Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.
RESSIGNIFICANDO MEDEIAS: O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA HEROÍNA
Renata Blessmann Ferreira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
http://lattes.cnpq.br/5685159352332861
RESUMO: Este artigo objetiva traçar uma relação entre Medeia, de Sêneca, e Gota
d’água, de Paulo Pontes e Chico Buarque de Hollanda, entendidas como obras cujas
protagonistas atendem às necessidades político-sociais de determinado contexto
histórico. Assim, busca delinear que ambas as obras são exemplo do contínuo
processo de ressemantização, ao inovarem temática e esteticamente em relação ao
cânone euripidiano.
PALAVRAS-CHAVE: Medeia; Gota d’água; Sêneca; Eurípedes; Paulo Pontes; Chico
Buarque de Hollanda; tragédia; releitura; mito.
ABSTRACT: This article aims to draw a relation between Seneca‟s Medea and Paulo
Pontes‟ and Chico Buarque de Hollanda‟s Gota d’água, understood as works whose
protagonists meet the political and social needs of a particular historical context.
Thus, this paper seeks to outline that both works are examples of the continuous
resemantization process, as they innovate thematic and aesthetically the Euripidean
canon.
KEYWORDS: Medea; Gota d’Água, Seneca; Euripedes; Paulo Pontes; Chico
Buarque de Hollanda; tragedy; reinterpretation; myth.
Considerações iniciais
Personagem da Literatura ocidental, Medeia protagoniza diferentes obras de
épocas e de lugares diversos e compõe um campo extenso de releituras feitas a
partir de sua personalidade e de seu comportamento feminino. Cada representação
decompõe e recompõe o texto euripidiano, cuja fonte é o mito dos Argonautas e a
busca pelo Velocino de Ouro, de modo que passe a refletir a cultura da sociedade
em que foi reescrita, a partir da reconstrução de sentidos e da exploração de outras
estéticas. Duas dessas releituras alcançaram grande notoriedade em suas épocas,
visto que, pelo resgate consciente do discurso euripidiano, tornaram-se
representativas de uma conjuntura político-social; assim, tanto Medeia, de Sêneca
(sem data de publicação definida), quanto Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico
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Buarque de Hollanda (datada de 1975), desempenharam funções diferentes ao
assumirem, cada qual, o seu papel no seu contexto social vigente.
Apesar das singularidades das obras, as quais serão delineadas no decorrer
deste artigo, em ambas, os temas da paixão da protagonista e da sua falta de
controle com seus sentimentos promovem, veladamente ou não, críticas a aspectos
políticos dos períodos em que foram escritas. Medeia e Joana são, em suas
respectivas histórias, símbolos dramáticos de uma ameaça aos seus Estados
(despóticos ou democráticos). Enquanto na obra de Sêneca percebe-se uma mulher
caracterizada por sua alteridade e por seu impulso por vingança, em Gota d’água,
nota-se uma mulher frágil que, por representar, metaforicamente, uma classe
social, acaba por ser assolada pela força do regime político-econômico de sua
época, a saber, o regime ditatorial brasileiro.
As duas obras, portanto, propõem uma renovação no que concerne à
estética e à ordem prática dos textos, ao responderem a uma demanda social.
Tanto o cunho amoroso quanto o político-social, reajustados às realidades de suas
épocas, revelam a atemporalidade e a universalidade do mito dramatizado por
Eurípedes a partir das constantes e múltiplas ressemantizações.
1 De Eurípedes a Sêneca: o reflexo do mito grego na Literatura Latina
Medeia, de Sêneca, tragédia inspirada no mito anteriormente abordado por
Eurípedes em 431 a.C., refletiu a maneira como era produzida a literatura latina em
sua época: pela mímese. De acordo com Cardoso (2005), a obra, escrita em uma
época intermediária de produção do autor latino, foi produto da aproximação entre
romanos e helênicos, já que tal contato entre os povos possibilitou uma maior e
melhor divulgação do que fora produzido em termos literários na Grécia. Para o
autor citado, entretanto, diferentemente daqueles que exerciam o mesmo ofício,
Sêneca procurou reelaborar os temas de modo a subverter, muitas vezes, o mito
grego, distanciando-se de seus principais modelos ao não adotar uma posição
subserviente perante eles. Cardoso (2005) refere também que Sêneca escreveu
gêneros literários que se adequavam às possibilidades de sua época; com uma
escrita muito mais atrelada às questões filosóficas do que às políticas, o autor
apoiou-se no estoicismo para difundir textos de cunho moralista. Ainda segundo
Cardoso (2005), menos interessado na teatralidade do que na difusão de suas
ideiasi, o escritor foi criativo tanto temática quanto sintaticamente, na medida em
que sua escrita refletia uma concepção de imitação contextualizada ao novo local
de circulação. Sobre isso, pode-se considerar que:
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O arcabouço mítico é basicamente o mesmo em sua essência; as diferenças mais sensíveis se encontram nos detalhes do mito, na montagem da intriga, na progressão da ação, no papel desempenhado pelo corpo e, principalmente, na caracterização das personagens. (CARDOSO, 2005, p. 47).
Tais alterações devem-se ao fato de que suas obras foram produzidas em
um contexto em que a tomada de posição, por parte dos autores, poderia provocar
sanções perigosas. Apesar de, como afirma Cardoso (2005), Sêneca ter tido acesso
à corte pelo estreito contato com os imperadores, isso não o impediu de sofrer
repreensões por parte de três dos quatro soberanos que regeram Roma após a
morte de Augusto: foi hostilizado por Calígula (por inveja e vaidade do governador,
que se sentia incomodado com a fama da oratória do escritor), banido por Cláudio
(por supostamente se ter envolvido em intrigas palacianas) e condenado à morte
por Nero (por ser considerado um dos participantes da conspiração contra o
imperador). Vista a situação política mais violenta e cruel desde a instauração de
governos despóticos, a época, visivelmente, não era propícia para a manifestação
de opiniões individuais. Temendo censuras ou retaliações, Sêneca passou a abordar
temas – aparentemente – mais superficiais, sem que tocasse, explicitamente,
questões políticas do país. Foi possível, nesse contexto, produzir um gênero
literário que se sustentava em temas filosóficos e no promulgado pelo estoicismo: a
tragédia. Portanto:
A obra de Sêneca reflete, de alguma forma, todo esse estado de coisas. A própria escolha dos gêneros literários a que se consagrou é explicável. Dedicando-se à filosofia, sobretudo à divulgação de princípios doutrinários estoicos, propôs ao homem de sua época uma reflexão sobre a felicidade humana, a paz de espírito, a curta duração da vida, o descaso pelo supérfluo, o exercício da virtude; escrevendo tragédias e derramando-se num estilo pomposo e elaborado, valeu-se do mito como alegoria, e, ao condenar os heróis e heroínas da fábula que se deixaram vencer pelas paixões, condenou, ao mesmo tempo, de forma velada, os procedimentos comportamentais que caracterizavam os poderosos. (CARDOSO, 2005, p. 31)
A reflexão acerca de como a vida deveria ser conduzida era apresentada
pelos moldes do estoicismo, segundo o qual cabia aos indivíduos obedecer à lei
natural da razão, sem subvertê-la por quaisquer emoções. O ser racional manteria,
portanto, pela harmonia do universo, a indiferença perante tudo aquilo que lhe
fosse externo, da fortuna à tragédia. Essa posição diante do mundo – distante e
impassível, em alguma medida –, ocasionaria, quase de forma maniqueísta, a
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felicidade e a liberdade, pois os homens não seriam afetados pelas inconstâncias de
seus sentimentos. Como expõe Cardoso (2005), as tragédias podem ser lidas como
metáforas ou parábolas, nas quais o drama vivido pelos personagens faz o leitor
conjecturar sobre a grandiosidade das atitudes e das ações para o desfecho das
histórias: “as catástrofes que se desencadeiam quando, no conflito que se
estabelece entre a razão e as paixões, estas se saem vencedoras” (CARDOSO,
2005, p. 8).
Visivelmente, percebe-se em Medeia que os personagens não encaminharam
suas vidas com sabedoria e autocontrole, vistos os infortúnios que os assolaram: as
emoções destrutivas, tais como raiva, inveja e ciúmes – todas personificadas no
papel da protagonista – acabaram por cegar Medeia, na medida em que esta não
conseguia manter uma posição imparcial e racional ante as agruras por que
passava. Ao se envolver de maneira tão estreita com o seu desejo de justiça e de
vingança, a personagem acabou determinando, motivada pelos seus sentimentos, a
sua própria ruína, e, caso não tivesse tomado para si o papel de mulher
abandonada, poderia ter prosseguido a sua vida com os filhos em outro lugar. Cabe
salientar o fato de o infanticídio ter sido uma criação de Eurípedes: no mito, não
havia esse desfecho trágico. Entretanto, servindo a obra do autor como exemplo
para grande parcela das releituras sobre Medeia, passou-se a caracterizá-la como
infanticida, sendo esta a qualidade mais proeminente da protagonista. Tal alteração
do poeta foi decisiva para a forma como a personagem é admitida, na medida em
que não mais se concebe uma Medeia sem que esta assassine brutalmente os filhos
– muito embora tal ato fosse necessário para que ela conseguisse romper com os
laços consanguíneos com Jasão e, assim, pudesse ser perdoada por Hélio, deus Sol.
Tanto a peça de Eurípedes, quanto a de Sêneca e a de Pontes e Buarque
instituem uma mulher que, afligida pelos seus desgostos (amorosos e existenciais),
decide por tomar decisões categóricas – e esta caracterização da mulher seria, de
acordo com Ribeiro (2008, p. 3), “a maneira pela qual o autor imagina ser a
conduta de uma mulher abandonada e traída”. A voz dada à mulher não deixa de
ser, sobretudo, outorgada por um homem; a protagonista não deixa de
exemplificar o que a sociedade patriarcal acreditava ser o papel de uma mulher.
Esse tipo de análise da tragédia clássica pode suscitar a discussão sobre a forma
como a personagem foi construída, visto que, para uma concepção de mundo
masculina, patriarcal, era imprescindível à Medeia a figura de um homem. De certa
forma, a felicidade da protagonista só podia ser completa com a reciprocidade
daquele por quem abandonara sua própria pátria; quando isso passa a não mais
ocorrer, ela se vê diante de um homem que já não corresponde à sua dedicação e
tampouco valorizava a sua entrega como esposa. Movida, então, pelo desejo de
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vingança pela traição por quem depreendera tantos esforços e em quem baseara a
criação de sua própria identidade, decidiu-se por assassinar aqueles que eram os
maiores amores de Jasão: a sua noiva e seus próprios filhos.
2 De Sêneca a Paulo Pontes e Chico Buarque: o mito representado na
contemporaneidade
Entre as releituras contemporâneas escritas a partir do mito de Medeia, a
brasileira mais famosa talvez seja Gota d’água, de 1975, que se autodenomina
tragédia carioca e que foi escrita pelo dramaturgo Paulo Pontes e pelo compositor,
cantor e escritor Chico Buarque de Hollanda. Assim como a protagonista
senequiana, também Joana era representativa de sua época, na medida em que
refletia o descontentamento da classe trabalhadora no que dizia respeito ao
capitalismo e às transformações político-econômicas resultantes do regime
ditatorial do período.
Buscando dar uma maior legitimidade à obra, Pontes e Buarque
aproveitaram-se do mito do casal Jasão e Medeia ao construírem uma narrativa
representativa do contexto nacional a partir da incorporação de traços da cultura
brasileira. Desse modo, ao brincarem com o conceito de tragédia presente no
subtítulo „uma tragédia carioca‟, os autores constroem um ambiente que, em
contraposição à exuberância verbal e à presença de personagens ilustres, transpõe
a vida de um povo humilde, quer pelo seu linguajar menos prolixo, quer pelas suas
ocupações com baixa remuneração. Tais aspectos são importantes para o impacto
pretendido pelos escritores, pois, diferentemente de Sêneca, que intentava difundir
os princípios estoicos, os autores de Gota d’água buscavam, sobretudo, provocar
uma reflexão ideológica acerca da realidade, fruto de um governo ditatorial e
marcadamente caracterizado por interesses capitalistas. Pelas próprias palavras dos
autores, Gota d’água:
É uma reflexão sobre esse movimento que se operou no interior da sociedade, encurralando as classes subalternas. É uma reflexão insuficiente, simplificadora, ainda perplexa, não tão substantiva quanto é necessário, pois o quadro é muito complexo e só agora emerge das sombras do processo social para se constituir no traço dominante do perfil da vida brasileira atual. [...] Procuramos, pelo menos, diante de todas as limitações olhar a tragédia de frente, enfrentar a sua concretude, não escamotear a complexidade da situação com a adjetivação raivosa e vã. [...] Isolado, seccionado, sem ter onde nem como exprimir seus interesses, desaparecido da vida política, o povo brasileiro deixou de ser o centro da cultura brasileira. Ficou reduzido às estatísticas e às manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal. (PONTES; HOLLANDA, 1975, p. 11-12)
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Ao se valerem de personagens comuns, a narrativa dá visibilidade a uma
significativa parcela do povo que, até então, não possuía acesso às artes, tampouco
era tematicamente explorada pelas artes em geral – Gota d’água não se tratava de
uma peça para o povo, mas sobre o povo. A história paralela – e, apesar disso, a
de maior impacto, já que revelava a crítica à falta de políticas públicas de moradia
para as classes de baixa-renda (RIBEIRO, 2008)– era aquela vivida pelos
moradores pobres que enfrentavam dificuldades para pagar o aluguel para Creonte
(proprietário do aglomerado habitacional no qual residiam). Assinalada por uma
visão marxista de responsabilidade social, a narrativa retoma elementos
constitutivos da cultura popular, tais como os hábitos, o vocabulário, as visões de
mundo daquela parcela da população:
JOANA – Se tivesse o que dar, Jasão, você não ia perder a ocasião de me sugar até o bagaço JASÃO – Ai, meu saco, cacete, pô... Presta atenção ao que diz! Não me venha com provocação JOANA – Eu sei muito bem o que você é, e faço questão de dizer e repetir... [...] JASÃO – Não diz isso de mim, mulher... JOANA – Não digo? Digo sim: gigolô! JASÃO – Chega!
JOANA – Gigolô!... (Jasão dá um murro em Joana, que cai.) JASÃO – Você é merda... Você é fim de noite, é cu, é molambo, é coisa largada... Venho aqui, fico te ouvindo, porra, me humilho, pra quê? Já disse que de ti não quero nada Mas todo pai tem direito de ver seu filho... (PONTES; HOLLANDA, 1975, p. 98-100).
Para que essa contextualização passasse a ser representativa da vida
carioca, o ambiente não podia ser construído de forma tão pomposa como o era nas
obras dos antigos; ao invés de palácios, os personagens viviam, agora, em uma
comunidade pobre, subjugada pelo sentimento capitalista de Creonte. Ao
desvincular-se do contexto latino, a heroína não mais se chamou Medeia, mas
Joana – igualmente às outras mulheres da peça, ela também adquiriu um nome
mais popular na cultura brasileira, apesar de sua origem meio divina, meio
humana, presente no clássico ocidental. Os homens – como Jasão, Creonte e Egeu
–, em oposição, continuavam a representar os arquétipos da obra original, sendo
lhes mantido, inclusive, os nomes, que são, em certa medida, de maior
notoriedade.
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A peça, dessa maneira, aborda as mazelas que o povo mais simples sofre,
seja pela pobreza em si, seja pelo oportunismo daqueles que tiram proveito de sua
vulnerabilidade. Estão transpostos, em um plano contemporâneo, os mesmos
temas que ora foram abordados em Sêneca e em Eurípedes: a traição, a vingança,
os valores familiares e os interesses financeiros. Constroem-se, portanto, dois
conflitos paralelos: um coletivo e social, marcado pela inadimplência dos
moradores, ante os juros e a correção monetária crescentes, tendo como ápice o
despejo de Joana de sua casa; e outro individual e afetivo, caracterizado pelo
sofrimento da protagonista pela traição do marido e o posterior assassinato dos
próprios filhos.
Em Gota d’água, a história amorosa assemelha-se à de Medeia: Joana e
Medeia abandonam seus companheiros para se unirem a Jasão, que, em novas
terras, acaba por casar-se com a filha de um homem influente na cidade – a do rei
de Corinto, no caso da obra senequiana, e a do proprietário de um condomínio de
baixa renda, no caso da obra mais recente aqui analisada. Neste caso, Jasão
separou-se de Joana para, com Alma, lograr mais oportunidades de sustento com o
seu trabalho musical e, também, para tornar-se herdeiro do poderoso e influente
Creonte. Humilhada e rejeitada, Joana, assim como Medeia, passa a alimentar um
ódio ferino em relação ao ex-marido, que finda no desejo de vingança. Creonte, ao
saber que a inquilina praguejara por justiça em um terreiro de umbanda – o que
traria males para Alma, sua filha –, manda despejá-la, ao que a mulher implora, ao
ser expulsa do reino, por mais um dia no local. Quando a protagonista percebe,
então, que nem mesmo o seu plano consegue executar – pela recusa de Creonte
aos bolinhos levados pelos filhos de Jasão –, acaba por induzir a sua própria morte
e também a dos filhos pela ingestão do doce envenenado, em busca de uma
felicidade post mortem.
A morte de Joana, destarte, primeiramente pode ser considerada uma
autopunição pelo seu desprezo com a vida de seus próprios filhos e, também, pelo
seu egoísmo perante o homem com o qual vivia antes de unir-se a Jasão e pela
forma como encarava a sua própria sexualidade. A questão amorosa, contudo, é
apenas um pretexto para uma questão mais emblemática: ao povo resta sempre
ser aniquilado pelos mais poderosos – e, nesse caso, Jasão seria uma alegoria do
capitalismo, como também reflexo e representante de uma sociedade machista.
Joana, ao transpor Medeia aos moldes contemporâneos, retoma a condição de
estrangeira abandonada da personagem euripidiana para passar a representar o
povo excluído, marginal em sua própria cidade e país. Desse modo, o seu fracasso
é, mais do que uma derrota pessoal, uma derrota do povo brasileiro perante o
sistema econômico que corrói as suas esperanças e as suas oportunidades de
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ascensão social. A tragédia carioca era, sobretudo, um drama social, pautada em
um drama real que projetava, cenicamente, o que transcorria todos os dias fora do
palco.
3 De Medeia à Joana: a adaptação do mito frente ao contexto cultural
Embora ambas as obras estudadas não deixem de ser releituras daquela
escrita por Eurípedes, cabe salientar o papel que cada uma delas exerceu no seu
contexto político-social, desempenhando funções diferentes de acordo com a sua
época. Referindo-se à relação entre texto e contexto, Antônio Candido (1967)
registrou o que se pode considerar abranger não somente as peças trágicas ou as
obras de Sêneca, mas também grande parcela da Literatura, em si:
A leitura dessas peças, sobretudo das tragédias, senequianas, reforça a ideia de que a obra de cultura é produto de todo um contexto, sendo extremamente importante o conhecimento desse contexto para que tal obra seja compreendida e sua própria existência possa ser justificada. (CANDIDO, 1967, p. 4)
Também Enoch da Rocha Lima (1958) autoriza pensar em uma Literatura
que permite transformar um cânone ou uma obra clássica em outra obra cuja
estrutura desenvolva-se em outros moldes, mas que mantêm elementos capazes
de identificar as relações intertextuais. O estudioso afirma que a criação de uma
obra de arte – estendida, em nosso contexto, para as obras literárias – sofre os
efeitos do seu destino, na medida em que se adapta à cultura e à mentalidade do
meio social no qual circulará. Assim, quando a criação serve a algum fim específico,
ela deve se submeter a uma adaptação, passando, para isso, por uma
transformação; esse trabalho de adequação ao novo tratamento que se deseja dar
à obra conduz à estilização, tida como “a transformação por que deve passar uma
forma natural ou uma forma de invenção com o fim de adaptá-la a uma função, a
um objetivo estético ou a um estilo” (LIMA, 1958, p. 41). Pode-se perceber, com
isso, que, apesar de serem intertextuais, ambas as obras não deixam de ser
inovadoras, na medida em que servem a funções específicas e valem-se de
estéticas diferentes da do cânone. Sobre, especificamente, a relação entre as
tragédias de Eurípedes e as de Sêneca, Cardoso (2005, p. 60) atesta que se
“dispuséssemos apenas desses dois textos, poderíamos defender abertamente a
originalidade do dramaturgo latino, no processo de intertextualidade”, visto o forte
caráter de renovação e criação do mito relido.
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Apesar das diferenças das personagens, decorrentes dos contextos que
representam, é possível identificar que ambas dialogam com as necessidades
político-sociais de suas épocas. Em Sêneca, Medeia é uma mulher descontrolada e
desequilibrada, que, a todo instante, indaga-se se deve pôr em prática a sua sede
de vingança ou se deve conformar-se com o seu destino. Tal construção da
personagem, aparentemente malévola, é, entretanto, apaziguada pelo fato de ela
ter abandonado a sua cidade em nome de um amor que acabou abandonando-a.
Nesse sentido, a protagonista consegue suscitar, em alguma medida, um
sentimento de compaixão no leitor, porque este percebe as (re)ações de Medeia
como resultado das desgraças por que passou. No decorrer da tragédia, no
entanto, a mulher transforma-se em uma criatura vil que, movida pelo ódio e pela
vingança, passa a causar terror nas pessoas: “Sêneca faz sua Medeia matar os
filhos, um por vez, diante do pai impotente e horrorizado, sublinhando os atos com
palavras” (CARDOSO, 2005, p. 71). Seus atos não são, contudo, guiados tão
somente pelas emoções; é por seguir a razão que Medeia assassina os filhos, para
que Jasão não possa exilar-se em outro reino e acabe por ter o mesmo destino
trágico que ela.
Em Gota d’água, o drama vivido por Joana, assim como o vivido por Medeia
na obra senequiana, não atinge somente a dimensão amorosa como, sobretudo, a
dimensão social, já que o maior infortúnio enfrentado por Joana é a própria vida.
Se, em Medeia, a protagonista é movida pelo ódio, a personagem brasileira
sucumbe à fraqueza, e é isso que acaba por destruí-la: não bastasse a humilhação
por não ter conseguido atrair Jasão novamente para si, bem como o fracasso por
Creonte desvendar a sua intenção de matar Alma, ainda Joana frustra-se por ser
abandonada por suas próprias amigas, que participam da organização do
casamento de Jasão e Alma. Comparando as duas heroínas, fica manifesta a
devoção a suas causas – muito embora o desfecho de cada um dos enredos seja
diferente –, assim como os poderes que possuem enquanto mulheres: podem,
acima de qualquer fracasso ou vitória, ser encaradas como símbolos de não-
subserviência ante suas sociedades patriarcais.
Relacionado a isso, também a questão da maternidade é construída
diferentemente nas duas culturas, vista a construção da figura materna nessas
sociedades patriarcais (COELHO, 2008). Desse modo, é consistente, para o período
de Eurípedes e Sêneca, que Medeia, além de fugir, cometa o infanticídio – para que
os filhos não se tornassem apátridas – e também assassine a noiva e o sogro de
Jasão – visto que, desse modo, o marido perderia seus privilégios como cidadão. A
honra pública é imperiosa nesse contexto, assim como também o é a
impossibilidade de Jasão perpetuar a sua descendência. Por sua vez, em Gota
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d’água, Joana age pelo desespero de ver-se diante de uma existência medíocre,
assolada pela pobreza e pelo fracasso – confirmados pelo despejo da comunidade
onde morava e pelo isolamento após a traição do marido. Conquanto Medeia e
Joana partilhassem de uma dor e de uma humilhação semelhantes pela traição de
Jasão e tenham se erguido altivas para arquitetar a vingança, a latina movia-se,
sobretudo, pelo ódio, voltando todos os seus esforços para aniquilar aquele que
causou sua desventura, enquanto a brasileira era uma mulher que, a exemplo de
sua época, trabalhava para sustentar os dois filhos e não podia despender seu
tempo engendrando a sua desforra.
Em ambas as peças, há uma protagonista que, entre a fúria e a razão,
guarda para si o poder de escolha de destruir a vida daqueles que arruinaram a sua
– o destino, ou a Fortuna, não possuía acentuado valor nesses enredos, porque
cabia à personagem responder pelos seus atos. Medeia, visto o contexto em que foi
construída, é o resultado modelar de uma liberdade de escolha exacerbada, na
medida em que a harmonia do mundo, possibilitada por meio da manutenção da
racionalidade, está posta em detrimento dos sentimentos da protagonista.
Almejando difundir os princípios estoicos, Sêneca, então, constrói figuras que lutam
interiormente, disputa entre a razão e as emoções:
As personagens são dotadas de livre-arbítrio e têm consciência de que, se não são totalmente donas de seu destino, têm possibilidade de fazer o bem e evitar o mal. O fatalismo, presente na maioria das tragédias gregas, é substituído, nas de Sêneca, pelo drama psicológico. (CARDOSO, 2005, p. 35).
No desfecho da tragédia latina, Medeia foge em um carro alado enviado pelo
deus do Sol, seu avô, para se esquivar do julgamento dos mortais, apesar de estar
consciente dos seus atos. Já na tragédia brasileira, o suicídio de Joana faz-se
essencial, como forma de protesto e denúncia ao esboçar a situação precária de
sujeitos que, como ela, são oprimidos. A sua trajetória pessoal revela a trajetória
coletiva: o infortúnio da protagonista é, também, a desgraça que atinge a
população brasileira de baixa renda no período ditatorial. Frente ao capitalismo e ao
oportunismo dos opressores, o povo não tem vez:
A cultura da elite nunca foi capaz de penetrar profundamente, até as bases da sociedade, nem foi capaz de assimilar valores da cultura popular, fundamentalmente porque a economia brasileira, que se desenvolveu sempre num quadro de dependência, em nenhum momento foi capaz de incluir, ativamente, em seu processo, as amplas camadas inferiores da população. (PONTES; HOLLANDA, 1975, p. 98-100)
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A gota d‟água da obra é, diferentemente do que ocorre em Sêneca,
perpassada pela verossimilhança, na medida em que a tragédia carioca, ilustrativa
do cotidiano no Brasil, somente pode terminar com a desgraça de Joana – e,
conotativamente, com a desgraça de todo o povo brasileiro. Em uma obra
contextualizada no período ditatorial, não haveria outra possibilidade de desfecho
senão o fracasso – amoroso e, sobretudo, socioeconômico – dessa figura
estigmatizada. Algo como o carro alado, exemplo de deus ex machina presente em
Sêneca, não era plausível para a resolução do conflito de Joana, tanto pelo enredo
realista em si, como pela estética adotada no período. Medeia, ao fugir, não passa
por qualquer julgamento moral; Joana, por sua vez, não tem o poder mágico e
sobre-humano de sua precursora. É o próprio contexto social do Brasil que
determina, quase que de forma definitiva, a condição de um povo sem
possibilidades de ascensão e sem perspectivas de melhorias: a pobreza, resultado
da desigual distribuição de renda, só pôde ser ultrapassada por Jasão, personagem
movido, sobretudo, pela astúcia e pelo interesse. Aliás, representando o estereótipo
do malandro carioca, Jasão, quando consegue emergir da classe popular ao tornar-
se uma celebridade musical, é cooptado por Creonte – personificação do poder e
dos opressores. É pelo casamento com a filha do sócio que, então, torna-se
evidente a sua ambição, pela qual é capaz, até mesmo, de compactuar com a
expulsão de Joana e de seus filhos do condomínio do novo sogro.
Destarte, entende-se que ambas as obras, além dos sentidos originais, ainda
apresentam transformações concernentes ao estilo e ao formato estético, em
virtude das funções a que serviram e das ideologias que manifestavam. Cada uma
delas, ao revisitar Eurípedes (e, consequentemente, o mito), propõe uma nova
forma de interagir e de dialogar com o texto clássico, de acordo com a realidade de
sua época. Desse modo, alegoricamente, essas releituras desempenham um
importante papel de crítica perante a sociedade, carregando, consigo, um caráter
revolucionário enquanto não se contentam com o fixo: ao não exaltarem o mesmo,
põem-se numa posição de constante busca do inovador.
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Referências
BARROS, Leila Cristina. Tragédia social em Gota d‟água, de Chico Buarque e Paulo
Pontes: aspectos hipertextuais e intermidiais. In: ENCONTRO REGIONAL DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, 10., Rio de Janeiro, 2005.
Anais... Rio de Janeiro: ABRALIC, 2005.
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1967.
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i Esta é uma questão a ser discutida, pois há aqueles, como Hermann (apud CARDOSO, 2005), que defendem que as tragédias teriam sido produzidas para fins de encenação dramática em detrimento de outras finalidades (entre elas, a retórica, a filosofia, a moral, a política e a religião).
Data de envio: 30 de janeiro de 2015
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