projeto. Disso resulta, que o andar térreo que não

possa ter concepção arquitetônica distinta dos demais. Assim, o que for construído no térreo será

idêntico aos demais.

É certo que estamos em um momento de afirmação de direitos e que definir espaços

juridicamente protegidos para as minorias faz parte desta afirmação.

Contudo, no caso concreto entendemos que além de não ser obrigatório que todas as

unidades do piso térreo sejam acessíveis, mas que existam unidades acessíveis no piso térreo,

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Nº 24 - Dezembro 2010 169

temos que outros interesses relevantes estão protegidos, tais como a inclusão social daqueles que

até então não tinham onde morar. Para isso, um maior número de unidades também é importante.

Segundo relatou o Demhab na reunião que debatemos este tema, a autarquia tem o

cadastro dos portadores de mobilidade reduzida e com eles define projeto, local e definição da

moradia acessível. Veja-se que o princípio da acessibilidade resulta , inclusive, melhor atendido.

No Programa Minha Casa, Minha Vida, para os casos de 0 a 03 salários há subsídio Federal

e definição de cadastro prévio dos contemplados pelo Município. Assim, há como identificar na

demanda específica o número de habitações para portadores de necessidades especiais exigido,

como vem fazendo o Demhab.

Já, nos restante da demanda envolvendo 03 a 06 salários mínimos e 06 a 10 salários

mínimos, o Município pode exigir do empreendedor a promoção de adaptação das unidades

habitacionais, na hipótese daquelas destinadas exceder a demanda existente.

Contudo, neste momento, faz-se importante deixar claro que não há um percentual

previamente definido na lei federal ou na lei municipal que estabeleça ou quantifique o número

de unidades habitacionais que devam ser acessíveis no térreo ou adaptadas nos demais andares.

A utilização do Estatuto do Idoso subsidiariamente, como faz a Caixa Federal, pode ser

um caminho. Todavia, veja-se que o dispositivo que a Caixa Federal utiliza prevê prioridade no

atendimento de idosos para fins de financiamento habitacional e nada tem a ver com a

acessibilidade. Sua aplicação é subsidiária, pois há uma dedução de que idosos tem mobilidade

reduzida e por isso recomenda-se habitações acessíveis e adaptadas. Frise-se que não há cogência

na adoção deste percentual para fins de aprovação dos empreendimentos.

De todo o exposto, concluímos que:

1. a noção de acessibilidade nasce da necessidade de inclusão social das

pessoas portadoras de deficiência, inseridas nas Constituições

democráticas que tem como fio condutor a dignidade da pessoa humana

e corolário a inclusão social e a universalização das políticas públicas;

2. contemporaneamente, além dos portadores de deficiência, contempla

as pessoas com mobilidade reduzida que não necessariamente são

portadores de deficiência ou com deficiência; na categoria mobilidade

reduzida estão, por exemplo, os idosos;

3. as normas de acessibilidade universal compõem o conteúdo de direito

difuso integrante da ordem urbanística, deixando de ser um problema

individual, passando a ser tema da coletividade e responsabilidade

de todos;

4. as normas sobre acessibilidade estão previstas na Lei Federal Nº 10.048/

2000 e regulamentadas no Decreto Nº 5.296/2004 e aplicam-se a todos

os entes federativos, incluindo-se os Municípios, por serem normas gerais;

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170 Revista da PGM

5. o Decreto Federal prevê regras específicas pata habitação de interesse

social, estabelecidas no art. 28;

6. nas áreas de uso comum, em se tratando de habitações unifamiliares,

obrigatoriamente deverão ser aplicadas as normas de acessibilidade

estabelecidas pela ABNT, por força do disposto no art. 28, III do Decreto

Federal 5.296/04;

7. não há regra legal que obrigue todas as habitações do piso térreo serem

acessíveis; há necessidade de existirem habitações acessíveis no piso

térreo das edificações multifamiliares aprovadas como habitação de

interesse social, na forma do que dispõe o art. 28, II do Decreto Federal

N.5.296/04;

8. não há percentual de habitações acessíveis definido nas regras existentes;

o percentual pode ser definido no projeto conforme a demanda, na forma

que vem fazendo o Demhab;

9. a cada projeto deve ser verificado o cumprimento da norma, cabendo ao

empreendedor demonstrar o número de habitações do piso térreo

acessíveis; nas Diretrizes a serem expedidas pela Comissão, deve constar

a exigência de unidades acessíveis no piso térreo, na forma do que dispõe

o art. 28, inc. II do Decreto Federal Nº 5.296/04, a serem contempladas

no projeto apresentado pelo empreendedor; a inexistência de unidades

acessíveis no térreo pode implicar na não aprovação do projeto respectivo.

É o parecer.

A sua consideração.

Em, 19 de fevereiro de 2010.

Vanêsca Buzelato Prestes

Procuradora Municipal

OAB/ RS 27.608

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Nº 24 - Dezembro 2010 171

Exigência de multa prévia para fins de

admissibilidade de recurso administrativo

Eleonora Braz Serralta

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172 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 173

PARECER Nº. 1160/2010

PROCESSO Nº. 01.005795.06.0

INTERESSADO: Município de Porto Alegre

ASSUNTO: Exigência de multa prévia para fins de admissibilidade de

recurso administrativo

Exigência de depósito prévio para fins de admissibilidade de

recurso administrativo. Art. 10º. da Lei Complementar n. 12/75.

Inconstitucionalidade. Precedentes jurisprudenciais.

Entendimento consolidado no STF e STJ. Necessidade de

padronização de procedimentos.

Trata-se de mandado de segurança que, a exemplo de inúmeras outras ações judiciais

movidas contra o Município de Porto Alegre, visa à determinação de recebimento de recurso

administrativo independentemente de depósito prévio.

É argüida a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio à luz do que dispõe o

art. 5o

., XXXIV, “a”, LIV e LV da Constituição, do qual emergem os direitos de petição, do devido

processo legal e ao contraditório e à ampla defesa.

A recusa no recebimento do recurso administrativo por parte das diversas Secretarias

Municipais é feita com base no art. 10o

e parágrafo único da Lei Complementar Municipal n. 12/

75:

Art. 10 - Será notificado o infrator da multa imposta, cabendo recursos ao Prefeito

Municipal, a ser interposto no prazo de quinze dias.

Parágrafo único - O recurso deverá ser acompanhado da prova de ter sido

efetuado o depósito da multa imposta no órgão próprio.

A legislação municipal é clara ao exigir o depósito da multa imposta e, por essa razão, a

legalidade do ato administrativo vem sendo defendida nos processos judiciais que versam sobre a

matéria.

No caso em comento, a segurança foi concedida e foi interposto, pelo Município de Porto

Alegre, recurso de apelação, que restou desprovido.

Da mesma forma, os demais processos que tramitam nesta equipe têm tido desfecho

semelhante, reconhecendo a inconstitucionalidade da exigência, a exemplo da recente decisão

no processo n. 10800189411, todos com base no atual entendimento do STF.

É o breve relatório.

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174 Revista da PGM

1. Objetivo

Por meio deste parecer, objetiva-se abordar as seguintes questões, visando à padronização

de procedimentos no âmbito da administração municipal:

· Nos casos de insucesso nas ações judiciais movidas contra o Município,

devem ser interpostos recursos às cortes superiores (RESP ou RE)?

· É constitucional o ato que recusa o recebimento de recurso administrativo

com base no art. 10o

da Lei Complementar n. 12/75?

· Quais as providências que devem ser adotadas pela administração

municipal a respeito do tema?

2. Procedimentos adotados pela equipe

Há na PUMARF diversos casos que versam sobre o mesmo tema, sendo que a

interposição de recursos, inclusive aos Tribunais Superiores, vinha sendo feita com base em

precedentes jurisprudenciais, a exemplo do RESP 649.395, de 18/08/2005, que trazia a

seguinte ementa:

DEPÓSITO PRÉVIO COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DO

RECURSO ADMINISTRATIVO. INOCORRÊNCIA DE VÍCIO DE

INCONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA

AMPLA DEFESA PRESERVADOS. PRECEDENTES DO STF E STJ.

O duplo grau não atinge a esfera administrativa, sendo constitucional

a exigência de depósito prévio para fins de interposição de recurso

administrativo. Precedentes do STF. A exigência do depósito recursal

administrativo não viola os princípios constitucionais do contraditório

e da ampla defesa (art.5º, LV) e do devido processo legal (art. 5º, LIV).

O depósito prévio para a interposição de um novo recurso evita a

procrastinação e objetiva a mais rápida percepção dos impostos pela

Administração. Recurso conhecido e provido.

O próprio Supremo Tribunal Federal já esposara o entendimento de que a instrução de

recurso administrativo com a prova do depósito prévio da multa imposta “não constitui óbice

ao exercício do direito constitucional do art. 5o

, LV, por se tratar de pressuposto de admissibilidade

e garantia recursal”, como se depreende do REXT n. 210.235-1, de forma que a interposição de

recursos tinha respaldo na jurisprudência de então. Nesse sentido também o RE 311023, de

18/09/2001:

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Nº 24 - Dezembro 2010 175

EMENTA: - Recurso extraordinário. Admissibilidade de recurso

administrativo. Depósito de 30% do valor do débito. - O Plenário desta

Corte, ao julgar a ADIMC 1.922, de que fui relator, indeferiu o pedido de

medida liminar contra o § 2º do art. 33 do Decreto Federal 70.235/72,

com a redação dada pelo artigo 32 da Medida Provisória 1.863-53/99

(resultado de reedições sucessivas, e entre elas se acha a Medida Provisória

1.621-30/99), por entender ausente a plausibilidade jurídica da tese de

ofensa aos incisos XXXIV, XXXV, LIV e LV do artigo 5º da Constituição.

Salientou-se, ainda, nesse acórdão que isso ocorria inclusive pela

inexistência, na Carta Magna, da garantia ao duplo grau de jurisdição na

via administrativa, sendo esse depósito requisito de admissibilidade de

recurso administrativo e não o pagamento de taxa para o exercício do

direito de petição. Posteriormente também assim foi decidido no RE

234.425 em caso análogo. Dessa orientação, divergiu o acórdão recorrido.

Recurso extraordinário conhecido e provido.

Dessa forma, diante de decisões das Cortes Supremas que entendiam constitucional a

exigência de depósito prévio, havia fundamento para a interposição dos Recursos Especial e

Extraordinário.

3. Atual entendimento do Supremo Tribunal Federal e do

Superior Tribunal de Justiça

Em decisão conjunta dos Recursos Extraordinários n. 388359, 389383 e 390513, prolatada

em 28/03/2007, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a exigência

de depósito prévio em recursos administrativos.

Foram declarados inconstitucionais o § 2º do art. 33 do Decreto Federal n.º 70.235/72 e

os §§ 1º e 2º do art. 126 da Lei Federal nº 8.213/1991 que, a exemplo do que dispõe o § único do

art. 10 da Lei Complementar Municipal n. 12/75, exigiam depósito prévio como condição de

admissibilidade de recurso administrativo.

A partir dessas decisões, o Superior Tribunal de Justiça tem adotado o mesmo

entendimento. Em extensa pesquisa, verificou-se que todas as turmas têm decidido nesse sentido,

com base nos referidos precedentes do Supremo, inclusive aquelas em que, anteriormente, fora

albergado posicionamento em sentido oposto. Em outras palavras, o STJ acolheu o entendimento

do STF, à unanimidade, alterando posicionamento anterior, a exemplo do REsp n. 894060, de

lavra do Ministro Luiz Fux:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. PROCESSO

ADMINISTRATIVO FISCAL. RECURSO ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DE

DEPÓSITO PRÉVIO. GARANTIA DA AMPLA DEFESA. DIREITO DE PETIÇÃO

INDEPENDENTEMENTE DO PAGAMENTO DE TAXAS. NOVEL

JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

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176 Revista da PGM

1. O depósito prévio ao recurso administrativo, para a discussão de crédito

previdenciário, ante o flagrante desrespeito à garantia constitucional da

ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF/88) e ao direito de petição

independentemente do pagamento de taxas (artigo 5º, XXXIV, “a”, da CF/

88) é inexigível, consoante decisão do Supremo Tribunal Federal, na

sessão plenária ocorrida em 28.03.2007, nos autos do Recurso

Extraordinário 389.383-1/SP, na qual declarou, por maioria, a

inconstitucionalidade dos §§ 1.º e 2.º, do artigo 126, da Lei 8.213/91,

com a redação dada pela Medida Provisória 1.608-14/98, convertida na

Lei 9.639/98 2. O artigo 481, do Codex Processual, no seu parágrafo único,

por influxo do princípio da economia processual, determina que “os

órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao

órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver

pronunciamento destes ou do plenário, do Supremo Tribunal Federal

sobre a questão”. 3. Consectariamente, impõe-se a submissão desta Corte

ao julgado proferido pelo plenário do STF que proclamou a

inconstitucionalidade da norma jurídica em tela, como técnica de

uniformização jurisprudencial, instrumento oriundo do Sistema da

Common Law e que tem como desígnio a consagração da Isonomia Fiscal

no caso sub examine. 4. Recurso especial desprovido.

Da mesma forma, a decisão no REsp 1020786, em que foi relator o Ministro Castro

Meira, da Segunda Turma do STJ, que até então decidia no sentido oposto:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO.

DEPÓSITO PRÉVIO. INEXIGIBILIDADE. RECENTE POSICIONAMENTO DO

PRETÓRIO EXCELSO. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

SENTENÇA DENEGATÓRIA. EFEITO SUSPENSIVO. RELEVÂNCIA E PERIGO

DA DEMORA. REEXAME DE PROVA. SÚMULA 7/STJ.

1. A apelação interposta contra sentença que denega segurança será

recebida no efeito devolutivo.Precedentes.

2. “Só em casos excepcionais de flagrante ilegalidade ou abusividade, ou

de dano irreparável ou de difícil reparação, é possível sustarem-se os

efeitos da medida atacada no mandamus até o julgamento da apelação”

ROMS 351/SP, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro). 3. A aferição dos

efetivos riscos de grave lesão ao patrimônio jurídico da recorrida

demandaria a imprescindível incursão na seara fático-probatória

constante do processo, o que é vedado na via estreita do recurso especial,

ante o teor da Súmula 7/STJ. 4. No julgamento dos RE’s 389.383/SP e

390.513/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, a Suprema Corte, reiterando

a orientação firmada no RE 388.359/PE, declarou a inconstitucionalidade

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Nº 24 - Dezembro 2010 177

dos §§ 1º e 2º do artigo 126 da Lei nº 8.213/91, com a redação da Medida

Provisória 1.608-14/98, convertida na Lei nº 9.639/98. 5. É ilegítima a

exigência do depósito prévio de 30% do valor da exação para o protocolo

de recurso administrativo. 6. Recurso especial não provido.

4. Jurisprudência atual do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem seguido, nos últimos julgados, a mesma

orientação. Feita pesquisa em todas as Câmaras de Direito Público, constatou-se que os julgados

recentes são unânimes ao acolher o entendimento do Plenário do STF, no sentido da

inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio para admissibilidade de recursos

administrativos, como se depreende das seguintes ementas, separadas por Câmara Cível:

Direito Público: 1° (1ª e 2ª câmaras cíveis), 2° (3ª e 4ª câmaras cíveis)

e 11° (21ª e 22ª câmaras cíveis) Grupos Cíveis.

1ª Câmara Cível

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE

SEGURANÇA. INEXIGIBILIDADE DE DEPÓSITO PRÉVIO PARA FINS DE

ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ADMINISTRATIVO. PRECEDENTE DO

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA

EXIGÊNCIA. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70023529076,

Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe

Silveira Difini, Julgado em 24/09/2008)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO

ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DO DEPÓSITO PRÉVIO PARA A

INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ADMINISTRATIVO. LEGITIMIDADE PASSIVA

DO SECRETÁRIO MUNICIPAL DA FAZENDA. RECONHECIMENTO. MÉRITO.

EXAME DESDE LOGO. ART. 515, § 3º, DO CPC. 1. Legitimidade passiva

do Secretário Municipal da Fazenda. Reconhecimento. 1.1 Tratando-se

de mandado de segurança impetrado contra ato de agente fiscal do

Município, que notificou a impetrante da necessidade de depósito prévio,

como requisito de admissibilidade para a interposição de recurso

administrativo, nos termos do art. 62, IV, § 3º, da LCM 7/73, alterado

pela LCM 534/05, recai sobre o Secretário Municipal da Fazenda

legitimidade passiva, ante sua superioridade hierárquica, e ao poder-

dever de anular ato ilegal e abusivo praticado por funcionário inferior.

1.2 Ademais, a regra do art. 14, VII, do Regimento Interno do Tribunal

Administrativo de Recursos Tributários do Município de Porto Alegre,

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178 Revista da PGM

TART, confere ao respectivo Presidente decidir sobre a admissibilidade

dos recursos administrativos, o que não ocorreu, tendo em conta que a

natureza preventiva do mandamus. 2. Mérito. Exame desde logo. Art.

515, § 3º, do CPC. A exigência do depósito prévio de 30% do crédito

tributário para a interposição do recurso administrativo se mostra

violadora dos princípios constitucionais da ampla defesa e da isonomia.

Dispositivo infraconstitucional, previsto no art. 62, IV, § 3º, da LCM 7/73,

alterado pela LCM 534/05, do Município de Porto Alegre, não recepcionado

pela nova ordem constitucional. Orientação do STF e do STJ. 3. Dispositivo.

Apelação provida e, na forma do art. 515, § 3º, do CPC, segurança

concedida. (Apelação Cível Nº 70024999120, Primeira Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 27/08/

2008)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO

ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DO DEPÓSITO PRÉVIO PARA A

INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ADMINISTRATIVO. DESCABIMENTO. A

exigência do depósito prévio de 20% do crédito tributário para a

interposição do recurso administrativo se mostra violadora dos princípios

constitucionais da ampla defesa e da isonomia. Dispositivo

infraconstitucional, previsto no art. 194, § 3º, da Lei Complementar

Municipal n.º 12/94, na redação dada pela LC nº 154/01, do Município

de Caxias do Sul, não recepcionado pela nova ordem constitucional.

Concessão da segurança. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº

70022764872, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Henrique Osvaldo Poeta Roenick, Julgado em 26/03/2008)

2ª Câmara Cível

EMENTA: APELAÇÃO CIVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO

TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO

PRÉVIO. INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO AO CONTRADITÓRIO E A

AMPLA DEFESA 1. Segundo precedente do Plenário do Supremo Tribunal

Federal, ofende os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla

defesa, assim como o direito ao devido processo legal (art. 5º, LV, da

CRFB/88) a exigência de depósito prévio, pelo contribuinte, para exercício

do direito de defesa. 2. Assim, viola a Constituição o art. 62, inciso III, e

§ 3º da Lei Complementar Municipal nº 7/73 de Porto Alegre. Precedentes.

APELAÇÃO PROVIDA. ORDEM CONDEDIDA. UNÂNIME. (Apelação Cível

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Nº 24 - Dezembro 2010 179

Nº 70025694886, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Denise Oliveira Cezar, Julgado em 26/11/2008)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. EXIGÊNCIA

DE DEPÓSITO PRÉVIO COMO CONDIÇÃO PARA ADMISSÃO DE RECURSO

ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE. A realização de depósito prévio dos

débitos pendentes - ou parte deles - junto ao Fisco é medida

inconstitucional de cerceamento à ampla defesa e ao acesso aos órgãos

julgadores. O pleito administrativo está inserido no gênero direito de

petição e, como dispõe o artigo 5º, XXXIV, da Constituição Federal,

independe do pagamento de taxas, caracterizando-se a exigência do

depósito como instrumento mitigador do direito de defesa. Precedentes

do STJ e STF. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70023063621,

Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang,

Julgado em 24/09/2008)

EMENTA: DIREITO TRIBUTÁRIO. EXIGÊNCIA DE CAUÇÃO OU DEPÓSITO

PRÉVIO DO VALOR SOB DISCUSSÃO, COMO CONDIÇÃO PARA O

CONHECIMENTO DO RECURSO ADMINISTRATIVO:

ICONSTITUCIONALIDADE. Nos termos do atual entendimento do Supremo

Tribunal Federal (ADIN nº 1976/DF, de 28/03/2007; AgReg no RE nº

396059/RJ, de 10/04/2007; AgReg no RE nº 283811/SP, de 15/05/2007; e

AgReg no RE nº 504288/BA, de 29/05/2007) mostra-se flagrantemente

inconstitucional, à vista do disposto no art. 5º, LV, da Carta Magna, a

exigência de caução ou depósito prévio de valor sob discussão como

condição para a admissibilidade de recurso administrativo. DECISÃO:

Recurso desprovido. Reexame necessário conhecido. Unânime. (Apelação

e Reexame Necessário Nº 70022307144, Segunda Câmara Cível, Tribunal

de Justiça do RS, Relator: Roque Joaquim Volkweiss, Julgado em 24/

09/2008)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO

TRIBUTÁRIO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. AUTORIDADE COATORA. (...)

RECURSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO PRÉVIO. INADMISSÃO. VIOLAÇÃO

DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. A realização de

depósito prévio dos débitos pendentes - ou parte deles - junto ao Fisco

para efeito de recebimento de recurso administrativo, nos termos do

artigo 62, inciso III, parágrafo 3º, da Lei Complementar Municipal nº 07/

73 não pode ser admitida, pois viola o princípio constitucional da ampla

defesa, impedindo o acesso do contribuinte às instâncias administrativas

para exame da matéria controvertida. Apelo provido para reconhecer a

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180 Revista da PGM

legitimidade passiva e, com fulcro no § 3º do artigo 515 do Código de

Processo Civil, prosseguindo no julgamento do feito, conceder a

segurança. (Apelação Cível Nº 70019981158, Segunda Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Armando Bezerra Campos,

Julgado em 05/12/2007)

3ª e 4ª Câmara Cível

Aparentemente não recebem mais recursos acerca da matéria. Em

decisões proferidas até 2005 (antes, portanto, da mudança de

entendimento do STF), os desembargadores integrantes das respectivas

câmaras já alegavam não ter sido a legislação municipal recebida pela

CRFB/88, visto que violaria os princípios da ampla defesa e do devido

processo legal.

21ª Câmara Cível

Houve alteração no entendimento da Câmara:

EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.

DEPÓSITO PRÉVIO. RECURSO ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE. É

ilegítima a exigência de depósito prévio para admissibilidade de recurso

administrativo. Precedentes do STJ e STF. Sentença mantida em reexame

necessário. (Reexame Necessário Nº 70026390625, Vigésima Primeira

Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz,

Julgado em 03/12/2008)

EMENTA: APELAÇÃO. DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE

SEGURANÇA. ISS. EXIGIBILIDADE. RECURSO ADMINISTRATIVO.

DEPÓSITO PRÉVIO. POSSIBILIDADE. Independe de depósito prévio a

interposição de recurso administrativo, por afrontar ao princípio

constitucional da ampla defesa. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível Nº

70025639329, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 01/08/

2008).

EMENTA: AGRAVO. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO. CABIMENTO. DANO IRREPARÁVEL

OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. RECURSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO

PRÉVIO. INCONSTITUCIONALIDADE. De regra, os recursos em mandado

de segurança têm somente efeito devolutivo; todavia, a jurisprudência,

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Nº 24 - Dezembro 2010 181

especialmente do Superior Tribunal de Justiça, vem admitindo a

possibilidade de atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta

em face de sentença denegatória de segurança em casos excepcionais de

flagrante ilegalidade ou abusividade, ou de dano irreparável ou de difícil

reparação. A Constituição Federal, por seu art. 5º, inciso LV, assegura aos

litigantes em processo judicial e administrativo o contraditório e o amplo

direito de defesa, com os recursos a ela inerentes. Por outras palavras, o

acesso e o manejo de recurso administrativo é requisito indissociável da

ampla defesa. A exigência de depósito para interposição de recurso

administrativo empeça a defesa em sua plenitude, com danos que soam

evidentes, não fosse bastante importar afronta ao princípio assegurado

pela Carta Magna. Agravo provido. Unânime. (Agravo de Instrumento Nº

70023185481, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do

RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 02/04/2008)

EMENTA: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE

INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. EXIGÊNCIA DE

DEPÓSITO PRÉVIO PARA A APRECIAÇÃO DE RECURSO ADMINISTRATIVO.

DESCABIMENTO. DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

RECEBIMENTO NO DUPLO EFEITO DE RECURSO DE APELAÇÃO

INTERPOSTO PELA IMPETRANTE. O Supremo Tribunal Federal tem

reconhecido a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio para

a apreciação de recurso administrativo, por violar as garantias

constitucionais do direito de petição, do contraditório e da ampla defesa.

Assim, o recurso de apelação interposto pela empresa impetrante deve

ser recebido no duplo efeito, pois de acordo com o entendimento dos

integrantes da Suprema Corte. Agravo de instrumento provido. (Agravo

de Instrumento Nº 70022246334, Vigésima Primeira Câmara Cível,

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em

30/01/2008)

22ª Câmara Cível

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. RECURSOS. AGRAVO INTERNO. DECISÃO

MONOCRÁTICA EM APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO E

CONSTITUCIONAL. EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO PRÉVIO PARA INTERPOR

RECURSO ADMINISTRATIVO. INCONSTITUCIONALIDADE. Provido o apelo,

estando a decisão de acordo com as disposições legislativas e da

jurisprudência desta Câmara, desta Corte e do STF, não cabe modificar o

pronunciamento em agravo interno, pois não comprovada a sua

incorreção no plano material. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (Agravo

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182 Revista da PGM

Nº 70027819762, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 18/12/

2008)

EMENTA: CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.

RECURSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO PRÉVIO. CONDIÇÃO DE

ADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. Segundo orientação

consagrada no Eg. Supremo Tribunal Federal, padece de

inconstitucionalidade a exigência de prévio depósito como condição de

procedibilidade de recurso administrativo. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação

Cível Nº 70024503732, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Mara Larsen Chechi, Julgado em 20/08/2008)

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO

PRÉVIO. INCONSTITUCIONALIDADE. JURISPRUDÊNCIA DO PLENO DO

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Segundo a jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, a exigência de depósito prévio para o recebimento de

recurso administrativo ofende a Constituição da República. Ressalva do

ponto de vista pessoal. Recurso provido por ato do Relator. Art. 557 do

Código de Processo Civil. (Apelação Cível Nº 70023729106, Vigésima

Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel

de Azevedo Souza, Julgado em 21/07/2008)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. EXIGÊNCIA

DE DEPÓSITO PRÉVIO COMO REQUISITO PARA INTERPOSIÇÃO DE

RECURSO ADMINISTRATIVO. DESCABIMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE

DA OBRIGAÇÃO RECONHECIDA PELO PLENO DO STF. Mostra-se indevida

a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de

recurso administrativo interposto. Inconstitucionalidade da exigência do

depósito reconhecida pelo Pleno do STF. Precedentes TJRGS, STJ e STF.

Apelação provida liminarmente. (Apelação Cível Nº 70023670789,

Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos

Eduardo Zietlow Duro, Julgado em 03/04/2008)

5. A inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 10º. da

Lei Complementar n. 12/75

Como já visto, o parágrafo único do art. 10º. da lei Complementar Municipal n. 12/75

(Código de Posturas de Porto Alegre) determina que o recurso deverá ser acompanhado da

prova de ter sido efetuado o depósito da multa imposta no órgão próprio e, portanto, estabelece,

como requisito de admissibilidade, o depósito prévio.

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Nº 24 - Dezembro 2010 183

Embora o Município tenha defendido a legalidade e a constitucionalidade do referido

dispositivo de lei municipal, com base em algumas decisões da época, a jurisprudência consolidou-

se no sentido diametralmente oposto.

Na esteira da Jurisprudência agora já consolidada, antes transcrita, a exigência de depósito

prévio para interposição de recursos administrativos fere os ditames constitucionais. Os recursos

administrativos, situados no âmbito dos direitos fundamentais, recebem dupla proteção

constitucional no art. 5º., pelo direito de petição (inciso XXXIV) e pelo direito à ampla defesa e ao

contraditório (inciso LV).

Diante do que até agora foi exposto, é nosso entendimento de que o parágrafo único do

art. 10º. da Lei Complementar Municipal n. 12/75 é inconstitucional.

6. Conclusões: Atuação do poder executivo diante da

inconstitucionalidade do dispositivo legal

Diante do exposto, opinamos no sentido de que deve ser modificada a atuação do poder

executivo, no âmbito das diversas Secretarias e departamentos:

a) Atuação judicial - Quanto à interposição de recursos às Cortes Superioras

Uma vez declarada pelo Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da exigência

do depósito prévio, entendimento acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul, à unamidade, em face aos incisos XXXIV e LV do art. 5º, da Constituição

Federal, por ferirem os direitos fundamentais de petição, ampla defesa e contraditório, opinamos

no sentido de não mais serem interpostos recursos para as cortes extremas.

b) Atuação administrativa - Quanto ao procedimento a ser adotado nos Recursos

Administrativos

Em face da flagrante inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 10º da Lei

Complementar n. 12/75, opinamos no sentido da sua não aplicação. A interposição do recurso

administrativo não mais deve estar condicionada ao depósito prévio da multa imposta, devendo

ser recebido o recurso independentemente do pagamento prévio da multa.

A possibilidade de o executivo municipal declarar a ineficácia de lei municipal válida já foi

examinada no Parecer/PGM n. 1109/2004, com a seguinte ementa:

INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL – INTERPRETAÇÃO E

CONCREÇÃO DA CONSTITUIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA -

POSSIBILIDADE DE O EXECUTIVO MUNICIPAL DECLARAR A INEFICÁCIA

DE LEI VÁLIDA NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO – ADEQUAÇÃO DA

ADMINISTRAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE FORMAL (RESERVA DE

LEI) – ORIENTAÇÃO PELO PRECEITO DA PROPORCIONALIDADE –

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184 Revista da PGM

EXIGÊNCIA DE ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO EMITIDO COM BASE

EM LEI RECONHECIDAMENTE INCONSTITUCIONAL – EFEITOS

JURÍDICOS E LEGAIS

c) Atuação legislativa - Necessidade de alteração legislativa

Pelos mesmos motivos já expostos, opinamos no sentido de que seja estudado um projeto

de lei suprimindo o parágrafo único do art. 10º da Lei Complementar n. 12/75.

É o parecer.

Porto Alegre, 04 de maio de 2009.

Eleonora Braz Serralta

Procuradora do Município

OAB/RS 29.694

HOMOLOGAÇÃO

HOMOLOGO o Parecer nº 1160/2010, da lavra da Procuradora Eleonora Braz Serralta,

que versa acerca da inconstitucionalidade do Artigo 10º da Lei Complementar n. 12/75, que exige

depósito prévio para fins de admissibilidade de recurso administrativo, posicionamento corroborado

pelo entendimento jurisprudencial consolidado no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal

de Justiça.

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de

Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente; à Procuradoria-Geral Adjunta de Assuntos Fiscais;

à Procuradoria de Urbanismo, Meio Ambiente e Regularização Fundiária; à Secretaria Municipal

d Fazenda; e à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, estabelecendo-se orientação jurídica

uniforme para casos similares.

PGM, 13 de setembro de 2010.

Marcelo Kruel Milano do Canto

Procurador-Geral do Município, em exercício.

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Nº 24 - Dezembro 2010 185

Regularização urbanística do projeto de assentamento

da área destinada aos Kaigangues

Vanêsca Buzelato Prestes

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186 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 187

PARECER Nº: 1161/2010

PROCESSO Nº: 004.003481.07.7

INTERESSADO: Demhab/ Coordenação de Urbanização

ASSUNTO: Regularização urbanística do projeto de assentamento da

área destinada aos Kaigangues

Assentamento de comunidade Kaigangue. Área pública municipal.

Aplicação do Regime Urbanístico previsto na Lei Complementar

Municipal 527/05. Aprovação como Área Especial de Interesse

Cultural. Inaplicabilidade da lei dos condomínios para fins

registrários. Impossibilidade de individualização da gleba.

Aprovação de projeto para área comum indivisa. Regime

urbanístico que respeita a tradição e costumes indígenas.

O presente processo trata da regularização jurídica da área de propriedade municipal

concedida à comunidade kaigangue. A propriedade segue sendo municipal, nos termos do que

consta na matrícula em anexo (matrícula fls 03).

No processo de aprovação o técnico municipal apontou uma situação incomum, pois no

condomínio consta 23 unidades com habitação e 23 unidades privativas sem habitação, o que ,

para o regime urbanístico usual gera uma distorção. Para superar esta “ distorção”, as unidades

foram descritas como terrenos, o que pressupõe a individualização destes (manifestação a fl. 2).

A manifestação do técnico do Demhab foi assim exarada:

“ Na elaboração das planilhas da NBR 12.721 e descrição das unidades

habitacionais, deparamo-nos com uma situação incomum. Neste

condomínio há 23 unidades com habitação e 23 unidades privativas sem

habitação. Assim há uma distorção na fração ideal das unidades. E na

descrição das 23 unidades sem casa, foi necessário descrevê-las como

terreno. Solicitamos parecer sobre a possibilidade de regularização deste

condomínio da forma como está sendo encaminhado, e em caso negativo,

orietanções de como proceder> Em anexo encaminhamos a planilha

da NBR 12.721; planta da área, e; descrições dos terrenos e das unidades

habitacionais do condomínio”.

O Demhab desenvolveu o projeto. O colega Pellenz consultado em como proceder, aliou

fortes argumentos apontando a inadequação da aprovação de propriedades privadas. Aponta que

a “ finalidade não é alienar a propriedade privada a cada família indígena, mas em ceder o uso da

terra à comunidade kaigangue para que ela se auto-regule, conforme seus costumes. “ A Secretaria

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188 Revista da PGM

de Direito Humanos, além de acolher os argumentos do colega Pellenz, alinhou outros fortes

motivos para apontar a necessidade do processo de aprovação ir ao encontro da cultura indígena,

respeitando a sua organização sócio-cultural que é diferenciada da nossa. Sugere, par tanto, a

similaridade coma Reserva indígena, nos termos da Lei 6001/73.

Neste contexto, o processo foi enviado à PUMARF para orientar a forma de aprovação do

projeto urbanístico do local. Saliento, todavia, que o projeto urbanístico, que inclusive recebeu

premiação, foi desenvolvido e executado de acordo com a cultura indígena, cabendo a regularização

jurídica da situação, haja vista que urbanisticamente está adequado.

É o relatório.

A dúvida que exsurge no processo em tela advém da inadequação do processo de aprovação

usual para projetos desenvolvidos e direcionados à população indígena. No caso em exame, a

população indígena a que se refere o presente expediente não é aquela de aldeia, mas os

denominados índios urbanos, ou seja, aqueles que vivem, trabalham, interagem com a cidade,

com o meio urbano, porém tem direito de manter a sua identidade sócio-cultural.

A Constituição Federal, em seu art. 231 garante aos índios sua organização social, costumes,

línguas, crenças e tradições. Há assim, uma proteção constitucional à cultura indígena, que tem

se expressado em uma série de formas normativas no âmbito infraconstitucional, ao densificar o

disposto na Carta Magna.

Dentre estas formas de reconhecimento, tem-se que nem todos os índios localizam-se

em reservas e estão submetidos ao regime jurídico das reservas indígenas, regulado na Lei Federal

6001/73, cuja atribuição de atuar é da FUNAI, órgão federal responsável pela política indigenista

no Brasil1

.

Demais disso, as reservas indígenas e a execução da política pública compete à União,

por intermédio da Funai. Por estes motivos, não é juridicamente possível adotar a sugestão da

Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana.

Em se tratando de atuação municipal, a execução de políticas públicas para a população

indígena, respeita a diversidade cultural de cidadãos que vivem em nossa cidade. Dito de outro

modo, há o reconhecimento de que em Porto Alegre há população indígena residindo e que

precisa de tutela. Este é o fundamento constitucional que dá guarida à utilização de recursos

públicos para atender o povo indígena.

Paradoxalmente, o reconhecimento constitucional da diversidade cultural também traz

diferenciações necessárias, pois nem todos vivem, interagem e se expressam da mesma maneira.

Nas cidades, a regulação do solo, visa assegurar o cumprimento da função social da

propriedade. Para esta regulação utiliza-se o regime urbanístico, que nada mais é do que as

condições de uso deste solo2

.

1

Sobre a história da política indigenista no Brasil e a modificação desta a partir da Constituição de 1988 ver: www.

funai.gov.br , site acessado em 29 de janeiro de 2010

2

Para melhor entendimento ver: SILVA, José Afonso. Direito urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1995,

p. 149 e ss

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Nº 24 - Dezembro 2010 189

Nas cidades, o regime urbanístico do solo urbano se dá pelas regras de uso e ocupação do

solo, as quais, em Porto Alegre, constam na Lei Complementar Nº 434/99, o Plano Diretor. O art.

94 desta Lei estabelece que o regime urbanístico é definido em função das normas relativas a

densificação, atividades, dispositivos de controle das edificações e parcelamento do solo.

A Lei Complementar 434/99 não previu um regime urbanístico específico para utilização

de área para comunidade indígena. Todavia, estabeleceu a possibilidade de áreas especiais. Diz o

artigo 73:

“Art. 73. As Áreas Especiais são aquelas que exigem um regime urbanístico

específico, condicionado as suas peculiaridades no que se refere a

características locacionais, forma de ocupação do solo e valores

ambientais, classificando-se em:

...

§ 1º ....

§ 2º . Após a instituição da Área Especial, O Poder Executivo enviará à

Câmara Municipal projeto de lei definindo o seu regime urbanístico, no

prazo máximo de 01 (um) ano.”

As áreas especiais, portanto, tem regime urbanístico especial voltado ao atendimento da

sua finalidade. No caso em exame, a finalidade deste regime é o desenvolvimento de projeto

urbanístico para moradia de indígenas, respeitadas suas tradições.

Veja-se que a área é um todo maior, pertencente ao Município e que não será parcelada.

Dito de outra forma, não se aplica a Lei Federal Nº 6766/79, na modalidade desmembramento ou

loteamento. Isto porque, a área é indivisa, pois o projeto desenvolvido, a fim de respeitar a tradição

indígena, guarda esta característica. Também não é o caso de aplicar a Lei Federal Nº 4591 que

regula os condomínios, prevendo um condomínio fechado ou, de outra parte, criar lotes individuais,

pelo mesmo motivo que são se aplica a lei do parcelamento do solo.

No caso em exame, não há parcelamento ou subdivisão da gleba em lotes. A gleba se

manterá indivisa. E isto é juridicamente possível, porque se trata de área especial, na qual se

desenvolveu um projeto urbanístico específico, dialogando com a manutenção da tradição e cultura

indígena que não adota a propriedade ou o uso individual desta.

Para aprovação do projeto urbanístico, aplica-se tão somente a Lei Complementar Nº

527/05, a qual instituiu Área de interesse Cultural com a finalidade de assentar a Comunidade

Kaigangue. Trata-se de uma lei Complementar, de mesma hierarquia das demais existentes e por

ser lei especial afasta a lei geral.

Eventual questão de interpretação decorrente da aplicação da Nº Lei 527/05 precisa ter

em vista a finalidade da instituição desta Área de Interesse Cultural, qual seja, o assentamento da

comunidade indígena, respeitando as crenças, costumes e tradições desta. De nenhum modo, a

interpretação na aplicação da lei pode desvirtuar a finalidade para a qual a lei foi criada.

Isto posto, retornando a dúvida que ensejou à consulta temos que:

a) para aprovação do projeto urbanístico, aplica-se a Lei Complementar

Nº 527/05;

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190 Revista da PGM

b) a descrição deve ser de área indivisa, de 23 unidades com habitação e

23 unidades privativas sem habitação, na forma posta no

encaminhamento, acrescido dos demais detalhamentos intrínsecos a

especificidade do projeto para assentamento da comunidade Kaigangue;

c) não cabe a instituição de condomínio para fins registrários. Cabe a

aprovação do projeto urbanístico, com base na Lei Municipal 527/05 e a

averbação deste na matrícula do imóvel, que é de propriedade municipal,

enfatizando tratar-se de assentamento indígena.

É a opinião.

A sua consideração.

Em, 29 de janeiro de 2010.

Vanêsca Buzelato Prestes

Procuradora Municipal

OAB/ RS 27.608

HOMOLOGAÇÃO

HOMOLOGO o Parecer nº 1161/2010, da lavra da Procuradora Vanêsca Buzelato Prestes,

que versa acerca de assentamento de comunidade Kaigangue em área pública municipal com

aplicação de regime urbanístico previsto na Lei Complementar Municipal n. 527/05, através de

aprovação como Área Especial de Interesse Cultural, sendo inaplicável a Lei dos Condomínios

para fins registrários; bem como trata da impossibilidade de individualização da gleba e conseqüente

aprovação de projeto como área comum indivisa em regime urbanístico que deve respeitar a

tradição e costumes indígenas.

Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação á Procuradoria-Geral Adjunta de

Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente; à Procuradoria de Urbanismo, Meio Ambiente e

Regularização Fundiária; à Secretaria Municipal do Meio Ambiente; e ao Departamento Municipal

de Habitação, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.

PGM, 13 de setembro de 2010.

Marcelo Kruel Milano do Canto

Procurador-Geral do Município, em exercício.

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Nº 24 - Dezembro 2010 191

Revista da

Procuradoria-Geral

do Município de Porto Alegre

Município em Juízo

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192 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 193

Ação civil pública. Contratação de cooperativa.

Contrato de prestação de serviços.

Relação entre associado e cooperativa.

Terceirização.

Rogério Scotti do Canto

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194 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 195

I. O RELATÓRIO

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE COOPERATIVA. CONTRATO DE

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. RELAÇÃO ENTRE ASSOCIADO E COOPERATIVA.

TERCEIRIZAÇÃO.

ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO

REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO.

Já foi observado nesta revista, em artigo anterior (n°. 17/2003), que, há algum tempo, as

administrações públicas, em particular as municipais, têm enfrentado uma pretensão específica

deduzida pelo Ministério Público do Trabalho, via Ação Civil Pública, visando impedir à contratação

de cooperativas de trabalho, usualmente sob a alegação de que o modo de funcionamento destas

cooperativas mascararia relações de emprego, sob os auspícios do não cumprimento de regras

que disciplinariam especificamente as relações entre a entidade e seus associados (art. 442, §único,

da CLT), condição que tornaria irregular a contratação pelo ente público.

Em nova hipótese articulada contra o Município de Porto Alegre, os pedidos foram

deduzidos em cumulação, porém, desta feita, com pleito de antecipação de tutela (deferido) para

proibir a contratação de cooperativas que mantivessem, com seus associados, relações que não

fossem revestidas de subordinação, com vinculação empregatícia, sob pena de multa diária por

trabalhador contratado de modo diverso. A ação especificava contratações com várias cooperativas

para atividades no HPS – Hospital de Pronto Socorro e ao SAMU – Serviço Médico de Atendimento

de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde, relacionadas aos

serviços de portaria, telefonia, limpeza e conservação; bem como para, em prazo máximo de seis

meses, afastasse todos os trabalhadores que prestassem trabalho nas condições especificadas,

com imposição de penalidade, etc.

A antecipação de tutela foi deferida nos seguintes termos:

“(a) que se abstenha de admitir empregados ao HPS e SAMU, diretamente,

sem prévia aprovação em concurso público para a execução de serviços

permanentes e essenciais relacionados à sua atividade-fim ou por

interposta pessoa – salvo em relação a serviços de vigilância, conservação

e limpeza ou especializados, ligados à atividade-meio, em se tratando de

empresa prestadora de serviços -, sob pena de pagamento de multa no

valor de R$ 10.000,00 por infração e por trabalhador em situação irregular,

reversível ao Fundo de Defesa do Direitos Difusos;

(b) que afaste, no prazo máximo de seis meses, todos os trabalhadores

que prestem serviços junto ao HPS e SAMU por meio de cooperativas de

trabalho em relação a atividades permanentes, precipuamente de limpeza

e conservação, auxiliar de lavanderia, auxiliar de cozinha, telefonista e

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196 Revista da PGM

portaria, bem como aqueles que lhe prestem outros serviços de caráter

permanente (não –eventual), de forma pessoal, subordinada e onerosa,

por intermédio de interpostas pessoas, sob pena de pagamento de multa

no valor de R$ 10.000,00 por infração e por trabalhador em situação

irregular, reversível ao Fundo de Defesa do Direitos Difusos.”

Houve Mandado de Segurança (improcedente – unânime), seguido de Agravo Regimental

(não provido – unânime), Embargos de Declaração (não provido) e Recurso Ordinário, que foi

provido (TST-unânime) para cassar a antecipação de tutela, restabelecendo o tema e o normal

curso da ação originária (ACP). Atualmente, o processo encontra-se concluso para sentença, tendo

havido, entrementes, em momento posterior à decisão do TST, a assinatura de um TAC, cujo

objeto e alcance condicionariam, à sua vez, um possível desfecho para esta demanda, motivo pelo

qual deverá ser apreciado no momento próprio.

Os julgamentos destas demandas não são convergentes nem uniformes, ademais

de que envolvem aspectos que, em regra, não se esgotam nos estritos limites das decisões

que lhes seguem, daí a importância da decisão do TST no aspecto. Mesmo que o tema e

os limites da impugnação tenham conteúdo preponderantemente processual, a decisão

também acaba por resguardar o alcance de normas que balizam a atividade

administrativa, em especial às que regram a atividade contratual do município e das

prerrogativas constitucionais a ele conferidas.

Adiante, seguem as peças do recurso ordinário e o acórdão/TST (RXOF e ROMS - 689/

2007-000-04-00, DJ - 27/06/2008), cassando a medida antecipatória de modo unânime.

Rogério Scotti do Canto

Procurador do Município

PPC/PGM

II. A PEÇA DO MUNICÍPIO

Processo TRT nº.: 00689-2007-018-04-00-5 (MS)

Mandado de Segurança

Impetrante-Recorrente: Município de Porto Alegre

Impetrado-Recorrido : Juiz Substituto da 18a

. Vara do Trabalho de Porto Alegre

Razões de Recurso Ordinário

Município de Porto Alegre

Eméritos Julgadores:

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Nº 24 - Dezembro 2010 197

I-INTRODUÇÃO

1.1 - A decisão que ora se impugna denegou segurança ao julgar improcedente Mandado

de Segurança interposto contra decisão que deferiu medida de antecipação de tutela em Ação

Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho contra o Município ora recorrente,

tendo por objeto a impugnação de relações de trabalho do Hospital de Pronto Socorro e ao SAMU

– Serviço Médico de Atendimento de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria de

Saúde do Município prestadas por entes cooperativados.

1.2 - O móvel desta Ação Civil Pública e o elemento preponderante para a impugnação

articulada seriam o modo de funcionamento das cooperativas, diante do caráter prejudicial que

as relações entre ‘associados’ e aquelas imporiam à ordem jurídica trabalhista, porquanto

mascarariam relações de empregos sob os auspícios do não cumprimento de regras que

disciplinariam a hipótese e de contratações que seriam irregulares perpetradas pelo ente público

demandado.1

1.3 - Os objetos destes contratos voltaram-se para serviços de higiene, limpeza e

conservação, portaria, e telefonia – compreendendo porteiros, telefonistas, auxiliares de serviços

gerais, auxiliares de lavanderia e auxiliares de cozinha - contratos anexos.

Concluindo pela ilicitude das terceirizações encetadas pelo Município, uma vez que as

funções então terceirizadas seriam essenciais e não atividades secundárias ou

atividades-meio, mas sim com atividades principais do ente público, proclamou a

responsabilidade do ente público.

Sem embargo e a par do teor do disposto no inc. IV do verbete do Enunciado 331 do TST

observou a existência de solidariedade na responsabilização do Município quanto a eventuais

verbas devidas pelos entes cooperados em decorrência desta ação.

Diante dessas premissas acima resumidas, deduziu as seguintes

pretensões:

“a) A antecipação de tutela para determinar que o réu, em relação ao

Hospital de Pronto Socorro, ao SAMU – Serviço Médico de Atendimento

de Urgência e agendamento de consultas da Secretaria da Saúde:

(1) se abstenha de admitir empregados sem prévia aprovação em

concurso público (art. 37, II, da CF/88), diretamente ou através de

interposta pessoa, sob pena de pagamento de multa no equivalente a

R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por trabalhador flagrado

em situação irregular, reversível ao FDD – Fundo de Defesa de Direitos

Difusos, criado pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.

1

- a saber: COOPERSERV - Cooperativa de Serviços e Mão-de-Obra Ltda., PORTSERV – Cooperativa Gaúcha de Serviços

Gerais Ltda., META – Cooperativa de Serviços Ltda. e COOTRAVIPA – Cooperativa de Prestação de Serviços dos Trabalhadores

das Vilas de Porto Alegre Ltda.

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198 Revista da PGM

(2) afaste, no prazo máximo de seis meses, todos os trabalhadores que

lhe prestam serviços através de cooperativas de trabalho nas atividades

de limpeza e conservação, auxiliar de lavanderia, auxiliar de cozinha,

telefonista e portaria, bem como aqueles que lhe prestem outros serviços

de caráter não eventual, de forma pessoal, subordinada e onerosa, através

de interpostas pessoas, sob pena de pagamento multa no equivalente a

R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por trabalhador flagrado em

situação irregular, reversível ao fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado

pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.

b) a procedência da ação para determinar ao Réu que em relação ao

Hospital de Pronto Socorro, ao SAMU – Serviço Médico de Atendimento

de Urgência e agendamento de consultas da Secretaria da Saúde:

(1) se abstenha de admitir ou manter empregados sem prévia

aprovação em concurso público (art. 37, II, da CF/88), diretamente

ou através de interposta pessoa, sob pena de pagamento de multa no

equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por

trabalhador flagrado em situação irregular, reversível ao FDD – Fundo

de Defesa de Direitos Difusos, criado pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.

(2) abstenha-se de contratar ou manter trabalhadores através de

cooperativas e trabalho para a prestação de serviços de caráter não eventual,

de forma pessoal, subordinada e onerosa, tanto para a sua atividade-fim

quanto para a atividade-meio, restando desde logo estabelecido que é vedada

a contratação para as atividades de limpeza e conservação, telefonista,

lavanderia, cozinha e portaria, sob pena de pagamento multa no equivalente

a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por trabalhador flagrado em

situação irregular, reversível ao fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado

pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.

(a) sucessivamente, caso sejam indeferidos os pedidos n°s 1 e

2, seja o Réu condenado nas seguintes obrigações de fazer e não fazer:

3.1) que sempre que contratar a prestação de serviços subordinados

através de cooperativas de trabalho ou de mão-de-obra, inclusive na

renovação ou prorrogação dos contratos ora em vigor, inclua cláusula

prevendo que serão satisfeitos aos trabalhadores os direitos assegurados

no artigo 7° da Constituição Federal, em especial nos incisos III, IV, V, VI,

VII, VIII, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XXII, XXIII, XXVIII, bem como

estipulando remuneração dos trabalhadores em valor suficiente para

permitir a satisfação dos mencionados direitos, os quais devem ser

calculados observando o piso mínimo regional, sem prejuízo dos valores

e percentuais destinados ao pagamento de contribuições sociais, fundos

e taxas de administração cobrados pela cooperativa, sob pena de

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Nº 24 - Dezembro 2010 199

pagamento de multa no equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por

infração e por trabalhador flagrado em situação irregular, incidente em

cada ocasião em que constatada a irregularidade, reversível ao FDD –

Fundo de Defesa de Direitos Difusos;

3.2) que seja declarada a responsabilidade solidária do Réu pelo

pagamento das verbas devidas aos trabalhadores cooperados em razão

do ora postulado, cabendo ao Réu igualmente a fiscalização quanto ao

efetivo pagamento dos valores aos trabalhadores que lhe prestam

serviços.” (grifos do original)

1.4 - Em sede de cognição superficial, nos termos do art. 273 do CPC, antecipou a tutela

postulada a deferindo nos seguintes termos:

“Por conseguinte, concedo parcialmente a tutela específica para

determinar ao demandado

(a) que se abstenha de admitir empregados ao HPS e SAMU,

diretamente, sem prévia aprovação em concurso público para a

execução de serviços permanentes e essenciais relacionados à sua

atividade-fim ou por interposta pessoa – salvo em relação a

serviços de vigilância, conservação e limpeza ou especializados,

ligados à atividade-meio, em se tratando de empresa prestadora

de serviços -, sob pena de pagamento de multa no valor de R$

10.000,00 por infração e por trabalhador em situação irregular,

reversível ao Fundo de Defesa do Direitos Difusos;

(b) que afaste, no prazo máximo de seis meses, todos os

trabalhadores que prestem serviços junto ao HPS e SAMU por

meio de cooperativas de trabalho em relação a atividades

permanentes, precipuamente de limpeza e conservação, auxiliar

de lavanderia, auxiliar de cozinha, telefonista e portaria, bem

como aqueles que lhe prestem outros serviços de caráter

permanente (não –eventual), de forma pessoal, subordinada e

onerosa, por intermédio de interpostas pessoas, sob pena de

pagamento de multa no valor de R$ 10.000,00 por infração e por

trabalhador em situação irregular, reversível ao Fundo de Defesa

do Direitos Difusos.”

(grifou-se, págs. 08-11 da medida, Anexo-3, fls.)

1.5 - Interposto o presente Mandado de Segurança, e liminarmente mantida esta decisão,

com subseqüente Agravo Regimental, que não fora provido, esta decisão não foi alterada.

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200 Revista da PGM

1.6 - O âmbito de divergência do presente recurso reside na manutenção da medida

de antecipação de tutela concedida com a denegação da segurança, ante a existência de

direito líquido e certo a permitir o afastamento da tutela antecipada e diante de regras que

impediam a concessão nos termos admitidos, em especial em relação a normas

constitucionais, que impedem o alcance dos efeitos do provimento judicial na esfera da

autonomia e da liberdade contratual do ente público.

II - DA DECISÃO RECORRIDA

2.1 - A decisão ora atacada veio assim ementada:

“ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA EM AÇÃO CIVIL

PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE COOPERATIVAS DE NÃO-DE-OBRA

PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS DO MUNICÍPIO. Não

há ilegalidade na decisão que, à luz da verossimilhança das

alegações e do dano de difícil reparação, antecipa os efeitos da

tutela para coibir a contratação de cooperativas de mão-de-obra

para prestação de serviços essencial do Município – saúde -, o

qual é indelegável pelo meio eleito pelo impetrante. OJ 64 da

SDI-II do TST cujo entendimento se adota. Segurança denegada.”

2.2 - O no que pertine, colhem-se as seguintes passagens:

“ ..

Destaca-se, inicialmente, que o pedido de concessão da segurança diz

textualmente: ‘conceder a segurança para cassar ou revogar o provimento

de “..antecipação de tutela deferida por ato do MM. Juiz Substituto da

18a

. Vara do Trabalho de Porto Alegre, nos autos do processo nº. 01765-

2006-018-04-00-7 – Ação Civil Pública (...)’. Contudo, a causa de pedir

da petição inicial restringe-se os argumentos ao não-preenchimento dos

requisitos contidos no art. 273 do CPC,sob o argumento de que legal a

contratação de cooperativas de mão-de-obra por meio de processo

licitatório. Esse mesmo argumento o impetrante utiliza para amparar a

alegação de existência de direito líquido e certo e da arbitrariedade do

ato coator. Portanto, a ação mandamental é restrita ao item ‘b’ da decisão

antecipatória de tutela.

(...)

Acresça-se, ainda, que dos fundamentos da decisão antecipatória de tutela

verifica-se que a verossimilhança deita raízes mais profundas e que vai

além da controvérsia acerca da contratação de cooperativas de mão-de-

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Nº 24 - Dezembro 2010 201

obra para a prestação de serviços permanentes e necessários. É que o caso

presente trata de terceirização de serviço essencial do Município - saúde -

, o qual é indelegável pelo meio eleito pelo impetrante (art. 37, II, c/c art.

198 da CF/88). Desta forma, irrelevante a inexistência de vedação na Lei

8.666/93 acerca da participação de cooperativas nos processos licitatórios.

Com base no mesmo fundamento, a garantia de igualdade dos concorrentes

no processo de licitação, garantia prevista no art. 37, XXI, da CF/88, não

socorre a tese de direito líquido e certo do impetrante. A norma

constitucional se destina a assegurar a igualdade de condições entre os

concorrentes, não estendendo sua eficácia ao amparo da utilização do

instituto do cooperativismo para mascarar empresa prestadora de serviços.

O prazo de seis meses para que os trabalhadores exercentes de atividades-

fim do HPS e SAMU por interposta pessoa – cooperativas – sejam afastados

não irá onerar desproporcionalmente o Município.

(...)

Desta forma, não se verifica perigo de dano irreparável ou de

irreversibilidade da decisão porque

o término desses contratos ocorrerá dentro do prazo de seis meses

definido na decisão antecipatória. De qualquer maneira, o Município

terá de providenciar novos contratos de prestação de serviços, sendo

que o prazo de seis meses revela-se razoável para tanto.

Por fim, não prospera a alegação dos impetrantes de que a decisão

antecipatória possui “efeitos inespecíficos, na medida em que é

direcionada ao HPS e SAMU. Segurança denegada.” (grifou-se)

- DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

2.3 - Quanto ao ponto em que o acórdão restringe a impugnação, especificamente porque

fora solvida tendo em conta tão-somente o entendimento de que o impetrante teria dirigido à sua

pretensão somente ao “item b”, foram interpostos embargos de declaração, sublinhando o

específico enfrentamento do tema e a específica irresignação e dando ênfase à violação do art. 2º

e ao art. 5º, caput, e inciso II, ambos da CF, visto o expresso comando do provimento

para a abertura de concurso público para postos de telefonistas do Serviço de Emergência do

Município – SAMU e ao entendimento do C. STJ quanto à impossibilidade de concessão de

tutela com efeitos de irreversibilidade.

Estes argumentos, por expressa invocação - itens IV, V e XI, em item próprio quanto

à existência de Pressuposto Negativo da Tutela Antecipada - à evidência, fizeram parte

da causa de pedir e expressamente pugnaram pela desconstituição do item “a” da medida

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202 Revista da PGM

antecipada, ante a manifesta violação às regras constitucionais sublinhadas, na medida

em que os comandos ali postos adentram na esfera precípua de agir administrativo,

que não permitiria ordens com este grau de ingerência da Administração Pública, na

expressa dicção das normas constitucionais, em especial o art. 2º da CF.

Os embargos não foram providos (fl.s).2

- DOS LIMITES DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O Autor da Ação Civil Pública relatou a existência de contratos entre o ente ora impetrante

e algumas cooperativas, a saber: COOPERSERV - Cooperativa de Serviços e Mão-de-Obra Ltda.,

PORTSERV – Cooperativa Gaúcha de Serviços Gerais Ltda., META – Cooperativa de Serviços Ltda.

e COOTRAVIPA – Cooperativa de Prestação de Serviços dos Trabalhadores das Vilas de Porto Alegre

Ltda., através dos quais ter-se-ia implementado a terceirização de alguns serviços a serem prestados

em favor do HPS – Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre e ao SAMU – Serviço Médico de

Atendimento de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde.

Os objetos destes contratos voltam-se para serviços de higiene, limpeza e

conservação, portaria, e telefonia – compreendendo auxiliares de serviços gerais,

auxiliares de lavanderia e auxiliares de cozinha - contratos anexos, fls.

Tais contratações representariam burla a legislação trabalhista, na medida em que os

associados dessas cooperativas, embora formalmente vinculados na condição de autônomos,

prestariam serviços não eventuais, sob dependência e mediante salário, na condição, portanto,

de empregados.

Partindo dessa premissa, deduziu vários pedidos, inclusive em sede de antecipação de

tutela, pressupondo a inexistência de trabalho cooperativado nas relações então investigadas –

inicial da ACP.

Nessa linha, concluindo pela ilicitude das terceirizações encetadas pelo Município, uma

vez que as funções então terceirizadas seriam essenciais e não atividades secundárias ou

atividades-meio, mas atividades principais do ente público, proclamou a responsabilidade

do ente público impetrante.

Assim agindo, teria violado o art. 37 da CF, conquanto não teria havido concurso

público para a prestação de serviços na forma do art. 3° consolidado, bem como reclamou,

em forma sucessiva, em não se admitindo a supressão das contratações engendradas com

as cooperativas, a incidência do art. 7° da CF, para o fim explícito de o Município assegurar

aos trabalhadores os direitos sociais ali previstos e que nominadamente específica – item

“c” da inicial da Ação Civil Pública.

Levando ao extremo a presunção de fraude decorrente de tal raciocínio, o Autor conclui

que havia um dever do tomador de serviços de evitar a contratação de entes prestadores de

2

- EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ABRANGÊNCIA DA AÇÃO DE SEGURANÇA. VÍCIO DE OMISSÃO. INEXISTÊNCIA.

Especificada, fundamentadamente, a abrangência por que foi conhecida a ação de segurança, insurgência a esse respeito

não espelha vício de omissão no julgado, nem se veicula por embargos de declaração.

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Nº 24 - Dezembro 2010 203

serviço que declaradamente não utilizam trabalhadores sob vínculo de emprego, como é o

caso, por exemplo, das cooperativas de trabalhadores, pena de multa por infração e por

trabalhador encontrado em condições de trabalho subordinado..

Daí por que, como pedidos principais, pugnou pelo impedimento de contratação

com estes entes, tanto para atividades-meio como para atividades-fim, sob pena de

multa por infração e por trabalhador flagrado em condições de subordinação, nos termos

do art. 3° da CLT.

Bem como para que o ente público, em um prazo de seis meses, afastasse todos

os trabalhadores que prestem serviços através de cooperativas nas atividades de limpeza

e conservação, auxiliares de lavanderia, auxiliares de cozinha, telefonista e portaria.

O móvel da demanda e o elemento preponderante para o desfecho da controvérsia seriam

o modo de funcionamento das cooperativas, diante do caráter prejudicial que as relações entre

‘associados’ e as cooperativas impõem à ordem jurídica trabalhista, porquanto mascarariam

verdadeira relação empregatícia sob os auspícios do não cumprimento de regras que disciplinariam

a hipótese e de contratações que seriam irregulares perpetradas pelo ente público ora demandado.

Delineada a demanda em seus elementos objetivos, mereceu, por parte do município ora

agravante, desde a contestação, um realce para uma condição fática (e, enquanto tal, fato

público e notório) que se somou à constatação admitida pela própria inicial da Ação Civil Pública

de que os serviços consistem nos supra descritos, e que se prende à circunstância de

que as contratações inquinadas de ilegais foram precedidas de certame licitatório (nas

modalidades Concorrência e Tomada de Preços), nos quais sagraram-se vencedoras as

cooperativas citadas, que participaram em igualdade de condições com os outros

habilitados, dados inequivocamente constatados pelos instrumentos contratuais acostados com

peça vestibular e a contestação e ora também juntados (inicial e contestação anexas).

- DO MÉRITO

III- DA DEMANDA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DAS QUESTÕES FÁTICAS E

JURÍDICAS A ELA SUBJACENTES

III.a- DO ALCANCE DA IMPUGNAÇÃO

Visto os limites em que decidida a ação e a controvérsia sobre este ponto é imprescindível,

por primeiro, a correta definição do alcance em que proposta a demanda.

3.1.a - Tendo em conta os limites da demanda subjacente (ACP), da extensão das decisões

havidas e da complexa situação fática e jurídica que delas decorrem, pede-se vênia para renovar

alguns tópicos já introduzidos na ação de Mandado de Segurança e em contestação da Ação Civil

Pública para a correta compreensão do tema e da controvérsia.

3.1.b - Como sublinhado, o objeto do “mandamus” não visou apenas a desconstituir o

contido no item “b” desta, mas, também, e principalmente, ao contido no item “a”, exatamente

pelos comandos ali postos, que, no entender do Município e como sublinhado desde a

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204 Revista da PGM

contestação da ACP e na própria inicial do Mandado de Segurança, adentram na autonomia, na

esfera administrativa e contratual do município, infringindo a regra do art. 2° do CF (itens 4.2

e 5.14 da inicial do MS).

3.1.c - Neste ponto, expressamente asseverou o Município que a relevância do tema

era por demais complexa para, em sede de antecipação de tutela, ordenar o desfazimento

de contratos e impedir contratações, reordenando o serviço público com comando

para realizar concurso público, preencher quadros funcionais com a criação de cargos

e funções, razão pela qual, diante desse alcance, imiscui-se na esfera da atividade e

da liberdade contratual do ente público para, com supressão de atividade legislativa

específica, obstaculizar pactuações administrativas e regrar de modo diverso da lei e

das prerrogativas constitucionais aos Municípios conferidas.

Como visto, com tal extensão, a medida antecipada, em última analise, satisfez as

pretensões deduzidas em sua totalidade, condição que, em se cuidando de liminares, é vedada

pelo STJ.

Diante de tais termos, seria demonstrada a incorreção da medida deferida e, por

conseqüência, a existência de direito líquido e certo do Município a ser resguardado e

para vê-la desfeita, em particular quanto às normas que especificou, a saber: art. 2°

(resguardado pelo art. 60, §4°, III, como cláusula pétrea); - art. 5°, “caput” e

XVII; - art. 37, XXI; art. 174, §2°; todos da CF; art. 442, §único, da CLT; art. 3°, §1°,

II, da Lei de Licitações

Este é o alcance da impugnação do Mandado de Segurança.

IV- DA DECISÃO RECORRIDA – E DO DIREITO LÍQUIDO E

CERTO DO MUNICÍPIO

4.1 - A decisão antecipatória veio nos termos acima especificados e mantida com o

indeferimento da medida liminar postulada no Mandado de Segurança .

4.2 - Com a devida vênia do douto prolator, a manutenção da medida antecipatória com

a denegação da segurança está juridicamente equivocada, condição que se tentará demonstrar

com os argumentos adiante alinhados.

4.3 - Observou-se que a medida antecipatória contou com deficiências jurídicas

suficientes para ensejar o seu indeferimento.

Afirmou-se que a lei é violada quando incidiu quando não era o caso de incidência, bem

como quando deixou de incidir quando era caso de incidência obrigatória.

Estas condições se apresentaram na hipótese em exame:

(a) por que não estavam presentes os requisitos do art. 273 do CPC, permissivos

ao deferimento da medida antecipatória; portanto, incidiu quando não era

caso de incidência;

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Nº 24 - Dezembro 2010 205

(b) quando o conteúdo da antecipação, com comandos para desfazer e impedir

contratações, condição que acabaria por reordenar o serviço público com

supressão de atividade legislativa específica, viola o art. 2° da CF, regra que

deveria incidir e foi irregularmente arredada;

(c) na medida em que obstaculiza contratos administrativos e regra-os de modo

diverso do conferido pela lei e por prerrogativas de ordem constitucional

conferidas aos Municípios, também ofende de forma direta ao art. 2° da CF; norma

que, de igual modo, teria incidência obrigatória e irregularmente deixou de incidir;

(d) quando ordena a realização de concurso público, com a conseqüente

determinação para criação de cargos e funções públicas, também ofende o

art. 2° da CF, que, por mais este motivo, deixou de incidir quando era de

incidência obrigatória;

(e) o comando para impedir a participação de cooperativas em procedimentos

licitatórios viola o princípio da isonomia estampados nas regras do art. 3°,

§1°, II, da Lei 8.666/93, art. 5°, II, e art. 37, XXI, da CF, que eram de incidência

obrigatória e foram indevidamente afastadas;

(f) quando, também por conta do comando para afastar cooperativas de licitações,

também atinge regras constitucionais principiológicas garantidoras da

formação e do associativismo via cooperativas, inclusive cooperativas de

trabalho, como o art. 174, §2°, da CF;

(g) por fim, atinge o próprio art. 442, §único, da CLT, quando acaba por suprimir

atividade especifíca do Poder Judiciário de investigar, em ações individuais e

em casos concretos, eventuais incorreções que somente por este meio

poderiam ser analisadas, presumindo ilícitas todas as relações travadas com

cooperativas, quando se sabe que essa condição se encontra absolutamente

inexistente; portanto, esta decisão, nos limites em que proferida, impede a

correta incidência desta norma.

V- DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E DO PROCESSO LEGISLATIVO

INCIDENTES – DOS REFLEXOS FINANCEIROS E DA CRIAÇÃO DE CARGOS

PÚBLICOS

5.1 - Agrega-se ao acima posto, a absurda consideração de que o cumprimento do

provimento não interferiria, acarretaria ou oneraria desproporcionalmente o ente público.

Particularmente neste tópico, considerando a exigüidade do tempo concedido (e

pouco importa, aqui, a consideração de que os contratos vigentes terminariam dentro do

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206 Revista da PGM

período de seis meses), há de ser levado em conta às necessárias, imprescindíveis e

decorrentes implicações no orçamento público e no procedimento legislativo – limitações

da Lei de Responsabilidade Fiscal e Projeto de Lei para a criação de cargos de telefonistas e

com a autorização legislativa para tanto.

5.2 - Observe-se, por exemplo, o art. 21 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que

dispõe ser nulo de pleno direito o ato que provoque aumento de despesa com pessoal e não

atenda às exigências dos art. 16 e art. 17 desta Lei Complementar, e ao disposto no art. 37,

XIII e no art.169, §1º, ambos da CF.

A regra do art. 16 dispõe sobre a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação

governamental que acarrete aumento da despesa. A norma explicita que o ato que acarrete aumento

de despesa deverá estar acompanhado de (I) estimativa do impacto orçamentário-financeiro no

exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes, e (II) declaração do ordenador de

despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária

anual e compatibilidade com o Plano Plurianual e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

“art. 169, §1º, CF- A concessão de qualquer vantagem (....), a

criação de cargos, empregos ou funções públicas (...), bem como

a admissão de pessoal ou contratação de pessoal, a qualquer título,

(...), só poderão ser feitas:

I- se houver prévia dotação orçamentária suficiente (...);

II- se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias

(...);”

(grifou-se)

5.3 - Estas condições jurídicas, na forma em que foram delineadas pelas decisões havidas

e ora mantida pela r. decisão que se impugna, configuram direito líquido e certo do Município-

Agravante para vê-las corretamente aplicadas ao caso concreto.

5.4 - Nesses termos, adiante restarão demonstradas a incorreção, a ilegalidade

e, em matéria de fundo, a inconstitucionalidade da medida deferida e ora atacada; por

conseqüência, a existência de direito líquido e certo do Município a ser resguardado e

para vê-la desfeita.

VI- DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA E DOS REQUISITOS

JURÍDICOS PERTINENTES

- DO ART. 273 DO CPC

6.1 - O ordenamento já previa para o deferimento de medidas cautelares a comprovação

do “periculum in mora” e o “fumus boni iuris”, que, para as hipóteses de medidas antecipatórias

e de liminares específicas3

, redundou na pré-existência de “prova inequívoca”, da “verossimilhança

da alegação” e do “fundado receio de dano irreparável”.

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Nº 24 - Dezembro 2010 207

6.2 - Resumidamente, o sistema jurídico brasileiro examina estes requisitos como graus

de probabilidade. 4

Para (a) a verossimilhança da alegação, requer uma probabilidade satisfatória ou máxima,

dependendo sempre de um “juízo de delibação”5

, portanto, análise dos aspectos subjetivos do

“thema decidendum” para a verificação desses diferentes graus de probabilidade das alegações,

entendendo-se esta como credibilidade e certeza jurídica, já que aparência ou plausibilidade

jurídica dirá com medidas cautelares; e (b) prova inequívoca, reconhecidamente verdadeira, com

alto grau de certeza, com máxima carga de motivos e razões aptas a permitirem um juízo de

“probabilidade segura”6

, com atividade cognitiva que não pode se restringir a um simples ou

superficial exame jurídico da hipótese.

Portanto, o sistema exige a existência do trinômio - alegação, fato e prova. Para o caso,

inexistiu nos moldes perpetrados pela lei e que autorizariam um juízo antecipatório como o

deferido.

- DA INEXISTÊNCIA DA VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO

6.3 - Como sublinhado, esta condição jurídica deveria vir pautada por um exame de

probabilidade, de certeza jurídica, e que esta contivesse um grau suficientemente elevado

capaz de permitir um exame dos aspectos subjetivos das alegações, provas e fatos que

conduzam a uma aparência de verdade, sem ater-se um simples exame dos limites e das

condições jurídicas.

Pois bem, transpondo estas análises para a hipótese concreta, ver-se-á com clareza que

esta condição ficou ausente.

6.4 - A medida deferida examina dois aspectos já observados acima: o primeiro, uma

demanda individual (processo n°. 1019.018/92-5, anexo-4), do ano de 1992, onde resultou em

um juízo de procedência desta reconhecendo que a relação do trabalhador com a cooperativa

então demandada era de emprego e não de associado ou cooperado.

Porém, um exame um pouco mais acurado das alegações deduzidas pelo

Município afastaria dúvidas sobre este ponto em particular, especialmente quando esse

Tribunal Regional, em sucessivas outras demandas individuais, tem afirmado a correção

de relações travadas entre trabalhadores e cooperativas, balizadas pelo art. 442, §único,

da CLT, admitindo tais relações como de associados ou entes cooperados, nos termos da

lei (doc. anexo).

A análise procedida pela Autoridade Coatora e mantida pelo acórdão deveria buscar uma

probabilidade de certeza infinitamente maior.

Na decisão de antecipação não houve qualquer menção ao fato de essa Corte Regional já

ter enfrentado o tema, em julgamento de Ação Civil Pública promovida pela mesma parte, em

3

- art. 461, §3°, do CPC

4

- Código de Processo Civil Reformado, J. E. Carreira Alvim, 6a

. Ed., Forense, págs. 94 e segs.

5

- expressão citada pelo autor, obra citada, pág. 97.

6

- idem, pág. 106/107

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208 Revista da PGM

termos tais que se constituía, ao menos, em questão prejudicial para um julgamento e que

permitisse antecipar os pedidos com o alcance dado.

Esta decisão veio nos seguintes termos:

Processo n°. 00922.018/98-7,com trânsito em julgado neste mês de

agosto/2006 (decisão anexa).

A hipótese versava sobre contratação, através de cooperativa, de auxiliares de

cozinha, portanto, atividades-meio, de caráter permanente, para escolas da rede municipal

de ensino e veio proferida nos seguintes termos:

“EMENTA: MUNICÍPIO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.

Ao Poder Público cumpre organizar o seu pessoal, em termos de

cargos, empregos e funções públicas na forma de como previsto

no art. 37 da CRFB/88, respectivos incisos e correspondentes

parágrafos, no que incluída a previsão do inciso IX para situações

especiais, mas excepcionadas, as atividades-meio a exemplo das

contempladas no entendimento sumulado por via do Enunciado

331/TST.”

No que interessa, salientam-se os seguintes pontos:

“5. REGULARIDADE DAS CONTRATAÇÕES

...

Sustenta que os contratos tachados de ilegais foram celebrados com

amparo na lei das licitações, destacando o art. 71 da Lei 8.666/93, que

isenta o Poder Público de responsabilidade quanto aos direitos trabalhistas

dos empregados de empresa contratada; que a decisão de origem investe

contra o parágrafo único do art. 442 da CLT, que afasta o vínculo de

emprego entre a sociedade cooperativa e seus associados; que os serviços

da contratação em tela, porque dizentes com higiene, limpeza e cozinha,

não se constituem de atividade-fim do serviço público de ensino, senão

que atividade-meio; ...

... que não há possibilidade legal de impedir a participação de Cooperativas

em certames licitatórios.

Com razão.

As relações entre associados de cooperativas e suas entidades e destas

com empresas ou órgãos públicos tomadores de serviços têm sido motivo

de grande e crescente preocupação, especialmente em locais onde a mão-

de-obra braçal é mais exigida, tendo muitos estudiosos se debruçado

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Nº 24 - Dezembro 2010 209

sobre a matéria, uns para concluir pela “fraudoperativa” e outros pela

legal existência de tais entidades, erigindo-se em uma oportunidade de

trabalho em um mercado escasso.

A propósito, não deixa de marcante quanto se lê na última capa da obra

“COOPERATIVAS DE TRABALHO - Existência Legal” (FERRARI, Irany. SP,

LTR, 1999), no sentido de que : “Não se pode admitir, por excesso de

zelo ou por tutela indesejada, que toda e qualquer cooperativa de

trabalho, urbana ou rural, seja fraudulenta ou prejudicial a seus

associados que buscam o trabalho solidário e a conquista de seu

próprio destino. Os exemplos de sua atuação benéfica multiplicam-se

a cada dia, como mostra a realidade, apesar dos preconceituosos que

só vêem o trabalho válido se sob a forma subordinada”.

(...)

Na mesma publicação: “Deveras importante trazer à lume ensinamentos

do Professor Octavio Bueno Magano: ‘... As condições do mundo moderno

implicam a generalização da atuação de cooperativas, fenômeno que

se conjuga com a tendência no sentido da terceirização. No passado

remoto o fenômeno da terceirização encontrava-se extremamente

marginalizado por obra do Enunciado n. 256, do TST.( ...). Tem-se, pois,

que, desde janeiro de 1994 (data de publicação do Enunciado n. 331),

tornou-se possível a terceirização de atividade-meio das empresas.

Posteriormente, com o advento da Lei n. 8949/94, desapareceram óbices

à terceirização, quer no que concerne à atividade-meio, quer no que

respeita à atividade-fim, desde que a sociedade colocadora de mão-de-

obra se revista da forma cooperativa. (...) Os críticos da nova lei

costumam dizer que a disposição do parágrafo único, do artigo

442, da Consolidação das Leis do Trabalho, porque tal

hermenêutica feriria princípios constitucionais e

especialmente o Enunciado n. 331, do Tribunal Superior do

Trabalho. Essa tomada de posição fulmina-se com a simples

invocação do princípio de que o intérprete não distingue onde

a lei não distingue. Ora, se a Lei n. 8949/94 não faz distinção

entre atividades-meio e atividade-fim, não é dado ao intérprete

fazê-la. Por outro lado, querer contrapor a Constituição à regra

contida no parágrafo único do art. 442, da Consolidação das

Leis do Trabalho, é olvidar que a Lei Magna, consoante já

salientado, dá especial relevo ao cooperativismo, de um modo

geral, como se constata pela leitura dos seus artigos 174, 2º,

187, inciso VI e 192, inciso VIII. Outro argumento usado pelos

adeptos do imobilismo é o de que a terceirização de atividades,

mediante a contratação com cooperativas violaria os artigos

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210 Revista da PGM

9º e 444 da CLT. Sucede que os preceitos de lei em causa só

podem ser tidos como violados, quando impedida ou desvirtuada

a aplicação do corpo de leis de que fazem parte. Ora, é a própria

Consolidação das Leis do Trabalho que prevê o funcionamento

de sociedade cooperativa, sem a configuração de vínculo de

emprego entre ela e seus associados, ou entre estes e os

tomadores do serviço daquela”.

Assim, tendo-se como certo que a CRFB/88, especialmente nos seus

arts. 5º, XVII e 174, § 2º , abre margem para o “cooperativismo e

outras formas de associativismo”, com recepção de quanto previsto

na Lei nº 5.764/71 e ainda que a recente alteração havida no texto da

CLT, através da Lei nº 8.949/94, no sentido de que “qualquer que

seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo

empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os

tomadores de serviços daquela”, vem a prestigiar a fundação de

cooperativas de trabalho, tem-se como certo que é esta, sem dúvida,

no contexto legal atual, forma de atender às exigências de mão-de-

obra supletiva para eventos e/ou para atividades-meio, ao mesmo

tempo em que restam abertas possibilidades de trabalho num

mercado extremamente reduzido.

Ainda que tanto legitime, no contexto de direito, as cooperativas de

trabalho, não há como deixar de ter como certo, porém, que tal

legitimação não confere ao Poder Público a possibilidade de desincumbir-

se de seus deveres básicos para com a coletividade (atividade-fim), através

da contratação de cooperativas.

Ao Poder Público cumpre organizar o seu pessoal, em termos

de cargos, empregos e funções públicas na forma de como

previsto no art. 37 da CRFB/88, respectivos incisos e

correspondentes parágrafos, no que incluída a previsão do

inciso IX, para situações especiais, quando “a lei estabelecerá

os casos de contratação por tempo determinado para atender a

necessidade temporária de excepcional interesse público” e

excepcionadas, ainda, as situações especificamente

contempladas no entendimento sumulado por via do Enunciado

331/TST, quais sejam, trabalho temporário ( Lei 6019/74),

serviços de vigilância (Lei 7.102/83), conservação e limpeza,

serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador,

desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta.

No caso do autos, envolvendo a matéria contratação de serviços com a

COTRAVIPA na atividade-meio do tomador e uma vez “inexistente a

pessoalidade e a subordinação direta” e considerado ainda que mesmo

“a contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta,

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Nº 24 - Dezembro 2010 211

não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública

Direta, Indireta ou Fundacional”, na forma do Enunciado 331/TST,

tratando-se de “prestação de serviços de 65 cozinheiros e 156 auxiliares

de cozinha terceirizados nos período de 01 de julho a 31 de dezembro de

1997; 35 cozinheiros e 115 auxiliares de cozinha terceirizados no período

de 01 de janeiro a 28 de fevereiro de 1998...”, para atuação nas escolas

municipais de Porto Alegre, não há como se possa chancelar o comando

posto em Sentença, no sentido de que o Município “somente possa firmar

contratos de prestação de serviços de natureza permanente com

pessoas físicas ou jurídicas que utilizem na sua execução mão de obra

de trabalhadores admitidos sob vínculo de emprego”.

Cumpre, assim, em tal contexto de Direito, dar-se provimento ao recurso

voluntário para absolver o Município da condenação.”

(grifos do original)

6.5 - Ou mesmo em sucessivas demandas individuais com resultado de

improcedência, isto é, mostrando que a relação entre trabalhador e cooperativa não é

de emprego, mas de associado. E recentíssimas, por exemplo (docs. anexos):

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO INTERPOSTO PELO SEGUNDO

RECLAMADO E REEXAME NECESSÁRIO. IDENTIDADE DE MATÉRIAS.

ANÁLISE CONJUNTA. VÍNCULO DE EMPREGO COM A PRIMEIRA

RECLAMADA (COOEZA) E RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO

SEGUNDO RECLAMADO. “In casu”, não há que se cogitar em

reconhecimento de vínculo de emprego com qualquer dos

reclamados, tampouco em responsabilidade subsidiária do

segundo reclamado, reputando-se perfeita a relação havida entre

as partes, nos moldes do disposto no parágrafo único do art. 442

da CLT. Recurso provido.

(Acórdão processo n°. 01433-2004-018-04-00-0 - REO/RO-, 5a

.

Turma, TRT-4, Rel. Juíza Berenice Messias Corrêa, 06/07/2006)

EMENTA: VÍNCULO DE EMPREGO. COOPERATIVA DE TRABALHO.

RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO MUNICÍPIO DE PORTO

ALEGRE. Não restando descaracterizado o caráter associativo da relação

havida entre o autor e a COOTRAVIPA, primeira reclamada, não há como

reconhecer o liame de emprego, tendo em vista o expressamente disposto

nos arts. 90 da Lei nº 5.764/71 e 442, parágrafo único, da CLT. Nesta

linha, não há cogitar de responsabilidade subsidiária do ente municipal

recorrente, como tomador dos serviços. Recurso provido. (Ac. Proc. n°.

00836-2004-018-04-00-2 - RO, 2a

. Turma, TRT-4, Rel. Juíza Convocada

Inajá Oliveira de Borba, 10/05/2006)

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212 Revista da PGM

EMENTA: EMENTA: RELAÇÃO DE EMPREGO. COOTRAVIPA. Vencido

o Juiz Relator, decidiu a Turma que, sendo a cooperativa de trabalho

regularmente constituída e atuando na conformidade das suas normas

estatutárias, não se forma vínculo de emprego com o associado, segundo

norma do parágrafo único do artigo 442 da CLT. (Ac. Proc. n°. 00867-

2005-018-04-00-4 – RO, 4a

. Turma, TRT-4, Rel. Juiz Fabiano de Castilhos

Bertolucci, 08/03/2007, publicado em 20/03/2007)

6.6 - Portanto, bastava verificar que e o próprio Tribunal Regional tem posições

não unânimes sobre o tema, condição que, por si só, já inviabilizava a afirmação de

certeza jurídica e sobre a existência de fundado receio de ineficácia do provimento

final (decisão anexa).

VII - DO ALCANCE E DOS EFEITOS DA DECISÃO ACIMA DECISÃO SOBRE O

JULGAMENTO DO PRESENTE MANDADO DE SEGURANÇA

7.1 - Exatamente por conta da decisão posta no item precedente, veiculou o

Município, na contestação da ACP e observou nesta, uma preliminar de “coisa julgada”,

porém, exatamente pelos efeitos de decisões desta espécie, também sublinhando tratar-se de

“questão jurídica” que inviabilizaria o pedido liminar então postulado e, agora, a própria decisão

que se recorre.

7.2 - Argumentou-se que havia uma questão jurídica, quanto à constituição da Cooperativa

COOTRAVIPA, à luz da Lei n°. 5.764/71, que já havia sido deduzida e enfrentada pelo Tribunal

Regional, no processo n°. 00922.018/98-7, Rel. Juiz Lenir Heinen, 1a

. Turma, decisão de abril/

2003, então manejada em Ação civil Pública pela mesma parte ora demandante.

7.3 - Este enfrentamento pelo Tribunal conduziu para um exame de mérito que não

poderia ser revolvido. Assim, no particular, caberia um juízo preliminar de extinção do processo,

uma vez que seria inviável novo exame para investigar situação jurídica em que já houvera

apreciação de mérito entre as mesmas partes.

Esta mesma questão também fora enfrentada em demandas com matéria conexa – v.g.,

processos n°. 01370.025/97-1 (RO), Rel. Juiz José Antônio Pereira de Souza, publicado em 02/04/

2001, 1a

. Turma, n°. 95.019927-3 (REO/RO), Rel. Juíza Dulce Olenca Baungarten Padilha, publicado

em 04/05/2001, 2a

. Turma. (docs. anexos, fls.)

Assim:

“EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IDONEIDADE DA COOTRAVIPA

PARA FORNECER/LOCAR MÃO-DE-OBRA. Não há que se falar em

fraude no comportamento da cooperativa reclamada, eis que a

prestação de serviços é um de seus objetivos legalmente

assegurados. Observa-se, ainda, que a COOTRAVIPA é

regularmente constituída segundo as normas previstas na Lei n°.

5.764/71 e que os contratos de prestação de serviços firmados

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Nº 24 - Dezembro 2010 213

(fls. 18/48) encontram-se dentro dos parâmetros legais. Nega-se

provimento ao recurso.

(Ac. 01370.025/97-1 RO, Juiz Relator José Antônio Pereira de Souza, 18/

01/2001, 1a

. Turma, TRT-4a

. Região)

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COOTRAVIPA. DMLU. Hipótese

em que são se verifica qualquer irregularidade na prestação de

serviços de limpeza urbana pela Cootravipa por meio de seus

sócios, ao DMLU. Trata-se de cooperativa regularmente

constituída, nos termos do art. 90 da Lei 5.764/71 e do art. 442,

parágrafo único, da CLT. Provimento ao recurso ordinário para

absolver a reclamada da condenação imposta.

(Ac. n°. 95.019927-3 REORO, Juíza Relatora Dulce Olenca B. Padilha,

15/01/2001, 2a

. Turma, TRT-4a.

Região)

7.4 - De qualquer sorte, mesmo que não fosse acolhida esta preliminar tal questão jurídica

seria (e é) impeditiva de um juízo de procedência, ao menos quanto aos efeitos sobre a Cooperativa

Cootravipa. Portanto, um juízo de mérito quanto à constituição desta e sua relação contratual

com o ente público não pode ser objeto de nova apreciação que venha a conflitar com o

posicionamento já havido em feito judicial anterior.

Veja-se as decisões acostadas sobre outras ACP, desta feita movidas contras o DMLU -

Departamento Municipal de Limpeza Urbana e Cootravipa, onde discutiu-se exatamente, não

apenas a legalidade da constituição da referida cooperativa, mas principalmente a legalidade no

fornecimento/locação de mão-de-obra (docs. anexos).

Este é apenas um dos aspectos. O outro é que esta decisão havida, efetivamente, impede

um provimento com os efeitos que ora foram dados.

VIII- DO CONCEITO DOS SERVIÇOS E DAS ATIVIDADES IMPUGNADAS

8.1 - É que os efeitos desse julgado não se subsumem a apenas o que foi dito

quanto à Cooperativa Cootravipa.

Há uma necessária constatação que é o fato de que o objeto das contratações ora

impugnadas dizer com as chamadas atividades-meio ou atividades secundárias. Todas as

ora elencadas pelo demandante se encontram nesta categoria.

A segunda, que também antecede a investigação de fundo, é a consideração de que a

presente demanda, quase que em idênticos limites, já fora apreciada pela E. TRT, nos autos dessa

anterior ACP reproduzida acima (processo n°. 00922.018/98-7, com trânsito em julgado

neste mês de agosto/2006 – doc. anexo).

8.2 - Por conseguinte, esta condição, por si só, já foi capaz de não permitir um juízo de

deferimento do pedido liminar.

Diante disso, era forçoso reconhecer a ausência dos requisitos exigidos para

a antecipação, ao menos a inexistência de verossimilhança do direito alegado.

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214 Revista da PGM

8.3 - Somente estas questões e dados jurídicos acima levantados já se prestariam para

afirmar a inexistência de verossimilhança da alegação, de prova inequívoca e de justificado

receio de dano irreparável.

8.4 - Não obstante a demanda posta na ACP conexa a este “writ” ter vindo com

parâmetros e limites jurídicos idênticos aos já enfrentados e com decisão de improcedência na

Ação Civil Pública anterior, a particularidade da presente é a extensão da fundamentação e do

pedido e dos limites das atividades almejadas.

E, como já afirmado, a existência do julgamento acima especificado já permitiria dúvida

razoável ou, quiçá, certeza para não permitir o deferimento.

8.5 - Veja-se que a hipótese versada na decisão reproduzida acima diz com

“cozinheiros” e “auxiliares de cozinha” em escolas; nesta, fala-se em “telefonistas”, “auxiliares

de lavanderia”, serviço de limpeza e portaria, etc.; todas atividades ditas de meio, cujas

pactuações, quer com empresas prestadores quer com cooperativas, são plenamente

resguardadas pela Lei e pela Constituição.

XIX- DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E CONTRATUAL DO MUNICÍPIO

9.1 - A manutenção da decisão antecipada com o r. acórdão ora atacado, revela um agir

jurídico fundado em presunção meramente decorrente de raciocínio indutivo (onde analisa-se

casos individuais e generaliza-se a conclusão, método, inclusive, que já foi suficientemente

afastado como ferramenta idônea para chegar-se a conclusões válidas), acaba, como afirmado,

por adentrar na esfera da liberdade contratual e da autonomia administrativa do

ente público, violando regras constitucionais e infraconstitucionais, a saber:

- art. 2° da CF;

- art. 5°, “caput” e XVII; CF

- art. 37, XXI; CF

- art. 174, §2°, CF;

- art. 442, §único, da CLT;

- art. 3°, §1°, II, da Lei 8.666/93 (Licitações)

9.2 - Estas regras definem a separação de poderes e, com isso, a liberdade contratual e a

autonomia administrativa do município, (art. 2°), assentam e garantem o princípio da isonomia

(art. 5°, “caput” e art. 37, XXI); garantem o livre associativismo (art. 5°, XVII); garantem e

fomentam o cooperativismo (art. 174, §2°); definem a inexistência de vínculo de emprego a relações

entre cooperado e cooperativa (art. 442, §único, da CLT); e garantem a isonomia, permitem a

participação de cooperativas em procedimentos de licitação, vedando qualquer ato que as impeçam

de participar em licitações (art. 3°, “caput”, e inciso II do §1°, da Lei 8.666/93).

9.3 - Portanto, definitivamente, a verossimilhança do direito exigida NÃO

está presente para permitir a incidência da regra do art. 273 do CPC, daí por que

merece ser modificada a r. decisão ora impugnada para, julgando o presente procedente.

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Nº 24 - Dezembro 2010 215

X- DA PROVA INEQUÍVOCA E DA EXISTÊNCIA DE DANO IRREPARÁVEL A

SER RESGUARDADO COM A ANTECIPAÇÃO DO PROVIMENTO E DA

SATISFATIVIDADE DA DECISÃO

10.1 - Analisando os limites em que proposta a demanda vê-se que a antecipação deferida

não tem o efeito primordial de resguardar o provimento efetivo ao final do processo.

A sua denegação, ao contrário, NÃO tornaria sem objeto o processo ou imprestável

a sentença.

10.2 - Como ponderado, o art. 273 do CPC consagra tal qualidade de prova que, como

visto, não existe no caso. O trinômio observado pela doutrina – prova inequívoca + juízo de

verossimilhança + fundada alegação – cai por terra, diante das evidências em contrário, inclusive

já enfrentadas por essa Corte Regional, como no julgado antes reproduzido.

10.3 - Se as condições jurídicas já eram suficientes para indeferir o pleito de antecipação,

o MM. Juízo ora invectivado ainda fez mais: adiantou todo o mérito da demanda, a ponto de

ordenar a realização de concurso público, condição que necessariamente, ao caso, implica

criar cargos e funções públicas, desfazer contratos e realizar licitações e em seis meses.

Em tais termos, pouco importando o nome que se dê, o provimento antecipado

rigorosamente satisfez a totalidade, em extensão e conteúdo, as postulações do Ministério

Público.

Ante a irreversibilidade de decisões antecipatórias, assim se expressou o STJ, que, no que

interessa, grifou-se (doc., fls.):

PROCESSUAL CIVIL – TUTELA ANTECIPADA –

IRREVERSIBILIDADE DO PROVIMENTO JURISDICIONAL –

INADMISSIBILIDADE. É inadmissível a concessão da

antecipação dos efeitos da tutela quando houver perigo de

irreversibilidade do provimento antecipado. Isso se verifica no

caso de a tutela pretendida envolver a paralisação total das atividades

da ré, que já a exercia por longo período, sem oposição, fato que

demonstra a ausência de urgência do pedido. Recurso especial

provido. (REsp. n°. 253246/SP, RECURSO ESPECIAL 2000/0028905-

1, Rel. Min. Castro Filho, 3a

. Turma, 20/11/2003, publicado DJ 09/

12/2003, pág. 278, RSTJ vol. 183, pág. 247)

No contexto, portanto, não era de se adiantar provimento quando a

irreversibilidade seria comprometida. Os desfazimentos contratuais seguramente

renderão disputas judiciais subseqüentes e, eventualmente, pagamentos

indenizatórios, bem como ser impossível a realização de procedimentos licitatórios

em tão curto prazo ou que estes não sejam interrompidos ou suspensos por ordens

judiciais, visto a impossibilidade de não permitir a participação de cooperativas

em licitações.

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216 Revista da PGM

10.4 - A manutenção da medida renderá subseqüentes indenizações, quiçá com

vultosos pagamentos, por que a rescisão, antes do regular termo final de contrato

administrativo, sem culpa da contratada, causa dano a esta. Pelo dever de indenizar,

ainda que advindo de ordem judicial, há a presença de fundado receio de dano

irreparável e irreversível ao Município.

10.5 - Tal como decidido, a medida tem caráter definitivo, impedindo qualquer retorno

às condições jurídicas anteriores ou iniciais. Por conseguinte, em tal caso, jamais caberia o

deferimento da medida.

Ademais, os direitos em jogo não seriam prejudicados pela demora do

término do curso normal do processo; ao contrário, desfazer contratos implicará

imediatamente desempregar.

10.6 - Ainda, cabe salientar que quando, por uma determina via jurídica, se pretende um

efeito normativo diverso daquele que seria plenamente atingido por outra via expressamente

determinada e prevista no ordenamento para tanto, afirma-se que há um subterfúgio legal para

atingir este objetivo. Este modo de agir é ofensivo ao “Devido Processo Legal”.

Observou-se que a via escolhida para o ataque a supostas relações inquinadas de ilícitas

poderiam dar-se pela desconstituição das cooperativas então irregulares, nos termos das leis

permissivas a sua criação e funcionamento, mas jamais pela restrição à liberdade contratual do

ente público, negando vigência a todo um conjunto normativo incidente e adentrando na esfera

da autonomia dos municípios.

Diga-se, a propósito, que o Ministério Público tem ao alcance outras instituições para,

quando necessário, investigar essas cooperativas, a fim de, efetivamente, quando atinente,

desconstituí-las ou, que seja, atacá-las para esse fim e não, pela via indireta, imiscuir-se na esfera

e na autonomia contratual municipal.

XI- DO FUNDADO RECEIO DE DANO IRREPARÁVEL E DA EXISTÊNCIA DE

COMANDOS INESPECÍFICOS

11.1 - Nesse ponto, há aspectos diferentes a ser tratados. Por primeiro, a par dos comandos

que contêm o provimento adiantado, por si sós, causadores de danos, aí sim, irreparáveis, ao

Município, como a ordem para imediatamente contratar, por suposto, subtraindo o juízo de

conveniência do ente público, com a criação e cargos e funções, talvez impedindo atingir a limitação

constitucional de gastos com quadros funcionais; depois, para os desfazimentos contratuais e

realizações de novos certames licitatórios.

Em segundo lugar, analisando os comandos contidos no provimento, verifica-se

a incerteza neles afirmados, quando, por exemplo, observa “... outros serviços de caráter

permanente...” ou “... serviços permanentes e essenciais...” sem especificá-los, deixando

uma conduta a ser exigida em momento futuro ou que outros atos administrativos,

porventura conexos, sejam ou tenham eficácia antecipadamente contida ou sejam

impedidos de expedição, tornando-os destituídos de certeza.

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Nº 24 - Dezembro 2010 217

11.2 - Do que se verificará a seguir, o único fundado receio de dano irreparável não é o

que justificou o deferimento da medida, que, como visto, inexistiu, mas, sim, de dano irreparável

ao Município-Impetrante e ora Agravante, que se verá atingido em sua liberdade contratual e em

sua esfera administrativa, tendo de desfazer uma séria de pactuações em curso e outras que

sofrerão os efeitos diretos e reflexos desta decisão.

- DA IMPOSSIBILIDADE DE EVITAR-SE A PARTICIPAÇÃO DE

COOPERATIVAS EM PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS

11.3 - Como corolário da ordem, há uma conseqüência inevitável e de difícil composição,

quer quanto aos efeitos práticos dela decorrentes, quer quanto à possibilidade jurídica de

atendimento, qual seja a não participação ou o impedimento de participação de cooperativas em

procedimentos licitatórios, ante o princípio da isonomia e da competição.

Sabidamente, não há nada que as impeça de participar. Há diretrizes, não apenas

principiológicas, que permitem suas inclusões em licitações, veja-se o art. 3° da Lei de Licitações

(Lei 8.666/93), cujo conteúdo afirma a isonomia, e cujo §1°, I, impede a existência de vedações

que restrinjam qualquer condição ou tratamento diferenciado. No mais, o próprio art. 37, XXI, CF,

garantidor do princípio isonômico.

11.4 - Tanto quanto o art. 273 do CPC, cuja incidência ao caso foi indevida, na medida em

que, como visto, ausentes os requisitos permissivos para isso, o mesmo se dá quanto às regras

garantidoras do princípio isonômico, cuja incidência, também, não pode ser afastada no trato

contratual com as cooperativas.

Lei 8.666/93

Art. 3°- A licitação destina-se a garantir a observância do princípio

constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa

para a Administração, e será processada e julgada em estrita conformidade

com os princípios básicos da legalidade , da impessoalidade, da

moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa,

da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e

dos que lhe são correlatos.

§1° - É vedado aos entes públicos:

I - ...

II- estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial,

legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre

empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a

moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos

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218 Revista da PGM

financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no

parágrafo seguinte e no art. 3° da Lei n° 8.248, de 23 de outubro de

1991. (grifou-se)

Por sua vez:

Art. 37, XXI, CF – ressalvados os casos especificados na legislação,

as obras, serviços, compras e alienações serão contratados

mediante processo de licitação pública que assegure igualdade

de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam

obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta,

nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação

técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das

obrigações. (grifou-se)

11.5 - Com base nestas normas, as licitantes-cooperativas ingressam com Mandados de

Segurança ou outra medida que permita provimento antecipatório ou liminar e obtém a ordem

respectiva para participar dos certames.

Veja-se o entendimento do TJRS sobre o assunto em recentíssimas decisões, inclusive

sobre os chamados TAC - Termos de Ajustes de Conduta patrocinado pelo próprio Ministério

Público do Trabalho, em que foi parte META COOPERATIVA DE SERVIÇOS LTDA., cuja contratação,

por força desta ação, pode vir a sofrer os efeitos diretos da futura decisão final – doc. anexo. -10.

Assim:

Agravo de Instrumento. Licitação e contrato administrativo. Ação

Declaratória de Nulidade e julgamento à participação de

cooperativa de trabalho em certame promovido pelo Banrisul.

Ofensa ao princípio da isonomia. Antecipação de tutela para a

abertura do envelope de proposta. Cabimento. Agravo provido.

(proc. n°. 70015367196, Agravante: Meta Cooperativa de Serviços Ltda.,

Agravado: Banrisul, 21a.

Câmara Civil, TJRS, Rel. Des. Francisco José

Moesch, 11/10/2006)

AGRAVO E INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA. ANTECIPAÇÃO

DE TUTELA. LICITAÇÃO. COOPERATIVA DE MÃO-DE-OBRA.

EXCLUSÃO EM EDITAL DE CONVOCAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. A licitação destina-se a

garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e

selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. Constitui-

se em quebra deste princípio a exclusão de determinada

modalidade de sociedade, no caso, cooperativa de mão-de-

obra, no edital de convocação. A habilitação destas entidades em

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Nº 24 - Dezembro 2010 219

provimento antecipatório é medida que atende à verossimilhança do

direito invocado e ao risco da demora. Agravo provido. (Agravo de

Instrumento n°. 70010891885, Rel. Des. Marco Aurélio Heinz, 15/

06/2005)

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SEGURANÇA.

LICITAÇÃO. COOPERATIVA DE MÃO-DE-OBRA. EXCLUSÃO DO

PREGÃO ELETRÔNICO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA ISONOMIA.

Não há omissão no acórdão que reconhece a ilegalidade do ato

administrativo que restringe a participação de cooperativa de

mão-de-obra em licitação. Embargos rejeitados. (Embargos de

Declaração, 21a

. Câmara Cível, proc. n°. 70016634172, Embargante:

Banco do Brasil, Embargado: Cooperativa de Transporte e Serviços do

Sul Ltda. COOPSUL, Rel. Des. Marco Aurélio Heinz, 11/10/2006)

(grifou-se)

11.6 - Ou em recente notícia e decisão do TJRS, março/2007, (doc. anexo) sobre

alterações de edital que visem a impedir a participação de cooperativas em certames licitatórios.

“ Rh.

A restrição lançada no item 1° do Edital a participação das

cooperativas de trabalho efetivamente, salvo melhor juízo,

representam ofensa aos princípios constitucionais da

isonomia e liberdade do trabalho, além de lesão ao princípio

da legalidade, já que as cooperativas de trabalhadores estão

autorizadas, por lei, a oferecerem mão-de-obra e a participarem de

licitações na administração pública. Assim, tal condição é lesiva

não só a autora como a toda e qualquer cooperativa que, querendo

participar do certame, cumpra os demais requisitos legais, razão

por que, defiro a antecipação da tutela proibindo a

demandada de aplicar tal vedação até segunda ordem, pena

de multa de R$ 10.000,00 a ser aplicada ao Presidente da

Comissão de Licitações.

Cite-se, intime-se, via ofício, a ser entregue pela própria autora. Dl.

Em 07/03/2007. Flávio Mendes Rabello – Juiz de Direito Substituto”

(grifou-se – doc. anexo)

11.7- Todas estas condições jurídicas confirmam, não um temor, mas, concretamente, a

evidência de dano ao Município, quando ficaria, de um lado, a atender a uma ordem que impediria

a participação de cooperativas a licitações e, de outro, a cumprir outra ordem, desta feita para

permitir as suas participações.

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220 Revista da PGM

O certo é que os objetos desses procedimentos não se realizarão a tempo ou, na pior das

hipóteses, ficarão sobrestados até o julgamento final das eventuais demandas ou até a invocação

e resolução de um conflito positivo de competência pelo STJ.

Não é difícil prever a caótica situação e os contornos jurídicos que tais situações e

contratações poderão assumir, com óbvios prejuízos ao serviço público de saúde municipal ou,

como queiram, à correta prestação da saúde no Município.

11.8- Como se vê, o aspecto objetivo resultante é a absurda situação de licitações e

contratações trancadas por, com vênia da expressão, um faz-de-conta: de um lado, o Judiciário

Trabalhista dizendo não poder, de outro, o Judiciário Civil dizendo que pode e, ainda, de

outro, o Ministério Público do Trabalho observando o exercício de seu “papel” e, por fim, a

população, entre o rochedo e o mar, sofrendo todos esses efeitos, porém, aí, sem nenhum

faz-de-conta.

XII- DO PRESSUPOSTO NEGATIVO DA TUTELA ANTECIPADA – DA

INCIDÊNCIA DO §2° DO ART. 273 DO CPC E DA OFENSA AO ART. 2°DA CF

12.1-Diz esta regra que a tutela não será antecipada quando houver perigo de dano

irreversibilidade do provimento antecipado.

Este é o caso.

Neste aspecto em particular, as conseqüências atingirão não só aos contratos

analisados no feito, mas outros com vigência em curso e que sofrerão efeitos diretos e

reflexos da decisão ora impugnada.

Os desdobramentos fáticos e jurídicos de uma decisão de procedência (de difícil

superação operacional em prazo exíguo) acarretarão, a par da pretensão almejada pelo

Autor, efeitos e obstáculos que não serão superáveis pelo Município-impetrante.

12.2-As contratações havidas em todo este interregno, que não se prendem

apenas às colacionadas, atenderam à particular legislação incidente sobre a hipótese

(Lei de Licitações), cuja regularidade da execução dos contratos daí resultantes é

matéria, cujo alcance não tem limite apenas nos aspectos estritamente vinculados

às relações entre trabalhadores e sociedade cooperativa, senão que profundamente

ligados à liberdade contratual do ente público e a prerrogativas constitucionais inerentes a

tal atividade.

Por isso, a flagrante ofensa ao art. 2° da CF e ao princípio da separação de poderes.

12.3-Portanto, haverá DANO IRREPARÁVEL ao Município na manutenção do provimento

antecipado, razão pela qual deve o r.acórdão ser modificado julgando procedente cassado .

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Nº 24 - Dezembro 2010 221

XIII- DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO

13.1- Certo é que o “pressuposto” exigido para a demanda mandamental - direito líquido

e certo - é aquele que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto

a ser exercitado no momento da impetração.

Em outras palavras, “... há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos

e condições de sua aplicação ao impetrante: se a sua existência for duvidosa; se a sua extensão

ainda não estiver delineada; se o seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados,

não rende ensejo à segurança. Em última análise, diz H.L.Meirelles, a lei está a exigir que esse

direito se apresente com todos os requisitos para o seu reconhecimento e exercício no momento

da impetração - direito líquido e certo é direito comprovado de plano.7

(grifou-se)

Certo também que se viola a lei tanto por não a aplicar quando incidira,

que é o caso, como pelo motivo contrário, a saber, aplicar dispositivo que não incidiu

na hipótese concreta, condição que também se apresentou ao caso concreto.

13.2-Nesses termos, configura-se direito líquido e certo do Impetrante a

incidência, e também a não incidência, de regras que comporiam corretamente o conflito,

conquanto já faziam parte da esfera jurídica do Município, tendo este a prerrogativa

jurídica de vê-las corretamente atuando e regulando o caso concreto.

Estas normas foram especificadas nos itens precedentes e são as seguintes:

- DO ART. 273 do CPC

Como fundamentado, em especial nos itens IV e V, não estando presentes os

requisitos do art. 273 do CPC permissivos ao deferimento da medida antecipatória, isto

é, PROVA INEQUÍVOCA da verossimilhança do direito e FUNDADO receio de dano

irreparável, ou sendo duvidosa suas existências, esta regra não poderia incidir na

hipótese.

Constituía-se, pois, direito líquido e certo do Impetrante a não incidência desta norma.

- DO ART. 273, §2º, DO CPC

Ao contrário, ante a existência do chamado pressuposto negativo para a antecipação da

tutela, cuja regra diz que a tutela NÃO SERÁ antecipada quando houver perigo de dano irreversível

decorrente do provimento antecipado, esta deveria incidir e foi indevidamente afastada.

Como demonstrado, itens VI e VII acima, somado ao entendimento do C. STJ, donde não

se antecipa o que dificilmente poderá retornar ao estado (fático e jurídico) anterior, entendimento

abaixo, era direito líquido e certo do Impetrante a incidência desta, que indevidamente e teve sua

incidência irregularmente arredada.

7

- Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, Ação Civil Pública, Ação Populae, Mandado de Injunção , “Habeas Data”,

LTR, 12ª Ed., 1989, pags. 12 e 13.

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222 Revista da PGM

PROCESSUAL CIVIL – TUTELA ANTECIPADA – IRREVERSIBILIDADE

DO PROVIMENTO JURISDICIONAL – INADMISSIBILIDADE. É

inadmissível a concessão da antecipação dos efeitos da tutela

quando houver perigo de irreversibilidade do provimento

antecipado. Isso se verifica no caso de a tutela pretendida envolver a

paralisação total das atividades da ré, que já a exercia por longo período,

sem oposição, fato que demonstra a ausência de urgência do pedido.

Recurso especial provido. (REsp. n°. 253246/SP, RECURSO ESPECIAL

2000/0028905-1, Rel. Min. Castro Filho, 3a

. Turma, 20/11/2003, publicado

DJ 09/12/2003, pág. 278, RSTJ vol. 183, pág. 247)

- DO ART. 2° DA CF

Art. 2° - São poderes da União, independentes e hormônicos entre

si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art.4°- A constituição poderá ser emendada mediante proposta:

(...)

§4°- Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a

abolir:

...

III- a separação dos poderes;

Como visto, o conteúdo da antecipação tem comandos para desfazer e impedir

contratações, bem como para ordenar a realização de preenchimento de cargos com a

realização de concurso público, etc. (item “a” da medida antecipada).

Estes comandos afrontam os limites impostos pelo art. 2° da CF, conquanto penetram na

autonomia, na esfera administrativa e contratual do município (itens 4.2 e 5.14 da inicial do MS).

A medida antecipada e mantida pelo provimento ora impugnado expressamente

ordena o desfazimento de contratos e impede o livre agir contratual do Município,

acrescido do efeito de pretender reordenar o serviço público com comando para realizar

concurso público, preencher quadros funcionais, com a criação de cargos e funções.

Com estes comandos, o alcance da medida antecipada adentra na esfera da

atividade e da liberdade contratual do ente público para, com supressão de atividade

legislativa específica, obstaculizar pactuações administrativas e regrar de modo diverso

da lei e das prerrogativas constitucionais aos Municípios conferidas, uma vez que regra

estas relações de modo diverso da Lei e da Constituição.

Como os contratos administrativos não merecem regulação por normas de índole

trabalhistas, mas têm sua disciplina estatuída por diplomas alheios ao direito do

trabalho, notadamente a Lei 8.666/93, falece competência à Justiça do Trabalho para

processar e julgar a demanda.

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Nº 24 - Dezembro 2010 223

Como já visto e salientado antes, tal realidade é de nitidez ímpar, ao ponto de ter-se

precedente jurisprudencial firmado pelo próprio TRT da 4ª.

Região, em ação civil pública movida

pelo mesmo Ministério Público do Trabalho contra o Departamento Municipal de Limpeza Urbana

– DMLU de Porto Alegre, onde restou assentada a sustentada incompetência, como se vê:

“EMENTA: JUSTIÇA DO TRABALHO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.

INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA. A justiça do trabalho é

incompetente para julgar ação que visa desconstituir contrato de

natureza administrativa, assim como coibir futura contratação dessa

natureza”.8

E o corpo do acórdão traz irretocável raciocínio que se pede vênia para

transcrever:

“Não se vislumbra como enquadrar a matéria ‘sub judice’ na previsão do

art. 114 da Constituição Federal de 1988, em que pese ponderáveis

pronunciamentos no sentido de que estaria inserida na parte do dispositivo

que se reporta ‘na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação

de trabalho’. Ainda que o inciso III do art. 83 da Lei Complementar 75/93

faça referência a direitos sociais constitucionalmente garantidos, há que

se entender que são somente aqueles direitos que se inserem na

órbita trabalhista, pois à toda evidência a lei não poderá ampliar

a competência constitucionalmente estabelecida. O que se visou,

com a presente ação, foi impedir a prorrogação e a feitura de

novos contratos do reclamado com a Cootravipa e ‘empresas

similares’ (em relação a estas o pedido não foi acolhido). Não se

trata, pois, de contrato de trabalho no sentido estrito da CLT, mas de

contrato de prestação de serviços entre o reclamado, autarquia municipal,

e COOTRAVIPA, pessoa jurídica de direito privado. A situação, no caso

presente, é diversa de outros julgamentos já ocorridos neste Tribunal e

que tratavam da contratação por interposta pessoa, naqueles casos,

empresas intermediadoras de mão-de-obra.

Revestido o recorrente da forma de autarquia e a contratada

de Cooperativa, o contrato necessariamente teria de ser

examinado do ponto de vista do direito administrativo, bem

como do disposto no parágrafo único do art. 442 da CLT, que

excepciona a regra geral do art. 3° da CLT ao tratar de

cooperativa” (grifou-se)

8

- Acórdão da 2ª

Turma, TRT - 4ª

Região, Rel. Juíza Dulce Olenca B. Padilha, julgado em 06/08/96 - Ac. 95.019927-3 RO,

cópia fls. 66/69

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224 Revista da PGM

Bem se vê que tanto a relação processual não se angulariza entre sujeitos capazes de

verem julgada demanda entre si pelo Judiciário Trabalhista e tampouco o objeto submetido é

materialmente envolvente de relação afeita ao direito do trabalho.

Logo, além de manifesta a incompetência material para disciplinar hipótese, os comandos

do provimento adentram explicitamente a limites que não lhe são permitidos pelo art. 2º da CF.

Não se olvide da impossibilidade legal de impedir a participação em certame licitatório de

Cooperativas. Atendendo aos requisitos ali postos, não há como afastá-las. A r. decisão, assim,

investe equivocadamente para um outro arranjo daquelas relações que, em última análise, impede

a vigência dos ordenamentos mencionados e nega anteriores decisões dessa Corte , daí por que o

remédio, além de equívoco, não debelaria a doença.

O ataque poderia se dar pela desconstituição da Cooperativa, nos termos da lei permissiva

de sua criação, eis que então não seria essa a “forma societária” prevista e autorizada pelo

regramento, mas jamais a tentativa dessa regularização pelo impedimento da atividade contratual

exclusiva do ente público.

De tudo se vê, portanto, que não vinga a tentativa de descaracterizar-se a relação

de cooperação entre os associados da Cootravipa e muito menos é de cogitar-se de

imputar ilegalidade em contrato administrativo firmado entre esta e o Poder Público.

Nesse sentido, era direito líquido e certo do Município-Agravante ver a incidência

desta para corretamente compor corretamente a demanda. Na medida em que

indevidamente afastada, tem-se por violado direito certo e líquido do Município.

- DO ART. 3°, §1°, II, DA LEI 8.666/93 E DO ART. 5°,

II E ART. 37, XXI, AMBOS DA CF

Estas assentam e garantem o princípio da isonomia.

Art. 5°, II- Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei.

Art. 37- A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá

aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

eficiência e, também, ao seguinte:

...

XXI- ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,

serviços, compras e alienações serão contratados mediante

processo de licitação pública que assegure igualdade de condições

a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam

obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da

proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as

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Nº 24 - Dezembro 2010 225

exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à

garantia do cumprimento das obrigações. (grifou-se)

Por sua vez, o comando contido na medida impugnada é claro para impedir a participação

de cooperativas em procedimentos licitatórios em franca oposição ao disciplinado pelas regras

citadas, violando diretamente o princípio da isonomia nelas estampados.

Estas, também eram de incidência obrigatória e, do mesmo modo, foram

indevidamente afastadas. A correta composição da demanda passa necessariamente pela

consideração e incidência destas regras.

O agir jurídico-administrativo do Município NÃO pode ficar condicionado a provimento

que ordena de modo diverso da lei e ofende a princípio desta magnitude, reordenando

procedimentos licitatórios sem a observância da isonomia entre os participantes.

Portanto, a não incidência destas norma viola direito líquido e certo do Município.

- DO ART. 174, §2°, DA CF

De igual modo, também por conta do comando para afastar cooperativas de procedimentos

licitatórios, atinge regras constitucionais principiológicas garantidoras da formação e do

associativismo via cooperativas, inclusive cooperativas de trabalho, como o art. 174, §2°, da CF,

que, ao caso, deveria ser observada. A sua não supressão ou não incidência à hipótese também

viola direito líquido e certo do Município.

- DO ART. 442, §ÚNICO, DA CLT

Por fim, a manutenção do provimento implica suprimir o enfrentamento de demandas

individuais pelo próprio Poder Judiciário, onde, por via indireta, acaba por deslocar a competência

deste sobre o enfrentamento do tema.

Este agir jurídico atinge o art. 442, §único, da CLT, quando acaba por suprimir

atividade especifíca do Poder Judiciário de investigar e conhecer, via ações individuais e em

casos concretos, os direitos subjetivos postos em disputa e outras incorreções que somente

por este meio poderiam ser analisadas e enfrentadas, presumindo ilícitas todas as relações

travadas entre cooperativados e cooperativas, quando se sabe que essa condição se encontra

absolutamente inexistente.

Portanto, esta decisão, nos limites em que proferida, impede a correta incidência desta

norma, violando direito líquido e certo do Município.

13.3-Nesses termos, estas condições jurídicas, na forma em que foram delineadas

pelas decisões havidas e ora mantida pelo r. provimento que se impugna, configuram direito

líquido e certo do Município-Agravante para vê-las corretamente aplicadas ao caso concreto,

visto que o agir jurídico-administrativo do Município foi plenamente resguardados pela Lei e

pela Constituição.

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226 Revista da PGM

13.4- Posto isso, reafirma-se que todas estas normas acima especificadas foram,

nos termos fundamentados, diretamente violadas pelo deferimento da antecipação de

tutela e ora mantida pela r. decisão de não concessão da medida liminar postulada,

razão pela qual, está inquinada de ilegalidade e inconstitucionalidade.

Daí a afronta aos dispositivos invocados, precisamente, eis que teriam incidência obrigatória

e foram indevidamente arredados.

13.5-As regras acima definem os contornos sobre os quais o agir do Município, no contexto,

deveria ser orientado. E, entre estes, não há margem para a discrepância perpetrada pela decisão

ora impugnada, com comandos distoantes dos ditames da lei e da Constituição, com ordem para

tangenciar o princípio da isonomia em procedimentos licitatórios, ditando o reordenamento de

quadros funcionais e ordenando atividade administrativa com supressão de atividade legislativa

específica para tanto, com o preenchimento e criação de cargos e funções, ou regrando de modo

diverso da lei o agir e a liberdade contratual do Município.

Pelos fundamentos acima anotados, não restam dúvidas sobre os direitos que envolvem

a esfera jurídica das partes, restando claro a ausência de embasamento legal suficiente para

permitir o adiantamento do provimento nos termos em que postulado, condição que autoriza a

procedência desta ação, restabelecendo a inteireza do direito constitucional e infraconstitucional,

dando-se efetividade do direito invocado.9

Por fim, cabem algumas considerações de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena por absoluta

pertinência ao tema aqui tratado, em longo e específico artigo - Ação Civil Pública e Tutela

do Trabalhador, em Recursos Trabalhistas e Outros Estudos de Direito e de Processo

do Trabalho, págs. 98,100, 102 e108. 10

Argumentando sobre os requisitos da ação civil pública no contexto das normas que a

regulam, poucos parágrafos bastam para retratar a hipótese dos autos, cuja semelhança não seria

mera coincidência:

“ (...)

Não há difuso emanado de indivíduos identificados ou de grupos

de indivíduos que se aglutinam e se identificam sob formas

contratuais preestabelecidas. Deles desprende o intérprete um

interesse como difuso, como se compusesse um fenômeno abstrato

autônomo. Tal postura ensombra o ambiente de trabalho, que

decorre de condições físicas e sociais concretas em que se insere

cada trabalhador na empresa.

9

- A fim de evitar qualquer irregularidade processual, observou o Município a desnecessidade de autenticação dos

documentos acostados, nos temos do art. 24 da MP n°. 1390/12.06.96 e suas sucessivas reedições (MP n°. 1973-62/

01.06.2000), ainda em vigência por força da EC n°. 32/2001, bem como do art. 365, IV e VI, do CPC, que afirma

corresponderem aos originais.

10

- Ação Civil Pública e Tutela do Trabalhador, pág. 83/108, LTR, Recursos Trabalhistas e Outros Estudos de

Direito e de Processo do Trabalho, 2001

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Nº 24 - Dezembro 2010 227

Com as deformações cometidas pelo Ministério Público do Trabalho,

a tudo transformando em objeto de ação civil pública, estar-se-á

criando uma terceira via de procedimento estatal e uma ação especial

para a cobertura de atos e fatos e pessoas, cujo modus operandi

(relações de trabalho) já se encontra amparado por três formas e

espécies diferentes de ação estatal: os procedimentos coletivos, pelos

sindicatos; a ação e a fiscalização do Ministério Público do Trabalho,

com pesadas multas e até eventual interdição de estabelecimentos

pela via competente (CLT, arts. 626 a 634) e as reclamatórias plúrimas

ou individuais dos próprios trabalhadores (CLT, art. 483).

Nem é crível nem de bom senso jurídico que o Estado intervenha

de duas ou três ou mais maneiras diferentes – fiscalização do

Ministério Público (que desaguará no processo administrativo e

judicial, perante a Justiça Federa), ou pela ação sindical, ou pela

ação individual e sobre elas, e além delas, faça desabar, pelos

tentáculos de um terrífico ius publicum, uma soi disant ação

civil pública, a serviço da qual se intenta, a propôs, adrede,

modelar um suposto interesse difuso.

Os fins institucionais do Ministério Público do Trabalho passaram

a ser abrangentemente desviados, quando seus órgãos se

interimiscuem na relação de trabalho, como se partes de um

contrato fossem, no uso de legitimações para propor a ação civil

pública inclusive a de “nulidade de contrato, acordo coletivo ou

convenção coletiva”, como se lhes dessem corpo os arts. 127 e

129, III, da Constituição Federal, até desaguar na mecânica a

descoberto do art. 83, IV, da Lei Complementar n. 75, de 20.5.1993.

(...)

Como que procurando tecnicizar um anátema que desabalou pelas

províncias do Direito do Trabalho Brasileiro, como valor conotativo

em si e por si, alude-se, comumente, à terceirização, a cooperativas

de trabalho, a condições de habitação do trabalhador, invocando-

se, como se fossem debitáveis às empresas, em nível de vício

institucional, o esvaziamento e o enfraquecimento dos sindicatos.

En passant, pode-se lembrar que nesta última postura já se delineia, pretextualmente,

uma tentativa de substituição de poder e da tutela a ele correspondente, de que são titulares os

sindicatos, pela figura do Procurador do Trabalho.

(...) “

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228 Revista da PGM

Após exemplificar com uma ACP sobre uma pequena propriedade rural de 120ha., cuja

multa incidente resultara, até o ano de 2000, em aproximadamente R$ 48.000.000,00 (processo

n°. 419/97, Varginha/MG, o autor conclui:

“Aberto o cenário, volta a cena para os Tribunais do Trabalho, a

quem cabe o ponderado exame de todos os movimentos e

desenlaces da ação civil pública atirada, como um dardo

flamejante, sobre as relações individuais de trabalho, ou para

mais entulhar por vias transversas a Justiça do Trabalho ou para

levar ao polio, como uma pujante força combativa quixotesca, o

órgão do Ministério Público do trabalho.” (grifos do autor)

Isso posto, é a presente para, acolhendo as razões acima, modificar a r. decisão impugnada

para julgar procedente a presente ação, concedendo a segurança nos termos pleiteados.

Deferimento.

Porto Alegre, 01 de setembro de 2007.

Rogério Scotti do Canto

Procurador do Município

OAB/RS 28.852

III. A DECISÃO

Acórdão Inteiro Teor

NÚMERO ÚNICO PROC: RXOF e ROMS - 689/2007-000-04-00

PUBLICAÇÃO: DJ - 27/06/2008

A C Ó R D Ã O

SBDI-2

PPM/pr

REMESSA EX OFFICIO E RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COOPERATIVAS.

INTERMEDIAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA.

Antecipação da tutela, deferida em ação civil pública, com a determinação de que o

Município se abstivesse de intermediar a contratação de mão-de-obra. A presença de fortes

indícios de que, com a criação de entidade cooperativa, estavam sendo sonegados aos

trabalhadores direitos positivados em sede constitucional, em virtude da prática de

intermediação de mão-de-obra, e ainda o suposto receio de que a continuidade dessa prática

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Nº 24 - Dezembro 2010 229

prolongasse a violação das garantias sociais constitucionais mínimas dos trabalhadores são

questões cuja verossimilhança não pode ser imediatamente aferida, por serem passíveis de

apreciação apenas em demanda de cognição ampla da controvérsia, e não em sede de cognição

sumária, como na antecipação de tutela concedida na ação civil pública. Recurso ordinário e

remessa ex officio a que se dá provimento.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Remessa Ex Officio e Recurso Ordinário em

Mandado de Segurança nº TST-RXOF e ROMS-689/2007-000-04-00.5 , em que é Remetente

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO, Recorrente MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE,

Recorrido MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO e Autoridade Coatora JUIZ TITULAR

DA 18ª VARA DO TRABALHO DE PORTO ALEGRE .

O Município de Porto Alegre impetrou mandado de segurança (fls. 02/30), com pretensão

liminar, contra ato do Juiz da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, que, nos autos de Ação Civil

Pública nº 1765-2006-018-04-00-7, proposta pelo Ministério Público do Trabalho da Quarta Região,

deferiu a antecipação da tutela, determinando ao impetrante que se abstivesse de admitir

empregados ao Hospital Pronto Socorro de Porto Alegre - HPS e no Serviço Médico de Atendimento

de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde - SAMU, diretamente

e sem aprovação prévia em concurso público, para execução de serviços permanentes e essenciais

à sua atividade-fim. Determinou ainda que o município afastasse, no prazo máximo de seis meses,

todos os trabalhadores que prestam serviços, relativos às atividades permanentes, junto ao HPU e

SAMU, por intermédio de cooperativas de trabalho.

A liminar foi indeferida (fls. 488/490).

O Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região denegou a segurança

(fls. 990/966), por considerar inexistente violação de direito líquido e certo na hipótese.

Aos embargos de declaração opostos pelo município, foi negado provimento,nos termos

da decisão às fls. 1.004/1.005.

O impetrante interpôs recurso ordinário fls. 1.179/1.214), reiterando os termos constantes

da petição inicial do mandado de segurança.

Subiram os autos a esta Corte, por força do processamento do recurso

ordinário e da remessa necessária (fl. 1.050).

Foram oferecidas contra-razões às fls. 1.056/1.076.

O Ministério Público do Trabalho opinou pelo não-provimento do recurso

(fls. 1.080/1.082).

É o relatório.

V O T O

CONHECIMENTO

Atendidos os pressupostos de recorribilidade do recurso ordinário, dele conheço e passo

a analisá-lo conjuntamente ao recurso ex officio.

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230 Revista da PGM

MÉRITO

O Município de Porto Alegre impetrou mandado de segurança (fls. 02/30), com pretensão

liminar, contra ato do Juiz da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, que, nos autos de Ação Civil

Pública nº 1765-2006-018-04-00-7, proposta pelo Ministério Público do Trabalho da Quarta Região,

deferiu a antecipação da tutela, determinando ao impetrante que se abstivesse de admitir

empregados ao Hospital Pronto Socorro de Porto Alegre - HPS e no Serviço Médico de Atendimento

de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde - SAMU, diretamente

e sem aprovação prévia em concurso público, para execução de serviços permanentes e essenciais

à sua atividade-fim. Determinou ainda que o município afastasse, no prazo máximo de seis meses,

todos os trabalhadores que prestam serviços, relativos às atividades permanentes, junto ao HPU e

SAMU, por intermédio de cooperativas de trabalho. Alegou que, na verdade, trata-se de contratação,

precedida de processo licitatório, de empregados cooperados, para exercerem trabalho em funções

relacionadas à atividade-meio do município, como faxina, telefonia e vigilância. Sustentou a

existência de coisa julgada com relação à COOTRAVIPA, em razão da análise da mesma controvérsia,

nos autos do Processo nº 1370.025/1997.1.

O Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região denegou a segurança (fls. 990/966),

por considerar inexistente, na hipótese, violação de direito líquido e certo. Adotou, para tanto, o

seguinte fundamento:

(...) irrelevante a inexistência de vedação na Lei 8.666/93 acerca da participação de

cooperativas nos processos licitatórios. Com base no mesmo fundamento, a garantia de igualdade

dos concorrentes no processo de licitação, garantia prevista no art. 37, XXI, da CF/88, não socorre

a tese de direito líquido e certo do impetrante. A norma constitucional se destina a assegurar a

igualdade de condições entre os correntes, não estendendo sua eficácia ao amparo da utilização

do instituto do cooperativismo para mascarar empresa prestadora de serviços.

O prazo de seis meses para que os trabalhadores exercentes de atividades-fim do HPS e

SAMU por interposta pessoa cooperativas sejam afastados não irá onerar desproporcionalmente o

Município. Na linha do que já se decidiu quando do exame da liminar, a cópia reprográfica dos

contratos administrativos firmados entre o impetrante e as cooperativas (fls. 31-132) revela termos

aditivos de prorrogações até 03-4-07 com a Cootravipa (fl. 40) e até 10-7-07 com a Portoserv (fl.

101). No tocante à Meta, a análise do contrato e o termo aditivo das fls. 107-8, cujo objeto é a

alteração de um posto de telefonia, gera presunção de que houve termo aditivo de prorrogação até

julho-07. Desta forma, não se verifica perigo de dano irreparável ou de irreversibilidade da decisão

porque o término desse contrato ocorrerá dentro do prazo de seis meses definido na decisão

antecipatória. De qualquer maneira, o Município terá de providenciar novos contratos de prestação

de serviços, sendo que o prazo de seis meses revela-se razoável para tanto (fls. 994/995).

O impetrante interpôs recurso ordinário (fls. 1.179/1.214), reiterando os termos da petição

inicial do mandado de segurança. Argumentou que não estão presentes os requisitos da prova

inequívoca, da verossimilhança e do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação,

contidos no art. 273 do CPC para a concessão de tutela antecipada, na ação civil pública ajuizada

pelo Ministério Público do Trabalho. Ponderou que o Juiz da 18ª Vara de Porto Alegre, ao

fundamentar a antecipação da tutela, incorreu em violação do art. 2º da Constituição Federal, na

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Nº 24 - Dezembro 2010 231

medida em que obstaculiza contratos administrativos e regra-os de modo diverso do conferido

pela lei e por prerrogativas de ordem constitucional conferidas aos Municípios e quando ordena

a realização de concurso público, com a conseqüente determinação para criação de cargos e

funções públicas (fl. 1.022). Asseverou que a proibição da participação de cooperativas em

procedimento licitatório viola o princípio da isonomia, nos termos dos arts. 3º, § 1º, II, da Lei nº

8.666/93, 5º, II, e 37, XXI, da Constituição Federal. Indicou ainda ofensa aos arts. 174, § 2º, da

Constituição Federal e 422 da CLT.

Passo à análise.

Assim está registrado o ato coator, quanto à verossimilhança das alegações contidas na

ação civil pública:

(...) no caso em exame, não pode o demandado delegar atividades que lhe são

permanentes, ainda que acessórias, vinculadas a atividades-meio, para cooperativas, já que as

atividades mencionadas não possuem autonomia necessária para serem executadas por sociedade

de cooperativa. Vale dizer, nos limites do indigitado entendimento sumular, poderia haver

terceirização ou terciarização, mas a empresas prestadoras de serviços, que admitem empregados

para executar sua atividade econômica, jamais por cooperativas. Essa última entidade, como

visto só poderá prestar serviços de natureza econômica, não permanentes ou essenciais, como é

o caso dos autos, já que os serviços de telefonia, limpeza e portaria por constituírem atividades

permanentes não podem ser executados com discricionariedade de escolha, pelo trabalhador, do

local, forma e duração do trabalho. Mais grave, ainda, é a circunstância de ser tal tipo irregular

intermediação de mão-de-obra patrocinada por um ente público.

Portanto, dada a natureza da obrigação, a relevância do fundamento da demanda e a

existência de justificado receio da presente ação, deve o pleito ser apreciado sob a óptica da tutela

específica insculpida no art. 461 do CPC, aplicável subsidiariamente à espécie (fl. 240).

Inicialmente, saliente-se que, de acordo com os termos do art. 127 da Constituição Federal,

ao Ministério Público cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses

sociais e individuais indisponíveis.

Sua função custos legis decorre da natureza indisponível da maior parte dos direitos

trabalhistas, razão da classificação do Direito do Trabalho como Direito Público. Ao empregado

não é dado abrir mão de seus principais direitos, cabendo ao Ministério Público defendê-los -

mesmo que o trabalhador não o faça - contra decisões judiciais, legislativas ou atos do Executivo

que firam os direitos sociais conferidos pela Constituição Federal.

Assim, o objetivo da ação pública ajuizada pelo Ministério Público era resguardar direitos

trabalhistas que estariam sendo violados coletivamente, em face da tentativa de se ocultar a

formação do vínculo de emprego, sob o pretexto de os contratados serem sócios de uma cooperativa,

e tendo em vista os termos art. 83, III, da Lei Complementar nº 75/93.

De outra parte, para a concessão da tutela antecipatória de obrigação de fazer e de não

fazer como no caso dos autos, é necessário o preenchimento dos requisitos contidos no art. 273

do CPC, a saber: verossimilhança das alegações, reversibilidade da medida e fundado receio de

dano irreparável ou de difícil reparação.

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232 Revista da PGM

Nesse sentido, já se posicionou esta Subseção em julgamento de mandado de segurança,

no qual se debateu acerca da legalidade da decisão que concedeu tutela antecipada em ação

civil pública, a fim de sustar a intermediação fraudulenta de mão-de-obra por intermédio de

cooperativa, verbis :

MANDADO DE SEGURANÇA TUTELA ANTECIPADA EM AÇÃO CIVIL

PÚBLICA.LEGALIDADE.

1. Não fere direito líquido e certo a concessão de tutela antecipada em ação

civil pública sustando a intermediação fraudulenta de mão-de-obra por cooperativa,

quando conta com sólido respaldo fático e jurídico, agindo o juiz dentro da estrita

legalidade ao conceder a antecipação da tutela, de vez que presentes os elementos

exigidos pelo art. 273 do CPC e fundamentado convenientemente o seu convencimento

(CPC,art. 273, § 1º).

2.In casu, a ação civil pública decorreu de procedimento investigatório deflagrado

por denúncia da fiscalização do trabalho quanto a empregados não registrados nas

empresas fiscalizadas, que trabalhavam como cooperados. O inquérito constatou a

intermediação de mão-de-obra, através da Cooperativa, quer para atividades-fim das

tomadoras de serviços, quer para suas atividades-meio, mas com subordinação e

pessoalidade na prestação dos serviços. Destaca-se o caso, em relação a uma das

tomadoras de serviços, de dispensa dos empregados e recontratação, através da

Cooperativa, para prestação dos mesmos serviços, mas com redução remuneratória.

Por outro lado, algumas das empresas investigadas firmaram o termo de compromisso

com o Ministério Público, reconhecendo o vínculo empregatício direto com os

trabalhadores cooperados, assinando suas CTPSs.

3. Além da verossimilhança das alegações, retratada nesse quadro fático,fruto do

procedimento investigatório, a tutela antecipada , limitada à vedação de intermediação

de mão-de-obra pela cooperativa, sem impor reconhecimento de vínculo pelas tomadoras

dos serviços, foi deferida em face da existência de fundado receio de dano de difícil

reparação, pela exploração a que os trabalhadores estavam sendo submetidos, com

sobrejornadas excessivas, sem pagamento de horas extras, férias, 13º salário e FGTS.

4. Convém destacar que a disciplina das liminares e da tutela antecipada em

sede de ação civil pública, proposta pelo Ministério Público do Trabalho em defesa de

interesses coletivos, é distinta dos processos meramente individuais. Isto porque,

dispondo o Ministério Público de amplo poder investigatório, instrui a ação civil pública

com os autos do inquérito civil público, nos quais se oferece ampla possibilidade de

defesa, justificação e composição com os inquiridos, não havendo que se falar em ausência

do contraditório.

5. Ademais, a liminar e a tutela antecipada são o veículo oportuno para se dar

celeridade à prestação jurisdicional nas ações de caráter coletivo, quando patente o

descumprimento do ordenamento jurídico trabalhista e urgente a correção da

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Nº 24 - Dezembro 2010 233

ilegalidade, pelos efeitos danosos que provoca na sociedade. Recurso ordinário

desprovido. (ROMS-746061/01.9, Rel. Min.

Ives Gandra Martins Filho, DJU de 10/08/2001)

Assim, de acordo com o entendimento acima exarado, a verossimilhança a ensejar a

concessão de tutela antecipada deve estar, pelo menos aparentemente, comprovada na ação civil

pública, por meio do inquérito instaurado com o fim de instruí-la.

Ocorre, entretanto, que, no caso dos presentes autos, a presença de fortes indícios de que

estavam sendo sonegados aos trabalhadores direitos positivados em sede constitucional, em virtude

da prática de intermediação de mão-de-obra, e ainda o suposto receio de que a continuidade

dessa prática prolongasse a violação das garantias sociais constitucionais mínimas dos trabalhadores

são questões cuja verossimilhança não foi imediatamente aferida, quando apreciado o pedido de

tutela antecipada.

Na hipótese vertente, não foram analisados pela autoridade coatora os documentos que

comprovariam a fraude alegada na ação civil pública.

Temerária, portanto, a condenação imposta em tutela antecipada. Ressalte-se que, caso

seja confirmada a existência de fraude à legislação trabalhista, com as condenações subseqüentes,

não haverá perdas para os “cooperados-empregados”, pois poderão receber, judicialmente, seus

direitos trabalhistas, na época própria.

Tendo em vista, pois, a não-configuração dos pressupostos autorizadores da concessão

da tutela antecipada, previstos no art. 273 do CPC, dou provimento ao recurso ordinário e à

remessa ex officio para, concedendo a segurança requerida, cassar a decisão liminar concessiva

da tutela antecipada, proferida pelo Juiz-Presidente da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, nos

autos da Ação Civil Pública nº 1765-2006-018-04-00-7

(fls. 695/705).

ISTO POSTO

ACORDAM os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal

Superior do Trabalho, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário para, concedendo

a segurança requerida, cassar a decisão liminar concessiva da tutela antecipada, proferida pelo

Juiz-Presidente da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, nos autos da Ação Civil Pública nº 1765-

2006-018-04-00-7 (fls. 695/705).

Brasília, 24 de junho de 2008.

MINISTRO PEDRO PAULO MANUS

Relator

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234 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 235

Honorários advocatícios na fase de execução de

sentença ante a nova sistemática do CPC –

Definição do STJ

Cristiane da Costa Nery

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236 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 237

I. RELATÓRIO

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NA FASE DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA

ANTE A NOVA SISTEMÁTICA DO CPC – DEFINIÇÃO DO STJ

Trata-se de cumprimento de sentença efetuado pelo Município de Porto Alegre para

recebimento de verba honorária fixada em ação de indenização por danos morais e patrimoniais

vencida pela municipalidade e que tramitou na 4ª Vara da Fazenda Pública.

Fixados honorários advocatícios na decisão da ação, foi requerido o seu cumprimento

com base no art. 475-J do CPC, onde também se pleiteou a fixação de honorários advocatícios

para a fase de execução.

Entendendo não se tratar de nova ação executiva, o juízo não fixou honorários, intimando

a parte vencida a pagar o montante da condenação de 1º grau, acrescida tão-somente da multa de

10% pelo não pagamento espontâneo.

O Município interpôs Agravo de Instrumento, ao qual foi negado seguimento por decisão

monocrática da 12ª Câmara Cível do TJRS, ante entendimento de que não caberiam honorários

advocatícios na fase de execução.

Interposto Agravo Interno para submissão da matéria ao colegiado, foi este desprovido.

Contra esta decisão foi interposto Recurso Especial, ao qual foi negado seguimento pela Terceira

Vice-Presidência do TJRS.

Interposto, assim, Agravo de Instrumento para destrancar e dar prosseguimento ao Recurso

Especial junto ao STJ, ao qual foi dado provimento para determinar a subida do Recurso Especial.

A 1ª Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao Recurso Especial.

Interpostos Embargos de Divergência, ante decisão da 2ª Turma em outro sentido. Em

decisão monocrática o Ministro Arnaldo Esteves Lima conheceu e proveu o Recurso Especial,

fixando honorários advocatícios em 20% sobre o valor da execução, conforme íntegra da decisão

em anexo, entendendo cabível a fixação honorária na fase de execução, utilizando precedentes e

bem enfrentando o trabalho do advogado nessa fase processual.

Atuou no feito a Procuradora signatária, responsável pela demanda na Procuradoria

de Serviços Públicos, tendo sido feitos os embargos de divergência pelo advogado Luís

Maximiliano Telesca Mota, que atua pela PGM/POA em Brasília-DF.

Cristiane da Costa Nery

Procuradora do Município

PSP/PGM/POA

OAB/RS 40.463

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238 Revista da PGM

II. A PEÇA DO MUNICÍPIO

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

OBJETO: RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO DA DECISÃO PROFERIDA

NOS AUTOS DA DEMANDA PROMOVIDA POR PEDRO JAEGER

ZIMMERMANN CONTRA O MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

PROC.: 70016919839

MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, por meio de sua procuradora signatária, vem à

presença de Vossa Excelência, tempestivamente, nos autos da ação promovida por PEDRO JAEGER

ZIMMERMANN, interpor RECURSO ESPECIAL, inconformado com a decisão que majorou a

verba honorária fixada em sentença, com base no artigo 105, III, a, da Constituição Federal, pelas

razões que seguem anexas.

Diante do exposto, o Município Recorrente espera que Vossa Excelência, após as

formalidades legais e de estilo, concedendo prazo ao Recorrido para resposta, admita o presente

recurso, remetendo os autos ao Superior Tribunal de Justiça.

Porto Alegre, 28 de dezembro de 2006.

Cristiane da Costa Nery

Procuradora do Município

OAB/RS 40.463

EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL

RECORRENTE: MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

RECORRIDO: PEDRO JAEGER ZIMMERMANN

EGRÉGIA TURMA,

DOS FATOS

O autor ingressou com ação de reparação de danos materiais e morais contra o Município

de Porto Alegre, em decorrência de acidente ocorrido com seu veículo, o que sustentou ter ocorrido

em função da má sinalização da via.

Sobreveio sentença de improcedência da ação, com a condenação do autor em custas

processuais e honorários advocatícios, estes fixados em R$ 150,00.

Interpôs apelação, a qual restou desprovida para reconhecer a ilegitimidade passiva da

municipalidade. Interpostos embargos de declaração pelo autor, foram estes rejeitados e entendidos

como protelatórios, sendo aplicada multa de 1% sobre o valor da causa corrigido.

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Nº 24 - Dezembro 2010 239

Transitada em julgada a decisão, o poder público requereu o cumprimento da sentença

de acordo com a nova fase de execução prevista pelo atual CPC, a fim de pleitear o pagamento dos

honorários que lhe são devidos.

Não pago espontaneamente o montante, houve a incidência da multa de 10%, sendo

indeferida a fixação de honorários advocatícios pleiteados para essa fase processual, decisão da

qual se agravou, restando desprovido o agravo de instrumento em decisão monocrática.

Interposto Agravo, restou ele submetido ao colegiado e não provido por unanimidade.

O julgado enfrenta fundamentalmente a questão relativa à fixação de honorários consoante

a sucumbência verificada, de acordo com a lei processual civil em vigor.

Desta forma, a matéria decidida importa em questão jurídica de relevância, e os

fundamentos, tanto das razões do Município, como da decisão, residem em matéria processual e

de legislação infraconstitucional, oportunizando, assim, a interposição de recurso especial.

DO CABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL

O Recurso Especial, no caso em tela, é proposto com fundamento no art. 105, III, a,

da Constituição Federal, que admite o remédio processual quando a decisão recorrida negar

vigência à lei federal.

O acórdão proferido pela Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul desafia recurso especial, pois nega vigência ao art. 20, parágrafos e artigos

475-I e 475-J, do Código de Processo Civil Brasileiro, como adiante se verifica.

São restritas as possibilidades de admissibilidade do recurso especial, pois sua origem é

a mesma do recurso extraordinário, ou, melhor dizendo, é nada mais que o antigo recurso

extraordinário adstrito à matéria infraconstitucional. E, por isso, tem função específica, bem

caracterizada pelo Ministro Antonio de Pádua Ribeiro, no artigo “Função do Recurso Especial”,

publicado na Revista da Ajuris n. 47, pg. 41, cuja lição abaixo transcreve-se:

“Em suma, a função do recurso especial é tutelar a autoridade e

unidade da lei federal. E essa função é exercida, segundo ensinamentos

de PONTES DE MIRANDA, assegurando sua inteireza positiva (art.

105,III,a) a sua autoridade (art. 105,III,b) e a sua uniformidade de

interpretação (art. 105.III,c)”

No mesmo sentido, delimitando o remédio recursal através da sua caracterização,

reportamo-nos ao artigo do também Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicado na Revista

Forense n. 307, pg. 57, que diz o seguinte:

“Trata-se de modalidade de recurso extraordinário lato sensu,

destinado, por previsão constitucional, a preservar a unidade e

autoridade do direito federal, sob a inspiração de que nele o interesse

público, refletido na correta interpretação da lei, deve prevalecer sobre

os interesses da parte”.

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240 Revista da PGM

Daí, conclui-se que o recurso especial visa, única e exclusivamente, ao interesse público

na aplicabilidade da legislação federal e na sua correta interpretação.

Quanto aos requisitos de admissibilidade do recurso, transcreve-se voto do Min. Aldir

Passarinho Júnior quando da apreciação do Edcl.Resp. nº 331.106-SP, 4ª T. do STJ, j. 17 de junho

de 2002, verbis:

“A controvérsia contida no especial, a toda evidência, referia-se,

também, ao art. 159 do Código Civil1

, princípio básico e fundamental

de feitos dessa natureza, de modo que o prequestionamento é implícito.

A proporcional idade entre a lesão e o ressarcimento são inerentes a

essa espécie, e, como sabido, a jurisprudência do STJ é pacífica em

admitir a intervenção da Corte quando se revela inadequação do valor

arbitrado pela instância ordinária e o dano causado ( cf. REsp n.

268.020/SP, 43 Turma, reI. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU de

18.02.2002; REsp n. 292.927/MO, reI. Min. Aldir Passarinho Junior,

48 Turma, DJU de 04.02.2002 e REsp n. 53.321/RJ, 38 Turma, reI.

Min. Nilson Naves, DJU de 24.11.97).”

Portanto, é nesse sentido que se espera o recebimento do presente Recurso

Especial, já que se está a debater a fixação de verba honorária para fase de cumprimento

de sentença, prevista pela legislação processual civil em vigor, cabendo ao Superior

Tribunal de Justiça a análise e a fiscalização dessa aplicação.

DA NEGATIVA DE VIGÊNCIA À LEI FEDERAL – CÓDIGO DE PROCESSO

CIVIL - DA NECESSÁRIA APLICAÇÃO DO ARTIGO 20, § 4º E ARTIGOS 475-

I E 475-J – DO CABIMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATICIOS NA FASE DE

EXECUÇÃO

A municipalidade requereu ao juízo de 1º grau a fixação de honorários advocatícios para

a fase de execução, os quais foram indeferidos pelo entendimento de que não se trata de nova

ação executiva, mas sim de cumprimento de sentença, pelo que não se poderia falar em honorários

advocatícios.

Não se pode concordar com a argumentação constante das decisões prolatadas até aqui

sobre a matéria.

Ainda que sejam fixados de forma provisória no início dessa nova fase, entende-se cabível

a fixação eis que inaugurada nova fase processual, em que se postula o pagamento do valor

devido não pago espontaneamente, como prevê a nova lei processual civil, artigos 475-I e 475-J,

de acordo com o verificado pelo cartório, anexando-se memória de cálculo atualizada do valor

para possibilitar a satisfação.

1

Código Civil de 1916.

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Nº 24 - Dezembro 2010 241

O ente público municipal necessitou efetuar diversos procedimentos para que se

instaurasse essa nova fase processual.

A municipalidade peticionou pelo cumprimento da sentença e anexou memória de cálculo

com a atualização do valor devido, acrescido da multa pelos embargos de declaração.

Intimado o devedor a pagar em 15 dias. Não foi pago de forma espontânea o valor devido

pelo autor da ação que foi julgada improcedente. Assim incidente a multa de 10%.

Intimada a municipalidade a anexar nova memória de cálculo com o valor acrescido da

multa de 10%.

Peticiona novamente o Município anexando nova memória de cálculo acrescida da multa

de 10%, a fim de que fosse dado prosseguimento à fase de execução com a expedição do competente

mandado de penhora.

Portanto, todo o impulsionamento da fase de execução, com realização de cálculos

inclusive, teve que ser feito pela parte credora, vencedora da ação, porque o autor, devedor, não

realizou espontaneamente o pagamento que deveria realizar.

Nada mais justo que fixar honorários para essa nova fase em que há o trabalho do advogado

do credor no impulsionamento, peticionando, requerendo, juntando cálculos, etc.

Salienta-se que os honorários já fixados no processo em sentença foram fixados pelo

trabalho antes realizado, mas não há qualquer remuneração para esses procedimentos de

cumprimento de sentença posteriores.

Além disso, o art. 20, parágrafo 4º do CPC refere expressamente como serão fixados

honorários advocatícios nas execuções, verbis:

“...

4º Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que

não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas ou

não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas as normas

das alíneas a, b e c do parágrafo anterior.

...”

Como se verifica o CPC não faz distinção entre tipos de execução e refere ainda

que podem ser EMBARGADAS OU NÃO, de qualquer forma devem ser fixados honorários

advocatícios.

Não se pode deixar de ressaltar que os honorários advocatícios são fixados para remunerar

o trabalho do profissional que atua no feito e não está adstrito a ações específicas ou

individualizadas.

Havendo o trabalho profissional, especialmente em função da total falta de preocupação

ou zelo por parte do devedor que não pagou o que devia, demandando despesas ao poder público

para o trabalho dessa nova fase, deve ele sim ser remunerado e da forma como preceitua o art. 20

e parágrafos do CPC, não havendo qualquer justificativa para entendimento diverso.

Quem pagará os gastos do poder público municipal com a hora do profissional

procurador que poderia estar trabalhando em outra ação se ocorresse o pagamento

devido, o material utilizado nas petições, o trabalho do contador que realizou as

memórias de cálculo juntadas?

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242 Revista da PGM

E todos esses procedimentos foram necessários ante a inércia do devedor. JUSTA, ASSIM,

A FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

E a doutrina está a dispor ao encontro do aqui enfrentado, inclusive com artigos de

desembargadores de nosso Estado. A Desa. Elaine Harzheim Macedo entende cabível a fixação de

honorários advocatícios nessa nova fase processual, o que já foi tema abordado pela mesma em

cursos, palestras etc.

O réu não está impedindo de pagar e evitar o procedimento expropriatório, o que agora

não é diferente. Mais. Hoje existe uma previsão de cumprimento, ou seja, o devedor deve pagar

sob pena de incidência da multa. SE NÃO PAGA SUBMETE-SE À EXECUÇÃO. É NOVA ATIVIDADE,

NOVO PROCEDIMENTO A SE INSTAURAR: DE EXECUÇÃO.

O próprio art. 133 da Constituição Federal refere ser o advogado indispensável à

administração da justiça e na fase de execução para cumprimento da sentença não é diferente,

exercendo seu trabalho para alcançar o pagamento devido, e por tal deve ser justamente

remunerado, sob pena de se estar penalizando o credor em última análise, eis que este não

recebeu o que lhe era devido e previsto em lei como de cumprimento obrigatório e ainda terá que

arcar com o pagamento do profissional advogado a fim de promover os procedimentos de execução.

Assim, o art. 20 e parágrafos do CPC e o art. 133 do CPC devem ser observados e fixados

honorários advocatícios, já que em fase de penhora e avaliação, ou seja, em execução propriamente

dita, CABENDO AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A FISCALIZAÇÃO DESSA APLICAÇÃO, JÁ QUE

NÃO MATÉRIA DE APLICAÇÃO RECENTE E A TRATAR DE REMUNERAÇÃO DO PROFISSIONAL

ADVOGADO.ltima anlizando o credor em [ualho para alcançar o pagamento devido, e por tal deve

ser justamente remunerado, sob pena de se eISE

Desse modo, evidencia-se a alegada ofensa ao artigo 20, parágrafos, em especial o § 4º do

CPC, posto não haver observância à necessária aplicação e fixação de honorários para a nova fase

processual instaurada, prevista nos artigos 475-I e 475-J do CPC, o que autoriza o processamento

do presente recurso especial interposto.

REQUERIMENTO

Diante do exposto, não resta dúvida que o respeitável aresto recorrido desafia Recurso

Especial, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal, na medida em que viola o

disposto na legislação infraconstitucional.

E é pelos argumentos invocados no presente recurso que o Recorrente confia que,

atendidos os pressupostos de admissibilidade, seja ele admitido, com as cautelas de estilo para

ser remetido ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça que, pelas teses invocadas e pelos superiores

suplementos que aditará, haverá de provê-lo, para que seja feita a necessária e costumeira justiça!

Termos em que

Pede Deferimento.

Porto Alegre, 28 de dezembro de 2006.

Cristiane da Costa Nery

Procuradora do Município

OAB/RS40.463

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Nº 24 - Dezembro 2010 243

Transporte escolar – Competência e

discricionariedade do gestor municipal

Cristiane da Costa Nery

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244 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 245

I. O RELATÓRIO

TRANSPORTE ESCOLAR – COMPETÊNCIA E DISCRICIONARIEDADE

DO GESTOR MUNICIPAL

Trata-se de Ação Declaratória com pedido de tutela antecipada ajuizada em 2005 contra o

Município de Porto Alegre e a Empresa Pública de Transporte e Circulação – EPTC, alegando estar

lhe sendo negado o direito de prestar serviço de transporte escolar no Centro Universitário Ritter

dos Reis – UNIRITTER, inobstante existirem autorizados no local e ter o autor alvará para prestação

do serviço em outros locais.

A tutela antecipada foi indeferida, o que foi mantido em sede de Agravo de Instrumento.

Contestado o feito, foi apresentada réplica. Concluída a instrução do feito, após realização

de audiência de instrução e julgamento e apresentação de memoriais escritos (estes elaborados

pela colega Bethania Regina Pederneiras Flach), foi prolatada a sentença de improcedência em

novembro de 2010, após parecer também nesse sentido proferido pelo Ministério Público estadual.

A r. sentença enfrentou a questão da competência municipal para dispor sobre a matéria,

nos termos do art. 30, I da Constituição Federal, também enfrentando a questão da

discricionariedade do gestor público em relação aos serviços e atos administrativos correlatos

que lhe cabem. Além disso, ratificou a necessidade de cumprimento do art. 333 do CPC, no que

se refere ao ônus da prova, cabível ao autor, o qual, no presente feito, não logrou êxito nesse

intento.

Importante citar o trecho da fundamentação da bem lançada decisão, ao encontro das

teses sustentadas pelo Município de Porto Alegre:

“A Lei nº 8.133/98 dispõe que o serviço de transporte escolar deve ocorrer mediante a

obtenção de prévia outorga pública, na forma de autorização.

Outrossim, o artigo 30, inciso I, da CF/88 confere aos Municípios competência para

regular o trânsito no que tange aos assuntos de interesse local.

Dito isto, verifica-se que no caso concreto a parte autora já possui autorização

municipal para explorar no Município de Porto Alegre o serviço de transporte escolar. A questão

insurge-se quanto à autorização de tráfego junto ao Centro Universitário Ritter do Reis –

UNIRITTER.

Do conjunto probatório constata-se que inicialmente o pedido formulado pelo autor

foi rejeitado, tendo em vista a existência de outros transportadores que possuem condições

técnicas e operacionais para realizarem o transporte das pessoas.

Gize-se que o agir do réu está em consonância com o disposto na lei, uma vez que

há limites a ser observado quanto à concessão de autorizações para a exploração do

transporte escolar.

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246 Revista da PGM

Dentre eles está a aglutinação do serviço em bacias e, por consequência, o esgotamento

da capacidade dos permissionários existentes em certas rotas.

Assim, a convocação para o preenchimento das vagas em cada bacia operacional

deverá respeitar a lista formada pelas requisições devidamente protocoladas pelos interessados

quando da publicação do Edital.

O autor não se desincumbiu de seu ônus probatório, forte o artigo 333, inciso I, do

CPC, de demonstrar que a rota que pretende abranger em sua autorização de tráfego está

carente de prestadores de serviços. “

Em anexo segue a contestação apresentada pelo Município e a sentença. A ação tramita

na 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, sob a responsabilidade da Procuradora signatária,

lotada na Procuradoria de Serviços Públicos da PGM, sob o nº 1.05.2397751-8.

PSP/PGM, novembro de 2010.

Cristiane da Costa Nery

Procuradora do Município de Porto Alegre

OAB/RS 40.463

II. A PEÇA DO MUNICÍPIO

EXMO(A). SR(A). DR(A). JUIZ(A) DE DIREITO DA 7ª VARA DA FAZENDA

PÚBLICA DA COMARCA DE PORTO ALEGRE - RS.

Processo nº 1.05.2397751-8

Autor: LUIZ ANTÔNIO ALVES DA ROCHA

Réus: MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE e EMPRESA PÚBLICA DE TRANSPORTE E

CIRCULAÇÃO

Objeto: CONTESTAÇÃO

O MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, pessoa jurídica de direito público

interno, com endereço na rua Siqueira Campos, nº 1300, 12º andar -

Procuradoria-Geral do Município, nos autos da ação DECLARATÓRIA que

lhe move LUIZ ANTÔNIO ALVES DA ROCHA, vem, respeitosamente, à

presença de Vossa Excelência, por sua procuradora firmatária, apresentar

CONTESTAÇÃO, aduzindo em sua defesa o quanto segue.

DA AÇÃO PROPOSTA

O autor ajuizou a presente ação declaratória com pedido liminar contra o Município de

Porto Alegre e a EPTC, alegando estar sendo cerceado em seu direito de operar o transporte

escolar junto à UNIRITTER.

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Nº 24 - Dezembro 2010 247

Postula a autorização para prestar o serviço liminarmente, a expedição de alvará provisório,

a sua classificação definitiva como transporte escolar com a emissão do competente alvará

exclusivamente para o campus UNIRITTER Porto Alegre.

São esses os fatos sucintamente reproduzidos, não procedendo, entretanto, a pretensão

como se demonstrará.

DA ATUAÇÃO DA EPTC/SMT E DA LEGITIMIDADE DO

MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

Cumpre esclarecer que com o advento da Lei 9.503, de 23.09.97, Código de Trânsito

Brasileiro - CTB , que reordenou o Sistema Nacional de Trânsito, o Município de Porto Alegre

efetivamente assumiu a gestão do sistema no que diz respeito à fiscalização, autuação e aplicação

das medidas administrativas cabíveis por infrações à circulação, estacionamento e

parada, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito (art. 24 do CTB).

A fim de dar cumprimento ao disposto no Código de Trânsito Brasileiro foi aprovada a Lei

Municipal 8.133/98, que autorizou a criação da Empresa Pública de Transporte e Circulação

- EPTC, órgão executivo de trânsito de Porto Alegre.

A Lei nº. 8.133, de 12 de janeiro de 1998, que dispôs sobre o “Sistema de Transporte e

Circulação no Município de Porto Alegre, adequando a legislação municipal à federal, em

especial, ao Código de Trânsito Brasileiro”, ora anexa, dividiu o exercício das competências

municipais relativas ao transporte e trânsito entre a Secretaria Municipal dos Transportes

e a Empresa Pública de Transporte e Circulação -EPTC.

À Secretaria Municipal dos Transportes, órgão integrante da estrutura administrativa

centralizada do Município, coube o planejamento, a regulamentação e a concessão do Sistema

Municipal de Transporte Público e de Circulação do Município de Porto Alegre ( art. 7º, II, Lei nº.

8.133/98 ), cabendo à Empresa Pública de Transporte e Circulação - EPTC, ser o órgão executivo

de trânsito do Município, responsável pela operação, controle e fiscalização do Sistema de

Transporte Público e de Circulação.

A EPTC é empresa pública municipal, organizada sob a forma de sociedade anônima,

cuja criação foi autorizada pela Lei Municipal nº 8.133 de 12.01.98, sendo dotada de personalidade

jurídica e autonomia administrativa e financeira.

Tendo, por determinação legal, personalidade jurídica própria e autonomia administrativa,

à EPTC compete a defesa judicial dos atos decorrentes da sua atividade no mundo jurídico, como

exercício de um direito.

A atuação da EPTC, então, nada mais é do que a atuação do Município através de um ente

por ele criado para realização de uma atribuição municipal. Sua atividade está inserida no contexto

da descentralização administrativa.

À EPTC cabe, dentre outras atribuições, a fiscalização permanente da prestação dos serviços

de transporte de passageiros e a intervenção na prestação dos serviços, nos casos previstos em lei.

A fim de instruir a presente ação de forma meritória, o Município traz as informações

sobre o caso obtidas junto à Empresa Pública.

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248 Revista da PGM

DO PEDIDO DE INCLUSÃO DO PREFIXO Nº 594 - UNIRITTER

O presente caso trata de transporte de passageiros, sendo aplicável em grande parte a

legislação municipal de Porto Alegre e não a legislação de trânsito, ou seja, o Código de Trânsito

Brasileiro. Vejamos.

Tratando-se de transporte de universitários, caracterizado, portanto, como transporte

escolar, a legislação a ser observada é a Lei Municipal 8.133/98 e o Decreto Municipal 13.700/02

e alterações posteriores.

Conforme rezam os artigos 19 e 21 da Lei Municipal nº 8.133/98 são preestabelecidos

que Escolar é o transporte de estudantes e professores executado mediante contrato entre as

partes com período de duração regular, efetuado por ônibus, microônibus, furgão ou veículos

assemelhados, obedecidas as normas estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro e pelo Poder

Público Municipal. Este autorizará o serviço de transporte de passageiros escolar nos termos do

regulamento próprio, o qual definirá a forma de composição do preço a ser pago pelo usuário.

O regulamento de que trata a referida lei é, hoje, consolidado pelas disposições contidas

no Decreto Municipal n.º 13.700, de 22 de abril de 2002, alterado pelo Decreto Municipal nº

14.588/04, estabelecendo o regulamento de operação e controle do Transporte Escolar.

O artigo 4.º do referido Decreto define as condições do sistema de transporte escolar para

concessão de novas autorizações. A saber:

“Art. 4º As autorizações para a exploração do serviço de

transporte escolar que envolvam escolas localizadas no Município de

Porto Alegre serão fornecidas pela Secretaria Municipal dos

Transportes, a título precário, a pessoas físicas para 01 (um) veículo

e jurídicas para no máximo 05 (cinco) veículos, pelo prazo de 72

(setenta e dois) meses.

§ 1º A autorização do serviço será formalizada mediante

termo, o qual especificará o número do prefixo do veículo autorizado,

que poderá operar em até 06 (seis) escolas.

§ 2º Aquele que estiver autorizado a operar em menos de

06 (seis) escolas poderá solicitar a ampliação de sua autorização,

para acrescentar outra(s) escola(s), desde de que respeitado o limite

máximo de 06 (seis) escolas e mediante as condições definidas no

parágrafo terceiro.

§ 3º Será autorizada a inclusão de novas escolas no alvará

de tráfego, para os autorizatários que operam em menos de 06 escolas,

desde que os demais transportadores autorizados para realizar o

transporte na referida escola possuam ocupação superior a 70%.

§ 4º O serviço de transporte escolar será organizado por

bacias operacionais compostas por bairros da cidade, a serem

estabelecidas através de Resolução da Secretaria Municipal dos

Transportes.

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Nº 24 - Dezembro 2010 249

§ 5º O Alvará de Tráfego terá validade de um ano e nele

constará as escolas autorizadas para operar, de acordo com a relação

de alunos cadastrados na SMT/EPTC.

§ 6º No momento da renovação anual do alvará de tráfego

será exigida a comprovação do recolhimento da contribuição sindical

obrigatória.

§ 7º Somente serão concedidas novas autorizações quando o

sistema de transporte escolar tiver ocupação maior que 75% em todas

as bacias operacionais.

§ 8º Nos casos de encerramentos das atividades do

estabelecimento de ensino ou no caso de cessação do transporte,

possuindo o autorizatário apenas uma escola no alvará, terá o prazo

de um ano para permanecer nesta situação, devendo neste período

manter as vistorias em dia.”

Já, a Resolução n.º 04/02, do Secretário Municipal dos Transportes, dispôs sobre as

Bacias Operacionais e inclusão de escola no Transporte Escolar de Porto Alegre, dando outras

providências.

Cumpre esclarecer que por Bacia Operacional do Transporte Escolar deve se ter como a

delimitação de um espaço urbano que tem como referência a localização dos estabelecimentos

de ensino da Cidade de Porto Alegre. Diferentemente de como era operado o transporte escolar

antigamente, o qual era prestado desordenadamente por qualquer transportador em quaisquer

escolas que desejasse atuar, a Administração buscou delimitar os espaços de atuação dos

transportadores para equalizar os critérios de demanda x oferta do serviço prestado.

Anteriormente, o sistema de transporte escolar possibilitava que qualquer transportador

realizasse o transporte em qualquer escola, concentrando-se, naturalmente, a oferta onde o serviço

fosse mais rentável. Afora isso, as distâncias entre os locais de embarque e desembarque eram

altas e faziam que o custo operacional do transporte impactassem na qualidade oferecida. Por

outro lado, esvaziava-se a oferta do transporte em escolas em que fosse baixo o poder aquisitivo.

Ocorre que a Administração, não desejando que o transporte fosse prestado a minorias,

implementou delimitações geográficas, as quais foram definidas pela Resolução N.º 04/2002.

Por certo, a lei determina que os autorizatários do sistema de transporte escolar poderão

operar em uma única Bacia Operacional estabelecida de acordo com as escolas cadastradas no

seu alvará de tráfego.

A Resolução n.º 03/2006 da Secretaria Municipal dos Transportes, de 14 de março do

corrente ano, por sua vez, dispôs sobre as Bacias Operacionais e inclusão de escola no Transporte

Escolar de Porto Alegre, dando outras providências.

O Artigo 5º da referida Resolução, prevê que as autorizações de prefixos nas instituições

de ensino, serão realizadas através de sorteio público, sendo que as suas regras serão definidas

em edital próprio. Ou seja, para inclusão de escolas nos prefixos escolares, deverá ocorrer sorteio

público prévio, exceto naquelas situações elencadas nos §§ 2º e 3º do artigo 5º da Resolução

nº03/06.

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250 Revista da PGM

A SMT/EPTC já está em fase de estudos dos índices de ocupação das Escolas, com o fito

de elaborar o quanto antes o Edital de Sorteio Público para inclusão de Escolas dos alvarás dos

autorizatários do Sistema de Transporte de Escolares, ainda, para o ano letivo de 2007.

Na UNIRITTER, objeto do presente feito, já existem 07 prefixos realizando o

transporte de Escolares (prefixos nºs 68, 266, 382, 452, 542, 558, 571), sendo que cada

prefixo não possui ocupação superior a 70%.

Assim, importante esclarecer que se o índice de ocupação desta Escola for superior a 70%,

a mesma não participará do Sorteio, permanecendo com os 07 prefixos no transporte de escolares.

Especificamente, no tocante ao autor, vinculado ao transporte escolar, por meio do prefixo

594, verificamos que o mesmo possui em seu Alvará 3 (três) Escolas: Escola Particular de 1º

Grau São Vicente Mártir, Colégio Particular Saint Exupery e Escola Estadual de 1º Grau

Alceu Wamosy, com percentual de ocupação global de 76,67%.

Ao contrário do sinalado pelo autor, não consta nos cadastros da SMT/EPTC,

qualquer pedido de inclusão de escola, o que deve comprovar ante os termos do artigo

333, inciso I do CPC.

A análise de inclusões de escolas, sem a necessidade de sorteio público, é restrita somente

àquelas situações anteriormente apontadas (artigo 5º e §§ 2º e 3º da Resolução nº03/06). Em

não sendo preenchidos tais requisitos, não há inclusão a ser deferida.

De qualquer forma, como antes referido, a UNIRITTER já possui 07 autorizatários escolares,

sem ocupação superior a 70% do previsto na legislação, o que não guindaria ao autor a sua

inclusão junto a essa Escola.

DA NATUREZA JURÍDICA DA AUTORIZAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO

A autorização é ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a

Administração faculta ao particular o uso privativo de bem público, ou o desempenho de atividade

material, ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seria legalmente proibido.

Para Hely Lopes Meirelles, a autorização é o ato administrativo discricionário e precário

pelo qual o Poder Público torna possível ao interessado a realização de certa atividade, serviço,

ou a utilização de determinados bens particulares ou públicos que a lei condiciona à

aquiescência prévia da Administração, tais como o uso especial de bem público, o porte de

arma, o trânsito por determinados locais, etc.

Assim, na autorização, embora o pretendente satisfaça às exigências administrativas, o

Poder Público decide discricionariamente sobre a conveniência ou não do atendimento da pretensão

do interessado, ou da cessão do ato autorizado.

Não há qualquer direito subjetivo à obtenção ou à continuidade da autorização, daí por que

a Administração pode negá-la, como pode cassá-la a qualquer momento sem indenização alguma.

Caberá ao administrador, então, a escolha de melhor solução quando houver necessidade

de decidir, presentes duas ou mais alternativas.

Na escolha influenciará sua decisão por ter ele que respeitar o princípio inserido pela

Emenda Constitucional n.º 19, qual seja, o Princípio da Eficiência.

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Nº 24 - Dezembro 2010 251

Atuando sempre objetivando a solução mais eficiente, o administrador deverá observar

que o mérito administrativo agora é compromissado com a melhor forma de solução, com

verdadeira obrigação de optar pelo meio mais eficiente e perfeito de acabamento.

Dessa forma, essa espécie de ato administrativo, que é discricionário, é resultante

de escolha criteriosa feita pela autoridade administrativa, na busca do que melhor atenda

ao interesse público.

Por certo que a margem de escolha não significa liberdade absoluta, o conteúdo tem de

ser consentido pelas normas do ordenamento, a autoridade deve ser competente e o fim deve ser

o interesse público.

Por se tratar de questão de mérito administrativo a concessão de direito que decorre de

autorização administrativa não pode perpetuar no tempo em decorrência de uma concessão

judicial, seja porque foge à regra do instituto ou porque não compete ao Poder Judiciário.

DA IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DO MÉRITO DO

ATO ADMINISTRATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO

A legalidade do ato administrativo diz respeito à sua conformação com as normas de

ordenamento. A margem livre sobre a qual incide a escolha inerente à discricionariedade

corresponde ao aspecto de mérito do ato administrativo; tal aspecto expressa o juízo de conveniência

e oportunidade da escolha, no atendimento do interesse público, juízo esse efetuado pela autoridade

à qual se conferiu o poder discricionário.

Com efeito, ao Judiciário descabe o exame do mérito dos atos administrativos. Nesse

sentido é a jurisprudência dominante, a saber:

“Administrativo. Mandado de Segurança. Cancelamento de

licitação. Abertura de outra com mudança de objeto, mais adequado

às necessidades da administração. Possibilidade. Questão de mérito

administrativo. Segurança denegada.” Justiça Federal – Estado do

Sergipe, Juiz Fereal Ricardo César Mandarino Barretto (Grifo nosso)

“Remoção – Legalidade – Servidor estável que não tem

garantido a propriedade do cargo que ocupa – Critério de

conveniência e oportunidade da Administração – Desvio de

finalidade não demonstrado – Impossibilidade de o Poder

Judiciário ingressar na análise da discricionaridade

administrativa – Recurso não provido.” Apelação 99.153-5, 7ª Câmara

de Direito Público – Paraguaçu Paulista – 13.03.00 (Grifo nosso)

Ora, sendo o mérito de um ato administrativo imune à apreciação do Poder Judiciário,

impõe-se pela improcedência do pedido, já que o r. Juízo não pode determinar a inclusão do

Prefixo nº 594 na UNIRITTER, sem a realização de Sorteio Público, considerando que este

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252 Revista da PGM

ato é discricionário e se encontra sob análise da conveniência e oportunidade da autoridade

administrativa, observando-se o regramento legal existente.

DA NECESSIDADE DE FISCALIZAÇÃO PELO PODER PÚBLICO- EPTC

Ainda que de competência exclusiva da EPTC, importante que o Município reitere o fato

de que há a necessidade de fiscalização do serviço em questão, com base na legislação municipal

aplicável. Tal competência é da EPTC, a qual a exerce de maneira eficaz.

O autor necessita da autorização em seu prefixo, sob pena de ser autuado por operar em

escola não autorizada, conduta tipificada no artigo 20, inciso X do Decreto Municipal nº 13.700/

02. A inobservância de quaisquer das regras e condições legais impostas à prestação do serviço de

transporte de escolares, acarretará a aplicação das autuações e penalidades previstas no Decreto

Municipal nº13.700/02 e alterações posteriores (em anexo).

Não há a negativa do próprio de que efetua irregularmente a prestação dos serviços, ou

seja, sem a necessária autorização. Mais. Refere que somente efetua a prestação de transporte

escolar junto a UNIRITTER, mas possui em seu alvará 03 escolas, como antes referido, o que

reforça a necessidade de fiscalização por parte do Poder Público, salientando que a UNIRITTER já

possui 07 prefixos que lhe prestam o transporte escolar.

Ex positis, demonstrada a legalidade da prática do ato pela administração, bem como

seus critérios definidores, inexistindo qualquer direito certo ao demandante, como faz parecer, a

improcedência é medida que se impõe.

DO REQUERIMENTO

Diante de todo o exposto, o Município de Porto Alegre requer a IMPROCEDÊNCIA total da

presente ação nos termos acima expostos, condenando-se o autor ao pagamento das custas

processuais e honorários advocatícios.

Requer, outrossim, a produção de todo o gênero de provas em direito admitidas, em

especial depoimento pessoal, documental e testemunhal, caso necessário.

Termos em que,

Pede deferimento.

Porto Alegre, 05 de janeiro de 2007.

Cristiane da Costa Nery

Procuradora do Município,

OAB/RS 40.463

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Nº 24 - Dezembro 2010 253

III. A DECISÃO

COMARCA DE PORTO ALEGRE - 7ª VARA DOS FEITOS DA FAZENDA

PÚBLICA

2º JUIZADO - FORO CENTRAL

Processo nº: 1.05.2397751-8

Ação Ordinária

A: Luiz Antonio Alves da Rocha

R: Município de Porto Alegre e outro

Juíza Prolatora: Marilei Lacerda Menna

Dia: 17 de setembro de 2010.

VISTOS ETC.

Luiz Antonio Alves da Rocha propõe ação declaratória contra o Município de Porto

Alegre e Empresa Pública de Transporte e Circulação - EPTC, alegando, em síntese, que faz

o transporte escolar de alunos e professores do Centro Universitário Ritter dos Reis há mais de 04

anos sem nunca ter conquistado o alvará e autorização pertinentes para realizar o transporte dos

alunos junto a esta Universidade, embora sempre teve o referido alvará. Afirma que possui Termo

de Autorização e Alvará de Tráfego embora esteja vencido desde 30.04.2005 e Identidade de

Condutor Transporte Público de Passageiros Escolares, todos estes concedidos pela Prefeitura

Municipal de Porto Alegre, todavia não está podendo realizar o transporte escolar dos alunos, em

razão da não concessão/autorização para o referido transporte, embora tenha toda a disponibilidade

legal e administrativa já concedida, inclusive com veículo devidamente habilitado e dentro das

normas para a concessão de transporte escolar. Assevera que cumpre todos os requisitos da lei

para obter a autorização pertinente a realizar o transporte dos passageiros junto a Universidade

Ritter dos Reis, mas em razão de burocracias administrativas está sendo cerceado o seu direito de

realizar sua atividade profissional já reconhecida pela demandada. Refere-se a ausência de

concorrência desleal. Postula liminar. Pede a procedência da ação para o fim de declarar que o

autor deverá ser classificado como transporte escolar, tendo alvará e autorização definitiva para o

desenvolvimento de suas atividades junto a UNIRITTER.

Foi indeferido o pedido liminar, sendo mantida a decisão em sede de agravo de

instrumento.

Citados, o Município de Porto Alegre apresentou contestação, arguindo, que com o advento

do Código de Trânsito Brasileiro assumiu a gestão ao sistema no que diz respeito à fiscalização,

autuação e aplicação das medidas administrativas cabíveis por infrações à circulação,

estacionamento e parada, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito, em razão disto a

Lei Municipal 8.133/98 autorizou a criação da Empresa Pública de Transporte e Circulação –

EPTC, órgão executivo de trânsito de Porto Alegre, que é responsável pela fiscalização permanente

da prestação dos serviços de transporte de passageiros e intervenção na prestação dos serviços.

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254 Revista da PGM

Quanto ao pedido de inclusão do prefixo nº 594 – UNIRITTER, por se tratar de transporte

universitário deve ser observada a Lei Municipal 8.133/98 e o Decreto Municipal 13.700/02. Assevera

pela necessidade de observância da Bacia Operacional que cuida da delimitação de um espaço

urbano que tem como referência a localização dos estabelecimentos de ensinos da cidade de

Porto Alegre. Os autorizatários do sistema de transporte escolar poderão operar em uma única

Bacia Operacional estabelecida de acordo com as escolas cadastradas no seu alvará de tráfego.

Alega que na UNIRIITER já existem 07 prefixos realizando o transporte de Escolares, sendo que

cada prefixo não possui ocupação superior a 70%. Assim, se o índice de ocupação desta Escola for

superior a 70% a mesma não participará do Sorteio, permanecendo com os 07 prefixos no

transporte de escolares. Outrossim, ao contrário do sinalado pelo autor, não consta nos cadastros

da SM/EPTC qualquer pedido de inclusão de escola. Explana que a autorização é ato administrativo

unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração faculta ao particular o uso privativo

de bem público ou o desempenho de atividade material ou a prática de ato que, sem esse

consentimento, seria legalmente proibido. Afirma pela impossibilidade de exame do mérito do

ato administrativo pelo Poder Judiciário. Pede a improcedência da ação.

Por sua vez, a ré Empresa Pública de Transporte e Circulação S/A – EPTC aduzindo que por

se tratar de transporte universitário deve ser observada a Lei Municipal 8.133/98 e o Decreto Municipal

13.700/02. Alega que o artigo 30, inciso I, da CF/88 concede ao Município competência para legislar

sobre assuntos de interesse local. Conforme rezam os artigos 19 e 21 da Lei Municipal nº 8.133/98

são preestabelecidos que Escolar é o transporte de estudantes e professores executado mediante

contrato entre as partes com período de duração regular, efetuado por ônibus, microônibus, furgão

ou veículos assemelhados, obedecidas as normas estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro e

pelo Poder Público Municipal, bem como que este autorizará o serviço de transporte de passageiros

escolar nos termos do regulamento próprio o qual definirá a forma de composição do preço a ser

pago pelo usuário. Alega que a SMT/EPTC já está em face de estudos os índices de ocupação das

Escolas, com o fito de elaborar o quanto antes o Edital de Sorteio Público para inclusão de Escolas

dos alvarás dos autorizatários do Sistema de Transporte de Escolares. A UNIRIITER já possui 07

prefixos realizando o transporte de Escolares, sendo que cada prefixo não possui ocupação superior

a 70%. E que inexiste pedido de inclusão de escola do autor nos cadastros da SMT/EPTC. Explana

pela impossibilidade de exame do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Pede a improcedência.

Houve réplica.

Intimadas as partes para dizerem quais as provas que pretendiam produzir, o autor e a ré

EPTC requereram a produção de prova oral. Não houve manifestação do Município.

Sobrevieram audiências de instrução e julgamento na qual foram ouvidas testemunhas e

foi acostado documentos.

Indeferiu-se o pedido de realização de perícia.

Foi declarada encerrada a instrução. Oportunizou-se as partes a apresentação de

memoriais.

O Ministério Público opina pela improcedência da ação.

Os autos vieram conclusos.

É o relatório.

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Nº 24 - Dezembro 2010 255

Passo a fundamentar e a decidir.

Inexistindo preliminares a serem analisadas, passo ao exame do mérito, o qual busca a

parte autora autorização da sua inclusão na escola UNIRITTER em seu alvará de tráfego.

A Lei nº 8.133/98 dispõe que o serviço de transporte escolar deve ocorrer mediante a

obtenção de prévia outorga pública, na forma de autorização.

Outrossim, o artigo 30, inciso I, da CF/88 confere aos Municípios competência para regular

o trânsito no que tange aos assuntos de interesse local.

Dito isto, verifica-se que no caso concreto a parte autora já possui autorização municipal

para explorar no Município de Porto Alegre o serviço de transporte escolar. A questão insurge-se

quanto à autorização de tráfego junto ao Centro Universitário Ritter do Reis – UNIRITTER.

Do conjunto probatório constata-se que inicialmente o pedido formulado pelo autor foi

rejeitado, tendo em vista a existência de outros transportadores que possuem condições técnicas

e operacionais para realizarem o transporte das pessoas.

Gize-se que o agir do réu está em consonância com o disposto na lei, uma vez que há

limites a ser observado quanto à concessão de autorizações para a exploração do transporte

escolar.

Dentre eles está a aglutinação do serviço em bacias e, por consequência, o esgotamento

da capacidade dos permissionários existentes em certas rotas.

Assim, a convocação para o preenchimento das vagas em cada bacia operacional deverá

respeitar a lista formada pelas requisições devidamente protocoladas pelos interessados quando

da publicação do Edital.

O autor não se desincumbiu de seu ônus probatório, forte o artigo 333, inciso I, do CPC,

de demonstrar que a rota que pretende abranger em sua autorização de tráfego está carente de

prestadores de serviços.

Com efeito, verifica-se, ainda, que não se constata nos cadastros da SM/EPTC qualquer

pedido de inclusão de escola por parte do autor. Ainda, o autor informou em audiência que não

obteve a concordância dos demais concorrentes que realizam o transporte escolar na UNIRITTER.

Logo, impõe-se a improcedência do pedido nos termos em que foi formulado.

Nesse sentido destaco o seguinte julgado da Corte Estadual:

“APELAÇÃO CÍVEL. ação de obrigação de fazer. serviço de

transporte escolar. autorização. descumprimento das condições para

o recebimento de novos alvarás. improcedência da demanda.

Conforme o regramento para a concessão de autorizações dos

serviços de transporte escolar, os novos alvarás somente serão

concedidos, caso haja anuência de todos os autorizatários cadastrados

na instituição de ensino, atendido o índice de ocupação global dos

veículos.

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256 Revista da PGM

Exigências que não se mostram desarrazoadas ou

desproporcionais para a execução do serviço concedido.

Não cumprindo o requerente tais condições, não há

fundamento para a demanda que visa compelir a Administração à

concessão de alvará. Improcedência do pedido. Apelação

desprovida”.(Apelação Cível. Nº 70030267579. Segunda Câmara Cível -

Regime de Exceção. Relator: DES. MARCO AURÉLIO HEINZ. Julgado em

06.05.2010).

Gize-se que os depoimentos das testemunhas ouvidas não têm o condão de modificar o

entendimento do Juízo.

Por derradeiro, registro que só cabe ao Judiciário anular atos administrativos ilegais, não

sendo esta a situação dos autos, uma vez que a Administração, ao negar o pedido administrativo

formulado pela parte autora a fim de obter a inclusão de nova escola em seu alvará de tráfego de

trânsito, agiu dentro dos parâmetros legais.

Diante de tais lineamentos, interpretar de forma diversa atentaria contra os princípios e

as normas que norteiam o nosso ordenamento jurídico.

Isto posto, julgo improcedente o pedido formulado na presente ação ordinária proposta

por Luiz Antônio Alves da Rocha contra o Município de Porto Alegre e a Empresa Pública

de Transporte e Circulação - EPTC.

Condeno o autor ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios que fixo

em R$ 600,00, para cada um dos patronos dos réus, corrigido a partir da presente data pelo IGP-

M. Todavia, suspendo a condenação haja vista ser o autor beneficiário da assistência judiciária

gratuita, ora deferido, nos termos da Lei 1.060/50.

Fica suspensa a condenação no tocante ao pagamento de custas a Cartórios Judiciais

Privatizados, nos termos da decisão proferida em liminar pelo Supremo Tribunal Federal, na

Medida Cautelar em Reclamação nº 7362.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se.

Por fim, em homenagem aos princípios da instrumentalidade, celeridade e economia

processual, eventuais apelações interpostas pelas partes restarão recebidas em seu efeito

suspensivo (art. 520, caput, do CPC), salvo a ocorrência de quaisquer dos casos dos incs. I a VII

do mesmo artigo, quando o recebimento será apenas no efeito devolutivo.

Interposto(s) o(s) recurso(s), caberá à Sra. Escrivã, mediante ato ordinatório, abrir vista

à parte contrária para contra-razões, e, na sequência, ao MP(nas hipóteses em que houve

intervenção). Por fim, remeter os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça.

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Nº 24 - Dezembro 2010 257

Idêntico procedimento deverá ser adotado na hipótese de recurso adesivo.

Ressalvam-se, entretanto, as hipóteses de intempestividade, ausência de preparo (a menos

que o recorrente litigue com gratuidade judiciária ou assistência judiciária gratuita ou postule o

benefício no momento da interposição da irresignação) e oposição de embargos de declaração,

quando os autos deverão vir conclusos.

Transcorrido o prazo recursal sem aproveitamento, certifique-se o trânsito em julgado e

intimem-se as partes para que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, digam sobre o

prosseguimento.

Cumpra-se.

Porto Alegre, 17 de setembro de 2010.

Marilei Lacerda Menna

Juíza de Direito

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258 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 259

V Congresso de Procuradores

das Capitais Brasileiras

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260 Revista da PGM

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Nº 24 - Dezembro 2010 261

Área I: Urbanismo (Estatuto da Cidade, medidas de controle urbano,

patrimônio urbanístico, desapropriações) e Meio Ambiente (patrimônio

ambiental construído e natural).

Enunciado 159 (AI I): Mudança climática - Os acordos internacionais de que o país seja

parte são firmados em nome da Federação Brasileira, vinculando a todos os entes que a integram.

Sendo assim, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima obriga também

aos Municípios. Por isso, e por força do direito difuso a um ambiente ecologicamente equilibrado

(art.225, caput, da Constituição da República), é dever dos entes locais adotar, no âmbito de sua

competência, políticas e legislação próprias que contemplem medidas de mitigação e de adaptação

aos efeitos do aquecimento global, bem como aquelas necessárias a contribuir com a prevenção

do problema.

Enunciado 160 (AI I): Poluição visual, defesa do patrimônio cultural, APAC - A proteção

do patrimônio cultural não pressupõe que o bem ou conjunto a ser tutelado seja portador de

referência histórica, artística ou arquitetônica. Por isso, é legítima a proteção de valores imateriais

contemporâneos para que sirvam de objeto de memória da presente para as futuras gerações.

Nesse mister, os atos de proteção de conjuntos urbanos de valor cultural não se confundem com

o instituto do tombamento, embora seja possível tombar os elementos daquele conjunto que,

individualmente, possuam valor histórico, artístico ou arquitetônico.

Enunciado 161 (AI I): ARES - É constitucionalmente possível, em tese, a adoção do

conceito das ARES (Áreas de Revitalização Econômica), tal como defendido pelo Ministério das

Cidades. A associação da iniciativa privada ao desempenho de serviços públicos, contudo, deve

ocorrer com observância da premissa de que não se pode delegar a particulares o exercício de

atividades próprias de estado.

Enunciado 162 (AI I): Conselhos urbanísticos/participação popular/Plano Diretor - No

âmbito dos governos municipais, a falta de audiência pública ou de oitiva de conselho urbano-

ambiental só acarreta irregularidade para o processo administrativo correspondente quando houver

ato normativo local que expressamente determine que uma e/ou outra tenha lugar. Nos casos em

que seja normativamente prevista a realização de audiência pública não a pode substituir a consulta

do conselho competente; e nem a manifestação deste, quando prevista em regra jurídica própria,

supre o pronunciamento daquela.

Enunciado 163 (AI I): Ação possessória x poder de polícia - É incabível discutir a validade

de atos de polícia urbano-ambiental do Município sob a luz dos direitos reais que o infrator

eventualmente detenha, especialmente posse.

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262 Revista da PGM

Área II: Pessoal (estatutários e celetistas, Previdência)

Enunciado 164 (AI II): Pagamento a maior. Critérios para devolução. I – Na

hipótese de devolução de pagamento indevido a servidor público, a boa-fé não é o único

critério a ser considerado. II – Na hipótese do pagamento ter decorrido de erro da

administração (erro de fato) ou decisão judicial a devolução do valor se impõe, observado

o prazo prescricional. III – A devolução deverá ser precedida de processo administrativo,

assegurados o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF), salvo nos casos de decisão

judicial.

Enunciado 165 (AI II): O Prefeito Municipal não possui legitimidade para figurar no

polo passivo de Mandado de Injunção visando a supressão da omissão legislativa quanto à edição

da lei complementar prevista no art. 40, § 4º da Constituição Federal.

Enunciado 166 (AI II): Não estão ao alcance da vedação introduzida pela Emenda

Constitucional nº 19/98, no texto do art. 37, XIV da Constituição Federal, as parcelas que, embora

recebam a denominação de gratificações, objetivam a remuneração do regime complementar de

trabalho, dada a sua natureza vencimental.

Área III: Licitações e Contratos Administrativos

Enunciado 167 (AI III): Pregão Eletrônico - Nas contratações de bens e serviços

comuns, recomenda-se a utilização do pregão em sua forma eletrônica preferencialmente

à presencial, ressalvados os casos de sua comprovada inviabilidade, a ser justificada

pela autoridade competente.

Enunciado 168 (AI III): Pregão para Serviços de Engenharia - É possível a utilização

do pregão, inclusive para fins de registro de preços, para contratação de serviços comuns de

engenharia.

Enunciado 169 (AI III): Carona - No âmbito municipal, é possível a adesão à ata de

registro de preços (“carona”) entre órgãos e entidades do próprio Município (Administração Direta

e Indireta), desde que tal instituto seja regulamentado em legislação local.

Enunciado 170 (AI III): Aditivo de Ata - Aplicam-se aos quantitativos registrados em ata

os limites de acréscimos dispostos no art. 65, §1º da Lei n. 8.666/93.

Enunciado 171 (AI III): Prorrogação de Contratação Direta - A prorrogação dos contratos

decorrentes de dispensa e inexigibilidade de licitação pressupõe a comprovação da continuidade

dos requisitos que ensejaram a contratação direta, aplicando-se, por analogia, o disposto no art.

55, XIII, da Lei n. 8.666/93.

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Nº 24 - Dezembro 2010 263

Área IV: Tributos Municipais, Repasses Constitucionais e Orçamento

(incluindo gestão de dívida ativa)

Enunciado 172 (AI IV): Base de Cálculo do ITBI – Valor Venal ou Valor da

Arrematação Judicial - A base de cálculo do ITBI é o valor venal do imóvel, entendido como

o valor da venda potencial do bem em condições normais de mercado. O preço obtido em

arrematação judicial decorrente de hasta pública raramente reflete o seu valor venal. Ressalva-

se a possibilidade de lei municipal determinar como base de cálculo o valor da arrematação

em hasta pública, à luz dos seus poderes de reduzir a base de cálculo e do princípio da

praticidade da fiscalização.

Enunciado 173 (AI IV): Substituição de Executado na Execução fiscal. Hipóteses de

Sucessão - Não se aplica a Súmula n. 392 do STJ às hipóteses de sucessão tributária previstas no

CTN, inclusive às verificadas após o lançamento ou ao ajuizamento da execução fiscal. Nos casos

de cobrança de IPTU ou taxas fundiárias em que houver posterior sucessão tributária, por força

de alienação do bem, só será imposta à Fazenda Pública a obrigação de executar o novo proprietário

se este cumpriu a obrigação acessória ou dever instrumental do IPTU de comunicar o novo registro

de propriedade, antes do ajuizamento da execução fiscal, não sendo suficiente o simples pagamento

ou comunicação da transmissão relativos ao ITBI. Entretanto, nada impede que a Fazenda Pública

busque, por meio próprio, eventual novo proprietário, sucessor, para fins de execução.

Enunciado 174 (AI IV): LEASING: definição do local da ocorrência do fato gerador

e base de cálculo - Nas prestações de serviços de leasing, o local de ocorrência do fato gerador

é o estabelecimento prestador, entendido à luz dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n.

116/2003, abrangendo, por exemplo, as situações em que o atendimento é realizado na

concessionária, com apresentação das condições do financiamento e comercialização. A base

de cálculo deve ser o valor global do contrato, uma vez que o mesmo é típico, conglobando

de maneira incindível suas distintas obrigações e remunerações. Exclui-se, apenas, o valor

pago a título de VRG (Valor Residual Garantido), desde que comprovadamente destinado à

remuneração da opção de compra.

Indicativos:

Nº 4 (AI IV): Cabimento do Protesto de Dívida Ativa - Na hipótese de adoção do protesto

pelo gestor público como instrumento de cobrança de créditos tributários, é recomendável que o

mesmo se realize apenas se houver previsão em lei do próprio ente tributante e que se limite aos

débitos objeto de prévio parcelamento tributário. Estas medidas cumprem o princípio da legalidade

e reduzem o risco de constrição equivocada de devedores. É recomendável que os termos de

parcelamento de dívida contemplem cláusula de aceitação de eventual protesto pelo devedor,

caso inadimplente, configurando-se, com o pacto, novação objetiva em relação às garantias do

crédito tributário.

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264 Revista da PGM

Nº 5 (AI IV): É recomendável a busca de comprovação da morosidade do aparelho

judiciário para distribuir ou processar as execuções fiscais, inclusive em relação à citação,

podendo ser oficiado ao órgão competente do Poder Judiciário para obtenção de informação

nesse sentido, o que se mostra útil ao afastamento de eventuais alegações de prescrição nas

respectivas ações.

Área V : Competências, Serviços e Obrigações Constitucionais do

Município (aspectos de responsabilidade civil do estado, deveres

impostos pela CF aos entes locais, etc.)

Enunciado 175 (AI V): Cabe ao Procurador do Município colaborar para a revisão

periódica das listas de medicamentos, bem como dos protocolos e diretrizes terapêuticas, através

da identificação das demandas mais frequentes e informação aos órgãos competentes, evitando a

judicialização ou minorando o volume de ações de saúde.

Enunciado 176 (AI V): Cabe ao Procurador do Município, com o objetivo de evitar a

judicialização das políticas públicas e consequentes distorções no orçamento, atuar no controle

interno de sua execução, colaborando para a sua adequada gestão, através do fornecimento de

elementos de que dispõe por força de sua atuação jurídica.

Enunciado 177 (AI V): O Município, com fundamento na sua autonomia municipal,

tem competência para permitir o uso de instrumentos que assegurem o exercício da função da

Guarda Municipal, dentre os quais o uso de arma de fogo e cães adestrados.

Enunciado 178 (AI V): Os Procuradores Municipais não têm poder de conciliar, transigir

ou desistir nos processos de competência do Juizado Especial (Lei 12.153/2009) sem lei municipal

que os autorize e especifique as hipóteses cabíveis.

Enunciado 179 (AI V): Nas unidades de saúde no plano da administração municipal,

recomenda-se a observância das listas padronizadas de fármacos, protocolos e diretrizes

terapêuticas estabelecidas pelo SUS ou a apresentação de laudo técnico que justifique conduta

diversa.

Área VI: Carreira e Atuação dos Procuradores Municipais (análise das leis

aplicáveis e das estruturas de cada procuradoria, troca de experiências práticas sobre

os sistemas aplicados em cada capital para gestão de seus interesses jurídicos, direitos

dos procuradores, aspectos éticos da atuação dos procuradores).

Enunciado 180 (AI VI): Com o objetivo de fortalecimento da autonomia municipal no

pacto federativo, a representação dos Municípios deve ser feita exclusivamente por Procurador

Municipal. A supressão do inciso II e inserção dos Municípios no inciso I do artigo 60 do projeto

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Nº 24 - Dezembro 2010 265

do novo Código de Processo Civil (PLS n. 166/2010) se justifica pela necessidade de tratamento

uniforme entre os entes federativos.

Enunciado 181 (AI VI): Impõe-se a supressão do parágrafo único do artigo 94 do Projeto

do Novo Código de Processo Civil (PLS n. 166/2010), que trata da possibilidade de contratação de

advogados por órgãos públicos que não disponham destes profissionais em seus quadros, por

contrariar a ordem constitucional.

Enunciado 182 (AI VI): A representação dos Municípios perante os Juizados Especiais

da Fazenda Pública, nos termos da Lei Federal n. 12.153/2009, é privativa do Procurador Municipal

efetivo.

Enunciado 183 (AI VI): O Enunciado n. 25 passa a vigorar com a seguinte redação: “Os

honorários advocatícios pertencem aos Procuradores Municipais, a quem cabe dispor sobre a sua

destinação.”

Enunciado 184 (AI VI): O Procurador Municipal, ao proferir parecer, somente será

responsabilizado em caso de má-fé não sendo competente o Tribunal de Contas para a aferição de

tal responsabilidade.

Moção:

Foi aprovada moção de apoio do VII Congresso de Procuradores Municipais à proposta

do Senador Mozarildo Cavalcante sobre a percepção de honorários advocatícios pelos advogados

públicos no projeto do novo Código de Processo Civil – PLS n. 166/2010.

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266 Revista da PGM

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