Representações e memória(s) em disputa: (re) significando a ditadura stronista por meio
do Archivo del Terror do Paraguai
Josiély Koerich1
Martín Almada, que tomó parte directa del descubrimiento del archivo secreto del
departamento de Investigaciones, al ver los miles de papeles y libros esparcidos en
una pieza especial, lloró amargamente de emoción y expresó: ‘Para mi esta es una
reparación histórica y por fin llegó el 2 y 3 de febrero a la Polícia
paraguaya’(ALMADA..., 1992, p. 2).
Em 22 de dezembro de 1992, o ex-preso político Martín Almada, juntamente com o
juiz José Agustín Fernández, o deputado Francisco José Vargas e de vários jornalistas,
encontraram2 inúmeros documentos do regime stronista no Departamento de Producciones de
la Policía de la Capital, em Lambaré, cidade localizada próxima a capital Assunção. Nos
últimos dias de dezembro do ano de 1992, esta constituía, como na reportagem acima, a
principal notícia veiculada nos jornais do Paraguai.
Levados sob custódia do juiz José Agustín ao Palacio de la Justicia, em Assunção,
esses documentos foram inventariados e classificados sob a coordenação da documentalista
Rosa Palau Aguilar nos primeiros três meses do ano 1993, contando com o auxílio de
funcionários do Ministério Publico, de vítimas e familiares de vítimas, entre outros. Contudo,
algumas diferenças e divergências passaram a ocorrer neste processo, envolvendo
principalmente as vítimas e/ou familiares de vítimas, e as organizações de Direitos Humanos,
com os ‘funcionários responsáveis’ pelo acervo e/ou a Corte Suprema. Uma destas
divergências envolveu/envolve Rosa Palau Aguilar e Martín Almada - notadamente em
questões relacionadas ao encontro, e ao posterior processo de microfilmação dos documentos
do arquivo -, e propiciaram um ‘dado afastamento’ de Almada do espaço físico do mesmo,
onde Rosa, desde 1993, vem coordenando o local.
1 Bacharela e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda em História Cultural pelo
Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, com a pesquisa Diferentes narrativas para uma
memória da ditadura: o Archivo del Terror do Paraguai, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Janine Gomes da Silva. Bolsista
CNPq. E-mail: [email protected]. 2 Utilizo neste artigo as palavras encontrados ou localizados e não descoberta para referir-se ao fato dos documentos que
compõem o Archivo del Terror terem se tornado públicos. Pois, a análise de variadas entrevistas e jornais a que tive contato e
acesso em meu Trabalho de Conclusão de Curso onde trabalhei as diferentes narrativas envolvendo este acontecimento,
permitiram-me inferir que esses documentos foram encontrados, colocados no Departamento de Producciones em Lambaré
para serem ali localizados (KOERICH, 2015).
Considerando tais proposições, no presente trabalho busco perspectivar algumas das
disputas envolvendo Rosa Palau Aguilar e Martín Almada em torno das representações e
memória(s) do passado recente paraguaio. Com o auxílio de fontes orais e notícias veiculadas
em diferentes jornais e sites do Paraguai, procuro explorar ainda algumas das narrativas que
ambos, por meio de sua relação com o Archivo del Terror, vêm buscando valorizar e
legitimar3.
Oficialmente denominado Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los
Derechos Humanos (CDyA), o Archivo del Terror, como ficou popularizado por meio da
imprensa paraguaia, é considerado um dos mais volumosos acervos documentais relacionado
aos anos da repressão das ditaduras do Cone Sul que se tornou público. Possuindo
documentos importantes não só do regime civil-militar de Alfredo Stroessner (1954-1989) - o
governo ditatorial mais extenso não apenas deste país, mas de todo o Cone Sul4, este arquivo
dispõe também de documentação de extrema relevância a nível internacional, como as
relacionadas à Operação Condor5. Incluído desde 2009 no Registro Memória do Mundo pela
UNESCO, neste local, além de atividades administrativas como a de expedir cópias de
documentos a pedido das vítimas ou seus familiares, de responder ofícios judiciais, são
realizadas ainda eventos culturais, visitas de estudantes, pesquisadores etc.
O tema deste estudo, é importante salientar, está inserido na História do Tempo
Presente. Como destaca o historiador Enrique Serra Padrós (2009, p.35), analisar as ditaduras
do Cone Sul latino-americanas vivenciadas nas décadas de 1960 a 1980, bem como a
atualidade do debate sobre questões não resolvidas concernentes aquelas experiências
históricas, coloca o desafio de entender que há contemporaneidade entre a/o pesquisadora/or6
e seu objeto de estudo. Perpassada pela inconclusão e pela provisoriedade, essa história atenta
ao presente, entretanto ao invés de um inconveniente, pode contribuir para melhor
3 Ressalto que as reflexões propostas neste texto é uma primeira tentativa de expor algumas questões que venho trabalhando
em minha pesquisa de mestrado, se tratando portanto de algo preliminar e ainda em andamento. 4 O Paraguai, bem como os demais países que compõem o Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Brasil e Peru),
vivenciou um regime civil-militar durante a segunda metade do século XX. Sob a égide de um mesmo presidente, o general
Alfredo Stroessner durante trinta e cinco anos (1954-1989), esta ditadura deu continuidade a uma dinâmica política marcada
por regimes autoritários. Ressalta-se ainda que neste trabalho faço uso de ditadura civil-militar para o governo de cunho
autoritário e repressivo que foi implementado no Paraguai na década de 1950. Considerando a literatura referente à esta
ditadura, essa perspectiva de ditadura civil- militar possuí embasamento na concepção de que esse regime teve apoio de
parcelas da população civil no golpe. Ver: (PADRÓS, 2009, p. 30-45; PADRÓS, 2008, p.1-10). 5Operação de Inteligência criada no Chile, com o apoio da Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai, que perseguia
militantes de esquerda oriundos de qualquer um destes países. 6 Utilizo palavras no feminino/masculino de modo a enfatizar que tanto mulheres como homens são e foram agentes atuantes
da história.
entendermos a realidade estudada, bem como perceber como aponta Rioux (1999, p.50) “[...]
a força da memória sobre o curso do tempo”. E é sob esta perspectiva que a História do
Tempo Presente foi apropriada neste trabalho; sem ignorar, contudo, que escrita em uma
proximidade temporal das atrizes e atores sociais perspectivados, destas/es talvez poderá
receber alguns questionamentos.
Além da História do Tempo Presente, a História Oral será também um dos suportes
teórico-metodológicos deste trabalho. Conforme ressalta Alessandro Portelli, “recordar e
contar já interpretar” (PORTELLI, 1996, p. 90). E é deste modo que, ainda segundo este
autor, a História Oral propicia “[...] recuperar não apenas os aspectos materiais do sucedido
como também a atitude do narrador em relação a eventos, à subjetividade, à imaginação e ao
desejo, que cada indivíduo investe em relação à história” (PORTELLI, 1993, p.41).
Concordando com estas proposições, busco perspectivar algumas das narrativas que Rosa
Palau e Martín Almada vêm buscando valorizar e legitimar por meio do Archivo del Terror.
Neste sentido ainda, premente salientar que estou compreendendo este arquivo não
apenas como um lugar onde se encontram algumas das fontes para a pesquisa histórica, mas
como um objeto de análise, uma construção histórico-social perpassada por relações de poder
e onde, como nos lembra Luciana Heymann, incidem interferências configuradoras e uma
série de atributos igualmente conformadores de sentidos (HEYMANN, 2012, p.13). E é partir
destas considerações que busco neste trabalho perspectivar algumas das narrativas que Rosa
Palau Aguilar e Martín Almada vêm buscando valorizar e legitimar, bem como algumas das
disputas envolvendo-os.
Disputas e narrativas (re) significando a ditadura stronista por meio do Archivo
del Terror
A memória, na contemporaneidade, emergiu como um dos fenômenos políticos e
culturais mais impressionantes das sociedades ocidentais (HUYSSEN, 2000, p.16). Nos
países egressos das ditaduras civil-militares do Cone Sul, a questão da memória social e os
debates em torno dela, adquiriram maior proeminência nos processos de transição política,
quando as memórias subterrâneas (POLLAK, 1989, p. 4-5) dos opositores destes regimes,
‘emudecidas’ no momento inicial da transição, passaram a emergir no âmbito político. Atrizes
e atores sociais diversificados (vítimas, familiares de vítimas, pesquisadoras/es, defensoras/es
de Direitos Humanos etc.) vêm, desde então, se utilizando da memória social e seus usos
políticos na revisão do passado recente, de modo a serem nele incluídas/os e reconhecidas/os.
Questão não desprovida de tensões, pois como lembra Elizabeth Jelín, as memórias
são lugares de conflitos, lutas e disputas, perpassadas em relações de poder, e onde “hay una
lucha política activa acerca del sentido del ocurrido, pero también acerca del sentido de la
memoria misma” (JELÍN, 2002, p 2-6). E nestas lutas os espaços físicos e públicos, conforme
realçam Jelin e Langland (2013, p. 1), são possíveis pontos de entrada para analisar os
sentidos sociais deste passado recente, assim como as lutas pelas memórias que vem sendo
travadas. Estas proposições são importantes para refletir sobre algumas das disputas que vêm
se configurando no Archivo del Terror. 7 Uma destas é a que envolve Martín Almada e Rosa
Palau Aguilar em torno das memórias e representações do passado recente paraguaio, e que
explorarei mais especificamente neste trabalho. Para tanto, torna-se necessário apontar
brevemente algumas considerações sobre ambos.
Rosa Palau Aguilar, documentalista licenciada em Matemática, foi convocada em 28
de dezembro de 1992 pelo Centro de Documentación y Estudios (CDE), para coordenar os
trabalhos de inventariado dos documentos encontrados em Lambaré. Uma das atrizes sociais
envolvida na criação do CDyA, trabalha como coordenadora neste local até os dias atuais. Por
seu envolvimento com este arquivo, foi convidada a integrar a Mesa Memoria Histórica y
Archivo de la Represión8 por meio da qual, conjuntamente a outras pessoas impulsionou em
2003, a criação da Comisión de Verdad y Justicia no Paraguai (AGUILAR, 2012, p. 12-14).
Martín Almada, agrônomo, advogado, doutor em Ciências da Educação e reconhecido
ativista e defensor dos Direitos Humanos no Paraguai, foi preso, torturado, se exilando no ano
de 1977 e somente regressando em 1992 ao país (ALMADA, 2010). Considerado um dos
responsáveis por localizar onde se encontrava o Archivo del Terror, Almada encontra-se
vinculado a algumas instituições como a Fundación Celestina Peréz de Almada e o Museo de
las Memorias: Dictadura y Derechos Humanos onde tem forte atuação,9 e por meio das quais,
7 Destaca-se que outros trabalhos, notadamente os de Myrian González vem abordando algumas das disputas que se
configuram neste arquivo (GONZALEZ, 2002). 8 Organizada entre 28 e 29 de outubro de 2002 na Universid Católica de Asunción, essa Mesa constituiu parte do encontro
denominado Memória y archivos de la represión: debates para un futuro, que vinha ocorrendo também em outros países do
Cone Sul, e que contou com a presença do sociólogo Alain Touraine e da jurista Sophie Tonon. 9 Na Fundação, organização não governamental criada em 1990 voltada para a defesa dos Direitos Humanos, cujo nome é
uma homenagem a sua primeira esposa, Martín Almada exerce a função de presidente. Em relação ao Museu, criado em
2002, e situado na casa que havia sido a sede da Dirección Nacional de Asuntos Técnicos del Ministerio del Interior, La
Técnica como é mais conhecida (local de prisões e torturas durante a ditadura stronista), Almada também possui papel ativo,
vem exigindo reparações econômicas para as vítimas, iniciando querelas contra torturadores e
outras pessoas envolvidas com a ditadura etc.
No entanto, apesar desta vinculação com a localização do Archivo del Terror em
Lambaré em 1992, Almada, no espaço físico deste arquivo, não é um presença tão ‘marcante’
como o é em outros espaços – como na imprensa, no Museo de las Memorias etc. Premissa
que pode ser talvez compreendida devido a algumas divergências entre ele e outras pessoas
relacionadas ao arquivo10, notadamente de Rosa Palau nas questões relacionadas ao encontro
deste acervo, e ao posterior processo de microfilmação dos documentos.
Em relação à este, em entrevista concedida a Janine Gomes da Silva em 2012, Rosa
Palau assinalou que suas diferenças com Almada ocorreram com a questão dos fundos para
iniciar o processo de microfilmação. Pois, para a realização deste processo, buscou-se fundos
de outras instituições para iniciar a microfilmação e com isso como ressalta González, um
projeto de cooperação entre a Corte Suprema e a Agencia para el Desarrollo Internacional de
los Estados Unidos (USAID) foi firmado (GONZALEZ, 2002, p. 102). Tal acordo não teria
agradado Almada que, segundo Rosa Palau “me acuso personalmente porque yo era la
coordinadora, de haber entregado documentos a la embajada americana[...]” (AGUILAR,
2012, p. 16-17). É importante assinalar que Almada desde o período ditatorial vem
assinalando a participação americana no regime de Stroessner (ALMADA, 2013). Deste
modo, pode-se inferir que para ele, aceitar este projeto era aceitar novamente à ajuda dos que
haviam contribuído com a ditadura e por isso, possivelmente, tenha se dado um maior
afastamento dele do espaço do arquivo e as divergências com Rosa. Esta, por sua vinculação
ao arquivo, pode-se ponderar que era vista talvez por Almada como alguém que de certa
maneira ‘contribuiu’ para que os Estados Unidos tivessem um dado poder sobre o arquivo.
Entretanto, apesar destas diferenças, Almada continuamente tem pedido a ratificação
perante a Corte Suprema de Justicia paraguaia de ter sido ele “[...] quien descubrió el Archivo
del Terror [...]” (MARTÍN... 2008). Neste sentido, destaca-se ainda a fala de Rosa Palau:
Y la comunicación que después aparece en Internet, aparece em otros lugares es
Martín Almada el descubridor de los archivos, entonces, particularmente yo creo
sendo que a gestão deste museu está a cargo desde sua criação da Fundación Celestina Pérez de Almada. Ver: FUNDACIÓN
Celestina Pérez de Almada. Disponível em: < http://www.fcpa.org.py/index.html>. ; MUSEO de las Memorias Paraguay.
Sistema Nacional de Información Cultural del Paraguay. Disponível em: < http://www.sicpy.gov.py/generales/?6870>.
Acesso em: 04 jul. 2015. 10 Nas fontes analisadas, Almada pontua suas divergências como com as pessoas relacionadas ao arquivo, mas não é possível
perceber se ao colocar isso ele está se direcionando especificamente a Rosa Palau, ou as pessoas do arquivo em geral.
que cuando es un evento tan grande y tan importante en donde nadie es más
importante que otro. Esta fuera de lugar Martín Almada el descubridor de los
archivos, yo creo que eso es un egocentrismo y de una idolatría no se, esas son mis
diferencias com el doctor Almada[...] por que a partir de ahí él se erigió como el
descubridor [...] (AGUILAR, 2013, p.16).
Percebe-se assim que a “a memória entra em disputa” (POLLAK, 1989, p. 2) como
nos ensina o sociólogo Michael Pollak. Este autor, em seus estudos, chamou atenção para “a
existência, numa sociedade, de memórias coletivas tão numerosas quanto às unidades que
compõem a sociedade” (POLLAK, 1989, p. 12). Multiplicidade de memórias, contudo,
marcadas por heterogeneidades e tensões, o que implica ainda reconhecê-las como já dito
anteriormente, como objeto de conflitos e lutas, e de tal forma se tornando necessário atentar
ao papel ativo e produtor de sentido dos participantes dessas disputas, perpassados por
relações de poder (JELÍN, 2002, p.2). Fenômeno social, mutável e construído coletivamente
(HALBWACHS, 2006, p.29-70), neste artigo compreende-se que não somente o que é dito
deve ser percebido. Os silêncios, os interditos da memória devem também ser perspectivados
enquanto discurso, pois o indizível pode mostrar algo que se almeja ser imposto ou
transmitido (POLLAK, 1989, p. 8-9). Destaca-se desta forma a fala de Almada quando este
coloca que apesar de ter ‘descoberto’ o Archivo del Terror “Yo prácticamente yo no tengo
acceso, hoy yo fui, hoy esta mañana yo fui por todo um juicio por la muerte de mi esposa, y
me fui a pedir papeles a llenar, como si fuera um extraño me trataron, yo no dije nada, llene
todo, pague todo”. (ALMADA, 2013, p.16). Questão que pode ser compreendida como um
desejo de maior prestígio e autoridade, como perceptível também quando aponta que “el
Museo de las Memorias esta ligado al estado porque funciona en el Ministerio del Interior, y
ahí me reconocen como autoridad, ahí si en el tribunal no…” (ALMADA, 2012, p. 17).
Estando este museu sob a direção de sua segunda esposa, Maria Stella Cáceres, o que lhe
permite maior atuação, no Archivo del Terror, localizado no Palacio da Justicia, embora tenha
encontrado este acervo documental, tem sentido não ter satisfatoriamente reconhecida sua
ação, e que perpassa também outros temas. Na petição onde pede a ratificação de ter sido ele
quem ‘descobriu’ o arquivo, Almada por exemplo, coloca ainda que "los responsables del
Archivo del Terror ocultaron a la opinión pública nacional e internacional durante 16 años la
real historia del descubrimiento” (MARTÍN... 2008). Proposição que assinala a afronta, um
ressentimento sentido por Almada pelos responsáveis do arquivo. Ressentimento cuja
existência conforme Marc Ferro “[...] mostra o quanto é artificial o corte entre passado e
presente – um vive no outro, o passado tornando-se presente, mais presente que o presente”
(2009, p. 14).
Premente destacar também que Almada por seu envolvimento na localização
deste acervo documental é considerado pela imprensa paraguaia como “[...] el ‘héroe’ del
espectacular descubrimiento del archivo” (LA HORROROSA, 1992, p. 6). Além disso, é
freqüentemente convidado para eventos, seminários, conferências etc., para explanar sobre o
arquivo e a trajetória que o levou a encontrá-lo, sobre assuntos referentes à ditadura etc.
Possuí grande notoriedade na imprensa, que publica permanentemente suas ações,
principalmente nas comemorações do dia 22 de dezembro, data em que foram encontrados os
arquivos. Porém, a relação de Almada com a imprensa deve problematizada. Miguel López,
analisando os discursos de três jornais paraguaios de grande circulação (ABC Color, Ultima
Hora e Noticias)11 sobre alguns acontecimentos que marcaram a transição neste país, observa
que com esta vários setores sociais e políticos intensificaram suas denúncias dos crimes da
ditadura, sendo os meios de comunicação os veículos privilegiados destas. Para ele, contudo,
mesmo que no período “el discurso imperante em sus líneas editoriales ostento un marcado
contenido democrático, en su prática siguieron reflejando sectarismos y exclusiones por
causas ideológicas cuando se trataba de quiénes debían o no tener voz en sus paginas”
(LÓPEZ, 2003, p. 32). Exclusões que prosseguiram nos anos subseqüentes e que permitem
inferir que Almada e seus dizeres estivessem de acordo possivelmente com os interesses dos
periódicos e com o que estes queriam difundir, assim lhe propiciando ter grande visibilidade
nestes.
Entendendo o discurso como não sendo, conforme apontado por Foucault, “[...]
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,
pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p. 10), infiro
que Martín Almada ao pedir a ratificação à justiça paraguaia de ter sido ele o ‘descobridor’ do
arquivo, quando a imprensa e outros setores assim o consideram, vem buscando assim
adquirir um reconhecimento oficial desta ação. Reconhecimento que lhe poderia conceder
possivelmente uma maior proeminência mesmo no arquivo, onde não se sente bem recebido e
11 Os jornais ABC Color, criado em 1967, e Ultima Hora, em 1973, com uma orientação comercial, conservadora e a-crítica,
pertencentes a “oligarquia tradicional” (grandes proprietários de terra, em geral) do país, e ligadas ao governo, não tiveram
nenhuma censura até o final da década de 70, quando passaram a veicular notícias que o governo considerou como pondo em
perigo ‘a paz da República’( LÓPEZ, 2003, p.23-34).
visibilizado. Ademais, ser reconhecido pela Corte Suprema de Justiça como o ‘descobridor’
do Archivo de Terror (considerando ainda que este se localiza e está vinculado ao Palacio de
la Justicia) permitiria e/ou propiciaria talvez ser este(o dele) o relato a ser transmitido neste
local. Pois, conforme as fontes sinalizam, a narrativa que ali vem sendo acentuada não vem
dando ênfase a ele como aquele que ‘descobriu’ o arquivo, mas somente ressaltando sua
participação. Isso se deve provavelmente a questão de ser geralmente a narrativa de Rosa
Palau a ser propagada no local, a qual afirma “yo muchas veces dije en publico, y se lo digo al
director, nosotros hablamos del hallazgo, el encuentro de los documentos, y para mi
simbólicamente es, es um pueblo que va al encuentro de su verdad.” (AGUILAR, 2013, p.
16).
Encontro, não ‘descoberta’ do arquivo. Um povo que vai ao encontro de sua história e
de sua verdade, e não um indivíduo somente. Esta é a narrativa de Rosa que vem sendo
disseminada no local e se contrapondo a de Martín Almada. Narrativas que possibilitam
apreender as disputas e confrontações entre ambos bem como inferir que estas, além de
ressaltar quem e como foi ‘descoberto’/encontrado o arquivo, buscam também demarcar qual
a narrativa a ser transmitida no Archivo del Terror. Qual a memória que vai estar relacionada
ao local. E é deste modo, conforme Elizabeth Jelín que, partindo da linguagem, encontra-se
uma situação de lutas pelas representações do passado, centradas na luta pelo poder,
reconhecimento e legitimidade. Estas lutas para a autora “implican, por parte de los diversos
actores, estratégias para ‘oficializar’ o ‘institucionalizar’ una (su) narrativa del pasado. Lograr
posiciones de autoridad, o lograr que quienes las ocupan acepten y hagan propia la narrativa
que se intenta difundir, es parte de estas luchas” (JELÍN, 2002, p. 49).
Roger Chartier, em seus estudos, realça que a história cultural tem por objetivo
identificar o modo como a realidade social é pensada, construída e dada a ler em diferentes
momentos e lugares. Isso envolve um processo de divisão, classificação e delimitação que
organizam as apreensões do mundo social. As representações formuladas são determinadas
pelos interesses dos grupos devendo-se assim relacionar os discursos com a posição de quem
os profere. Para o autor, as percepções do social não são neutras, implicando em certas
práticas e estratégias que tendem a legitimar um projeto, a impor uma dada autoridade sobre
outros por ela menosprezados ou a justificar para os indivíduos suas escolhas e condutas.
Deste modo, Chartier considera as representações “como estando sempre colocadas num
campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e
de dominação” (CHARTIER, 1990, p.17). Assim, as lutas pelas representações tem tanta
importância quanto às lutas econômicas para que se perceba como um grupo se impõe ou
busca se impor a sua visão de mundo, o seu domínio e seus valores. Desta forma, ocupar-se
dos conflitos de delimitações e classificações, para o autor não é afastar-se do social, mas
“localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente
materiais” (CHARTIER, 1990, p.17).
Considerando as reflexões de Jelin e Chartier, é possível inferir que buscando o
reconhecimento e/ou visibilidade de uma (sua) narrativa, Almada e Rosa Palau vêm, por meio
de sua relação com o Archivo del Terror, procurando legitimar uma dada memória e
representação (a sua) sobre o passado recente paraguaio. Buscando ainda ‘modelar’ este
passado a partir do presente, estes vêm colocando e disseminando suas memórias e narrativas
no cenário público, propiciando assim disputas e tensões pelas memórias e representações do
passado. Disputas, contudo, que despontam muitas vezes em confrontos e acusações
disseminados na mídia, como apreende-se na fala de Almada quando este afirma que muitos
documentos do arquivo “se llevaron, desaparecieron [...] y yo si hago la denuncia aqui en
Asunción no sale em la prensa, entonces cuando yo voy a Washington yo hagola denuncia,
entonces si sale ahí eso sale em los diarios acá[...]”(ALMADA, 2013, 16). Lutas,
confrontações e disputas envolvendo estas/es atrizes e atores sociais que vêm contribuindo
para (re) significar e lançar outros olhares sobre as histórias e memórias da ditadura civil-
militar paraguaia.
Considerações Finais
Os arquivos, enquanto instituições, como aponta Catela “no son pasivas intermediarias
para la producción de historia, sino que también son activas gestoras de memorias y sentidos”
(CATELA, 2002, p. 207). Construções sociais, este espaço é perpassado por diferentes
agentes (arquivistas, diretores, usuários etc.) que com suas lutas, disputas e as diferentes
significações que a eles atribuem, fazem dele um local ‘povoado’ não apenas de documentos,
mas um lugar vivo, onde despontam histórias, memórias, e no qual Rosa Palau e Martín
Almada, por meio de sua relação com o Archivo del Terror, vem construindo suas
identidades, esta entendida aqui como em estreita conexão com as relações de poder(SILVA,
200, p. 81).
Identidades, disputas, narrativas que fazem do Archivo del Terror um patrimônio que
não apenas realiza a mediação sensível entre passado e presente, mas como salienta
Gonçalves também de certa forma, constrói, forma as pessoas (GONÇALVES, 2003, p.31).
Um espaço, enfim, perpassado por disputas e narrativas que vêm propiciando a produção de
outras histórias e memórias sobre o regime autoritário stronista, (re) significando o período.
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