ADVOCACIA E CIDADANIA
responsabilidade social na promoção da
igualdade1
1 Texto elaborado pelo Dr. Carlos Pinto de Abreu, Advogado e Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da
Ordem dos Advogados por ocasião do V Congresso da Ordem dos Advogados – publicado na Revista da Ordem
dos Advogados, número 67, tomo I, de Janeiro de 2007
Sin autem quaereretur, quisnam iuris consultus vere nominaretur, eum dicerem, qui legum et
consuetudinis eius qua privati in civitate uterentur, et ad respondendum et ad agendum et ad
cavendum peritus esset
Cícero
De Oratore, I, 212
“No Advogado, a rectidão de consciência é mil vezes mais importante do que o tesouro dos
conhecimentos. Primeiro, ser bom; depois, ser firme; por último, ser prudente; a ilustração vem em
quarto lugar; a perícia, no fim de tudo”.
Angel Ossorio y Gallardo
apud Orlando Guedes da Costa in Direito
Profissional do Advogado – noções
elementares, 3ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 2005; p. 132.
“O Advogado serve a justiça mais do que o direito, e o direito mais do que a lei (…) O Advogado
informa, aconselha, concilia, serve de mediador entre os cidadãos e entre estes e os tribunais. É, por
vocação, um agente da convivência cívica e da paz social (…) Ser advogado é lutar contra o arbítrio
e as iniquidades, pugnar por uma sociedade mais justa e convivente. (…) A advocacia é um
humanismo e uma magistratura cívica”
António Arnaut
Iniciação à Advocacia História-
Deontologia. Questões Práticas, 3ª ed.,
Coimbra, Coimbra Editora, 1996; pp. 7 e
8.
Só há “…uma cidadania mais ampla, alimentada pela experiência e pela compreensão da nossa
diversidade cultural e pelo exercício de uma solidariedade activa”.
Édith Cresson
apud Cidadanias Nacionais e Cidadania
Europeia, de Françoise Parisot; Lisboa,
Didáctica Editora, 2001; p.11.
ADVOCACIA E CIDADANIA
responsabilidade social na promoção da igualdade
1. ADVOCACIA
1.1. O Advogado – último profissional liberal, livre e independente (o que ainda é, mas pode
deixar de ser).
1.2. A Sociedade de Advogados – um espaço de (maior) liberdade e de (crescente) igualdade (o
que devia ser, e não é).
1.3. A Ordem dos Advogados – um exemplo de cidadania, serviço, rigor, profissionalismo e
exigência (custe o que custar, doa a quem doer).
2. CIDADANIA
2.1. A natureza do conceito e do vínculo, e o actual déficit, de cidadania. Cidadanias local,
regional, nacional e europeia. A substituição destes conceitos redutores e discriminatórios
pelo conceito de pessoa ou de cidadania universal. A igualdade é uma utopia?
2.2. A defesa oficiosa, a noção do dever individual, da responsabilidade colectiva e a praxis do
advogado e do advogado-estagiário. O ocaso do paradigma do advogado individual em
prática isolada, os riscos da advocacia pública e a proposta de uma “terceira via”.
2.3. A solidariedade e o espírito de serviço público e as especiais responsabilidades individuais e
institucionais da profissão. A necessidade de repensar o acesso ao Direito.
3. RESPONSABILIDADE SOCIAL DO ADVOGADO E DA ORDEM DOS ADVOGADOS
3.1. O exercício empenhado da Cidadania como emanação dos deveres de solidariedade
individual e dos deveres de participação e de intervenção na vida pública. A importância da
sensibilização para os direitos humanos, da formação e da especialização e da acção
individual e colectiva.
3.2. O exercício livre da Advocacia como condição necessária, mas insuficiente, para a promoção
da efectiva igualdade entre os cidadãos e para a protecção do indivíduo face à inércia e ao
abuso dos poderes. Disponibilidade do Advogado e responsabilidade do Estado.
3.3. Três desafios para o século XXI: a (real e efectiva) possibilidade de consulta jurídica aos
cidadãos do mundo; a (efectiva e digna) defesa oficiosa nos Tribunais e perante os Poderes e
a Administração e a (permanente e eficaz) assistência jurídica aos privados de liberdade nas
Prisões e nos Centros Educativos.
ADVOCACIA
O Advogado – último profissional liberal, livre e independente (o que ainda é, mas pode
deixar de ser).
“Não responderás a nenhum senhor e, com total autonomia e independência, só cumprirás os
ditames da tua consciência, de acordo com a lei justa e o interesse do cliente que te confiou a sua
liberdade, o seu património ou a sua honra, enfim a sua vida.
Não te submeterás ao próximo ou ao poderoso, nem que ele seja o teu melhor amigo ou o teu
cliente, sobretudo quando te peçam para responsabilizar a vítima, culpar o inocente ou violar a lei;
nem muito menos temerás o juiz ou o procurador, pois que devem ser eles a mostrar reverência pela
tua seriedade, paciência, empenho, capacidade de trabalho e domínio do caso confiado.”
Carlos Pinto de Abreu
Decálogo do Não (I e II)
apud Direitos do Homem – Dignidade e
Justiça; Lisboa, Comissão dos Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados, 2005; p.
211
Por isso, “... os juízes deveriam ser os mais incansáveis defensores da advocacia, pois só onde os
advogados são independentes os juízes podem ser imparciais; só onde os advogados são
respeitados os juízes são honrados; e onde se desacredita a advocacia, a primeira a ser atingida é a
dignidade dos magistrados e muito mais difícil e angustiante se torna a sua missão de justiça”
Piero Calamandrei
apud Eles, os Juízes, vistos por um Advogado
São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. XLV.
Quem é o advogado? 2
O que é a advocacia?3 Quem somos
4 e para quem somos
5 nós? O que queremos
ou devemos ser?6 E para onde vamos ou nos querem levar?
7
Cícero dizia que “…o bom jurisconsulto é aquele que é perito «ad respondendum et ad agendum et ad
cavendum» em todas as matérias em que os particulares necessitam de utilizar-se das leis e dos
costumes”8. Mas de então para cá o mundo mudou muito. E os advogados e a advocacia?
“A etimologia latina da palavra advogado – ad-vocare - significa ajudar, defendendo e chamando à
razão, isto é, conduzindo o outro à verdade e à sabedoria do discernimento”9 e, assim, o advogado é
“alguém que defende ou representa, perante a Justiça e o Poder, interesses alheios”.10
Não iremos escalpelizar muito mais o conceito de advogado ou esgotar a noção do exercício de
advocacia. Outros por nós o fizeram, bem melhor do que alguma vez poderíamos. Aqui ficam também,
2 Vide, de AAVV, a publicação Direitos do Homem – Dignidade e Justiça; Lisboa, Comissão dos Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados, 2005; pp. 52 a 56. 3 Cfr., de Mário Raposo, Advocacia in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 1., Lisboa,
Verbo, 1983, pp. 158 a 162. 4 V. o Inquérito aos Advogados Portugueses – uma profissão em mudança publicado pela Revista da Ordem dos
Advogados (ROA), bem como o artigo também publicado na ROA, Ano 32, Julho/Dezembro, pp. 329 a 397. 5 É nesta questão crucial que radica a nossa irrecusável responsabilidade social, o exercício da cidadania por parte
do Advogado e da Ordem dos Advogados. A Advocacia não se justifica por si nem para si. A profissão só vale
enquanto vale a terceiros, enquanto imprescindível ao exercício dos direitos de todos os cidadãos, ou melhor, de
todas as pessoas; sem discriminações nem excepções. Cfr., de Eduardo de Melo Lucas Coelho o seu Qualidade
na prestação de serviços jurídicos e judiciários - que espera o tribunal dos advogados? publicado na Revista da
Ordem dos Advogados, Ano 53, Abril, de 1993, pp. 191 a 196. 6 “Dae a um homem todas as qualidades do espírito, dae-lhe todas as do carácter, fazei com que tenha visto
tudo, aprendido tudo e tudo retido, que tenha trabalhado sem descanso durante trinta annos da sua vida, que
seja cumulativamente um literatto, um critico, um moralista, que possua a experiência de um velho, o ardor de
um mancebo, a memoria infallivel de uma creança; fazei finalmente com que todas as fadas venham
sucessivamente embalar-lhe o berço, dotando-o de todas as faculdades: talvez com isso se consiga formar um
advogado completo”. Paillet; cit p. 22 de O Perfeito Advogado de Domingos Pinto Coelho. 7 A nossa profissão será o que dela fizermos e o que deixarmos que dela façam. Traçado o rumo há que segui-lo
com determinação. O que não podemos é permitir que outros o façam. Daí o risco da advocacia pública. Que só
existe por inacção e desleixo dos advogados e tácita permissão ou demissão da Ordem dos Advogados. 8 Cfr. de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I; Lisboa, Conselho Geral da
Ordem dos Advogados, 1947; p. 17. 9 V. de D. José Policarpo, O Advogado visto por…, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, 2005; p. 72. 10
Cfr., de Adalberto Alves, História Breve da Advocacia em Portugal, Lisboa, CTT, 2003; p. 11
ao longo do texto, as suas citações, única mais valia deste humilde escrito. Sempre diremos que as
palavras chave de qualquer definição são as seguintes: profissão liberal, independência absoluta,
múnus de interesse público, órgão de administração da justiça, função social de representação,
exercício da cidadania e construção da solidariedade activa, garantia da dignidade da pessoa, da vida e
da actividade humana e baluarte da defesa dos direitos humanos fundamentais.
São tão necessários advogados livres, independentes e não subordinados ao que e a quem quer que
seja, como juízes isentos, imparciais, inamovíveis e independentes dos poderes. Pois que “na verdade,
para que a justiça possa ser perfeita – tanto como o podem ser as instituições humanas – carece-se
não só de magistrados competentes, íntegros e independentes, mas de que todos os cooperadores na
obra de justiça secundem e completem o seu esforço”11
.
O advogado é, também ele, com todos os elogios e críticas que se lhe fizeram e fazem ao longo dos
tempos12
, órgão de administração da justiça13
, como tal universalmente reconhecido14
, defensor lídimo
dos direitos humanos, seja individualmente considerado, seja no âmbito de uma sociedade15
, seja
institucionalmente enquadrado.
“O advogado é, naturalmente, um jurista, um homem de leis, alguém que contribui activamente para a
Administração da Justiça. Mas o advogado é muitas outras coisas. É confidente, é conselheiro, é
quase um confessor. É alguém a quem um cidadão aflito e preocupado pensa logo em recorrer. É
alguém a quem uma pessoa assustada, desprotegida, vulnerável, não hesita em bater à porta. É
11
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, p. 87. 12
Vide de Alberto Sousa Lamy, Advogados – elogio e crítica; Coimbra, Almedina, 1984. 13
Cfr. de José María Martínez Val, Abocacia y Abogados, Barcelona, Bosch, 1990. 14
Vide, de Jorge de Jesus Ferreira Alves, Os Advogados na Comunidade Europeia; Coimbra, Coimbra Editora,
1989. V. também, de Alberto Sousa Lamy, o seu Advogados e Juízes na literatura e na sabedoria popular, vols.
1 a 3; Lisboa, Ordem dos Advogados Portugueses, 2001. 15
V., de Manuel Pereira Barrocas, o estudo Qualidade e Eficácia de Serviços Profissionais de Advocacia
prestados por Sociedades de Advogados e por Profissionais em Nome Individual, publicado na Revista da Ordem
dos Advogados, Ano 53, Abril de 1993, pp. 113 a 125.
alguém a quem uma pessoa confia os seus sentimentos, delega as suas preocupações, deposita muitos
dos seus interesses”.16
Não é hoje pensável o acesso ao direito, a consulta jurídica e o apoio judiciário, bem como a condução
do processo, de qualquer processo, ou mesmo simples procedimento, sem a assistência de um
profissional do foro, de um jurista17
, enfim, de um advogado. “O Advogado é, em primeiro lugar, um
intérprete e um mediador privilegiado da lei, num tempo de crescente complexidade, em que o
princípio de que a ignorância da lei não aproveita a ninguém se apoia numa realidade totalmente
ultrapassada e tem a carga simbólica das ficções. Nas sociedades de hoje, o cidadão comum, ainda
que detentor de importantes saberes é, em geral, juridicamente iletrado”18
. Isto para não dizer que, já
hoje, e cada vez mais no futuro, é o próprio advogado – na maior parte das matérias que não domina
profissionalmente – também ele, juridicamente iletrado!
Somos apenas mais uma profissão, ainda que liberal? Profissionais do foro ou funcionários da área da
justiça, sem mais? Meros técnicos especializados? A resposta é obviamente negativa. “O talento não é
qualidade suficiente para profissão tão íntima do exercício da justiça. A independência e o
desinteresse constituem virtudes essenciais e particularmente meritórias de um Advogado”.19
Essência
da advocacia é, pois, a liberdade e a independência, o seu livre exercício, a diferença entre quem
depende de terceiros e aquele que só depende de si próprio e, sem medo nem temores, só se subjuga
aos interesses que lhe compete defender, com regras e sem deles ficar refém.20
“A independência
pessoal e profissional (...) obstará a que a assistência devida pelo advogado ao seu cliente se desvie ou
adultere em consequência de pressões de qualquer ordem; e pode resultar da acção combinada de
16
Cfr., de Luís Marques Mendes, O Advogado visto por …; Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, 2005; p. 33 17
Vide, de Diogo Leite de Campos, o estudo sobre O Ofício de Jurista, publicado na Revista da Ordem dos
Advogados, Ano 53, Abril/Junho de 1993, pp. 415 a 426. 18
V., de Cunha Rodrigues, O Advogado visto por um Magistrado, in Lugares do Direito; Coimbra, Coimbra
Editora, 1999, p. 183. 19
Citação de Pio XII apud Orlando Guedes da Costa, no seu Direito Profissional do Advogado – noções
elementares, 3ª ed.; Coimbra, Almedina, 2005; p.13 20
“Sê livre, independente e insubmisso perante todas as justiças e arbitrariedades: que nenhuma voz alheia à tua
consciência te condicione a palavra”. Decálogo de António Arnaut (III)
vários factores, o mais importante dos quais não será decididamente a posse de avultados meios de
fortuna”.21
Se bem que a independência económica seja só uma das facetas da independência do advogado ela não
é despicienda, pois que aquele que vive no desespero de não conseguir pagar as contas ou prover ao
seu sustento ou mesmo o que só depende de um cliente está, obviamente, mais restringido na sua
liberdade de dizer não, por exemplo, ou mais limitado na sua possibilidade de reacção e capacidade de
ressiliência, do que aquele que tem vários clientes e que de nenhum isoladamente depende
economicamente. E “…se o advogado é independente em relação ao seu cliente a quem, por definição,
deve auxiliar, é por maioria de razão independente frente aos poderes públicos, aos magistrados e
outras autoridades e perante qualquer situação de interesse que não seja coincidente com o da justiça
e com a livre defesa da causa que lhe cumpre patrocinar”.22
A liberdade e a independência em relação a terceiros23
é conditio sine qua non da advocacia, sem a
qual não há justiça justa e advogado digno de tal nome, isto é, “o Advogado... defensor dos direitos,
liberdades e garantias individuais contra qualquer forma de arbítrio ou abuso de poder”24
. Se é certo
que “…não haverá boa justiça sem boa advocacia…”, também “…é exacto o dizer de Labori, quanto a
não haver numa grande advocacia sem grande magistratura”25
. E por isso são, por igual, necessários
21
v. de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I; Lisboa, Conselho Geral da
Ordem dos Advogados, 1947; p. 188. 22
Cfr. de Germano Marques da Silva, A Responsabilidade Profissional do Advogado (perspectiva penal) in
Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida e Costa; Lisboa, Universidade Católica, 2002;
p. 629. 23
Por isso que “…a liberdade de consciência e de actuação pressuposto indeclinável da independência e da
dignidade da advocacia não é compatível com qualquer função ou actividade que a possa afectar ou pôr em
risco. No desempenho profissional, o advogado não pode estar sujeito a qualquer tipo de pressão, temor ou
simples suspeita. Para ser sincero, e assim considerado, é preciso ser inteiramente livre. Para alegar tudo
quanto é necessário à causa, não pode ter qualquer inibição. Não concebo a advocacia presa a liames ou a
sujeições de qualquer natureza. Sou advogado porque sou livre” Cfr. de António Arnaut. Iniciação à Advocacia.
História, Deontologia. Questões Práticas, 3ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 1996; p. 83. 24
Ver de Cunha Rodrigues, O Advogado visto por um Magistrado; in Lugar do Direito, Coimbra, Coimbra
Editora, 1999, p. 184. 25
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, pp. 87 e 88.
todos os profissionais do foro.26
E não só, já que “…jurisconsulto é, não só o advogado, mas o
professor de direito, (…) publicando livros, colaborando em revistas, efectuando conferências, etc., e é
também jurisconsulto o magistrado que pelos seus escritos judiciais ou extrajudiciais, revele, bem
marcada, elevação de pensamento e destacado grau de cultura”27
.
A elevação de pensamento e o destacado grau de cultura pressupõem humildade intelectual e
compreensão das diferenças, das causas e das consequências dos comportamentos humanos28
. E estas
características são essenciais aos profissionais do foro. A todos. Todos somos, portanto,
imprescindíveis à administração da justiça: “o professor ensinando o direito, o causídico diligenciando
fazê-lo aplicar na sua melhor interpretação, e o magistrado procedendo à sua aplicação, representam
três momentos distintos da mesma excelsa obra de administrar a justiça, aperfeiçoando à satisfação
das necessidades sociais as normas reguladoras da vida em comunidade, garantindo a esta a
segurança e estabilidade inseparáveis de todo o progresso29
”.
Mas o advogado só será útil à Justiça se puder agir livre e independentemente; se puder continuar a ser
livre e independente30
, apesar de todas as ameaças à sua matriz fundamental, como veremos adiante31
.
26
Não há profissionais de primeira ou de segunda, prescindíveis ou imprescindíveis, menos ou mais puros;
funções mais ou menos necessárias, com maior ou menor dignidade e mais ou menos prestigiadas. 27
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, pp. 82 e 83. 28
Até porque, se os advogados são os profissionais do foro que mais próxima e imediatamente contactam com o
cidadão, os juízes são aqueles que podem decidir no sentido da protecção dos seus interesses e no respeito pelos
seus direitos. Se é aos advogados que compete, em primeira linha, a defesa da dignidade da pessoa humana em
todas as suas manifestações é aos juízes que cabe a última palavra na protecção da cidadania e do cidadão. Seja
na normalidade. Seja na patologia. 29
V., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral da
Ordem dos Advogados, 1947, p. 84. 30
“[O advogado] livre de todos os entraves que cativam os outros homens, demasiado orgulhoso para ter
protectores, demasiado obscuro para ter protegidos, sem escravo e sem dono, seria o homem na sua dignidade
original, se um tal homem existisse ainda”. Cit. de Henrion de Pensey, apud História Breve da Advocacia em
Portugal, de Abalberto Alves, Lisboa, CTT, 2003; p. 14. 31
São as seguintes as três principais ameaças modernas à advocacia livre e independente: a funcionalização pela
via da hierarquização, da subordinação e da massificação excessivas; a descaracterização, o laxismo e o
relativismo pela via da desestruturação da função e da demissão ou fragilidade do poder disciplinar e a ameaça de
publicização da profissão por via da sua degradação crescente.
Mas será, ou poderá ser, mais útil32
ainda se não se isolar e não pretender apenas trabalhar sozinho ou
de costas voltadas para o Cidadão, a Sociedade, para os seus Colegas e outros profissionais e para a sua
Ordem.
32
Em bom rigor o grau de utilidade ao Outro pode tão-só significar uma cidadania passiva (em que se cumpre o
que não se pode deixar de cumprir), pode ser um pouco mais, isto é, uma cidadania reivindicativa (em que se
protesta, critica e exige) ou pode ser (o que deve ser) uma cidadania construtiva (em que a responsabilidade
social exige proactividade, imaginação e mais valia no pensar e no agir em prol da Comunidade e das Pessoas.
A Sociedade de Advogados – um espaço de (maior) liberdade e de (crescente) igualdade
(o que devia ser, e não é).
“O advogado é, essencialmente um prestador de serviços, na medida em que põe à disposição do
seu cliente os seus conhecimentos do direito e a sua experiência profissional, com a finalidade de
lhe proporcionar um determinado resultado”.
João Luís Lopes dos Reis
Representação Forense e Arbitragem;
Coimbra, Coimbra Editora, 2001; p. 27.
“O advogado, defensor de pobres e desvalidos, da vítima inocente que demandava justiça, capaz
de arrastar a barra do Tribunal com o fulgor da sua retórica e da sua razão como numa revolta
da Bounty, essa imagem romântica que perpassou o imaginário do século XX não faz mais sentido
hoje”.
Luís António Noronha do Nascimento
O Advogado visto por…; Lisboa, Conselho
Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados,
2005, p. 93.
Há que dizer que “…as grandes sociedades de advogados, se podem ter numerosos sócios, contam
quase sempre com um muito superior número de jovens advogados-funcionários que trabalham de
um modo geral em condições profissionais adversas”
Adalberto Alves
História Breve da Advocacia em Portugal;
Lisboa, CTT, 2003, p. 193.
Uma das principais ameaças modernas à advocacia livre e independente é a sua funcionalização pela
via da hierarquização, da subordinação e da massificação.
O número de advogados aumentou exponencialmente nos últimos 20 anos, fruto da proliferação de
universidades públicas, privadas e do sector cooperativo e do carácter residual da profissão.33
O próprio
exercício da advocacia mudou muito nas últimas décadas, desde logo com o aumento sempre
crescente, embora ainda lento, do número de sociedades de advogados e do número crescente de
advogados inseridos em sociedades quer como sócios quer sobretudo como associados ou
colaboradores.34
No mundo em geral, abandonado, ou menosprezado, o paradigma individualista do exercício das
profissões liberais, “…passámos ao trabalho de equipa, em grupos pluridisciplinares. Também os
advogados têm seguido o mesmo caminho. Contudo, se as condições do exercício da profissão sofrem
alterações, o espírito de independência, de autonomia, e de responsabilização, mantêm-se como
valores indissociáveis da ética e da deontologia profissional”35
.
As sociedades de advogados, apesar da sua curta história em Portugal, mudaram muito também;
passaram rapidamente, do que foram no início, de sociedades de pessoas para, o que são
maioritariamente agora, sociedades de capital36
.
33
Não tendo aumentado, em proporção, o número de juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários
judiciais, só para perceber também uma das razões da crise da justiça. 34
A evolução estatística é facilmente comparável, e apreensível, com base numa análise atenta dos dois
inquéritos feitos à profissão citadas na nota de rodapé nº 3, isto é, o Inquérito aos Advogados Portugueses – uma
profissão em mudança publicado pela Revista da Ordem dos Advogados (ROA), bem como o artigo também
publicado na R.O.A., Ano 32, Julho/Dezembro, pp. 329 a 397. 35
Cfr. de Fernando Santo, O Advogado visto por…; Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, 2005, p.136. 36
Não olvidamos que segundo o artº 12º do Regime Jurídico das Sociedades de Advogados aprovado pelo
Decreto-Lei nº 229/2004, de 10 de Dezembro, “todos os sócios integram obrigatoriamente a sociedade com
participações de indústria e todos, alguns ou algum deles, segundo o que for convencionado, também com
participações de capital”. Assim é na letra da lei. Mas a prática leva-nos a concluir que, sobretudo com o
O relacionamento entre advogados dentro das sociedades também tem vindo a sofrer várias alterações,
quer pela via da hierarquização excessiva37
, quer pela via da funcionalização abusiva38
, do exercício da
profissão.
É um facto que a lei estabelece que “as sociedades de advogados são sociedades civis em que dois ou
mais advogados acordam no exercício em comum da profissão de advogado, a fim de repartirem
entre si os respectivos lucros”39
Ora, o exercício em comum exige respeito recíproco e condições mínimas de dignidade, de igualdade e
de independência. Independentemente de tudo quanto tem que mudar por força da mudança do
mundo.40
Pode perguntar-se se “…um gabinete de advogado não será um incomparável campo de observação
onde se vê viver e palpitar a nu a alma humana?”41
e se “os esforços da intervenção do jurista na vida
pública, social, empresarial e familiar serão de futuro mais evidentes”42
, sobretudo se estruturados em
equipas multidisciplinares.
A resposta não deixará de ser positiva, face à crescente juridificação do mundo. Não temos dúvidas de
que o futuro passará, sobretudo, pelas sociedades de advogados, mas também temos a certeza que
nunca se extinguirá, e será mesmo essencial, o advogado individual em prática isolada.
movimento da internacionalização, o factor capital é sobrevalorizado em relação às participações de indústria que
são subvalorizadas. 37
Mesmo entre sócios. 38
Dos associados ou de colaboradores, nomeadamente de colaboradores externos. 39
Cfr., artº 1º, nº 2 do Regime Jurídico das Sociedades de Advogados aprovado pelo Decreto-Lei nº 229/2004, de
10 de Dezembro. 40
Cfr., de José Miguel Alarcão Júdice, o seu Advocacia: um admissível mundo novo? In R.O.A, Ano 58, Janeiro
de 1998; pp. 627 a 636. 41
Cfr., de Henri Robert, O Advogado; São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 43. 42
Cfr., de Cunha Rodrigues, o Advogado visto por um Magistrado, in Lugares do Direito; Coimbra, Coimbra
Editora, 1999, 175.
Até porque se “…a juridificação do bem estar social abriu o caminho para novos campos de litigação
nos domínios laboral, civil, administrativo, de segurança social, o que, nuns países mais do que
noutros, veio traduzir-se no aumento exponencial da procura judiciária e na consequente exploração
da litigiosidade”43
, a verdade é que, na maior parte dos casos, e sobretudo nos casos que contam44
, a
relação pessoal advogado/cliente ou constituinte é inultrapassável.
Assim, se é verdade que se verifica um ocaso do paradigma liberal45
ou do advogado individual em
prática isolada, também menos certo não é que continua a haver espaço para o advogado isolado.46
E o
simples facto de o advogado exercer integrado em sociedade de advogados não lhe retira a sua especial
qualidade e responsabilidade.47
Agora o que se não pode admitir é que a sociedade de advogados, que se pretende que seja um espaço
mais livre e mais igualitário, se torne um instrumento de pressão, de opressão ou de exploração. E,
muito menos, que a institucionalização da profissão possa colocar em segundo plano o cidadão, a
pessoa, face aos interesses públicos ou corporativos, institucionais ou empresariais, económicos ou
financeiros.
É que a sociedade de advogados deverá ser um espaço de liberdade e de igualdade. Dir-se-á mesmo
que tem que ser um espaço de maior liberdade e de crescente igualdade, sob pena de desvirtuar a sua
função e de descaracterizar a advocacia, tornando-a mera actividade de prestação de serviços.48
43
Cfr., de AAVV, Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – o caso português; Porto, Edições
Afrontamento, 1996; p. 25. 44
Aqueles em que está ou pode estar em causa a sobrevivência, a liberdade ou a honra, por exemplo. 45
Cfr., de Paulo Castro Rangel, o seu Advocacia e Preconceito in R.O.A, Ano 62, Abril 2002; pp.487 a 489. O
autor vai mais longe quando afirma que “ruiu por completo o paradigma liberal da advocacia”. 46
“Os advogados são as testemunhas profissionais dos maus dias, os confidentes obrigatórios a quem o cliente é
forçado a confessar seus segredos de família, até mesmo pequenas baixezas de que não tem motivo para se
orgulhar”. Cfr. de Henri Robert, O Advogado; São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 6. Ora este múnus individual
é insubstituível. 47
Coisa distinta é a responsabilidade própria, não do advogado inserido em sociedade, mas da própria sociedade
de advogados. Cfr., de Rui Lopes dos Santos, o seu Sociedades de Advogados e Deontologia – o artº 198º do
Projecto de Estatuto da Ordem dos Advogados, in R.O.A., Ano 59, Abril de 1999; pp. 817 a 832. 48
Os serviços prestam-se não na medida das necessidades, mas da real procura, normalmente de quem pode
pagar. Há serviços que não são pedidos por impossibilidade de serem pagos e há outros que, do ponto de vista
patrimonial, não compensam. A oferta não pode, porém, limitar-se aos serviços solicitados e remunerados ou
àqueles que possam ser remunerados, quando pedidos.
A Ordem dos Advogados – um exemplo de cidadania, serviço, rigor, profissionalismo e
exigência (custe o que custar, doa a quem doer).
“A Ordem dos Advogados é tão antiga quanto a magistratura, tão nobre quanto a virtude, tão
necessária quanto a Justiça”
D’Aguesseau
Da Independência do Advogado
1689
“O Collegium de Advogados … constituiu, assim, um factor de garantia científica e prestígio
pessoal dos próprios advogados”.
Fernando Sousa Magalhães
apud O Advogado e a História, de Valério
Bexiga; Faro, Edição de Autor, 2000; p.77
“Não cometerás adultério aos teus juramentos de respeito pela lei justa, de fidelidade à
justiça no direito, de fidedignidade aos interesses do representado, de lealdade para com os
colegas e de salvaguarda absoluta do segredo do que te for relatado.”
Carlos Pinto de Abreu
Decálogo do Não (VI)
apud Direitos do Homem – Dignidade e
Justiça; Lisboa, Comissão dos Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados, 2005; p.
211
“O Advogado é o apoio da inocência e o açoite do delito.”
Robespierre
apud Manual de Deontologia Forense, de
Valério Bexiga; Faro, Conselho Distrital de
Faro da Ordem dos Advogados, 2003; p. 134.
O fundador da Ordem dos Advogados, o Prof. Doutor Manuel Rodrigues, foi muito claro ao afirmar
que “…a Ordem dos Advogados devia existir dada a importância das suas funções: cultura das
ciências sociais e do direito, este na sua técnica e aplicação prática; moralização do exercício
profissional; e assistência social aos agremiados e suas famílias”49
.
Fosse assim só e pareceria, erradamente é certo, que a Ordem estaria virada para si mesma ou
circunscrita à advocacia e aos advogados.50
Depressa porém se virou para o exterior a instituição, que
tem uma especial natureza e função social51
.
É que “…há uma função comunitária importante, quer em plano nacional, quer internacional, para a
qual o contributo dos advogados, pode ser relevante: o aperfeiçoamento da ordem jurídica, quer no
que à administração da justiça diz respeito, quer no estabelecer uma ordem jurídica internacional de
respeito pelos direitos humanos e de promoção de valores que promovam a justiça e levem à paz. E
nesse âmbito ganha particular relevância o contributo, não apenas dos advogados individualmente,
mas das associações de advogados”52
.
Foram, logo, acrescentados como fins da Ordem “…contribuir para o desenvolvimento da cultura
jurídica, e aperfeiçoamento da legislação, e, em especial, da concernente às instituições judiciárias e
forenses; e auxiliar a administração da justiça”53
.
49
Ver de Alberto Sousa Lamy, o seu A Ordem dos Advogados Portugueses. História. Órgãos. Funções. Lisboa,
Conselho Geral da Ordem dos Advogados, 1984; p. 29. 50
“A dignificação da nossa profissão passa, na realidade, pelo reforço da sua autonomia e pela defesa do seu
estatuto deontológico, encarado certamente pela perspectiva dos seus valores tradicionais e seculares, mas
reflectindo, permanentemente, as constantes mutações de uma sociedade em evolução, onde cada vez se afirma
mais a necessidade de uma Advocacia livre e responsável como verdadeira reserva moral e condição de
construção dos modernos Estados de Direito”. Cfr., de Fernando Sousa Magalhães, o seu A Advocacia uma
síntese da sua evolução histórica. Porto, Centro Distrital de Estágio do Porto, 1993; p. 29. 51
Cfr., de Manuel Gonçalves, o seu Advocacia, Sociedade, Democracia – Ordem dos Advogados. Natureza e
função social. in R.O.A., Ano 57, Abril de 1997, pp.843 a 854. 52
Cfr., de D. José Policarpo, O Advogado visto por… Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, 2005; p. 77. 53
Ver de Alberto Sousa Lamy, o seu A Ordem dos Advogados Portugueses. História. Órgãos. Funções; Lisboa,
Conselho Geral da Ordem dos Advogados, 1984, p. 47.
Mas para além da administração da justiça fora de portas, a Ordem tem como função primordial
exercer, com exclusividade, a jurisdição disciplinar sobre todos os seus membros.54
É que “…a prática
de advocacia, em termos de infundir confiança e não ser fonte de perturbações, postula um conjunto
de qualidades – congénitas ou adquiridas – difíceis de ver concentradas num mesmo individuo,
especialmente se não houver uma regra forte a discipliná-lo”55
.
Não é o facto de existir uma Ordem interventiva, uma regra forte e uma jurisdição disciplinar efectiva
que diminui a liberdade e a independência dos advogados. Bem pelo contrário.56
O grau de exigência e de rigor que os advogados impuserem a si mesmos terá certamente como
contrapartida o grau de credibilidade e de confiança que a sociedade neles deposite. Maior liberdade,
maior a responsabilidade. E maior responsabilidade significará também uma maior liberdade.
Por isso já se disse que “... uma verdadeira prova de probidade(...) que imprimirá à assistência do
advogado um cunho de nobreza e de sinceridade que tornam o mandato judicial em contrato sui
generis e a advocacia inconfundível com qualquer outra profissão comercial ou industrial, atinge-se
primordialmente por uma esclarecida jurisdição disciplinar fortemente organizada e equilibradamente
exercida”57
.
54
“A lição, que a história da Advocacia encerra, e que deixamos como motivo de reflexão...ensina-nos que os
Advogados só perderam prestígio e influência social quando não souberam ou não puderam salvaguardar a sua
independência e liberdade passando a agir ao sabor dos interesses dominantes”. Cfr., de Fernando Sousa
Magalhães, o seu A Advocacia uma síntese da sua evolução histórica. Porto, Centro Distrital de Estágio do Porto,
1993; p. 29. 55
Cfr. de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, vol. I; Lisboa, Conselho Geral da
Ordem dos Advogados, 1947; p. 87. 56
Aliás, remonta já há muito, antes mesmo da Ordem dos Advogados Portugueses ter sido criada a constatação
evidente de tal asserção. “Sem organização, sem união, sem disciplina, que só a organização pode dar, a
advocacia portuguesa por milagre tem sabido guardar fielmente a dignidade profissional; mas se, honra lhe
seja, o tem conseguido até hoje, se ainda não desapareceram as tradições de honestidade do fôro português,
urge evitar que, no futuro, a onda de imoralidade que alastra o espírito de extrema comercialização que tudo
invade atinge uma profissão que só a virtude pode dignamente sustentar, e sendo com honra um grande valor
social, sem ela se transformaria num flagélo”. V. a citação de Luís da Silva Ribeiro, apud A Advocacia – uma
síntese de uma evolução histórica; de Fernando Sousa Magalhães; Porto, Centro Distrital de Estágio do Porto da
Ordem dos Advogados, 1993; p. 28 57
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, p. 88.
Mas a Ordem dos Advogados não deve ser apenas um factor de exigência e de rigor para com os seus
membros. Deve ser sim, também, ela própria, um exemplo de exigência e de rigor no exercício das
suas competências próprias; mas, mais do que isso, deve ser também um exemplo de profissionalismo,
serviço e cidadania.
Assegurada, preventiva e repressivamente, a qualidade do exercício da advocacia é necessário fazer
mais, muito mais.58
É imperativo de cidadania.
E esse imperativo de cidadania cumprir-se-á na efectivação do acesso ao direito, com foros de
igualdade para todos, sem excepção, ainda que por intermédio de estruturas sugeridas ou instituídas
pela própria Ordem dos Advogados.
58
E, por isso mesmo, vamos aqui lançar três desafios para o século XXI: instituir a (real e efectiva) possibilidade
de consulta jurídica aos cidadãos do mundo; assegurar a (efectiva e digna) defesa oficiosa nos Tribunais e perante
os Poderes e a Administração e possibilitar a (permanente e eficaz) assistência jurídica aos privados de liberdade
nas Prisões e nos Centros Educativos.
CIDADANIA
A natureza do conceito e do vínculo, e o actual déficit, de cidadania. Cidadanias local,
regional, nacional e europeia. A substituição destes conceitos redutores e
discriminatórios pelo de pessoa ou de cidadania universal. A igualdade é uma utopia?
Ora “um cidadão pode ser definido pela sua participação no exercício da justiça e do governo”.
Aristóteles
apud Cidadanias Nacionais e Cidadania
Europeia; Lisboa, Didáctica Editora, 2001; p.
47.
Não se esqueça que “…a profissão de advogado é hoje uma profissão de risco… O advogado é
frequentemente incómodo e incomoda na defesa dos interesses legítimos que lhe são confiados,
como cumpre. Pode, por causa disso e não obstante o seu absoluto respeito pelos deveres
profissionais, ser também incomodado, o que acontece muitas vezes, sobretudo por aqueles que
ainda não perceberam que da essência da vida democrática não é tanto a proclamação formal de
direitos, é sobretudo o cumprimento dos nossos deveres para realização dos direitos dos outros”.
Germano Marques da Silva
A Responsabilidade Profissional do
Advogado (perspectiva penal) in Estudos
dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito
de Almeida Costa, Lisboa, Universidade
Católica, 2002; p. 642.
“Nos governos republicanos os homens são iguais e iguais são nos governos despóticos, Nos
primeiros porque são tudo; nos segundos porque são nada”.
Montesquieu
Espírito das Leis
1748
O que é a cidadania?59
Como se exerce?60
Define-se pelos direitos ou delimita-se pelos deveres?61
O
que é, por parte do advogado, o exercício da cidadania?62
E que papel tem a Ordem dos Advogados na
construção de uma cidadania mais activa, participativa e igualitária?63
A cidadania é a especial qualidade da pessoa que dispõe numa dada comunidade política do conjunto
dos direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos. E de um determinado, mas mais reduzido,
catálogo de deveres.64
“A cidadania é um estatuto de direitos e de deveres que tem na lei o seu quadro de referência. Desde a
concepção de homem titular de direitos originários, à de «homem situado» foram-se encontrando
respostas cada vez mais apuradas para exprimir a fragilidade da pessoa perante o Estado”65
.
59
“A cidadania (o status civitatis dos Romanos) é o vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertinência de um
indivíduo a um Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações”. Cfr., de Rui
Manuel Moura Ramos, o seu Cidadania, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedades e do Estado; Lisboa, Verbo,
1983; p. 824. 60
Mais do que pelo catálogo dos direitos, o exercício da cidadania devia definir-se pelo conjunto dos deveres.
Não porque o estatuto do cidadão implique a vinculação ao Estado ou a outra entidade supra-individual. Mas sim
porque correlativos aos deveres de cada um estão os direitos de todos. É isso a responsabilidade social, será isso
que se pretende com o exercício de cidadania. 61
É porventura no elenco de deveres que podemos melhor entender o alcance da expressão “exercício da
cidadania”. Assim temos o dever de cumprir a lei, de frequentar a escolaridade obrigatória, de cumprir o serviço
militar ou o serviço cívico, de contribuir para a segurança social e os deveres de trabalhar, votar ou pagar
impostos, só para exemplificar. 62
Desde logo, e primacialmente, o cumprimento dos seus deveres deontológicos gerais para com a Comunidade
em geral e para com a Ordem – artºs 76º, nº 2; 77º, nº1; 83º, nºs 1 e 2; 84º; 85º, nºs 1 e 2; 86º; 87º, nºs 1 a 3 e 8;
88º, nº 1; 89º, nº 4; 90º; 91º; 99º, nº 1; 102º; 103º, nº 2; 104º; 105º, nº 1; depois o dos seus deveres deontológicos
gerais para com o Cliente – artºs 92º, nºs 1 e 2; 93º, nºs 1 e 2; 94º, nºs 1 a 6; 95º, nºs 1 e 2; 96º, nºs 1, 2, 4 e 5; 97º,
nº 1; 100º, nºs 2 e 3; 101º, nº 1; 103º, nº 1; 105º, nº 2; e, finalmente, o dos seus deveres deontológicos gerais para
com os Colegas – artºs 106º; 107º, nºs 1 e 2 e 108º; todos do Estatuto da Ordem dos Advogados. Depois, e só
para exemplificar, o advogado está ainda sujeito à obrigatoriedade de voto para os órgãos da Ordem (artº 14º, nº
4, do EOA); vinculado à aceitação do exercício de funções para as quais se candidate e seja eleito, também para a
Ordem (artº 15º do EOA); e obrigado a assiduidade e diligência no desempenho dos cargos que lhe sejam
confiados (artº 17º, nº 1, do EOA). Finalmente, e não é pouco, está adstrito a todos os deveres do comum cidadão. 63
Não certamente, neste domínio, “impor decisões, como é próprio do poder” ou fazer o advogado “sujeitar-se,
como é condição do indivíduo”, mas sim, seguramente, “agir no campo de solidariedade, como é atributo das
instituições intermédias”. Cfr., de Cunha Rodrigues, o seu Poder, Lei e Cidadania, in Em Nome do Povo;
Coimbra, Coimbra Editora, 1999; p. 296. 64
Tradicionalmente não se estatuem, por via legal, catálogos de deveres positivos; eles resultam do reverso dos
direitos. Basta compulsar a nossa Lei Fundamental para constatar tal facto.
Ou seja, há pessoas que são, ou foram, e outras que não são, ou não foram, cidadãos. O escravo, a
mulher, o condenado, o bárbaro, o estrangeiro, o apátrida, não são, ou não foram, cidadãos.
Assim se diz que há uma cidadania nacional66
por contraposição a não cidadãos nacionais, ou
estrangeiros ou apátridas. Assim se diz que há uma cidadania europeia67
por contraposição aos
cidadãos de Estados não membros da União Europeia, etc., etc. Fala-se até em cidadanias locais e
regionais, com a finalidade de conceder um estatuto que uns têm e outros não.
Cidadão é aquele que, ao contrário de outro – o não cidadão, é titular de certos direitos e goza de
determinadas liberdades e está adstrito ao cumprimento de alguns deveres. É assim também com o
advogado, como com outros profissionais.68
“A interdependência entre os direitos humanos e os deveres para com a sociedade exigem que a
comunidade não só se comprometa a garantir as condições de desenvolvimento da personalidade de
todos os seus membros, mas que cada um deles se obrigue ao respeito pelas liberdades dos outros e,
também, às exigências justas e razoáveis da comunidade. Entre estas avultam as de trabalhar, pagar
impostos e defender a pátria e, modernamente, defender um ambiente ecologicamente equilibrado”69
.
65
Ver de Cunha Rodrigues, o seu Poder, Lei e Cidadania, in Em Nome do Povo, Coimbra, Coimbra Editora,
1999, pp.295 e 296. 66
A cidadania, no sentido do vínculo de nacionalidade, como conceito dependente do Estado, imposta
artificialmente e mal interpretada, foi causa dos nacionalismos exacerbados. 67
V. o artº 8º, nºs 1 a 3 , do Projecto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. 68
“Na advocacia e na política há um compromisso cívico e de cidadania. Ambos advogados e políticos,
concorrem para o bom funcionamento do Estado de Direito. Ambos têm uma relação directa com o domínio das
leis, seja na sua elaboração, seja na sua aplicação. Ambos assumem um poder/dever de inegável relevância
social”. Cfr. de Luís Marques Mendes, O Advogado visto por…, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem
dos Advogados, 2005, p. 34. 69
v. de Alberto Martins, o seu Direito à Cidadania; Lisboa, Dom Quixote, 2000; p. 25.
Ser cidadão foi já uma garantia.70
E hoje71
? A cidadania assim vista, como estatuto que uns têm e
outros não, é um factor de desigualdade e de discriminação, como o foi – e é – na história, porque se
para alguns era factor de garantia para outros era a certeza da ausência de estatuto.
“Possui o status libertatis todo aquele que é pessoa livre e não escravo (…) tem o status civitatis todo
aquele que, além de livre, é cidadão romano e não meramente latino ou peregrino. Tem o status
familiae, finalmente, quem, além de ser livre e cidadão, é chefe de uma família autónoma, não estando
subordinado a nenhum poder estranho”72
.
A função da cidadania tem sido a de dar aos indivíduos uma expressão social, política e jurídica da sua
identidade73
, função que foi instrumentalizada pelos Estados para definir a pertença74
e a não pertença
de um indivíduo no grupo.75
“A cidadania como relação que se estabelece entre determinada pessoa e um Estado permite
estruturar a aliança entre um e outro, de modo a que o indivíduo passe a ter determinadas deveres em
relação aquele, enquanto como contrapartida o Estado se compromete a defender e a proteger aquele
70
É que “…o homem da base da pirâmide, que depois virá a tornar-se cidadão quando a Polis afirmou o seu
primado, esteve séculos a fio desarmado perante o Estado, cabendo-lhe, tão-somente, quando lhe era consentida
a oportunidade, dizer algo em sua defesa, fosse ou não capaz de o fazer ele próprio”. Cfr. de Adalberto Alves,
História Breve de Advocacia em Portugal; Lisboa, CTT, 2003; p. 28. 71
É um facto que “...o conceito de cidadania tem de certo modo perdido algo da sua importância, pela
progressiva extensão de crescentes fracções do seu conteúdo em indivíduos que dele se não podem reclamar(o
que resulta quer da construção de alguns dos direitos essenciais do cives como direitos do homem quer da
equiparação do estrangeiro ao nacional no que toca ao gozo de muitos dos restantes)...”. Cfr., de Rui Manuel
Moura Ramos, o seu Cidadania, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 1.; Lisboa, Verbo,
1983, p. 826. 72
Cfr. de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral da
Ordem dos Advogados, 1947, p. 10. 73
Por norma, e na antiguidade, a cidadania não só implicava a titularidade de direitos e o cumprimento de
deveres civis e políticos mas também uma comunidade de língua, de etnia e de religião. Confundia-se cidadania
com identidade. Ora, com Roma terminou, ou poderia ter terminado, esta tranquila e aparentemente sedutora
noção. A cidadania passava a ser um vínculo político, sobretudo após concessão de cidadania romana a todo o
Império. Pela primeira vez, as diferenças foram aceites com base num ideário mais amplo. E hoje seremos
capazes de dar um passo tão amplo? Em que se passe do império do poder para o império da lei. E em que a lei
seja igual para todos ...e acessível a todos. 74
Pertença que o visa proteger dos outros, mas que o obriga a agir para o outro. 75
Cfr., também, de José de Souto Moura, o seu artigo Cidadania e Participação do Cidadão in Direito ao
assunto; Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 127 a 146.
que a partir dessa vinculação passe a ser considerado como seu cidadão. A cidadania é uma relação
política, um estatuto de liberdade e de responsabilidade”76
.
O cidadão, pelo simples facto de o ser, tinha – tem - direitos acrescidos. Veja-se a possibilidade de
apelar a César quando imposta a sentença capital. A cidadania romana era, assim, uma garantia
pessoal, muitas vezes contra os abusos do próprio Estado.
Nos dias de hoje, pode dizer-se, pelo menos em Portugal, que “o Estado deixou de ser, de facto, o
grande ou o único «opressor»…”77
? Talvez, se nos referirmos apenas à expressão «único»...78
Certo é que nenhum Estado, por mais democrático e respeitador que se reclame, deixou de discriminar,
perseguir e oprimir e, sobretudo, de ter em si, e de pretender ter cada vez mais para si, tais
potencialidades discriminatórias, persecutórias e opressoras.79
E se isso hoje é um facto tantas vezes repetido com os próprios cidadãos nacionais revela-se tanto pior
na forma arbitrária, irresponsável e desumana como os Estados, e o Estado Português não é excepção,
tratam os estrangeiros.80
76
Cfr. de José Gabriel Pereira da Silva, o seu O Sistema Judicial e o Sistema Político, in Interrogações a Justiça;
Coimbra, Movimento Justiça e Democracia, 2003; p. 73. 77
Ver de Cunha Rodrigues, o seu Poder, Lei e Cidadania in Em Nome do Povo; Coimbra, Coimbra Editora,
1999, p. 296. 78
Certo é que nenhum Estado, por mais democrático e respeitador que se reclame, deixou de discriminar,
perseguir e oprimir e, sobretudo, de ter em si, e de pretender ter cada vez mais para si, tais potencialidades
discriminatórias, persecutórias e opressoras. 79
Já alertámos para as derivas securitárias, para a discriminação da advocacia e para a generalização das
excepções e aberrações processuais que põem em causa o ideário da justiça, a civilização democrática e os mais
sagrados princípios do processo penal. V. em Direitos do Homem – Dignidade e Justiça; Lisboa, Comissão dos
Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, 2005. 80
V. as Palavras da Bastonária Maria de Jesus Serra Lopes na sessão comemorativa do I Dia Nacional do
Advogado celebrado em 19 de Maio de 1992., in R.O.A., Ano 52, Abril de 1992; pp. 307 a 311. “os negros,
mulatos e brancos que, anos a fio, aceitaram viver em ghetos, aceitaram condições degradantes, sofreram uma
igualdade que não ia além das palavras porque a realidade a desmentia, esses mesmos negros, mulatos e
brancos não aceitaram ser injustiçados. Quantas vezes, nos hospitais, terão sido vítimas de tratamento desigual?
Quantas vezes terão sido discriminados, negligenciados, maltratados? Mas não foi isso que os fez erguer. Não
foi uma perna amputada, não foi uma morte que, talvez, pudesse ter sido evitada. Foi a injustiça. Isso os armou.
O estrangeiro é estranho e, por isso, persona non grata.81
O estrangeiro é diferente e, quantas vezes,
por incompreensão ou temor infundado da diferença, considerado uma ameaça.82
O estrangeiro é, mais
vezes ainda, alvo de desconfiança, discriminação, abuso e exploração.83
Não deixa, porém, o estrangeiro de ser pessoa. Pai. Mãe. Avô. Avó. Filho. Filha. Marido. Mulher. Um
como nós; um entre nós. Igual a nós? Ou menos igual? Com menos direitos? Ou sem direitos?84
É aqui que a cidadania se confunde com a nacionalidade. E é por aqui que a cidadania não tem, por
vezes, em devida conta a pessoa, o indivíduo, mais preocupada que está com a unidade política, a
sociedade, que lhe está subjacente.85
Isso os fez lançar fogo ao seu próprio país. É que a Justiça há-de ser o valor primeiro, sem o qual não há
sociedade civilizada. E a injustiça – tal como a fé, mas em sentido negativo – pode mover montanhas”. 81
“A tolerância desempenha um papel central nos projectos de uma sociedade multicultural e transnacional:
tolerância cultural em relação a si mesmo, em relação aos outros, em relação aos detentores do poder, à
sociedade e aos valores”. Cfr. Françoise Parisot, o seu Cidadanias Nacionais e Cidadania Europeia; Lisboa,
Didáctica, Editora, 2001; p. 120. 82
“Bons cidadãos aceitam as diferenças, podem entrar em diálogo, eles são vigilantes e activos, interessam-se
pelos negócios públicos, exigem a responsabilidade política dos titulares do poder e empenham-se em favor do
desenvolvimento progressivo da sociedade”. E uma sociedade progressista caracteriza-se pela inclusão. Cfr.
Françoise Parisot, o seu Cidadanias Nacionais e Cidadania Europeia; Lisboa, Didáctica, Editora, 2001; p. 120. 83
O que certamente choca com a universalidade, um dos traços fundamentais e inegáveis de diáspora portuguesa. 84
Apesar de tudo, os estrangeiros não estão totalmente desprotegidos, no que toca, formalmente, ao acesso ao
direito. V. o artº 7º, nº 1, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, que refere que “têm direito a protecção jurídica, nos
termos da presente lei, os cidadãos nacionais e da União Europeia, bem como os estrangeiros e os apátridas
com título de residência válido num Estado membro da União Europeia, que demonstrem estar em situação de
insuficiência económica”. E o nº 2 esclarece que “aos estrangeiros sem título de residência válido num Estado
membro da União Europeia é reconhecido o direito a protecção jurídica, na medida em que ele seja atribuído
aos Portugueses pelas leis dos respectivos Estados”. 85
“A noção de cidadania portuguesa vive, sem receio de exagerar, um singular paradoxo: a sua sólida unidade
interna, em lugar de se esfumar progressivamente devido aos diversos contactos da comunidade portuguesa com
as outras culturas ao longo dos tempos, adquiriu, pouco a pouco, uma gradual densidade, conservando contudo
os seus traços fundamentais. As razões disto são a expansão territorial ultramarina e, a seguir, a sua dispersão
geográfica após diferentes fases do fenómeno migratório em direcção ao estrangeiro. Isto significa que a
singularidade de um povo, como a experiência portuguesa o demonstra claramente, não constitui
necessariamente um factor de impermeabilidade, podendo muito bem tornar-se um instrumento privilegiado de
porosidade cultural.” Cfr., de Françoise Parisot; Cidadanias Nacionais e Cidadania Europeia; Lisboa, Didáctica
Editora, 2001; pp. 223 e 224.
A noção de pessoa (prosopon) e de personalidade (prosopikotes) vai muito para além da noção actual
de cidadão. Pelo menos enquanto a noção de cidadão86
for circunscrita a alguns e sobretudo não
igualitária, inclusiva e participativa87
.
Batalhemos, pois, pela igualdade de direitos88
, pela solidariedade e fraternidade89
, pela dignidade da
pessoa humana90
e pelo conceito de cidadania universal91
, o que obviamente trará consequências ao
nível social, económico, político e, também, ao nível do acesso ao direito92
.
Mas essa é a utopia da igualdade93
, a transmitir e a convencer uma sociedade com um profundo déficit
de cidadania94
; igualdade que derivará de um conceito, longínquo, mas queremos crer que exequível,
de cidadania universal coincidente com o da pessoa, sem qualquer tipo de discriminação.
86
“É preciso, pois, recentrar toda a problemática de justiça no seu devido lugar, ou seja, no seu destinatário
último – o cidadão”. Cfr., de Guilherme Silva, o seu Justiça: reformar ou adiar?, Lisboa, Dom Quixote, Lisboa.,
p. 205. Mas quem é, afinal, o cidadão? A resposta do homem de boa vontade só pode ser uma: a pessoa. 87
Cfr., de Diogo de Leite Campos, o seu O Cidadão – absoluto e o Estado, o Direito e a Democracia. In R.O.A,
Ano 53, de Abril de 1993, pp. 5 a 19. 88
E para a promoção da igualdade é imprescindível o reconhecimento do primado das pessoas, de cada pessoa
individualmente considerada, sobre as estruturas, e sobre a colectividade; é necessário o culto da liberdade com
responsabilidade e o apelo à consciência colectiva de reconhecimento de igual dignidade de todas as pessoas, em
todas as circunstâncias. 89
Não se esqueça o ideário da Revolução francesa “Liberdade, Igualdade e Fraternidade: pontos cardeais da
vida, estações maiores do processo de desenvolvimento humano, rotas que sinalizam os territórios individuais e
colectivos, os espaços públicos e privados, os direitos e liberdades, os deveres e obrigações de todos e de cada
um dos cidadãos.” Cfr., de Carlos Alberto Poiares, o seu Novas Gerações, Novas Cidadanias: contribuição para
a actual gramática dos direitos fundamentais in Direitos do Homem – Dignidade e Justiça; Lisboa, Comissão
dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, 2005; pp. 21 a 33. 90
“À busca da verdade dos factos e da lei, o advogado acrescenta a busca da compreensão da verdade pessoal.
Trata-se de conhecer e compreender a pessoa, situando factos concretos no conjunto de uma vida”. Cfr. de D.
José Policarpo, O Advogado visto por …; Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, 2005,
p. 76. 91
Não podemos olvidar a crescente “ausência de fronteiras”, a “verdadeira globalização”. Hoje somos já
“cidadãos do Mundo”. Temos responsabilidades universais. Na defesa dos direitos humanos, onde quer que seja.
No equilíbrio da economia global. Na defesa da ecologia e de um ambiente saudável. Na defesa, enfim, da
pessoa, quem quer que ela seja, de onde quer que ela venha. 92
“O acesso ao direito e à Justiça é a pedra de toque do regime democrático. Não há democracia sem o respeito
pela garantia dos direitos dos cidadãos. Estes, por sua vez, não existem se o sistema jurídico e o sistema judicial
não forem de livre e igual acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua classe social, sexo, raça, etnia
e religião” in Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – o caso português, Porto, Edições Afrontamento,
1996, p. 483. Acrescentamos agora nós, independentemente da sua nacionalidade ou proveniência geográfica. E
obviamente também sem dependência do princípio da reciprocidade!
A defesa oficiosa, a noção do dever individual, da responsabilidade colectiva e a praxis do
advogado e do advogado-estagiário. O ocaso do paradigma do advogado individual em
prática isolada, os riscos da advocacia pública e a proposta de uma “terceira via”.
“Sê leal com os colegas, sincero com os clientes, colaborante com os magistrados, compreensivo
com o adversário, urbano com todos: a advocacia é um magistério cívico”
António Arnaut
Decálogo (VI)
in Iniciação à Advocacia -
Deontologia, Questões Práticas;
Coimbra, Coimbra Editora; 1996; p.
142.
Há “…uma meditada hostilidade contra a advocacia; nesta, considerada a mais típica das
profissões ditas liberais, alguns acreditaram discernir uma espécie de resíduo fóssil do
individualismo declinante… e que, em breve, também deveria ser totalmente eliminada pela
transformação, que afirmam inevitável, das profissões liberais em empregos públicos”
93
Já escrevemos que o acolhimento, a integração e o combate à exclusão dos imigrantes é matéria bastante
delicada, e que será, naturalmente, um claro desafio a promover através de políticas de integração social e de
combate à exclusão, bem como assegurando a efectividade da proibição das discriminações. No que respeita às
discriminações, a realidade, sob o olhar dos direitos humanos, é dramática. Releva aqui a completa ignorância e
desconhecimento dos direitos mais elementares em caso de discriminação ou perseguição. São inúmeros os casos
de discriminação no acesso ao emprego, no tratamento recebido nos serviços públicos, na celebração de alguns
contratos, etc. Porém, escassas são as queixas recebidas pelo Departamento de Investigação e Acção Penal e mais
escassas ainda as referências na jurisprudência dos tribunais superiores. Esta realidade é potenciadora de
problemas sociais relacionados com a vulnerabilidade daquela faixa da população, tais como a pobreza e a
marginalidade, e também de manifestações nacionalistas e xenófobas a que temos vindo a assistir. 94
“Uma sociedade que não promova a integração social conduzirá, inevitavelmente, à generalização das
desordens e susceptibilizará a produção de políticas limitadoras dos direitos fundamentais, pelo menos pela
quebra da vocação universal que lhes é assinalada. A mera consignação em sede de cardápio de direitos
fundamentais revela-se, cada vez mais, exígua, insuficiente: impõe-se salvaguardar o respeito escrupuloso e
integral por esses direitos, tornando-os possíveis e exequíveis, sob pena de se violar, por omissão ou inacção, os
princípios que corporizam as grandes declarações internacionais desde logo, a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948).” Cfr., de Carlos Alberto Poiares, o seu Novas Gerações, Novas Cidadanias:
contribuição para a actual gramática dos direitos fundamentais in Direitos do Homem – Dignidade e Justiça;
Lisboa, Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, 2005; pp. 21 a 33.
Piero Calamandrei
Eles, os Juízes, vistos por um
Advogado, São Paulo, Martins Fontes,
1995, p. XLI.
“Advocacia – profissão improdutiva que é preciso eliminar”
Muammar Al Kadhafi
Discurso no Parlamento de Tripoli
1992
O acesso ao direito está constitucionalmente garantido.95
Tal como está assegurado também o
patrocínio forense.96
E, por isso, “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao
exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da
Justiça”.97
O patrocínio judiciário, ou a defesa judicial, é o terreno, por excelência, da actuação do advogado; isto
é, a representação da parte ou do sujeito processual, na arena judiciária, precisamente por um
profissional do foro, quer seja ele advogado, advogado estagiário ou, em certos casos, solicitador.98
“A função do mandatário forense – e em particular do advogado – não se restringe à prática dos actos
jurídicos em que representa o mandante; tem como medida a defesa dos interesses que lhe estão
confiados e como limite os poderes que lhe são conferidos”.99
95
O artº 20º da Lei Fundamental, sob a epígrafe de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, estabelece que
“1-A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 2- Todos têm direito, nos
termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado
perante qualquer autoridade. 3- A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça. 4- Todos
têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo
equitativo. 5- Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos
procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo
útil contra ameaças ou violações desses direitos”. 96
No artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe de patrocínio forense, é claramente
expresso que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o
patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”. 97
Cfr., artº 114º, nº 1, da Lei nº 3/1999, de 13 de Janeiro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). No nº 3 deste
preceito estabelece-se expressamente “o direito à protecção do segredo profissional; o direito ao livre exercício
do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão e o direito à
especial protecção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao
exercício da defesa”. 98
Cfr., de Miguel Teixeira de Sousa, a sua monografia As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa;
Lisboa, Lex, 1995; p.35. Aí refere que “o patrocínio judiciário distingue-se da representação do incapaz: esta
última supre uma incapacidade de exercício e uma impossibilidade de orientar devidamente a defesa de
interesses próprios, aquele justifica-se pela necessidade de atribuir a condução do processo, pelo lado das
partes [e dos sujeitos processuais, acrescentamos nós], a profissionais com a devida habilitação técnica” e,
sobretudo, “com as devidas competências humanas e formação ética”, diríamos nós. 99
Cfr. de João Luís Lopes dos Reis, o seu Representação Forense e Arbitragem; Coimbra, Coimbra Editora,
2001; p.20.
O mandato judicial, a representação e assistência por advogado100
, bem como o patrocínio judiciário
encontram-se instituídos no interesse da administração da justiça101
aos cidadãos em causa e às partes
representadas102
ou aos sujeitos processuais visados.
“O Advogado carrega nos ombros o fardo das expectativas do cliente para que lhe seja feita justiça,
defendendo-lhe a fazenda, honra, liberdade e, por vezes a própria vida”103
e a “…a actividade do
advogado reveste essencialmente uma destas três espécies: patrocínio forense, mandato não forense e
consulta jurídica”.104
A representação por profissional do foro é, ou poderá ser, não só útil para a resolução extrajudicial dos
conflitos105
ou para a mais rápida resolução do litígio, mas também para o aprofundamento da
qualidade da justiça, finalidade que parece estar em desuso, tal é a febre da eficácia e a sanha da
celeridade, que tudo o mais parece ficar esquecido.
100
V., o artº 61º nº 3 do novo Estatuto da Ordem dos Advogados o qual estabelece que “o mandato judicial, a
representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer
jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de
relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que
administrativa, oficiosa, ou de qualquer outra natureza”. 101
Se dúvidas houvesse as mesmas estariam inteiramente esclarecidas pelo teor do artº 208º da Constituição da
República Portuguesa que estatui que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do
mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”. 102
V., de Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, p.35. É
que “através desse patrocínio procura obviar-se ao uso indevido dos tribunais, por que se espera que os
profissionais forenses, dada a sua posição de relativa neutralidade perante os interesses das partes, se
abstenham de patrocinar causas insusceptíveis de sucesso e de formular, nas causas pendentes, pedidos sem
fundamento” 103
Cfr. de Adalberto Alves, História Breve da Advocacia em Portugal; Lisboa, CTT, 2003, p. 21. 104
Cfr. de Germano Marques da Silva, A Responsabilidade Profissional do Advogado (perspectiva penal) in
Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida e Costa, Lisboa, Universidade Católica, 2002;
p. 629. 105
V., de Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, Lex, 1995,
p.35. Com efeito, “...a consulta prévia realizada pelas partes aos seus advogados e as tentativas de diálogo entre
as partes encetadas por estes podem proporcionar a obtenção de uma conciliação extrajudicial e, com isso,
evitar uma acção judicial”.
Embora não seja o único factor e actor relevante na Justiça106
, o advogado - e, por seu intermédio, o
patrocínio judiciário - é também imprescindível à boa condução e conclusão dos processos judiciais.107
Para boa decisão da causa ou para a descoberta da verdade. De toda a verdade e não apenas da verdade
fácil, superficial, oficial ou oficializada, formalmente declarada com chancela burocrática.
Para a boa condução e conclusão dos processos judiciais há que contar com a livre intervenção da
advocacia e com a leal colaboração de todos os outros restantes agentes judiciários. E com o respeito,
por todos, dos direitos do cidadão e das prerrogativas do advogado.108
Para tal não subsistem dúvidas de que a planificação estratégica (desde o princípio do processo) e a
actuação táctica (em todos os actos do processo) são componentes necessárias109
à realização dos
objectivos dos cidadãos ou pretensões dos constituintes, dos fins processuais e, em última análise, dos
fins do Direito.110
106
Apesar do humor, por vezes cáustico, de Piero Calamandrei, no seu livro Eles, os Juízes, vistos por um
Advogado, São Paulo, Martins Fontes, 1995; a verdade é que acaba por concordar que ai da advocacia, que
mesmo sem perder a sua independência, coragem e sentido de justiça, perca de todo a “fé nos juízes, primeiro
requisito dos advogados”. 107
Cfr., de Miguel Teixeira de Sousa, a sua monografia As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa;
Lisboa, Lex, 1995; p.35. “Nas acções pendentes, o patrocínio judiciário visa igualmente proteger os interesses
das partes, pois que dificilmente estas saberiam observar as formalidades processuais e utilizar correctamente
os mecanismos judiciais. A isso ainda acresce a importante função de aconselhamento das partes que nelas é
realizada pelos mandatários judiciais.” 108
Como muito bem se diz sobre o conjunto de direitos e deveres processuais do arguido (artº 61º do CPP), o
certo é que “cabe ao ...defensor assegurar, em toda e qualquer altura que os direitos do arguido estão a ser
observados e assistir o arguido em todos os actos processuais em que este participar”. E que “o arguido tem
direito a ser assistido por advogado e tem direito a com ele contactar”. “Por sua vez, o advogado (constituído ou
nomeado) certamente não pode ser impedido, por forma alguma, do exercício do patrocínio, que inclui aquela
assistência (artº 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados)”, hoje artº 61º nº 3 do novo Estatuto. Sendo que “o
defensor nomeado para um acto mantém-se para todos os actos subsequentes do processo (artº 41º, nº 4, da Lei
nº 34/2004, de 24 de Julho)”. 109
O que implica a expectável e desejável continuidade do exercício do mandato ou da nomeação, o
conhecimento atempado, até para preparação, das diligências a realizar ou o acompanhamento presencial,
constante e activo, das ocorrências processuais. Sobretudo quando o cidadão mais precisa. Isto é quando se
encontra só ou contra ele está toda a máquina persecutória do Estado. Cfr., de Carlos Pinto de Abreu, Estratégia
Processual – de uma visão bélica para uma perspectiva meramente processual; Alcobaça, Edição do Autor,
2000. 110
Vide também de Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a Teoria do Processo Declarativo; Coimbra, Coimbra
Editora, 1980; p. 57. “O processo judicial, aliás como os outros processos, obedece a uma certa programação,
quer na tramitação quer na fase decisória. Em geral, uma decisão importa a disponibilidade de uma
Não é tolerável qualquer situação de impedimento de contacto e de assistência a um cidadão e, por
maioria de razão, a um arguido. Como não o é o impedimento de acompanhamento por advogado de
qualquer cidadão perante qualquer autoridade. A nossa Lei Fundamental111
é bem clara; a nossa Lei
Processual Penal112
não admite outro entendimento, e o novo Estatuto da Ordem dos Advogados113
,
também ele com força de lei, só veio confirmá-lo.
O paradigma do advogado individual em prática isolada, já o dissemos, está em crise114
. Mas a
responsabilidade social115
da advocacia parte, em primeira linha, da noção e do exercício do dever
individual e, só depois, da responsabilidade social e da acção colectiva. Por isso se diz que a advocacia
é uma função de relevante interesse público.116
E um imperativo de cidadania.117
programação final e de uma programação condicional. A programação referida ao fim parte dos efeitos
desejados e procura encontrar, tendo em consideração condições colaterais, o melhor meio para os atingir”. 111
O artº nº 20, nº 2, da Constituição da República Portuguesa estatui que “todos têm direito, nos termos da lei à
informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante
qualquer autoridade.” 112
O artº 61º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal estabelece que “o arguido goza, em especial, em
qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de ser assistido por defensor em todos os
actos processuais em que participar e, quando detido comunicar, mesmo em privado com ele”. Mas nem o
Código de Processo Penal impede que qualquer outro sujeito processual ou interveniente no processo possa
contar, sempre, com a assistência de advogado. Nem qualquer outro entendimento é defensável face à
Constituição. Cfr., de Germano Marques da Silva, o seu Direito a não estar só ou o Direito a acompanhamento
por advogado (artº 20 nº 2 da Constituição), in Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976 –
evolução constitucional e perspectivas futuras; Lisboa, AAFDL, 2001; pp. 123 a 148. 113
V., artº 61 nº 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados. 114
Cfr., de Paulo Castro Rangel, o seu Advocacia e Preconceito in R.O.A, Ano 62, Abril 2002; pp.487 a 489. 115
O tema do VI Congresso da Ordem dos Advogados é precisamente este: o da responsabilidade social do
advogado. Claro que há quem denigra esta expressão e o que com ela se quer significar. Veja-se por exemplo o
artigo Responsabilidade Social não passa de uma treta?, publicado no jornal “O Expresso” de 13 de Agosto de
2005, p.10. Outros, porém, referem que a Responsabilidade social também está ao alcance de pequenas
empresas, considerando-a uma mais valia das empresas para a comunidade, tal como se publica na “Vida
Económica” de 9-15 de Setembro, pp. 4 e 5. Aí se diz que “Responsabilidade social não é uma imposição legal,
não é uma obrigação, é uma atitude voluntária (...) é uma questão de envolvimento, que pode passar por acções
de voluntariado, disponibilização de recursos ou, desde logo, pela transposição do modelo organizacional”. 116
Ou seja, “…independentemente da natureza privada ou pública, colectiva ou individual, do beneficiário
imediato dos serviços do advogado a prestação destes corresponde à realização de um interesse público”. Cfr.
de João Luís Lopes dos Reis, o seu Representação Forense e Arbitragem, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p.
36. 117
E assim, “…os advogados fazem parte da polis como se dizia na Grécia (…). Os advogados têm uma maneira
de funcionar sobre a polis, que se revela mais plástica, mais dinâmica. Considero que os advogados tiveram, e
Cabe ao advogado uma especial responsabilidade social na forma como exerce a sua função. Sem
esquecer o permanente e escrupuloso cumprimento dos seus deveres individuais terá que pautar todo o
seu comportamento pessoal e conduta profissional, no estrito respeito por critérios éticos exigentes e
limites acima da média do comum cidadão.
A Ordem dos Advogados tem especiais atribuições e competências118
que não pode descurar,
designadamente em matéria de co-responsabilização na gestão do regime do acesso ao direito e aos
tribunais119
. Mas também no controlo ético efectivo do exercício profissional120
.
continuam a ter, uma importância fundamental como cidadãos na polis, na cidadania, na política”. Cfr. de
Fernando Lopes, O Advogado visto por…, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, 2005;
p. 63. 118
O artigo 3º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe de atribuições da Ordem dos Advogados,
estabelece que, entre outros, “constituem atribuições da Ordem dos Advogados: a) Defender o Estado de direito
e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça; b) Assegurar o
acesso ao direito, nos termos da Constituição; c) Atribuir o título profissional de advogado e de advogado
estagiário, bem como regulamentar o exercício da respectiva profissão; d) Zelar pela função social, dignidade e
prestígio da profissão de advogado, promovendo a formação inicial e permanente dos advogados e o respeito
pelos valores e princípios deontológicos; e) Defender os interesses, direitos, prerrogativas e imunidades dos seus
membros; f) Reforçar a solidariedade entre os advogados; g) Exercer, em exclusivo, jurisdição disciplinar sobre
os advogados e advogados estagiários; h) Promover o acesso ao conhecimento e aplicação do direito; i)
Contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e aperfeiçoamento da elaboração do direito; j) Ser ouvida
sobre os projectos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e ao patrocínio judiciário
em geral e propor as alterações legislativas que se entendam convenientes; l) Contribuir para o estreitamento
das ligações com organismos congéneres estrangeiros; m) Exercer as demais funções que resultem das
disposições deste Estatuto ou de outros diplomas legais”. 119
E assim, nos termos do artº 45º, nºs 1 e 2, do Regime do Acesso ao Direito e aos Tribunais, aprovado pela Lei
nº 34/2004, de 29 de Julho, e sob a epígrafe de competência da Ordem dos Advogados, estabeleceu-se que “sem
prejuízo das competências próprias dos serviços da segurança social, a Ordem dos Advogados poderá exercer
as competências previstas nesta lei, nos exactos termos nela consagrados, por meio de unidade orgânica própria
destinada a gerir o sistema de acesso ao direito, com autonomia funcional e organizacional relativamente às
suas restantes atribuições” e que “a Ordem dos Advogados pode prever, ainda, no âmbito da regulamentação da
unidade orgânica prevista no número anterior, a participação dos advogados estagiários, tendo em vista a
prossecução dos interesses específicos da formação e do acesso à profissão de advogado”. Mais, estabelece-se
também no número 3 do mesmo artigo que “as regras sobre selecção dos profissionais forenses envolvidos
respeitarão os princípios aplicáveis às entidades públicas e serão definidas por regulamento da Ordem dos
Advogados, homologado pelo Ministro da Justiça”. 120
É que “...não obstante as dificuldades do cometimento, até mesmo em razão do seu ineditismo, é possível, é
útil e conveniente construir um modelo de integração, para o controle ético do exercício profissional. Como
quase sempre se dá, nos assuntos pioneiros, o principal ingrediente é só uma vontade política de enfrentar o
desafio”. Cfr., de Sérgio Ferraz, o seu O Controlo Ético do Exercício profissional: modelos de integração na
R.O.A., Ano 60, Abril 2000; pp. 971 a 980.
É imperativo de cidadania mas também uma decorrência da responsabilidade colectiva que nos cabe a
todos enquanto profissão.
A praxis do advogado e do advogado estagiário é objecto de apertada sindicância crítica por parte das
instituições em geral e dos cidadãos em particular121
, e uma das maiores críticas que se vem fazendo ao
concreto exercício da advocacia tem que ver com o actual estado do patrocínio oficioso e da defesa
oficiosa em Portugal.122
As nomeações são aleatoriamente feitas sem que se tenha em conta a experiência profissional123
e a
especial vocação ou a real competência dos advogados ou dos advogados estagiários designados. Ora,
a crescente complexidade do edifício legislativo, as exigências das novas tecnologias124
, o
aprofundamento e o alargamento das matérias previstas em cada ramo do direito, a proliferação de
regimes especiais, de processos e de procedimentos, impõem a especialização.125
Mas as nomeações
não têm em conta, sequer, a maior parte das vezes, as áreas de actuação preferenciais de cada
advogado.
121
Cada vez que o advogado é menos diligente ou mais negligente tal repercute-se necessariamente na sua
imagem, na imagem da advocacia em geral e na descrença na justiça em última análise. O prestígio da justiça é
directamente proporcional ao prestígio de todas as profissões judiciárias, incluindo a advocacia. A crença na
justiça só existirá se os seus actores principais respeitarem as regras, respeitarem os direitos do cidadão e, enfim,
se se respeitarem a si próprios. A imagem da advocacia será aquilo que os advogados dela fizerem ou deixarem
fazer. E será aquele que resultar do esforço da Ordem e dos seus órgãos. 122
Já se constatou, bem ou mal, que “o actual sistema de defensor oficioso é muito frágil e traduz-se, vezes de
mais, num simulacro de defesa. Qualquer julgamento será tanto mais justo, quanto mais for a competência e a
qualidade técnica de todos os intervenientes. É um imperativo constitucional a garantia de assegurar aos
arguidos que não tenham mandatário constituído, uma verdadeira defesa processual, o que poderia ser
conseguido através de uma carreira de defensores públicos”. Cfr., de Renato Barroso, in Interrogações à Justiça;
Coimbra, Movimento Justiça e Democracia, 2003; p. 428. Concordamos com o diagnóstico. Não podemos porém
aceitar e concordar com a terapêutica. 123
Tem sido jurisprudência da nossa Ordem, obrigar ao patrocínio oficioso quem invoca também, em pedido de
escusa, a sua “falta de experiência no tratamento da matéria”. Cfr., o teor do Acórdão do Conselho Superior de 1
de Março de 2002, publicado na R.O.A., Ano 63, Abril de 2003, pp. 519 a 521. 124
Cfr., de Pedro Guilherme Moreira, o seu As Novas Tecnologias ao Serviço do Advogado; in R.O.A., Ano 59,
Dezembro de 1999; pp.1097 a 1136. 125
Cfr., de Rita Santos, o seu A Nova Sociedade da Informação: um apelo à especialização do advogado in
R.O.A., Ano 62, Abril 2002; pp. 491 a 520.
É que “…a mobilização dos tribunais pelos cidadãos nos domínios civil, laboral, administrativo, etc,
implica sempre a consciência de direitos e a afirmação da capacidade para os reivindicar e neste
sentido é uma forma de exercício de cidadania e da participação política”126
. Infelizmente, a
capacidade de “mobilização dos tribunais pelos cidadãos” não é a mesma para todos. Por isso se diz
que “há uma justiça para ricos e outra para os pobres”.
Ouvem-se vozes a clamar pela alteração urgente deste estado de coisas. Vozes outras clamam pela
introdução da advocacia pública. Não basta proclamar que “o sistema de acesso ao direito e aos
tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua
condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou
a defesa dos seus direitos”. Há que resolver o drama do acesso ao direito. Haverá uma “terceira via”?
Há, pois. Designadamente desenvolvendo “acções e mecanismos sistematizados de informação
jurídica e de protecção jurídica”.
Por isso mesmo, “ninguém duvida da premência em se prever no judiciário um sistema de acesso ao
direito que salvaguarde as necessidades efectivas dos mais desfavorecidos, o que se duvida é da
coerência e/ou da eficácia do sistema que temos. Temos um modelo que combinou o exercício de uma
profissão geneticamente liberal com a satisfação de necessidades eminentemente públicas, e de
simbiose final deste produto poderão advir reticências centradas num exercício contraditório que tal
modelo facilita”127
.
Ora, para construir uma sociedade verdadeiramente igualitária, “…medida absolutamente necessária
diz respeito à garantia de assistência judiciária a todos os cidadãos que dela careçam. Sem pôr em
causa o carácter liberal da advocacia, é indispensável criar uma instituição pública que assegure a
todos os cidadãos uma defesa oficiosa adequada, ultrapassando a situação actual, em que tal tarefa é
assegurada por estagiários de advocacia, forçosamente inexperientes e na sua maioria mal apoiados,
126
Cfr., de AAVV, os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – o caso português; Porto, Edições
Apontamento, 1996; p. 54. 127
Cfr., de Luís António Noronha do Nascimento, O Advogado visto por…, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa
da Ordem dos Advogados, 2005, p. 96.
tornando-se em muitos casos uma mera formalidade burocrática, nas quais tudo se resume a um «peço
justiça» ritualmente repetido”128
.
Ora, esta instituição pública não tem que ser obrigatoriamente um departamento estatal. Dependente do
poder, dependente do Governo. Nem deve sê-lo, sob pena de instituir-se a “advocacia pública”, com
tudo o que de pernicioso acarreta.129
Há, pois, que repensar a acção do advogado, há que repensar o acesso ao direito130
, de modo a que,
com espírito de serviço público131
, se cumpra a solidariedade exigível, sempre com a independência132
desejável, incompatível com qualquer publicização da advocacia. É “…o Advogado, num Estado de
direito, indispensável à Justiça e aos cidadãos, cujos direitos e liberdades ele tem a responsabilidade
de defender e de quem é o conselheiro ou o defensor; a sua missão impõe-lhe múltiplos deveres e
obrigações, por vezes aparentemente contraditórias, relativamente ao cliente, aos tribunais e a outras
autoridades… [e a advocacia] uma profissão liberal e independente, vinculada pelo respeito das
regras que ela própria criou, é um meio essencial de salvaguardar os direitos do Homem, face ao
Estado e aos outros poderes”133
.
128
Cfr., de António Filipe, o seu Colapso da Justiça exige medidas estruturais in Justiça em Crise? Crises da
Justiça, Lisboa, Dom Quixote, 2000; p. 114. 129
“A lição histórica mostra que, nos países de regime autocrático, a advocacia foi «espartilhada» ou até mesmo
«funcionalizada», perdendo afinal autonomia”. Cfr., de Abel Laureano, o seu O Cliente e a Independência do
Advogado (uma chave de deontologia profissional), Lisboa, Quid Juris, 2000; p. 29. 130
Até porque, de acordo com o nº 1 do artº 3º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, “o sistema de acesso ao
direito e aos tribunais funcionará por forma que os serviços prestados aos seus utentes sejam qualificados e
eficazes”, o que está por demonstrar. 131
Que não se confunde com o espírito de servidor, ou funcionário, público, por muito nobre e necessária que
seja, e é, a função. 132
Ou seja, nos termos do artigo 84º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe de independência,
estabelece-se que “o advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua
independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses
ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu
cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”. 133
Cfr., de Orlando Guedes da Costa; o seu Direito Profissional do Advogado – noções elementares, 3ª ed.;
Coimbra, Almedina, 2005; p. 6.
Mas para que tal se possa concretizar não é necessária a advocacia pública, com todos os riscos que
comporta134
, mas sim uma “terceira via”, um novo advogado e uma nova advocacia, mais empenhada e
mais solidária, mas sobretudo um novo sistema de acesso ao direito, mais igualitário, justo, eficaz e
eficiente.
134
Subserviência, rotina, ineficácia, desperdício, acomodação, temor, desmotivação, discriminação, arrogância,
laxismo, etc., etc... tudo, enfim, o que de melhor tem sido a experiência e o exemplo de quanto é, e não devia ser,
o serviço público em Portugal!
A solidariedade e o espírito de serviço público e as especiais responsabilidades
individuais e institucionais da profissão. A necessidade de repensar o acesso ao Direito.
Vimos já os especiais deveres, e a responsabilidade, do advogado135
; analisámos também as
obrigações, e a responsabilidade, da Ordem dos Advogados; não podemos agora esquecer algumas das
finalidades do direito136
– atingir o equilíbrio onde há desequilíbrios, construir a segurança onde foi
imposta a desordem, corrigir assimetrias injustas, alcançar a paz onde grassa o litígio, enfim, servir as
pessoas, todas as pessoas, e solucionar conflitos, quando estes não possam ser de outro modo
resolvidos.
A solidariedade e o espírito de serviço público sempre foram apanágio da profissão137
, mas não
escamoteamos, nem podemos recusar, a nossa quota parte na responsabilidade pela crise da justiça138
e
as especiais responsabilidades individuais e institucionais da profissão139
, designadamente no que
135
Assim sendo, “…o advogado é uma espécie de Dom Quixote dos tempos modernos. Hoje, o advogado tem
que dar garantias aos cidadãos que existe, resiste, persiste e insiste. Que é alguém capaz de lutar ou ir à procura
de uma causa perdida. (…) Os instrumentos do advogado são a palavra e a racionalidade. O advogado tem de
desconstruir os sistemas dominantes, tem de saber como os interpretar e reorientar. O advogado tem de fazer
das leis cegas, leis que possam servir para lembrar que o seu cliente ou o cidadão são pessoas”. Carlos Magno,
O Advogado visto por..., Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, 2005; p. 19. 136
“O Direito nasceu para servir o Homem – tal como este é, com as suas virtudes e defeitos, com a sua falível e
imperfeita natureza”. Cfr. de Abel Laureano, O Cliente e a Independência do Advogado (uma chave de
deontologia profissional); Lisboa, Quid Juris, 2000; p. 126. 137
“Para alguns, o advogado é tradicionalmente o “defensor do órfão e da viúva, o paladino abnegado de todas
as nobres causas, aquele cujo devotamento se volta inteiramente para todos os oprimidos, todos os infelizes,
todos os deserdados da fortuna, e que faz ouvir perante a justiça a voz da piedade humana e da misericórdia”
Cfr., de Henri Robert, O Advogado, São Paulo, Martins Fontes, 1999; p. 5. 138
“Os advogados, por seu turno, pretendem apresentar-se como vítimas do estado caótico a que chegou a
justiça, mas esquecem-se geralmente do seguinte: em primeiro lugar, que a «crise» da justiça – designadamente
a morosidade processual – não deixa muitas vezes de interessar às partes e, em consequência, aos seus
mandatários; em segundo lugar, que os advogados não estão inocentes no statu quo do sistema judicial, já que
muitas das reformas não podem ser empreendidas para não afectarem os seus interesses; finalmente, que, de um
ponto de vista técnico-jurídico, a qualidade média da advocacia portuguesa é, de um modo geral,
comparativamente muito mais baixa do que a dos juízes ou dos magistrados do Ministério Público”. Cfr., de
António Araújo, o seu A Crise da Justiça Portuguesa (breves considerações) in Justiça em Crise? Crises da
Justiça; Lisboa, Dom Quixote, 2000; p.70. 139
“Havendo hoje em Portugal mais de vinte mil advogados (o nosso é um dos países que maior número de
advogados tem em relação à população), temos de reconhecer que nem todos são excelentes: ao lado de alguns
excepcionais, conhecedores profundos do direito, estudiosos atentos da matéria de facto, colaboradores leais, há
respeita ao real apoio aos mais carentes e miseráveis140
e, por conseguinte, à garantia do acesso ao
direito141
.
Quando se “constituem atribuições da Ordem dos Advogados” por um lado, “defender o Estado de
Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça” e,
por outro, “assegurar o acesso ao direito” está-se a cometer uma especial responsabilidade social ao
conjunto dos advogados142
, mas não só. Porque é, no fundo, ao advogado, a cada um dos advogados,
que cabe exercer o mandato forense143
e assegurar a consulta jurídica144
.
Para que a Lei seja efectivamente igual para todos145
, para que o Direito seja uma realidade a todos
acessível146
e a Justiça seja justa, actual e pronta, e sirva os cidadãos com eficiência, as reformas são
outros que não reúnem esses requisitos”. Cfr. Álvaro Figueira in Interrogações à Justiça; Coimbra, Movimento
Justiça e Democracia, 2003, pp.166 e 167. 140
“O quadro histórico e cultural do exercício desta profissão situa-se, exactamente, nesse campo da ajuda
fraterna, em momentos particularmente exigentes de discernimento, de assimilação da verdade e da
responsabilidade” Cfr. de D. José Policarpo, O Advogado visto por …, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da
Ordem dos Advogados, 2005; p. 72. 141
Pois que apesar da proclamação formal da existência de direitos, “…na intrínseca conflitualidade entre
direitos ou entre deveres perante os direitos dos outros ou da comunidade, talvez o que melhor caracterize a
realidade moderna seja a precariedade das garantias ou a distância entre o proclamado e o vivido”. Cfr., de
Alberto Martins, o seu Direito à Cidadania; Lisboa, Dom Quixote, 2000; p. 26. 142
Têm os vários órgãos da Ordem, a saber o Conselho Geral, o Conselho Distrital e a Delegação especiais
competências, o primeiro, na definição da posição da Ordem dos Advogados “no que se relacione com a defesa
do Estado de Direito, dos direitos, liberdades e garantias e com a administração da justiça”, o segundo, para
“nomear advogado ao interessado que lho solicite por não encontrar quem aceite voluntariamente o seu
patrocínio” e, a terceira, se o segundo o não fizer, “promover a criação e instalação de gabinetes de consulta
jurídica, bem como exercer as demais funções no âmbito do acesso ao direito”. 143
E, nos termos do artigo 62º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe de mandato forense,
estabelece-se que “1-Sem prejuízo do disposto na Lei Nº 49/2004, de 24 de Agosto, considera-se mandato
forense: a) O mandato judicial para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões
arbitrais e os julgados de paz; b) O exercício do mandato com representação, com poderes para negociar a
constituição, alteração ou extinção de relações jurídicas; c) O exercício de qualquer mandato com
representação em procedimentos administrativos, incluindo tributários, perante quaisquer pessoas colectivas
públicas ou respectivos órgãos ou serviços, ainda que se suscitem ou discutam apenas questões de facto. 2- O
mandato forense não pode ser objecto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha
pessoal e livre do mandatário pelo mandante”. 144
Nos termos do artigo 63º do Estatuto da Ordem dos Advogados “constitui acto próprio do advogado o
exercício de consulta jurídica nos termos definidos na Lei Nº 49/2004, de 24 de Agosto”. 145
“Ora, a pretensão de um legalismo absorvente e excessivo, esperançado que a norma modela
comportamentos, instituições e até realidades, será sempre uma contrafacção da justiça se colocar à margem da
absolutamente necessárias, tanto as de carácter constitucional e legal, como institucional, orgânico e
prático.147
. Mas sempre tendo em conta um advogado livre e independente148
. Sobretudo quando actua
perante os poderes e litiga no tribunal149
.
Porque é necessário então o advogado? E o advogado no tribunal? Desde logo e “…primeiramente
porque só ele separando o trigo do joio, conforme a locução popular, sabe extrair de um amontoado
de elementos o que pode interessar ao tribunal, evitando assim que os magistrados malbaratem a sua
actividade na destrinça entre o que vale e o que não presta; em segundo lugar, porque quem patrocina
uma questão no pretório deve ter a cultura geral e profissional necessárias para expor com clareza e
precisão convenientes a matéria de facto e saber enquadrá-la nas disposições legais reguladoras; em
terceiro lugar porque uma tal exposição tem de ser feita não só com clarividência mas com serenidade
e sem paixão”. 150
Todos os processos judiciais, e a retórica a eles subjacente, visam objectivos vários, muitos deles
conflituantes, mas que se podem reconduzir à busca da Justiça, ao respeito pela Lei, à procura da
Equidade, à reposição da Ordem, à obtenção da Paz, à consecução do Bem Comum, à manutenção da
Segurança e ao recíproco Respeito, assim se recordando, entre outras, as velhas máximas latinas
efectiva igualdade de oportunidades os excluídos e pobres da humanidade” Cfr., de Alberto Martins, o seu
Direito à Cidadania; Lisboa, Dom Quixote, 2000; pp.11 e 12. 146
Cada vez mais se torna “…o direito como elemento «fundador», «regulador» e «controlador» da actividade
do Estado”. E, acrescentamos nós, elemento necessário à vida em sociedade e imprescindível à promoção da
igualdade. Ver, de Cunha Rodrigues, O Advogado visto por um Magistrado; in Lugares do Direito; Coimbra,
Coimbra Editora, 1999, p. 175. 147
Cfr., o Prefácio de António Barreto à obra Interrogações à Justiça; Coimbra, Movimento, Justiça e
Democracia, 2003; p. 18. 148
Pois que nos termos dos números 1 e 2 do artigo 76º do Estatuto da Ordem dos Advogados “o advogado
exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de
forma isenta, independente e responsável” e “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo,
função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão”. 149
“Uma vez que os direitos de cidadania, quando interiorizados, tendem a enraizar concepções de justiça
retributiva e distributiva, a garantia de uma tutela por parte dos tribunais tem geralmente um poderoso efeito de
confirmação simbólica”. Cfr. de AAVV. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – o caso português;
Porto, Edições Apontamento, 1996, p. 55. 150
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX; Vol. I; Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, p. 87.
«summum ius, summa injuria», «dura lex sed lex», «libertas inaestimabilis est», «pacta sunt servanda»,
«sum quique tribuere» e «audi alteram partii»151
Mas a assistência do advogado não se pode limitar à intervenção em tribunal. Porque nem todos os
problemas surgem no Tribunal ou são resolúveis no foro. Daí “…o acesso ao advogado integrar,
afinal, o próprio princípio do acesso ao direito, na medida em que o recurso aos serviços de um
advogado em que o litigante deposite confiança é condição da realização do seu direito a um
julgamento justo. Do mesmo modo que o recurso à prestação de serviços de consulta jurídica por
advogado é condição da realização do direito, à informação e à orientação jurídica”152
.
Ou seja, não sendo sua função primordial, “…é possível que o advogado se transforme, ele próprio,
num mecanismo de resolução do litígio…”153
, até porque “…o advogado deve exercer também uma
função de pacificação social. Aconselhando quando procurado, privilegiando procedimentos de
conciliação e transacção, promovendo uma informação activa e exercendo pela sua própria conduta,
uma pedagogia cívica”154
.
O difícil é compatibilizar interesses diversos e, por vezes, contraditórios; daí que se diga que “há que
encontrar um equilíbrio entre o individual e o colectivo, tal como entre os direitos e os deveres, a
solidariedade e a assistência, sem o qual o cidadão se encontrará [fragilizado e]
desresponsabilizado”155
. É difícil, mas é também um imperativo de justiça.156
151
Cfr., de Carlos Pinto de Abreu, o seu Estratégia Processual – de uma visão bélica para uma perspectiva
meramente processual; Alcobaça, Edição do Autor, 2000, p. 43. 152
Cfr., de João Luís Lopes dos Reis, o seu Representação Forense e Arbitragem; Coimbra, Coimbra Editora,
2001, p. 37. 153
Cfr., de AAVV, Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – O caso português; Porto, Edições
Afrontamento, 1996, p. 50. 154
Cfr., de Cunha Rodrigues o Advogado visto por um Magistrado in Lugares do Direito; Coimbra, Coimbra
Editora, 1999, p. 184. 155
Cfr., de Françoise Parisot; Cidadanias Nacionais e Cidadania Europeia; Lisboa, Didáctica Editora, 2001; p.
31. 156
Pois que “por um lado, a justiça não se destina apenas a resolver os conflitos, o que já não seria pouco. A
justiça tem uma missão muito mais importante e geral a de permitir que as liberdades sejam efectivas, que a
democracia funcione, que se estabeleça a segurança essencial, que a ordem pública seja possível e faça sentido e
O artigo 83º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe de integridade, dispõe que “o
advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público
e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e
escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos,
costumes e tradições profissionais lhe impõe” e que “a honestidade, probidade, rectidão, lealdade,
cortesia e sinceridade são obrigações profissionais”.157
Não será demais registar que nenhuma outra
profissão judiciária exige tanto dos seus membros e é tão clara e abrangente na estatuição dos seus
deveres.
Uma advocacia independente assente no advogado livre é essencial, é mesmo imprescindível, mas não
é suficiente. Porque nem sempre é possível ao advogado, a cada um dos advogados, que cabe exercer o
que o mercado não se transforme numa selva”. Cfr., o Prefácio de Álvaro Barreto in Interrogações à Justiça;
Coimbra, Movimento Justiça e Democracia, 2003; p. 20 157
E para isso, nos termos do artigo 85º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe de deveres para
com a comunidade, fica bem claro que “o advogado está obrigado a defender os direitos, liberdades e garantias,
a pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e
instituições jurídicas [e que] “em geral, constituem deveres do advogado para com a comunidade: a) não
advogar contra o direito, não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente
dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correcta aplicação de lei ou a descoberta da verdade; b) recusar os
patrocínios que considere injustos; c) verificar a identidade do cliente e dos representantes do cliente, assim
como os poderes de representação conferidos a estes últimos; d) recusar a prestação de serviços quando
suspeitar seriamente que a operação ou actuação jurídica em causa visa a obtenção de resultados ilícitos e que o
interessado não pretende abster-se de tal operação; e) recusar-se a receber e movimentar fundos que não
correspondam estritamente a uma questão que lhe tenha sido confiada; f) colaborar no acesso ao direito; g) não
se servir do mandato para prosseguir objectivos que não sejam profissionais; h) não solicitar clientes por si ou
por interposta pessoa”. Sem esquecer que, nos termos do artigo 86º do Estatuto da Ordem dos Advogados
“constituem deveres do advogado para com a Ordem dos Advogados: a) não prejudicar os fins e prestigio da
Ordem dos Advogados e da advocacia; b) colaborara na prossecução das atribuições da Ordem dos Advogados,
exercer os cargos para que tenha sido eleito ou nomeado e desempenhar os mandatos que lhe forem confiados;
c) declarara, ao requerer a inscrição, para efeito de verificação de incompatibilidade, qualquer cargo ou
actividade profissional que exerça; d) suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo
máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorrer incompatibilidades
supervenientes; e) pagar pontualmente as quotas e outros encargos, designadamente as obrigações impostas
como penas pecuniárias ou sanções acessórias, devidos à Ordem dos Advogados, estabelecidos neste Estatuto e
nos regulamentos; f) dirigir com empenhamento o estágio dos advogados estagiários; g) comunicar, no prazo de
30 dias, qualquer mudança de escritório; h) manter um domicílio profissional dotado de uma estrutura que
assegure o cumprimento dos seus deveres deontológicos, nos termos de regulamento a aprovar pelo conselho
geral; i) promover a sua própria formação, com recurso a acções de formação permanente, cumprindo com as
determinações e procedimentos resultantes da regulamentação a aprovar pelo conselho geral”.
mandato forense e assegurar a consulta jurídica, responder a todas as necessidades da sociedade. E nem
sempre quando estes respondem individual e isoladamente a resposta é a mais adequada. Por isso é
preciso uma Ordem que intervenha. Que intervenha criando, ou propondo a criação ao Estado158
, de
gabinetes de consulta jurídica local e geograficamente bem enquadrados e dotados de meios humanos
adequados e equipamentos mínimos; de serviços de acolhimento nos tribunais e serviços judiciários e
de gabinetes de consulta jurídica nos Estabelecimentos Prisionais e nos Centros Educativos.
158
Que deve assegurar o seu financiamento a longo prazo.
A RESPONSABILIDADE SOCIAL DO ADVOGADO E DA ORDEM DOS
ADVOGADOS
O exercício empenhado da Cidadania como emanação dos deveres de solidariedade
individual e dos deveres de participação e de intervenção na vida pública. A importância
da sensibilização para os direitos humanos, da formação e da especialização e da acção
individual e colectiva.
“Talvez o que caracterize melhor o mundo contemporâneo seja esta paradoxal coincidência de
subida do nível da consciência dos direitos, quer individuais, quer sociais, e a capacidade, também
individual ou colectiva, de os neutralizar, numa indiferença total, não só empírica, como reflectida
e até teorizada, pelo absoluto desrespeito pela legalidade e pela quase lúdica assumpção da
impunidade. A sociedade reage ou é sensível a esta denegação da norma ou ofensa do laço social
provocada pela violência sem código ou codificada, sobretudo quando convenientemente
mediatizada, mas é quase insensível ao abuso e à banalização da mesma violência na esfera
privada, aquela que atinge o individuo como tal”
Eduardo Lourenço
apud Direito à Cidadania de Alberto Martins;
Lisboa, Dom Quixote, 2000; pp. 26 e 27.
“Sê diligente, estuda e cultiva-te: o trabalho, a ciência e a cultura é que dão força à tua voz”.
António Arnaut
Decálogo (IV)
In Iniciação à Advocacia-Deontologia.
Questões Práticas; Coimbra, Coimbra Editora,
1996; p. 143.
Em síntese, “a advocacia é uma função nobre e humanista. Servir o direito e a justiça, apoiar os
fracos e os oprimidos, defender a vida, a honra, a liberdade e os interesses legítimos dos cidadãos, e
pugnar por um mundo melhor”159
. E essa é, no fundo, em poucas palavras, a nossa responsabilidade
social.
O que se espera de um cidadão mais não é do que o comportamento cívico, o civismo, daquele que,
pertencendo a uma dada comunidade, observa as suas regras e participa na vida política, na vida social
e, também, na vida judiciária. “O processo de renovação da justiça é um desafio permanente das
sociedades modernas, as quais se confrontam hoje com a globalização das trocas, das novas
tecnologias e com a internacionalização das relações sociais do direito e, também, com a
internacionalização do crime”160
. O que se espera do advogado, vimos já: acção digna e livre,
autonomia técnica, isenção e responsabilidade, empenhamento na administração da justiça, honestidade
e lealdade, probidade e rectidão, cortesia e sinceridade. Mas há que cultivar estas características. Elas
não são estáticas e não se mantêm para sempre sem um esforço continuado. A adequada, permanente e
empenhada formação inicial e contínua, que “...obstará a que o advogado involuntariamente erre e
induza em erro;... obtém-se por uma conveniente habilitação literária e jurídica, há muito fixada no
mínimo de uma formatura em direito e, actualmente, de uma licenciatura seguida da prestação de um
estágio”161
ou exigirá algo mais? Por exemplo, a especialização162
. Mas não só!
É que, nos termos do artigo 190º do novo Estatuto da Ordem dos Advogados “a formação contínua
constitui um dever de todos os advogados, sendo da responsabilidade da Ordem dos Advogados a
organização dos serviços de formação destinados a garantir uma constante actualização dos seus
conhecimentos técnico-jurídicos, dos princípios deontológicos e dos pressupostos do exercício da
actividade, incidindo predominantemente sobre temas suscitados pelo desenvolvimento das ciências
jurídicas e dos avanços tecnológicos e pela evolução da sociedade civil”.
159
Cfr., de António Arnaut, Iniciação à Advocacia. História – Deontologia. Questões Práticas, 3ª ed., Coimbra,
Coimbra Editora, 1996; p. 51. 160
Cfr., de Alberto Martins, o seu Direito à Cidadania; Lisboa, Dom Quixote, 2005; pp. 21 e 22. 161
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Vol. I, Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, pp. 87 e 88. 162
Cfr., de Rita Santos, o seu A Nova Sociedade da Informação: um apelo à especialização do advogado in
R.O.A., Ano 62, Abril 2002; pp. 491 a 520.
E se esta formação é essencial, a formação humana, a transmissão da experiência, a instilação da
prudência, o ensino da deontologia e a sensibilização para os direitos humanos, mais do que
fundamental, é imprescindível. “O Advogado tem de ser justo e esperto no direito ou ramo do direito a
que se dedica, dominar o verbo para dizer o que precisa e só, mas sobretudo tem de ser corajoso e
prudente, porque mesmo o justo sem coragem não ousará combater a injustiça, como sem a prudência
não saberá como fazê-lo”163
. E a prudência é o resultado da experiência acumulada e da ponderação
calculada. No terreno. Na acção. No exercício da profissão. Sempre livre e independente164
.
Falando-se da “utilidade social da profissão de advogado”, afirma-se que “a advocacia é, no conceito
de Henri-Robert, a mais bela e a mais penosa das vidas – é sem dúvida uma nobre ocupação quando
nobremente praticada, respondendo a uma necessidade social e envolvendo o seu exercício grande
melindre”165
. Não pode, pois, deixar-se a formação inicial, sobretudo no capítulo da deontologia, mas
também no que toca às práticas forenses, fora da Ordem dos Advogados e, sobretudo, ausente da
experiência e órfã dos saberes acumulados dos Colegas mais velhos. É, se for assim, um erro crasso e
um risco tremendo para o futuro. Mas também não pode menosprezar-se a necessidade, diríamos
mesmo a obrigatoriedade da formação contínua. Porque a advocacia é uma necessidade social latente,
premente e crescente, porque a sociedade não pára, o direito não estagna e a profissão tem que avançar,
ou estiola, foi cometida à Ordem mais uma atribuição: a de prover serviços de formação contínua166
,
para que a nossa acção individual e colectiva possa ser mais pronta e eficaz e responda mais
adequadamente às necessidades e solicitações do indivíduo e da sociedade.
163
Cfr., de Germano Marques da Silva, A Responsabilidade Profissional do Advogado (perspectiva penal) in
Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida Costa, p. 642. 164
V. as Palavras do Presidente da República no Dia Nacional do Advogado ao condecorar a Ordem dos
Advogados com a Ordem da Liberdade, in R.O.A., Ano 52, Abril de 1992, pp. 303 a 306. 165
Cfr., de José Pinto Loureiro, o seu Jurisconsultos Portugueses no Século XIX, Vol. I; Lisboa, Conselho Geral
da Ordem dos Advogados, 1947, p. 86. 166
O artigo 191º do Estatuto da Ordem dos Advogados dispõe que “o conselho geral regulamenta a organização
de formação contínua a nível nacional que garanta o cumprimento do dever referido no artigo anterior,
assegurando a uma efectiva coordenação das iniciativas dos centros de estudos e dos serviços de formação dos
diversos centros distritais de estágio e delegações comarcãs que se constituam como pólos de formação
permanente. [e que] na elaboração dos programas de formação contínua podem ser prosseguidas parcerias e
formas de colaboração e participação com outras entidades ou instituições”.
O exercício livre da Advocacia como condição necessária, mas insuficiente, para a
promoção da efectiva igualdade entre os cidadãos e para a protecção do indivíduo face à
inércia e ao abuso do poder. Disponibilidade do Advogado e responsabilidade do Estado.
“O advogado «é o homem livre, na verdadeira acepção da palavra. Não pairam sobre ele senão as
servidões voluntárias; nenhuma autoridade estranha paralisa a sua actividade individual; a ninguém
deve contar das suas opiniões, das suas palavras ou dos seus actos; não tem outros senhores que não
seja a lei. Daí, nos advogados, um orgulho natural, por vezes irreverente, e um sorridente desdém de
tudo que seja oficial ou hierarquizado”.
Raimond Poincaré
in Adelino da Palma Carlos, Homem do Foro:
a vida e a ficção, R.O.A., Ano 13, nºs 1-2;
apud Advogados - elogio e crítica, de
Alberto Sousa Lamy; Coimbra, Almedina,
1984, p. 80.
Para Justiça alcançar
Três coisas são mister
Tê-la, dá-lo a entender
E que no-la queiram dar
Quadra popular recolhida por
Jorge Sintes Pros,
apud O Cliente e a Independência do
Advogado (uma chave de deontologia
profissional) Lisboa, Quid Juris, 2000, p. 30.
“…a igualdade imposta mata a liberdade e a liberdade sem regras oprime e mata a igualdade”
Alberto Martins,
Direito à Cidadania; Lisboa, Dom
Quixote, 2000; p. 89.
O exercício digno e livre167
da advocacia é condição necessária, primeiro, para a promoção da efectiva
igualdade entre os cidadãos e, depois, para a protecção do indivíduo face à inércia e ao abuso dos
poderes instituídos. Por isso se diz que o advogado tem que “…ser em cada causa, causa de justiça.
Exercer, pelo combate pacífico e pelo exemplo, uma verdadeira magistratura moral e cívica. Defender
o Estado de Direito, protestar contra as violações dos direitos humanos e combater as
arbitrariedades, é um dever indeclinável do advogado…”168
.
A advocacia, para ser digna de confiança169
e credibilidade, é uma luta permanente contra os arbítrios,
os incumprimentos e as iniquidades.170
“São os advogados quem, ainda hoje e por todo o mundo,
velam para a realização do Direito e combatem as leis injustas. Quando todas as portas se fecham
diante do cidadão anónimo a chamar por justiça, há ainda alguém disponível para escutar as suas
razões e bater-se por elas”171
.
Há, porém, que reconhecer que a educação para a cidadania172
e o esforço isolado173
do advogado pode
dar frutos, aqui ou ali, mas será sempre – se não acompanhado do esforço de outros174
– condição
167
“É que ser advogado constitui a obrigação de servir a justiça. E servir a justiça, na fase preventiva, impõe
saber evitar o litígio. Na fase subsequente, quando o diferendo já existe, há que tentar eliminá-lo ou, se
impossível, cumpre oferecer ao julgado o melhor estudo sobre a versão que se defende. (…) É, por isso sim, uma
actividade, onde a independência e a dignidade têm um preço enorme”. Cfr. de António Pires de Lima, o seu
Sempre houve crise in Justiça em Crise? Crises da Justiça; Lisboa, Dom Quixote, 2000; p. 130. 168
Cfr., de António Arnaut, a sua Iniciação à Advocacia. História – Deontologia. Questões Práticas, 3ª ed.;
Coimbra, Coimbra Editora, 1996; p. 45. 169
“Um advogado não é apenas um técnico do direito, por melhor técnico que seja. Um advogado é o depositário
da confiança dos seus clientes e de terceiros, e um exemplo vivo de ética, urbanidade, respeito pela lei e pelo
direito, na permanente observação dos interesses que lhe cumpre defender”. Ver, de Rogério Alves, no Prefácio
à Colectânea de Legislação Profissional; Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, 2005,
p. 9. 170
“A luta pelos direitos humanos é uma luta pela justiça, a qual se cumpre na vida quotidiana dos cidadãos, nas
suas partilhas, arbitragens, conflitos. Mas também nas instâncias judiciárias, de garantia judiciária, onde o
acesso ao direito e à realização da justiça são valores que justificam a própria justiça”. Cfr., de Alberto Martins,
o seu Direito à Cidadania; Lisboa, Dom Quixote, 2000; p.21. 171
Cfr., de António Arnaut, Iniciação à Advocacia. História – Deontologia. Questões Práticas, 3ª ed., Coimbra,
Coimbra Editora, 1996, p. 45. 172
Cfr., de Fernão Fernandes Thomaz, o seu Educação para a cidadania e limitação do acesso aos Tribunais, in
R.O.A., Ano 61, Dezembro; pp. 1335 a 1366. 173
“A Advocacia é uma das funções chaves da democracia, e é tal a sua projecção social que, embora sendo uma
profissão liberal rende um serviço insubstituível aos cidadãos e à justiça”, disse-o Maria Mérida, em 1996, no
decurso da iniciativa Hablan los Jueces.
insuficiente para a promoção de desejada e efectiva igualdade de oportunidades175
. Não se esqueça que
“…ser advogado é um dos mais nobres exercícios do direito de cidadania. O advogado é um
combatente da liberdade e um lutador pelos direitos do cidadão”.176
Luta que é muita vezes perdida e
será sempre interminável. Por isso é que muitas vezes desabafamos, nos momentos de impotência, de
desânimo ou de derrota, queixando-nos que “a vida de advogado, entre a ingratidão dos clientes a
quem nos dedicamos, a deslealdade dos colegas com quem esgrimimos e a incompreensão dos juízes
com quem cooperamos, não é profissão é um inferno!”177
Por isso, e por tudo o mais que se disse já, “(…) ser-se advogado implica uma grande responsabilidade
social. (…) Um exemplo paradigmático está na defesa do princípio do acesso ao direito por parte de
todos os cidadãos. Não é por acaso que são os advogados – e a respectiva Ordem, à cabeça, importa
reconhecê-lo e sublinhá-lo - os primeiros a defenderem e a lutarem por um regime claro e exequível
de acesso ao Direito”178
. Mas um regime claro e exequível de acesso ao direito, se está condicionado
pela actuação do Estado, se depende da assunção pelo Estado das suas responsabilidades 179
,
designadamente financeiras, depende também da vontade dos advogados no seu conjunto, isto é, do
empenhamento da Ordem dos Advogados e da disponibilidade de cada advogado.
174
Cfr., de Alfredo Gaspar, o seu O Advogado e a sua liberdade de expressão nos tribunais in R.O.A., Ano 48,
Dezembro de 1988; pp. 991 a 1038. 175
Basta estar atento às discriminações e injustiças, e não virar as costas às denúncias, queixas e queixumes, para
perceber que a sociedade em que vivemos é profundamente economicista, hipócrita e egoísta; o Estado que temos
quantas vezes se demite das suas funções ou abusa dos seus poderes, e viola os mais sagrados direitos do cidadão,
sem esquecer ainda que o povo que somos, no geral, só reclama direitos esquecendo que a cada direito
correspondem também deveres. 176
“Na nossa época cabe aos advogados, em exclusivo, assegurar a função social da defesa em processo crime e
os interesses judiciais das partes em processo civil; temos de o fazer com espírito de serviço, responsabilidade e
diligência”. Cfr., de Júlio de Castro Caldas, o seu Discurso da Tomada de Posse in R.O.A., Ano 56, Janeiro de
1996; pp. 427 a 432. 177
Expressão de autor desconhecido que correu na net no ano de 2004. 178
Cfr., de Luís Marques Mendes, O Advogado visto por…; Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, 2005; pp.31 e 32. 179
Pois que, nos termos do n º 1 do artº 2º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, “o acesso ao direito e aos tribunais
constitui uma responsabilidade do Estado, a promover, designadamente, através de dispositivos de cooperação
com as instituições representativas das profissões forenses”. E conforme dispõe o artº 4º do mesmo diploma
legal “incumbe ao estado realizar, de modo permanente e planeado, acções tendentes a tornar conhecido o
direito e o ordenamento legal, através de publicação e de outras formas de comunicação, com vista a
proporcionar um melhor exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres legalmente estabelecidos”.
Finalmente, estatui ainda o artº 5º que “no âmbito das acções referidas no artigo anterior serão gradualmente
criados serviços de acolhimento nos tribunais e serviços judiciários”.
Três desafios para o século XXI: a (real e efectiva) possibilidade de consulta jurídica aos
cidadãos do mundo; a (efectiva e digna) defesa oficiosa nos Tribunais e perante os
Poderes e a Administração e a (permanente e eficaz) assistência jurídica aos privados de
liberdade nas Prisões e nos Centros Educativos.
“Não há na sociedade um ente fraco e desprotegido vítima de perseguição violenta e insidiosa, nem
direito ignorado, liberdade asfixiada que peça socorro a um advogado que não encontre um
decidido a defender interesses que não são seus”.
Anónimo
(Memória dedicada aos advogados de Paris)
apud História Breve da Advocacia em
Portugal; de Adalberto Alves; Lisboa, CTT,
2003; p. 191.
Nulla causa adeo mala quem peritus advocatus non possit bonan facere
(nenhuma causa é tão má que um advogado sabedor não a possa fazer boa)
“O que há de melhor no advogado é que ele nos aparece quando os outros nos fogem.”
Valério Bexiga
in Manual de Deontologia Forense, de Valério
Bexiga; Faro, Conselho Distrital de Faro da
Ordem dos Advogados; 2003, p. 157.
“O direito à cidadania assenta na ideia essencial de que não basta a proclamação dos direitos e das
liberdades mas exigem-se as condições do exercício desses direitos e dessas liberdades”
Alberto Martins
Direito à Cidadania; Lisboa, Dom
Quixote, 2000; p. 11.
Aqui ficam, pois, telegraficamente, três desafios para o século XXI. Três desafios à nossa inteligência,
ao nosso empenhamento e à nossa capacidade de vergar o Estado a cumprir finalmente as suas
obrigações no domínio do acesso ao direito. E três desafios que são específica e directamente dirigidos
à Ordem dos Advogados, mais concretamente ao Conselho Geral para que lidere as alterações a sugerir
aos Conselhos Distritais e às Delegações e, seguidamente, exija ao Estado a assunção das suas
responsabilidades. É que “... no apuramento da verdade em ordem a um julgamento [qualquer que ele
seja], o que conta é a palavra de quem está a ser julgado [quem quer que seja], que pode ser
pronunciada por si ou por quem o ajuda [o advogado ou o advogado-estagiário]. Esta ajuda é mais
necessária no caso dos pobres, dos simples, dos rejeitados da sociedade”180
.
Não cumpriremos os nossos deveres, não honraremos a nossa responsabilidade social, se não formos
capazes de auxiliar na instituição de novas regras de acesso ao direito. A Advocacia “é uma das
profissões de dimensão humana à escala do próprio Homem, nas suas fraquezas e grandezas, na
defesa do indigente, ou do criminoso, ou na protecção do indefeso perante a ditadura, mas sempre
como profissão indispensável à garantia de uma das novas necessidades mais básicas, o direito à
Justiça”181
.
Há que propor ao Estado que assegure a alteração, a apresentar urgentemente, do sistema, disperso e
caótico, de gabinetes de consulta jurídica; instituindo uma real e efectiva possibilidade de consulta
jurídica aos cidadãos do mundo182
, isto é a todas as pessoas que tenham de facto necessidade de apoio e
informação.183
180
Cfr., de D. José Policarpo, O Advogado visto por…, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa, 2005, p. 73 181
Cfr., de Fernando Santo, O Advogado visto por…, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, 2005, p. 139. 182
Já o escrevemos, a realidade destes muitos milhares de imigrantes que residem em Portugal é tema polémico e
actual, que preocupa a sociedade em geral. É, no entanto, uma realidade precária e incerta que se traduz numa
crescente marginalização de muitos imigrantes que os torna vítimas fáceis das organizações criminosas de tráfico
humano que proliferam na Europa. Como se não bastasse, são, ainda, vítimas da exploração laboral de
empregadores despudorados que se aproveitam da sua situação de clandestinidade. E isto acontece sobretudo com
os indocumentados, aqueles que entraram ou permanecem ilegalmente em Portugal. Mas que não deixam por isso
de ser pessoas. E de ter direitos...e acesso ao direito. 183
Cfr. o Relatório da experiência de funcionamento do Gabinete de Consulta e Apoio ao Estrangeiro
assegurado temporariamente pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados onde se concluiu
“...pela necessidade imediata da criação de uma estrutura onde os cidadãos estrangeiros possam apresentar as
Em tempos e locais idos foi assim: “as consultas gratuitas são dadas no palácio da Justiça, no
secretariado da Ordem dos Advogados. Assim, vários escritórios de consulta funcionam a tarde toda,
várias vezes por semana. Cada escritório compõe-se de um advogado inscrito e dois estagiários.
Diante deles desfila, durante todo o dia, um número considerável de indigentes que vêm pedir
conselhos sobre os mais diversos assuntos: dificuldades com o senhorio, casos de sucessão, de
partilha, de dissolução de comunidade, pedidos de divórcio, de pensão alimentar, de ressarcimento
por perdas e danos”184
.
Há que propor igualmente ao Estado o real apoio a uma efectiva e digna organização, e a garantia
futura do respectivo e adequado financiamento, que assegure a defesa oficiosa nos Tribunais e perante
os Poderes e a Administração. É que “…a advocacia é a única profissão em cujas regras está escrito
que, para os seus seguidores, «o patrocínio gratuito dos pobres é um ofício honorífico»”185
. Podemos
porventura não exigir tanto altruísmo e desprendimento material, se bem que as actuais tabelas pouco
mais asseguram que o pagamento de despesas186
! Mas, já o disse, e aqui repito, que a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária faz-se pelo cumprimento escrupuloso dos deveres de cada
cidadão, pelo esforço de cada um de nós, e pelo esforço da Ordem187
. E quantas vezes esse esforço não
é suficiente ou não é suficientemente organizado, determinado e dirigido para o bem comum.188
suas queixas e que actue na defesa dos seus direitos, procurando influir na correcção e supressão das injustiças
e abusos, da exploração deste sector social bastante desfavorecido e desprotegido. Não menos importante é a
criação de uma estrutura de consulta, para que os imigrantes possam estar a par da sua situação jurídica e
informar-se correcta, atempada e gratuitamente das possibilidades e procedimentos que têm, ou não, ao seu
dispor. Uma vez que o trabalho incidirá sobre a mesma área, e que as questões objecto de queixa são, muitas
vezes, as mesmas sobre as quais é requisitada informação, não seria, de todo, despiciendo atribuir ao Gabinete
competência para ambos. Evitar-se-ia, deste modo, a sobreposição de competências e a excessiva
desconcentração e burocratização dos serviços prestados. Mas aqui deverá ser o Estado a custear esta valência.
E deverá ser o Conselho Geral a exigir ao Estado que cumpra a sua obrigação para com os mais
desfavorecidos, independentemente da sua nacionalidade. Só assim se promoverá a igualdade e se permitirá o
exercício pleno da cidadania”. 184
Cfr., de Henri Robert, O Advogado; São Paulo, Martins Fontes, 1999, pp. 71 e 72. 185
Cfr., de Piero Calamandrei, o seu Eles, os juízes, vistos por um advogado, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p.
XLVII. 186
Pois que jurisprudência há que inclui as despesas nos já depauperados montantes das tabelas de honorários!!! 187
A Ordem dos Advogados tem como atribuição primeira defender o Estado de Direito e os direitos e garantias
individuais. É ao Conselho Geral a quem compete definir a política e a acção da Ordem dos Advogados perante
os órgãos de soberania e da administração pública em tudo quanto se relacione com a defesa do Estado de Direito
Há que propor finalmente uma estrutura mínima, permanente e eficaz de assistência jurídica aos
privados de liberdade nas Prisões189
e nos Centros Educativos190
, sem o que a informação e a
assistência jurídicas não passarão de belas proclamações sem eficácia nem consistência.191
É que
“...diga o que disser a inveja ou a malignidade, há virtude em descer aos calabouços para aí levantar
e com a salvaguarda dos direitos e garantias individuais e, por conseguinte, com o regime do acesso ao direito.
Não há, pois, nem pode haver, dúvidas quanto ao especial dever e honrosa incumbência da Ordem no que toca à
defesa, em geral, dos cidadãos, de todas as pessoas. Não há, também, nem pode haver, quaisquer direitos próprios
ou atribuições exclusivas no que toca à efectiva salvaguarda dos direitos fundamentais. Até porque é
individualmente o advogado quem mais próxima e legitimamente persegue e protege efectivamente os direitos
das partes, patrocina os interesses das vítimas ou defende os direitos do arguido. Não qualquer funcionário
público. 188
“Queremos que o cidadão – todo o cidadão, rico ou pobre – tenha direito a ser assistido por um advogado
tecnicamente competente, deontologicamente bem preparado e eticamente irrepreensível”. Cfr., de Maria de
Jesus Serra Lopes, a sua intervenção no Painel sobre a Justiça de 27.06.91 in R.O.A., Ano 51, Julho de 1991; pp.
621 a 624. 189
Cfr. o Relatório da experiência do Gabinete de Consulta Jurídica do Estabelecimento Prisional de Lisboa
assegurado temporariamente pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados onde se expressou
que “...é inevitável concluir que a criação de gabinetes de consulta jurídica [em todos os estabelecimentos
prisionais do país] corresponde a necessidades prementes dos reclusos”. 190
Cfr. o Relatório da Visita ao Centro Educativo da Bela Vista em Lisboa realizada pela Comissão dos Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados em que se verificou que “todos os jovens têm advogado constituído ou
nomeado.” Mais, “foi-nos entregue a lista nominativa dos defensores oficiosos dos educandos.” E constatou-se
que “nem todos, porém, os visitam. Muito menos regularmente.” Tal como “(...) foi constatada a necessidade de
acompanhamento e ajuda nos momentos posteriores à saída, bem como de maior intervenção dos defensores
quer no âmbito do processo, e na sua preparação, e da execução e flexibilização das medidas, quer, depois, no
âmbito da estrita protecção dos interesses próprios do menor.” Disse-se então que “é urgente, nesta área, a
especialização da advocacia. E a intervenção mais empenhada dos advogados. E não pode circunscrever-se à
denominação lata de “Direito da Família” uma próxima especialidade que abranja esta área. Caso se pretenda
avançar com uma proposta de especialidade autónoma sugere-se a designação de “Direito de Menores”. Caso
não se pretenda para já autonomizar este campo de actuação e intervenção sugere-se então a seguinte
denominação da nova especialidade: “Direito da Família e Menores”. Hoje pensamos que esperar por tal será,
porventura, tarde demais, 191
Já o escrevemos, muitas das questões/problemas apenas surgem por haver falta de acompanhamento dos
reclusos por parte dos seus defensores, no período pós-condenação. Aliás, mais grave, foram-nos até relatados
casos em que os defensores nomeados, ou mandatários, nem estiveram presentes na audiência de
julgamento…quanto mais depois… De qualquer modo, não podemos atribuir exclusivamente responsabilidades
aos defensores ausentes, pois casos detectados houve de suspensão da inscrição ou outros de falta de articulação
entre os anteriores defensores e os recém nomeados, sendo que também estes se defrontam com dificuldades,
nomeadamente monetárias, em acompanhar os seus clientes…o defensor oficioso não é pago por visitar o seu
cliente no estabelecimento prisional, ou resolver problemas jurídicos com que este se depare fora do
processo…Algo precisa de ser alterado no sistema actual…e no comportamento deontológico de alguns
representantes da profissão... e das profissões jurídicas, em geral.
a esperança dum acusado, e levar-lhe consolação. É verdade que se essa é a parte mais penosa da
nossa profissão, é também a mais honrosa...”.192
E se é tarefa fundamental do Estado garantir os direitos e liberdades fundamentais193
, defender a
democracia política, promover enfim a cidadania194
, o desenvolvimento, a participação e a igualdade,
192
Cfr., de M. Dufin Aîré, o seu Apologia dos Advogados in R.O.A., Ano 63, Abril de 2003; pp. 405 a 413. 193
“Importa, então, definir quais os objectos que, na dinâmica contemporânea, se perfilam e merecem protecção
legal e constitucional; quais os interesses de que são potencialmente portadores; e que necessidades suscitam; e
este conjunto de questões coloca-se porque, em rigor, as sociedades atravessam uma fase conturbada,
caracterizada por fenómenos sociais novos ou renovados, que determinam nóveis consagrações. Vive-se, com
efeito, a mudança; e esta mudança, como todas, implica criatividade, inovação e capacidade de agir, de forma
securizante e integrada. Por um lado, há que actuar na defesa dos direitos dos cidadãos e ao nível da segurança
das populações face a ameaças que, ainda há poucas décadas, eram imprevisíveis; por outro lado, há que saber
ser criativo, ousado e inovador para tornar possível a compaginação entre direitos fundamentais e necessidades
securitárias, sabendo-se que o risco de contradição insanável é grande e sabendo-se também que não há
tempo nem condições para o fracasso. Há que saber separar as águas e não confundir as questões emergentes
da segurança com potenciais atropelos aos direitos fundamentais ou com a invenção de novos panoptismos,
sempre perigosos e eventualmente perniciosos (Robert, 2002). Porque a linha de fronteira entre o excesso
securitário e a ruptura com os direitos fundamentais é demasiadamente fluida. (...) Cumpre observar que esses
objectivos, disseminando-se por múltiplas áreas, são reconduzíveis, no essencial, aos três vectores a que fiz
referência: a Liberdade, numa acepção abrangente, provocando a responsabilização de todos pela sua
exercitação, de que todos beneficiam; a Segurança, tomando como ponto nevrálgico as necessidades securitárias
e a preservação da Liberdade, cuja conjugação levanta dificuldades pelos perigos de eventual colisão que
oferece; e a Justiça, valor maior, exigindo-se-lhe, na economia dos três valores, a gestão sábia, equitativa e
prudente das articulações entre os três segmentos.” Cfr., de Carlos Alberto Poiares, o seu Novas Gerações,
Novas Cidadanias: contribuição para a actual gramática dos direitos fundamentais in Direitos do Homem –
Dignidade e Justiça; Lisboa, Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, 2005; pp. 21 a 33. 194
“Uma das noções que melhor traduzem a segunda metade do século vinte é a de que a cidadania deixou de
ser abstracta, como resultava das declarações revolucionárias, para ser situada ou concreta. Sucederam-se
gerações de direitos: primeiramente os civis e políticos depois os económicos, sociais e culturais, a seguir o
direito ao ambiente e à qualidade de vida, depois o direito dos povos à autodeterminação, ao progresso e ao
desenvolvimento”. Paralelamente as democracias organizaram-se à luz da ideia de Estado de direito e definiram
e constitucionalizaram os direitos, liberdades e garantias individuais. E na euforia gerou um novo tipo de
homem, dignificado pelo estatuto de cidadão, mas simultaneamente instalado na miragem do direito aos direitos.
Por isso, solitário, rebelde e indignado quando vê frustradas as expectativas que lhe vão sendo gradualmente
instiladas.
O Estado de Direito converteu-se nominalmente num Estado de Justiça. Previu tutela judicial para tudo e não
raro organizou indiscriminadamente as respostas não as escalonando segundo a gravidade ou importância das
solicitações” Cfr. de José Narciso da Cunha Rodrigues, O ser, um apontamento e algumas sugestões in Justiça
em Crise? Crises da Justiça; Lisboa, Dom Quixote, 2000; p. 317.E respondendo a tudo, acaba por não responder a
nada!
não podemos descurar aqui a responsabilidade195
de cada um de nós quer isoladamente quer
institucionalmente para afastar de vez, pelo menos um aspecto da malfadada crise da justiça196
.
Este é o repto aos órgãos eleitos da Ordem. Esta é a nossa responsabilidade social. Este será o nosso
contributo para o exercício da cidadania. E um passo, um pequeno passo, na promoção da igualdade.
Até para que não se diga também, em relação à Cidadania, à Justiça e à Advocacia, e quase 135 anos
(!!!) depois que
«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as
consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única
direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição
que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os
cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes
exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo
está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O Estado
é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza
deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se que por toda a parte: o país está
perdido!»
Eça de Queirós,
As Farpas
1871
195
Cfr., de Fernão Fernandes Thomaz, o seu Da Responsabilidade à responsabilização dos juízes, in RT.O.A.,
Ano 54, Julho de 1994; pp. 489 a 503. 196
Sinal dos tempos é a tão propalada crise da justiça. Chegou-se a um ponto de descrédito e desconfiança tal que
há que perceber a situação presente da justiça em Portugal. Muitas vezes confunde-se justiça com tribunais. E
como se disse já a justiça não é um desígnio exclusivo dos tribunais…é tarefa comum do parlamento, do
governo, do poder local, da administração central e das polícias…e também dos cidadãos. Mas pior do que a
percepção da crise é a falta de motivação para a justiça.
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