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  • Srie mente-crebro

    Explorando a relao mente-crebro: reflexes e diretrizesExploring mind-brain relationship: reflections and guidelines

    alexaNder mOreira-almeida1

    1 Ncleo de Pesquisas em Espiritualidade e Sade (Nupes), Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brasil.

    Este artigo uma verso traduzida e adaptada do Preface e Conclusion da obra: Moreira-Almeida A, Santos FS, editors. Exploring frontiers of the mind-brain relationship. New York: Springer; 2012.

    Recebido: 12/4/2013 Aceito: 15/4/2013

    ResumoContexto: O avano no entendimento da mente e sua relao com o crebro tem sido prejudicado por equvocos filosficos e metodolgicos. Objetivo: Discutir brevemente e propor diretrizes epistemolgicas e metodolgicas para uma frutfera investigao da relao mente-crebro. Resultados: A relao mente--corpo ainda um problema em aberto, no havendo evidncias conclusivas de que a mente seja apenas um produto da atividade cerebral. Na explorao da mente, deve-se evitar a aceitao ou rejeio prematura de teorias, buscando no apenas evidncias confirmatrias, mas tambm as falseadoras de uma teoria. Deve-se ampliar e diversificar a base emprica, buscando especialmente experincias humanas no usuais, tais como as chamadas experincias anmalas ou espirituais. A observao de fenmenos anmalos que no se encaixavam nos paradigmas estabelecidos foi essencial em revolues cientficas prvias. Tanto dados quantitativos quanto qualitativos devem ser valorizados. Para explicar a mente e suas mltiplas manifestaes, essencial haver abertura e rigor para criar, desenvolver e testar alternativas tericas. Candidatos a paradigma de base tanto materialista quanto no materialista devem ter oportunidade de ser apresentados, aprimorados e testados. Concluso: A ampliao e a diversificao da base emprica aliada a uma postura epistemolgica e metodolgica mais adequada so essenciais para o avano da compreenso da relao mente-crebro.

    Moreira-Almeida A / Rev Psiq Cln. 2013;40(3):105-9

    Palavras-chave: Relaes mente-corpo, psicofisiologia, epistemologia, conscincia, metodologia.

    AbstractBackground: Philosophical and methodological misconceptions have hampered advances in the understanding of mind and its relationship with the brain. Objective: To discuss and propose epistemological and methodological guidelines for a fruitful investigation of mind-brain relationship. Results: Mind-brain problem is still an open quest, there is no conclusive evidence that mind is just a product of brain activity. In exploring mind one should avoid premature acceptance or rejection of theories, searching not only for confirmatory evidence, but also for the falsifying ones. It is needed enlarging and diversifying the empirical basis, looking especially for unusual human experiences such as those called anomalous and spiritual. Observation of anomalous phenomena, that did not fit established paradigms, was essential in early scientific revolutions. Both qualitative and quantitative data must be valued. In order to explain mind and its myriad of manifestations, it is essential to have openness and rigor to create, develop and test theoretical alternatives. Both, materialist and non-materialist paradigm candidates deserve the same opportunity of being presented, improved and tested. Discussion: The broadening and diversification of the empirical base allied to a more fruitful epistemological and methodological stance are essential for the advancing of our understanding of mind-brain relationship.

    Moreira-Almeida A / Rev Psiq Cln. 2013;40(3):105-9

    Keywords: Mind-body relations, psychophysiology, epistemology, consciousness, methodology.

    Introduo

    A compreenso da mente e da conscincia um dos empreendi-mentos mais estimulantes e desafiadores na busca humana pela compreenso de ns mesmos e do universo como um todo. A questo essencial : qual a natureza da mente e sua relao com o crebro? O que nos torna humanos e nos prov qualidades e habilidades que nos tornam quem somos? Qual a fonte da nossa experincia do eu? A despeito de sua importncia, essas questes foram frequentemente negligenciadas pela filosofia e cincia durante boa parte do sculo XX. Contudo, nas ltimas duas dcadas, tem havido um estimulante renascimento do interesse nesse tema no meio acadmico.

    Descobertas em neurocincias e neurotecnologia tm proporcio-nado uma janela nica atravs da qual podemos observar o intrin-cado trabalho do crebro humano. Embora as tecnologias tenham se desenvolvido muito, elas tambm tm mostrado as limitaes fundamentais que ainda persistem na nossa compreenso da mente humana. Como colocado por um dos principais filsofos da mente da atualidade, David Chalmers1, a despeito dos extraordinrios avanos

    da neurocincia, a busca da explicao da experincia consciente se constitui em um dos mais desconcertantes problemas na cincia da mente (p. 200).

    Lamentavelmente, diversos problemas e mal-entendidos teri-cos, filosficos e metodolgicos tm prejudicado um maior avano no entendimento da mente e sua relao com o crebro. Este artigo tem como objetivo discutir brevemente e chamar a ateno dos in-teressados no estudo da mente e da neurocincia para alguns desses aspectos mais importantes, com o intuito de facilitar o progresso no entendimento da relao mente-crebro.

    Mente como produto do crebro: um fato cientfico?

    Um obstculo ao avano em relao aos problemas da relao mente-crebro o fato de que muitas pessoas, mesmo no mundo acadmico, pensam que essas questes j foram resolvidas. Elas frequentemente acreditam que o crebro humano a resposta, que a mente no existe, ou que apenas um produto (para alguns, um epifenmeno, um subproduto ineficiente) da qumica e da atividade

    Endereo para correspondncia: Alexander Moreira-Almeida. Rua Itlia Cautiero Franco, 497, Granville 36036-241 Juiz de Fora, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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    eltrica cerebral. Muitos tambm veem o crebro como uma entidade que pode ver, ouvir, pensar, sentir e tomar decises. Contudo, essas parecem ser concluses precipitadas. Como colocado por Sir John Eccles, neurocientista ganhador do prmio Nobel, em seu livro em coautoria com o filsofo da cincia Karl Popper:

    H uma tendncia geral a superestimar o conhecimento cientfico do crebro, o que, infelizmente, tambm feito por muitos cientistas e divulga-dores da cincia. Por exemplo, nos dito que o crebro v linhas, ngulos (...) e que assim ns, em breve, seremos capazes de explicar como uma imagem completa vista (...). Mas esta afirmao enganosa. Tudo o que efetivamente se sabe acontecer no crebro que neurnios do crtex visual disparam impulsos em resposta a algum estmulo visual especfico. (p. 225)2

    Uma queixa similar foi feita por outra dupla, formada por um filsofo e um neurocientista, que considera que a atribuio de atributos psicolgicos em particular cognitivos e reflexivos ao crebro (...) uma fonte de (...) confuso. (...) as grandes descobertas das neurocincias no requerem esta forma equivocada de explica-o3 (p. 3-4, grifo no original).

    Embora o materialismo reducionista seja uma hiptese que valha a pena ser investigada, no um fato cientfico, como muitos acre-ditam. O materialismo no uma consequncia necessria e lgica da pesquisa cientfica. Nesse sentido, vrios reducionistas aceitam que ele ainda no um fato cientfico provado, mas que o ser em breve. Essa crena de que, em algum ponto no especificado no futuro (p. 205), ser cientificamente demonstrado como o crebro gera a mente o que Popper e Eccles chamaram de materialismo pro-missrio2. Saulo Araujo, em uma minuciosa investigao histrica4, concluiu que o materialismo promissrio tem sido uma estratgia retrica utilizada h pelo menos 300 anos, mas a profecia de uma demonstrao e uma explicao estritamente materialista da mente sempre prometidas para um futuro breve at hoje no se concretizou.

    Reflexes e diretrizes epistemolgicas e metodolgicas

    Evitar a aceitao prematura de teorias

    O reducionismo uma estratgia de trabalho legtima em relao ao problema mente-crebro, contudo, se ela apressadamente tomada como a resposta definitiva e final, isso pode levar a um fechamento prematuro e dogmtico dessa busca, que um dos mais importantes desafios ao conhecimento humano. Esse fechamento uma postura epistemolgica perigosa, j que o fato concreto que ainda estamos longe de efetivamente compreender e explicar a mente. Usando a terminologia do filsofo da cincia Thomas Kuhn5, poderamos dizer que estamos em uma fase pr-paradigmtica em relao ao problema mente-crebro. Um perodo pr-paradigmtico quando no h a aceitao consensual pela comunidade cientfica de um paradigma especfico (uma estrutura de teorias-chave, instrumentos, valores e pressupostos metafsicos para uma dada disciplina acadmica)6. Existem vrios candidatos a paradigma para o estudo da conscincia, mas nenhum efetivamente chegou a esse ponto ainda, caracterizando--se o campo como uma cincia imatura.

    Uma das consequncias adversas da aceitao prematura de uma teoria que encontrar exemplos confirmatrios de quase qualquer teoria uma tarefa fcil7. Muitos dados so frequentemente apresen-tados para apoiar a ideia de que a mente j foi completamente expli-cada como um produto da atividade cerebral. Isso frequentemente inclui exemplos da concomitncia psicofisiolgica e a demonstrao de que leses cerebrais ou alteraes neurofisiolgicas so frequen-temente seguidas por alguma alterao na mente. Contudo, como William James demonstrou h mais de um sculo8, esses dados tambm podem ser acomodados por uma teoria da transmisso em que o crebro atua como um filtro, tendo uma funo transmissiva ou permissiva (p. 291), agindo como um rgo para limitar e determinar a uma certa forma a conscincia produzida em outro lugar (p. 294). Tambm, conforme colocado por Chalmers1, estudar os correlatos neurais da conscincia no o mesmo que explicar a

    conscincia ou como e por que esses processos poderiam dar origem experincia consciente. H um abismo explicativo (explanatory gap) entre as funes (cerebrais) e a experincia, e precisamos de uma ponte explicativa para atravess-la (p. 203). De acordo com James8, a teoria da transmisso teria uma vantagem explicativa sobre a teoria da produo (em que o crebro produz a mente). Alm de explicar as predies da teoria da produo (especificamente a concomitncia de mudanas no crebro e na conscincia, isto , os correlatos cerebrais dos fenmenos mentais), a teoria da transmisso:

    tambm toca uma ampla classe de experincias que so dificilmente explicadas pela teoria da produo. Refiro-me a estes fenmenos obscuros e excepcionais relatados em todos os tempos ao longo da histria humana, (...) premonies, aparies no perodo da morte, vises ou impresses clarividentes e ampla gama de capacidades medinicas (...). Todas estas experincias, bastante paradoxais e sem sentido na teoria da produo, se encaixam muito naturalmente na outra teoria. Precisamos apenas supor a continuidade da nossa conscincia. (p. 298-299)8

    Buscar evidncias que refutem a teoria

    De acordo com o filsofo da cincia Karl Popper, para verdadeira-mente testar uma teoria, deveramos estar comprometidos em buscar evidncias que poderiam potencialmente falsear aquela teoria. Uma boa teoria cientfica resiste a tentativas vigorosas de encontrar evi-dncias contrrias. Contudo, Kuhn mostrou que cientistas frequen-temente no so capazes de reconhecer fenmenos no permitidos pelos paradigmas aos quais esto comprometidos:

    Ser por acidente, por exemplo, que os astrnomos ocidentais s comearam a ver mudanas nos cus, previamente imutveis, durante o meio sculo aps o novo paradigma de Coprnico ter sido proposto? Os chineses, cujas crenas cosmolgicas no proibiam mudanas celestes, tinham registrado a apario de muitas novas estrelas no cu em datas muito anteriores. (p. 116)5

    O reconhecimento de que estamos em uma fase pr-paradig-mtica na explorao do problema mente-crebro nos capacitaria a empreender investigao mais frutfera. Vale a pena lembrar que as habilidades cientficas necessrias para trabalhar em uma fase pr- -paradigmtica so diferentes daquelas requeridas durante uma fase paradigmtica, um perodo chamado por Kuhn de cincia normal. Um trabalho frutfero em perodos pr-paradigmticos ou revolucio-nrios requer abordagem mais mente aberta e comprometimento no to intenso com qualquer um dos candidatos a paradigma. Tambm se requer que se alargue tanto quanto possvel a diversidade da base emprica e se evite uma rejeio apressada de hipteses9.

    Ampliar e diversificar a base emprica

    Uma boa teoria cientfica precisa ser capaz de explicar um amplo e diversificado leque de fenmenos10. Uma teoria baseada em uma variedade limitada de fenmenos tem base muito frgil. A mera repetio de alguns tipos de achados adiciona pouca fora e vali-dade a uma dada teoria. Ento, a busca deliberada de novos tipos de observaes empricas para testar certo paradigma de grande valor, porque ela pode oferecer novas e valiosas confirmaes ou, ao contrrio, pode levar sua rejeio.

    No decorrer da histria, revolues cientficas frequentemente ocorreram quando cientistas brilhantes levaram em conta uma ampla variedade de fenmenos previamente desconhecidos ou desprezados. Galileu, com seu telescpio, e Charles Darwin, durante sua viagem de cinco anos no Beagle, reuniram uma enorme massa de evidncias empricas que no estavam disponveis para a maioria dos cientistas da poca. A viagem e o telescpio permitiram que Darwin e Galileu lidassem com um enorme alargamento da base emprica, uma base que no podia mais ser explicada pelos paradigmas astronmicos e biolgicos ento predominantes. O final dessas histrias bem

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    conhecido por todos ns. O mesmo aconteceu com a fsica cls-sica, que, h mais de um sculo, parecia ser capaz de explicar toda a natureza. Tal certeza fez com que o eminente fsico Lord Kelvin afirmasse, em 1900, poucos anos antes de Einstein desenvolver a teoria da relatividade: no h mais nada de novo a ser descoberto pela fsica agora, tudo o que resta so medies mais e mais precisas. De fato, a fsica clssica muito eficiente para explicar a maioria dos fenmenos fsicos que ocorrem em nossas vidas dirias. Contudo, quando comearam os estudos das partculas microscpicas e velo-cidades extremas, sua limitao se tornou evidente, dando origem revoluo cientfica da fsica moderna11.

    A cincia e a filosofia da mente precisam alargar seu tmido escopo e lidar com um leque muito mais amplo de fenmenos se elas desejam de fato fazer uma contribuio verdadeiramente significante para a compreenso da mente e sua relao com o crebro. Na explorao do problema mente-crebro, essencial levar em considerao a ampla gama de experincias humanas, no importando quo estranhas elas possam parecer primeira vista. Especificamente, experincias frequentemente chamadas anmalas e/ou espirituais constituem um tipo de dado emprico que tem sido negligenciado no ltimo sculo, mas com alto potencial de ter grande valor heurstico12-16. De modo a no repetir os erros descri-tos anteriormente, para avanar o nosso entendimento, precisamos prestar especial ateno exatamente aos fenmenos mais extremos e desafiadores. Nesse tipo de explorao, necessrio que dados empricos consistentes tenham supremacia epistemolgica sobre hipteses tericas estabelecidas ou de preferncia do pesquisador9, uma abordagem em sintonia com que foi chamado por William James de empirismo radical17.

    Como em revolues cientficas anteriores em outras reas da cincia, pensamos que esse alargamento da base emprica pode colaborar de modo decisivo para fazer avanar esse debate, que tem estado estagnado por longo tempo. Por serem vivncias da mente humana muito frequentes em todas as culturas ao longo da histria, as chamadas experincias espirituais precisam ser levadas em conta por qualquer paradigma que pretenda explicar a experincia humana ou ento ele ser, no mnimo, incompleto. Experincias de transes e possesses j despertaram o interesse de muitos pesquisadores con-ceituados, gerando investigaes fundamentais ao desenvolvimento de conceitos como inconsciente, mente subliminal, dissociao e histeria18-20.

    Talvez por estarem no centro de crenas e tradies espirituais, essas experincias humanas to frequentes tm sido negligenciadas por acadmicos que se recusam a investig-las seriamente como dados empricos que podem lanar luz na explorao da natureza humana. Uma possvel explicao desse descaso a confuso entre cincia e as posies metafsicas/filosficas do cientificismo e do materialismo. Como John Haught discutiu, embora haja uma crena disseminada de que cincia (um mtodo de explorao) seja insepa-rvel da ideologia materialista (uma proposta metafsica, uma viso de mundo), no est escrito em nenhum lugar que o restante de ns que aprecia cincia tem que acreditar nisto (naturalismo mate-rialista). Na realidade, a maioria dos grandes fundadores da cincia moderna no acreditava. (...) Aquela crena no uma afirmao cientfica, mas uma profisso de f (p. 367)21. Dado o equivocado amalgamamento de cincia com materialismo, compreensvel que a maioria das discusses acadmicas evite a investigao de expe-rincias que possam sugerir uma realidade transcendente ou no material, ou, ao menos, levar em considerao esses fenmenos como experincias humanas que merecem ser estudadas a fundo22,23. Na realidade, um equvoco utilizar a viso de mundo materialista como uma limitao ou fronteira para a empreitada cientfica. Hefner24,25 e Reich23 argumentam, de modo convincente, sobre o alargamento da base emprica para o estudo cientfico dos aspectos espirituais da experincia humana, mesmo (ou principalmente) se os dados observacionais no se encaixem nos princpios tericos (filosficos) predominantes. Vale ressaltar que j h atualmente um considervel conjunto de evidncias sobre experincias espirituais produzidas por rigorosas investigaes cientficas recentes11,12.

    Valorizar dados quantitativos e qualitativos

    Outro tipo de preconceito epistemolgico ingnuo se relaciona rejeio de dados qualitativos e nfase exagerada em dados quan-titativos e anlises estatsticas. Frequentemente se esquece de que um dos mais importantes paradigmas cientficos contemporneos, a evoluo por seleo natural, emergiu de estudos qualitativos rea-lizados por Charles Darwin26. De acordo com o filsofo da cincia Alan Chalmers, pessoas defendendo a ideia de que se voc no pode medir, seu conhecimento pobre e insatisfatrio no percebem que o mtodo que eles se esforam por seguir no apenas necessaria-mente estril e infrutfero, mas tambm que no o mtodo ao qual o sucesso da fsica deve ser atribudo (p. xiv)27.

    Abertura para alternativas tericas

    tambm importante no rejeitar uma hiptese explicativa porque ela no est na moda ou porque ela tem sido associada supers-tio. A formulao da gravidade por Isaac Newton enfrentou forte oposio, porque ele no era capaz (e ns tambm ainda no somos capazes) de explicar como um objeto pode influenciar outro objeto a distncia, sem nenhum contato material. Isso foi um problema ainda mais importante considerando-se que na poca dois paradig-mas predominantes mecanicismo e corpuscularismo afirmavam que as diferentes propriedades da matria deveriam ser totalmente explicadas pela interao mecnica de corpsculos28. Assim como Newton, Semmelweis e John Snow enfrentaram forte resistncia e acusaes de superstio e pensamento anticientfico por cientistas de sua poca, quando propuseram a teoria dos germes e do con-tgio. Naquele perodo, essas ideias eram populares entre pessoas supersticiosas e pouco instrudas, enquanto pessoas bem educadas habitualmente sabiam que a teoria dos miasmas era a verdade29-31.

    Na busca por um paradigma para compreender a conscincia, necessrio que ele explique tanto quanto possvel o amplo leque das experincias humanas. essencial manter tanto o rigor cientfico quanto a humildade intelectual. Como afirmado por Popper: na busca pela verdade, pode ser nosso melhor plano comear por criticar nossas crenas mais queridas (p. 6)7.

    Infelizmente, tal postura receptiva e aberta no est sempre presente na histria da cincia. De acordo com Thomas Kuhn, revo-lues cientficas no triunfam, porque o novo paradigma foi capaz de converter todos os cticos e lderes da oposio:

    A mudana de adeso de um paradigma para outro uma experincia de converso que no pode ser forada. A resistncia de toda uma vida, particularmente daqueles cujas carreiras produtivas comprometeu-os a uma tradio mais antiga de cincia normal, (...) um indicador da na-tureza da pesquisa cientfica em si. A fonte de resistncia a confiana de que o paradigma antigo acabar resolvendo todos os seus problemas (...)

    (...) [uma] gerao algumas vezes necessria para realizar a mudana (...). Embora alguns cientistas, particularmente os mais antigos e mais experientes, possam resistir indefinidamente, a maioria deles pode ser alcanada de uma forma ou de outra. Converses ocorrero aos poucos at que, aps a morte dos ltimos opositores, toda a comunidade voltar a praticar cincia sob um nico, mas agora novo, paradigma. (p. 151-152)5

    Na busca por um paradigma para explicar a mente e sua rela-o com o crebro, torna-se fundamental evitar dogmatismos de quaisquer espcies, estando aberto tanto para aspectos cerebrais como no cerebrais da mente. Como recentemente colocado por David Chalmers32, vrias limitaes importantes das perspectivas materialistas tm sido expostas e as principais objees a perspectivas no materialistas tm sido superadas, ento perspectivas no mate-rialistas deveriam agora receber mais considerao. Ele sugeriu que os dois melhores candidatos para uma teoria cientfica da mente so o dualismo interacionista e o panprotopsiquismo. Ele afirmou que, contrrio sua inclinao inicial, ele se tornou um tipo de dualista por causa de sua atitude cientfica de aceitar (e no desprezar) os

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    dados (p. 4)33. Vale refletir sobre suas concluses a respeito do lugar da conscincia na natureza:

    frequentemente admitido que mesmo sendo difcil ver como o materia-lismo pode ser verdadeiro, o materialismo tem que ser verdadeiro, posto que as alternativas so inaceitveis. Do meu ponto de vista, existem em jogo pelo menos trs alternativas ao materialismo aceitveis prima facie (dualismo interacionista, epifenomenalismo e panprotopsiquismo), cada um deles compatvel com uma viso de mundo naturalista (mesmo se no materialista), e nenhum deles tem problemas fatais. Assim, dados os claros argumentos contra o materialismo, parece-me que deveramos ao menos assumir, como uma conjectura, a concluso de que uma destas vises est correta. Naturalmente, todas estas vises (...) precisam ser desenvolvidas em muito mais detalhes e examinadas luz de todos os desenvolvimentos filosficos e cientficos relevantes a fim de serem avaliadas de modo abrangente. Mas como as coisas se mostram, eu penso que ns temos boas razes para supor que a conscincia tem um lugar fundamental na natureza. (p. 41-42)32

    Aprimoramento e busca de evidncias para um candidato a paradigma

    Atualmente bem reconhecido em filosofia da cincia que no h prova definitiva ou experimento crucial para confirmar uma dada teoria. O desenvolvimento cientfico raramente feito de passos claros e bem definidos. A empreitada cientfica muito mais incerta e complexa do que gostaramos. Como afirmado pelo filsofo da cincia Imre Lakatos: No existe algo como um experimento crucial, ao menos no no sentido de experimentos que podem derrubar instantaneamente um programa de pesquisa (p. 173)34.

    Qualquer teoria cientfica passa por um perodo inicial de incerteza, incompletude e suspeio, contudo, se a teoria e seus proponentes so bons o suficiente, essas barreiras so vencidas34. Um bom exemplo a histria da evoluo pela seleo natural, embora ela seja atualmente um paradigma bem estabelecido na biologia, esse no foi sempre o caso. Muitas evidncias favorveis e desenvol-vimentos tericos vieram apenas dcadas mais tarde, na primeira metade do sculo XX, por meio da integrao da gentica com a evoluo darwiniana, no que conhecido como neodarwinismo ou sntese moderna35.

    O prprio Charles Darwin admitia que no era possvel apresen-tar, em sua poca, uma prova direta e definitiva da seleo natural. Ele dizia queles que no se convenceram de sua teoria:

    No estou de modo algum surpreendido que voc no aceite a seleo natu-ral: muito difcil uma prova ou evidncia direta neste tema. Ele ser aceito somente por aqueles que pensam que ele conecta e explica parcialmente vrios grandes grupos de fatos: do mesmo modo que os pticos admitem a teoria ondulatria da luz, embora ningum possa provar a existncia do ter ou suas ondulaes.36

    A principal vantagem da evoluo por seleo natural sobre teo-rias concorrentes era o seu poder explicativo, que conectava e dava sentido a um grande corpo de evidncias empricas que no se en-caixavam bem nos paradigmas concorrentes. Como afirmou Darwin:

    De fato, a crena na seleo natural precisa no momento ser baseada inteiramente em consideraes gerais: (1) nos fatos da luta pela existncia e certos fatos geolgicos que as espcies de algum modo se transformam, (2) da analogia da mudana sobre domesticao pela seleo do homem, (3) e principalmente desta viso conectando de modo inteligvel uma multido de fatos.37

    Concluso

    Dadas as evidncias disponveis e nossa limitada compreenso da mente, perspectivas tanto materialistas como no materialistas

    da mente merecem ao menos a mesma oportunidade de desen-volvimento. Liberdade intelectual necessria para desenvolver a aprimorar candidatos a paradigma, sem que sejam suprimidos pelo dogmatismo e intolerncia. Alm disso, de acordo com Lakatos, o desenvolvimento cientfico ocorre em um tipo de seleo darwi-niana de competio entre candidatos a paradigma onde o mais apto sobrevive:

    Seria equivocado assumir que algum precisa permanecer em um pro-grama de pesquisa at que ele tenha exaurido todo seu poder heurstico, que no se pode introduzir um programa rival antes que todos concordem que o ponto de degenerao provavelmente j chegou. (...)

    A histria da cincia tem sido e deve ser uma histria de competio de programas de pesquisa: quanto antes a competio comear, melhor para o progresso. Pluralismo terico melhor que Monismo terico. (p. 155)34

    Exatamente por causa disso, vivemos em uma poca estimulante. Se reconhecermos humildemente nosso conhecimento muito limi-tado sobre a conscincia e, ao mesmo tempo, enfrentarmos audacio-samente, rigorosamente e criativamente o problema mente-crebro, como seres humanos, poderemos marchar para uma compreenso mais profunda da nossa prpria natureza. Essa , indubitavelmente, uma empreitada rdua e desafiadora, contudo um caminho que definitivamente vale a pena trilhar.

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