Jovens Quilombolas: da identificação à organização1
Breno Neno Silva Cavalcante2
Jane Felipe Beltrão3 (Universidade Federal do Pará)
Resumo: O presente trabalho parte do questionamento “o que é ser jovem em uma comunidade quilombola?” e busca, através da observação participante, identificar quais as representações de juventude presentes nos quilombos de Salvaterra e como se opera a construção identitária desses sujeitos como quilombolas. Na construção dessa identidade, considera-‐se a observação dos marcadores sociais da diferença, que contribuem para uma visão mais adequada da complexidade do “ser jovem quilombola”. Ademais, analisam-‐se as conquistas recentes do movimento negro e quilombola em âmbito legal/institucional, e demonstra-‐se o distanciamento do previsto legalmente e a realidade material, na qual é possível verificar diversas violações aos direitos de jovens quilombolas. Em resposta a essas violências, que ocorrem em vários níveis – físico, psicológico e simbólico – ressalta-‐se a agência desses jovens e o empoderamento político-‐organizativo para enfrentar as opressões, através do grupo Abayomi, por exemplo, que visa a formação de novas lideranças e a valorização da cultura africana. Por fim, observa-‐se uma mudança na perspectiva de futuro profissional e acadêmico na vida desses jovens, que, por meio da luta do movimento quilombola, têm mais oportunidades de ingressar no ensino superior, à exemplo do Processo Seletivo Especial da Universidade Federal do Pará e do curso de Etnodesenvolvimento.
Palavras-‐chave: Jovens Quilombolas, Marcadores Sociais da Diferença, Empoderamento.
Abstract: The present work starts from the question “what it is to be a youngster in quilombola community?” and seeks, through participant observation, to identify which representations of youth are within the quilombos at Salvaterra and how their identity constructions as quilombolas operate. In the construction of this identity, the observation of the social markers of difference is taken in consideration, which contributes for a more adequate view of the complexity of “being a young quilombola”. Morevover, this work analyses the recent achievements of the Afro-‐Brazilian and quilombola movements in the legal/institutional field and demonstrates the distance between what is legally established and the material reality, where various violations of the rights of young quilombolas take place. In response to these violations, which happen in different levels –physical, psychological, symbolic-‐, this work highlights the agency of these youngsters and the political/organizational empowerment that helps overcoming the oppressions. This empowerment happens, for example, by the work of the Abayomi group, which stands for the preparation of 1 Trabalho desenvolvido com apoio do programa PIBIC/CNPq. 2 Bolsista do PIBIC/CNPq. Graduand em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Email: [email protected]. 3 Orientadora. Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Bolsista de Produtividade 1C pelo CNPq. Email: [email protected]
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future leaders and the valorization of the African culture. Finally, there is a change in the perspectives of professional and academic future in the life of these youngsters, who, through the fight of the quilombola movement, have more opportunities of entering the college education, for example by accessing the Special Selective Process of the Federal University of Pará or the Etnodesenvolvimento course.
Keywords: Young Quilombolas, Social Markers of Difference, Empowerment.
O artigo corresponde às atividades realizadas na Iniciação Científica, no que
concerne à coleta, sistematização e análise de dados e insere-‐se no projeto de
pesquisa intitulado “Pertenças ocultas e ‘etnogêneses’ identitárias como faces de
etnocídio ‘cordial’”.4 O Plano de Trabalho denominando Identidade e representações
de juventude em comunidades Quilombolas, tem por objeto e sujeitos de pesquisa os
jovens quilombolas que residem em comunidades localizadas no município de
Salvaterra, no Arquipélago do Marajó. Tais dimensões serão problematizadas a partir
da categoria ‘jovem’5 desenvolvida neste trabalho, em diálogo transversal com os
diversos marcadores sociais da diferença, 6 que são essenciais para a adequada
compreensão das representações7 de juventude e consequente cumprimento dos
objetivos da pesquisa.
Ademais, e antes de prosseguir, é necessário estabelecer algumas demarcações
teóricas, políticas e metodológicas à respeito da pesquisa desenvolvida. A pesquisa, a
partir da qual se desenvolve o presente artigo, busca compreender relações de
identidade e representações sociais de jovens quilombolas a partir da intersecção das
categorias juventude e raça/etnia, no intuito de pluralizar o conhecimento acadêmico
a respeito das experiências juvenis e evidenciar as desigualdades, opressões,
4 Cf. Beltrão, Jane Felipe. 2014. Pertenças ocultas e “etnogêneses” identitárias como faces de etnocídio
“cordial”. Antropologias & Histórias “em suspenso” entre os Tembé/Tenetehara no Rio Guamá. (Proposta associada à bolsa de produtividade em pesquisa (nível 1C) do CNPq). Processo: Nº. 303027/2013-‐4/CNPq. (Inédito) 5 Categoria analítica geracional e relacional (Bourdieu 2002) histórica, social e culturalmente construída. Tal formulação nos permite reconhecer formas heterogêneas de se conceber e vivenciar ciclos de vida, desumanizadas por perspectivas generalizantes, ocidentais e coloniais. 6 Categoria usada nas Ciências Sociais para explicar como são constituídas socialmente desigualdades e hierarquias entre grupos sociais e indivíduos. São exemplos de categorias a cor/raça, o gênero, a sexualidade e a classe social (Edilene Pereira e Vera Rodrigues, 2010) 7 Categorias de pensamento construídas coletivamente a partir de experiências do cotidiano, constituídas por determinado conjunto de regras, crenças, signos, significados e concepções da realidade que permeiam as relações do grupo (Sousa, 2014).
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subalternizações e resistências acionadas por essas categorias enquanto marcadores
sociais da diferença. (Sousa, 2014)8
Além disso, é necessário demarcar o lugar de fala do autor, que se coloca como
militante de um movimento social de juventude, e, portanto, um pesquisador-‐
militante, com um interesse claro de contribuir com as lutas9 da juventude quilombola,
a partir da visibilização das agências desses jovens em contextos locais. Feita essa
consideração, digo que não pretendendo assumir uma posição de neutralidade no
fazer científico (até por não enxergar essa possibilidade), como pesquisador utilizo de
conceitos e acúmulos teóricos de movimentos sociais e populares brasileiros para
estabelecer comparações e analisar os fatos políticos emergentes das lutas do
movimento quilombola.
A preparação para a pesquisa teve início com o curso de formação Vitimização,
Subalternidade e Diferença, ministrado, em fevereiro de 2015, por Mariah Torres
Aleixo e Camille Barata, integrantes do grupo de estudos Cidade, Aldeia & Patrimônio,
coordenado pela Profa. Jane Felipe Beltrão. Nos meses seguintes, o Grupo estudou a
sentença prolatada pelo Juiz Federal Airton Portela, sobre o não reconhecimento dos
Povos Indígenas Borari e Arapium e, consequentemente, de seus direitos à Terra
Indígena Maró, no município de Santarém, de modo a desconstruir o discurso
presente na sentença e refletir sobre os argumentos usados para descaracterizar o
processo de etnogênese10 verificado naquelas comunidades. Ademais, durante os
encontros do grupo, contou-‐se com as contribuições de graduandos e pós-‐graduandos
para a discussão de temáticas afins e também através de diversas apresentações de
qualificações, dissertações, teses, artigos e experiências de campo.
A disciplina Teoria dos Direitos Humanos, ministrada no primeiro semestre de
2015 pelas professoras Jane Beltrão e Cristina Terezo, no Programa de Pós-‐Graduação
em Direitos Humanos da UFPA, à qual assisti como ouvinte, foi de fundamental
8 Cf. Sousa, Camila. 2014. Quilombolas em situação de violência. Relatório técnico-‐científico parcial de IC – CNPq/UFPA. (Inédito) 9 Neste artigo utiliza-‐se “luta”, e sua respectiva qualidade: “lutador” ou “lutadora”; como conceito nativo, ou seja, como uma categoria que somente tem sentido no mundo prático, efetivo (Guimarães, 2009) . 10 Processo pelo qual povos considerados extintos em documentos oficiais recuperam uma identidade étnica ocultada e a atualizam como fonte de mobilização política e reorganização sócio-‐cultural. (Pacheco de Oliveira, 2006)
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importância para o entendimento do diálogo entre Direito e Antropologia, e os frutos
dele advindos em termos de uma melhor compreensão dos direitos diferenciados11 de
povos e comunidades tradicionais e da sensibilidade jurídica 12 necessária para
entender os seus sistemas jurídicos próprios. (Geertz, 1998)
Os três campos13 realizados em Salvaterra contribuíram para desconstruir uma
série de preconceitos e ajudaram na elaboração do presente relatório. Em especial, o
encontro da Abayomi, 14 realizado nos dias 14 e 15 de março de 2015, que teve lugar
no quilombo de Vila União/Campina, foi de suma importância para a compreensão do
protagonismo político dos jovens e da sua disposição em valorizar a negritude e as
origens africanas.
Igualmente importante para a formação foi o campo realizado no município de
Santa Maria do Pará (PA), na Colônia do Prata e na aldeia indígena do Jeju, onde foi
possível dialogar sobre o processo seletivo especial da UFPA e entre outros aspectos
das agências indígenas locais. Esse campo possibilitou estabelecer comparações
interessantes entre os direitos diferenciados quilombolas e indígenas, que podem ser
aprofundadas em trabalhos vindouros.
O IV Encontrão do Ijê Ofè,15 realizado Belém, dos dias 04 a 06 de junho de 2015,
contribuiu imensamente para entender o pano de fundo da formação das jovens
lideranças da Abayomi. Constatou-‐se que a articulação entre as entidades de Direitos
Humanos, ONGs e movimentos contra-‐hegemônicos16 podem, via diálogo político
11 Conjunto de direitos praticados e produzidos por uma coletividade que não forma um Estado Nacional, que não positiva suas leis em códigos escritos, que não possuem órgãos específicos para a elaboração de leis e tomada de decisões. Mas que, no entanto, são direitos considerados legítimos por essa mesma coletividade (Libardi de Souza, 2009). 12 Significados provenientes do campo jurídico-‐legal, que traduzem conceitos de justiça específicos, sentidos de direitos particulares a cada cultura, variando de acordo com o saber local (Geertz, 1998, apud Libardi de Souza, 2009) 13 A expressão ‘campo’ será utilizada neste trabalho como o exercício prático da observação participante junto a comunidades quilombolas do município de Salvaterra (PA). A observação participante consiste na coleta de dados via participação direta do pesquisador na convivência com a comunidade, que participa da vida diária e observa os comportamentos das pessoas, entabulando conversas informais –entrevistas direcionadas ou não para alcançar o melhor entendimento possível da realidade e, em seguida, compara e interpreta as informações coletadas durante o período que passou entre seus interlocutores. (Goldenberg, 2004). 14 Expressão que em idioma Iorubá, significa “encontro precioso” ou “o melhor que posso dar de mim”. A Abayomi é constituída por um grupo de jovens quilombolas que atua em Salvaterra (PA). 15 Quer dizer “raça livre” no idioma Iorubá. 16 Aqui classificados como movimentos que se opõem à globalização hegemônica sustentada por três pilares: sexismo, colonialismo e capitalismo. Ver Santos (2013).
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intercultural17 ajudar na afirmação da identidade18 quilombola, na luta pelo território e
no “resgate” da africanidade.
Durante os “campos”, fez-‐se uso da observação participante, de entrevistas não
direcionadas e da análise de depoimentos dos interlocutores por meio de narrativas
orais durante as incursões de campo. A observação participante permite um contato
direto com a comunidade e com os interlocutores, o que facilita o fazer etnográfico e
proporciona um diálogo intercultural.
Para os fins deste trabalho, interessa-‐nos compreender a agência19 dos jovens
das comunidades quilombolas de Salvaterra, considerando os diversos marcadores
sociais da diferença, e de que maneira esses sujeitos se auto-‐organizam para enfrentar
as situações de violações de direitos e lutar por uma inclusão social de fato, com base
no protagonismo político e nas “brechas” conquistadas no âmbito legal/institucional.
As possibilidades que se abrem no âmbito institucional, para que se efetive os
direitos dos quilombolas, dizem respeito à cultura, à educação, à saúde e ao território
e têm como marco – adotado pelo presente trabalho, a promulgação da Constituição
Federal Brasileira (CF), em 1988, que traz consigo um novo paradigma para o Direito
brasileiro com respeito aos direitos de povos etnicamente diferenciados. Graças aos
institutos conquistados e ao status constitucional que receberam, o Brasil pode hoje
considerar-‐se um país pluriétnico, que admite a cultura dos quilombos como parte da
diversidade nacional. Tanto é assim que, segundo o § 5° do Art. 216 da Constituição
Federal Brasileira, os “sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
17 O termo pressupõe que as culturas são incompletas e que um diálogo entre elas pode potencializar ações em favor da emancipação humana. No entanto, é necessário atentar para a assimetria que pode decorrer desse diálogo, afinal uma das culturas –a ocidental – é hegemônica no mundo e apresenta forte indisposição ao diálogo intercultural. Para tanto, deve-‐se fazer uso da Hermenêutica Diatópica, que pretende ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua entre as culturas. (Santos, 2009). No caso deste artigo, a interculturalidade é entendida em um contexto político de luta em favor de pautas comuns. 18 Utiliza-‐se o conceito de Barth, segundo o qual a identidade étnica é um conceito dinâmico, que depende sempre do contexto e dos interesses em jogo e que se transforma a partir das relações com outras grupos étnicos, sejam elas coletivas ou individuais. Os quilombolas, enquanto grupo étnico, seriam uma categoria de atribuição e identificação realizadas pelos próprios autores, o que se coaduna com a chamada auto-‐identificação. Ver Barth 2011. 19 Usa-‐se o termo na concepção de Sherry Ortner (2011), que considera existem dois campos de significado para tratar do conceito: o relacionado à intencionalidade e ao fato de perseguir projetos culturalmente definidos e outro vinculado a questão do poder e à atuação no contexto de desigualdades, assimetria e forças sociais.
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quilombos” constituem patrimônio cultural brasileiro e são tombados20 como forma de
garantir a sua preservação.
Da mesma maneira, o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT), utilizou por primeira vez, no ordenamento jurídico pátrio, desde o
período da escravidão, a expressão “quilombola” ou “remanescentes de quilombos”.
Esse artigo reconhece propriedade definitiva aos “remanescentes das comunidades de
quilombo”21 que estejam ocupando suas terras. Posteriormente, o artigo 60 foi
regulamentado por meio do Decreto No. 4.887/2003, que traz em seu bojo uma
definição de quilombo em sua dimensão territorial. Sobre o tema, Ilka Boaventura
Leite assim comenta:
“[a]s terras de quilombos correspondem, pois, às áreas territoriais identificadas pelos grupos negros como experiências específicas consolidadas por meio de vínculos sociais e históricos, e noções de pertencimento e origem comum presumida, convergindo para uma territorialidade expressa como modalidades próprias de organização social, parentesco, sociabilidade e valores culturais materiais e imateriais de um patrimônio reconhecido pela coletividade que a integra.” (2012: 257)
A Lei 10.639/2003, atualizada pela Lei 11.645/2008, garante o ensino da cultura
e história afro-‐brasileira e indígena em escolas públicas e privadas do Brasil, e se
configura como um dos principais instrumentos legais de luta do movimento negro22 e
quilombola no Brasil. Este dispositivo impulsiona a formulação de uma educação
intercultural, a partir da transversalização desses conteúdos em todas as disciplinas do
currículo escolar e da reflexão crítica sobre a formação do país a partir das lutas e
contribuições dos negros e índios, o que configura também um importante
instrumento de combate às discriminações ainda vigentes na sociedade. (Oliveira &
Beltrão, 2015). O artigo 210 da CF também aponta no mesmo sentido e garante
conteúdos mínimos no ensino fundamental para “assegurar formação básica comum e
respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”.
20 Segundo Di Pietro (2011), o tombamento é um processo administrativo, que se constitui como uma intervenção do Estado na propriedade privada, tendo por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. 21 As aspas se justificam pelo fato de a expressão ser ainda muito questionada no movimento quilombola e na literatura sobre o tema. 22 O termo ‘movimento negro’ é aqui utilizado como sendo a expressão de sujeitos políticos que, articulados ou não, atuam como vozes da coletividade negra no combate ao racismo e em defesa da igualdade racial no acesso a bens e serviços socialmente produzidos. (Guimarães, 1999, 2002, apud Oshai, 2015).
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Outra conquista, de suma importância para a questão territorial quilombola, foi
a Convenção No. 16923 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), editada a partir
da necessidade de os Povos Indígenas e Tribais se auto-‐determinarem, assumindo para
si o controle de suas próprias formas de vida e instituições. Entende-‐se que, por uma
questão de interpretação histórica e jurídica, os povos e comunidades tradicionais
também estariam abarcados por essa Convenção, no entanto há controvérsias ainda
não resolvidas no Judiciário brasileiro que impedem a pacificação desse entendimento.
Tais conquistas em âmbito institucional demonstram o reconhecimento do
Estado Brasileiro de que os quilombolas constituem um grupo social específico dentro
do país, e que, portanto, merecem um tratamento diferenciado –direitos
diferenciados-‐ para que se garanta os direitos básicos dentro dos quilombos e para
que se respeite a diversidade cultural que expressam.
Juventude Quilombola: identidade e sociabilidade
O que é ser quilombola?
A pesquisa realizada ao longo do primeiro semestre de 2015 se orienta a partir
da seguinte pergunta: O que é/como é ser jovem em uma comunidade quilombola?
Partindo dessa interrogação, as experiências de campo demonstraram como os jovens
se entendem dentro da comunidade, se se identificam como quilombolas e por quê, e
qual a relação dos mesmos com os mais velhos e suas práticas tradicionais.
Por meio de um questionário24 passado aos jovens quilombolas durante o V
Encontro da Abayomi, realizou-‐se um consulta aos participantes sobre alguns temas,
por intermédio das seguintes interrogações e solicitações: “Você conhece seu
Quilombo?”; Como surgiu seu quilombo?”; Na sua comunidade tem (opções para
assinalar): (a) associação quilombola; (b) associação de agricultores; (c) associação de
pescadores; (d) grupo de jovens; (e) grupo de danças; (f) grupo de igreja. De acordo
com o que você marca, qual o seu papel dentro da comunidade? O que é ser
quilombola? Você se identifica como quilombola? Justifique sua resposta.
23 De acordo com Rodrigo Oliveira (2015), essa Convenção, de 1989, foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 2002, e traz em seu bojo um importante instrumento de diálogo intercultural, qual seja a consulta prévia, livre e informada. 24 Documento utilizado pelos jovens da Abayomi para obter informações sobre seus associados.
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Para os fins deste trabalho, interessa-‐nos analisar sobretudo as interrogações
referentes à auto-‐identificação. Na dinâmica do encontro, os jovens escreveram
respostas às perguntas em um papel e, em um segundo momento, leram em voz alta o
que produziram; cada grupo representando um dos quilombos representados na
reunião. As respostas eram variadas, algumas relacionando a identidade quilombola ao
orgulho das raízes, outras à raça e algumas às práticas tradicionais do cotidiano.
No intuito de analisar essas respostas a partir dos próprios termos usados pelos
jovens, faz-‐se uma divisão em “categorias de identificação”, que mescla respostas às
perguntas de número 5 e 6, respectivamente, quais sejam: “o que é ser quilombola?” e
“você se considera quilombola? Justifique sua resposta.” É importante asseverar que
as preocupações dos jovens coincidem com as minhas preocupações, fato que facilitou
em muito o meu trabalho.
Da raça
A pergunta 5 o que é ser quilombola? recebeu como resposta “ser quilombola é
ter coragem, raça e ter orgulho da cor.” E, ainda, “ser quilombola é reconhecer a força
do negro na sociedade brasileira.”
As respostas remetem à identificação por meio da afirmação da raça,25 conceito
que não será utilizado neste trabalho em sua acepção biológica, mas sim política,
como o faz o Movimento Negro26 no Brasil. A maioria dos pesquisadores brasileiros
que se ocupam da temática preferem a manutenção do termo ‘raça’, para que se
possa explicar o racismo, pois o mesmo continua a se basear na ‘crença’ da existência
de uma hierarquia racial, estruturada a partir de conjuntos raciais que ainda se fazem
presentes nas representações sociais e no imaginário coletivo no mundo
contemporâneo.
25 Entende-‐se que a biologia descartou o conceito de raça e demonstrou sua não operacionalidade, no entanto, na realidade política e social essa categoria ainda é amplamente utilizada. Nas ciências sociais ela é considerada uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e exclusão, como afirma Kabengele Munanga (2003). 26 O termo ‘movimento negro’ é aqui utilizado como sendo a expressão de sujeitos políticos que, articulados ou não, atuam como vozes da coletividade negra no combate ao racismo e em defesa da igualdade racial no acesso a bens e serviços socialmente produzidos. (Guimarães, 1999, 2002, apud Oshai, 2015)
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Por outro lado, alguns autores substituem o conceito de ‘raça’ por ‘etnia’,
considerado como um termo mais cômodo e “politicamente correto”. Todavia, essa
troca não muda em nada a realidade do racismo, pois não acaba com a relação
hierarquizada entre culturas diferentes, que é um dos componentes do racismo. Em
outras palavras, o racismo praticado atualmente nas sociedades contemporâneas não
precisa mais do conceito de raça ou da variante biológica, porque ele se reformula com
base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou identidade cultural, não obstante, as
vítimas de hoje são as mesma de ontem e as raças de ontem são as etnias de hoje
(Munanga, 2003).
A categoria ‘cor’ é bastante discutida nas ciências sociais. De maneira geral,
pode ser relacionada a aspectos objetivos, biológicos, fazendo referência à quantidade
de melanina presente no corpo humano. No entanto, a discussão sobre os usos sociais
e históricos desse termo é mais complexa e remete a hierarquização das cores, usada
como forma de dominação do ser humano pelo ser humano. Inclusive nas pesquisas
realizadas por Antonio Guimarães (2009), há militantes do movimento negro que se
identificam enquanto ‘negros’, em termos da raça, e ‘pardos’, no que se refere à cor.
Nota-‐se que o primeiro é utilizado no sentido da ancestralidade e da posição política e
o último no sentido corrente na sociedade brasileira, ou seja, do critério supostamente
objetivo da cor.
A resposta que tem por referente ‘raça’ traz consigo uma carga política forte,
pois define o “ser quilombola” a partir e da qualidade que informa sobre a coragem,
indicando o pertencimento à raça que atribui valor à cor de pele. É interessante notar
que certas qualidades e valores como ‘força’, ‘coragem’, ‘resistência’ e outros
aparecem com frequência associados à questão racial e à questão do(a) negro(a) no
Brasil. A linguagem e o uso das categorias podem ser entendidas como uma forma de
empoderamento, de valorização de um passado de lutas e resistência contra a
opressão.
Esses três elementos são acionados pelos participantes no sentido de afirmar a
identidade quilombola, que também é um conceito construído social e politicamente,
e que está em constante disputa, como se aborda mais à frente.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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A segunda resposta menciona diretamente a palavra ‘negro’ e a relaciona a um
legado histórico em que esse grupo étnico assim classificado demonstrou força. Neste
trabalho utilizaremos a categoria ‘negro’ enquanto identidade política, no sentido
atribuído pela Prof. Kabengele Munanga, que discorre da seguinte maneira sobre a
referida expressão:
“[a] questão é saber se todos têm consciência do conteúdo político dessas expressões e evitam cair no biologismo, pensando que os negros produzem cultura e identidade negras como as laranjeiras produzem laranjas e as mangueiras as mangas. Esta identidade política é uma identidade unificadora em busca de propostas transformadoras da realidade do negro no Brasil. Ela se opõe a uma outra identidade unificadora proposta pela ideologia dominante, ou seja, a identidade mestiça, que além de buscar a unidade nacional visa também a legitimação da chamada democracia racial brasileira e a conservação do status quo.” (2003, p. 11)
A pergunta 6 você se identifica como quilombola? e a demanda justifique sua
resposta, foram respondidas: “sim, pois tenho orgulho de ser negra e valorizar a minha
cultura.” E a jovem completa dizendo que acha que tem que lutar como os antigos
lutaram. Um outro interlocutor, respondeu que se considera quilombola e que tem
orgulho de ser negro, pois “meu pai e minha mãe também são.”
A primeira resposta traz à tona a questão da cultura “minha cultura”, que pode
ser diretamente relacionada à etnia. Nesse sentido, e assim como nas respostas à
pergunta 5, a questão de “ser negra(o)” se confunde com a proposição étnica ou de
grupos étnicos, acionadas para caracterizar os quilombolas.
No campo da Antropologia, discute-‐se que o conceito de etnia é sócio-‐cultural,
histórico e psicológico, podendo ser classificado como um conjunto de indivíduos que,
histórica ou mitologicamente, têm um ancestral, uma língua, uma religião, uma
cosmovisão comuns, apresentando uma mesma cultura e habitando um mesmo
território. (Munanga, 2003)
Além disso, há o aspecto da continuidade da ‘luta’, ou seja, a identificação
enquanto quilombola tem relação direta com o fato de lutar pela alteração de um
status quo que oprime esses sujeitos historicamente. Existe, também, uma clara
menção à questão geracional, aos “antigos”, e nesse sentido a luta vem como
elemento complementar para entender que uma das maneiras de se identificar
quilombola é justamente reconhecendo um passado de resistência.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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A segunda resposta nos remete a aspectos semelhantes aos da primeira, porém
é importante notar que a referência de lutadores e lutadoras é mais próxima e
personificada na figura dos pais.
Do fazer política
A pergunta 5 o que é ser quilombola? foi respondida evocando que ser
quilombola é lutar pelo direito coletivo, “é não lutar só por si” “é ter orgulho e
valorizar raízes e cultura.” E, também, “é se auto-‐identificar”, “é ter coragem, raça ...
orgulho da cor” reconhecendo “a força do negro na sociedade brasileira” ou seja “ter
orgulho do que é, do que faz”
Quando os jovens se identificam, é possível observar uma relação direta entre a
militância política e a luta coletiva – em oposição clara à luta pessoal, individual, e
também, repete-‐se o posicionamento político que refere o passado como respaldo. A
questão da afirmação racial é política e quanto mais lastro (auto-‐identificação,
conquistas históricas, reconhecimento) referir maior é a possibilidade de
(re)afirmação.
Ainda, sobre a questão da auto-‐identificação, nota-‐se o nível de consciência
política expressa na resposta, que poderia ser atribuída à militância do movimento
quilombola, especialmente a partir do trabalho da Malungu, entidade que, desde a
década de 90, no Pará, preocupou-‐se em defender a auto-‐identificação como
ferramenta política importante nos quilombos, tanto no sentido de conquistar maior
visibilidade e participação, quanto no que tange à questão do atendimento a direitos
básicos nas comunidades.
Uma das respostas obtidas remete à ideia de “cultura” e às “práticas”, ou seja,
ao “fazer”, que é um elemento importante na construção da identidade quilombola. As
próprias lideranças do movimento quilombola no Pará, quando falam sobre o tema,
mencionam essa relação do “fazer” com a identidade. Fernando, um dos
coordenadores da Malungu, presente no IV Encontro da Abayomi, afirmou que “ser
quilombola” está presente nas ações do dia-‐a-‐dia nos quilombos: é pescar, é coletar
açaí, é utilizar os conhecimentos ancestrais.
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Ao responder a pergunta 6 “você se identifica como quilombola? e a demanda
para justificar a afirmação, uma das jovens informou que “se espelha muito na sua
mãe e quer assumir o lugar dela”, adiantando o sim, ao que outra acrescentou que
tem “orgulho de ser negra e valorizar a minha cultura”. A mesma jovem comentou que
“acha que tem [obrigação] que lutar como os antigos lutaram”. Indo mais adiante os
jovens informam que “antes não se consideravam, mas agora, depois dos encontros da
Abayomi, se consideram, e concluem “é importante quilombola ter respeito ...
orgulho”. Como informa outro interlocutor “tenho orgulho de ser negro. meu pai e
minha mãe também são!”
Nota-‐se, nas respostas acima, uma acentuada referência ao orgulho de ser
negro e quilombola, mais uma vez misturando tais categorias. Novamente, a questão
da continuidade da luta aparece em referência à lutadores que os interlocutores nem
sequer conheceram – os “antigos” – e aos mais próximos, como o pai e a mãe.
Observa-‐se, também, um senso de responsabilidade e dever para com a luta,
expresso no “querer assumir o lugar”. A metáfora do espelho remete ao exemplo
pedagógico que a mãe oferece, e que leva a(o) filha(o) a tomar para si a consciência de
que é importante estar organizada(o) – expresso na frase “assumir o lugar”, ou seja,
ocupar determinada posição ou cargo – e dar sequência à luta.
A resposta que coloca a Abayomi no interior da roda política faz referência
direta à mudança operada pela formação política oferecida pelo grupo, destacando
como a interlocutora se sentia no passado e como agora se identifica com a política e a
militância a qual conduziria a exigência por respeito aos negros. Talvez as expressões
queiram indicar, no contexto, a urgência de que os quilombolas tenham participação
ativa na sociedade brasileira em geral, mas também pode ser entendida como reação à
opressão e ao preconceito racial que discrimina e afasta. De todo modo, a situação que
se apresenta aos jovens em Salvaterra (PA) é que os quilombolas não são respeitados,
portanto a situação precisa mudar.
De práticas e território
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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A pergunta 5 o que é ser quilombola? Foi respondida pelos jovens informando que
“pertencer a um Quilombo, [é] não negar as raízes. Tem a ver com a cultura dos
antepassados, e não com a cor.” E ainda, significa “reconhecer a origem.”
A última categoria de identificação – origem, não deixa de entrelaçar-‐se com as
outras duas – raízes e cultura. Observa-‐se que mais elementos emergem das falas, e
podem ser acrescidos a outros, por exemplo raízes/ancestralidade, que de alguma
forma relacionam-‐se ao conceito de grupo étnico e formas de auto-‐identificação
coletivas dos mesmos grupos.
Chama a atenção a aparente negação do fator “cor” como caracterizador do
“ser quilombola”. Essa colocação tem ressonância na realidade observada, pois a
equipe se deparou, por exemplo, com jovens de cor branca e traços corporais
atribuídos às pessoas brancas nos quilombos. Essas pessoas, para o movimento
quilombola, não deixam de ser quilombolas, o que demonstra as nuances do conceito
de grupo étnico, especialmente considerando as múltiplas possibilidades de
casamentos interétnicos que se fazem presentes desde a colônia, portanto nem
sempre os quilombolas no contexto podem ser classificados como tal pelo fenótipo, a
classificação como tenho trabalhado é social e não biológica.
Apesar de a expressão ‘quilombo’ remeter diretamente ao espaço físico, ou
seja, ao território, há, em algum nível, uma ideia geral de que este é um conceito
jurídico-‐político, especialmente pós Constituição de 1988. Falando mais precisamente,
a ideia de ‘quilombo’ está relacionada, desde a abolição (formal/oficial) ao sistema
escravista colonial, à luta contra o racismo e às políticas de reconhecimento da
população afro-‐brasileira, pautas dos movimentos negros e que recebem amplo apoio
de setores ligados aos Direitos Humanos no Brasil. (Leite, 2012)
As expressões “ser quilombola” e “quilombo”, na maior parte das vezes
utilizadas seguindo as descrições hegemônicas e etnocêntricas27 estão em constante
disputa social e ideológica. Tais categorias são polifônicas e tem sido usadas como
importantes marcos para as reivindicações do movimento quilombola no âmbito da
saúde, da cultura, do território e da educação. No entanto, essas reivindicações
27 Tendência do ser humano a ver o mundo através de sua cultura, que tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. (Laraia, 2001).
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
14
encontram diversas barreiras para serem negociadas junto aos órgãos competentes
para fazer o procedimento de titulação de terras ou mesmo em termos de aplicação
das leis.
Essa luta por reconhecimento por certo é a pauta principal de organizações
como a Malungu que lutam pelo território. Essa questão tem relação com a “origem”,
a qual ganha força com o trabalho de aliados estratégicos na Academia por meio dos
laudos antropológicos, por exemplo. Outra relação que deve ser feita quando se fala
em direito ao território é a realidade dos conflitos territoriais, que avançam cada vez
mais no Arquipélago do Marajó ameaçando quilombolas e também pesquisadores.
Fazendeiros criadores de gado e, mais recentemente, arrozeiros, por exemplo,
às vezes invadem ilegalmente territórios quilombolas, colocando cercas além dos
limites de suas propriedades e tentando cooptar ou dividir a comunidade através de
propostas ilegais28 de trabalho. Esses relatos nos foram oferecidos por Dona Vera,
interlocutora do quilombo do Bacabal e os mesmos possuem ressonância com a
realidade geral dos quilombos do Brasil. Ilka Boaventura Leite discorre sobre o tema:
“[d]isputas territoriais interpostas por interesses externos, ameaças de desaparecimento desses espaços estratégicos e sua fragilidade perante os diversos mecanismos de exploração mercantilizada da terra encontram no reconhecimento oficial e na regularização fundiária uma forma de garantia e consolidação de direitos de uma cidadania historicamente negada aos descendentes dos africanos escravizados (2012, pp.357-‐358)
Você se identifica como quilombola? Justifique sua resposta, recebeu dos
interlocutores, como resposta, um sonoro sim, “porque essa é a minha origem e vou
carregá-‐la para sempre.” E complemente, informando que nasceu e foi criada na
comunidade quilombola.
Da mesma forma, nesses casos, a referência ao “ser quilombola” traz a questão
da origem e de permanência pelo fato de que o interlocutor reafirma: “vou carregá-‐la
para sempre”. A expressão dá a ideia de uma perpetuidade da identidade quilombola,
que não cessaria com o mero afastamento geográfico, por exemplo. Essa identificação
que ajusta a pessoa às origens/raízes, tem ressonância nas leituras sobre o
28 As propostas são ilegais pois as áreas de plantio nos quilombos, por exemplo, são de uso comum e coletivo da comunidade, e não poderiam ser objeto de negociação bilateral, como ocorre em alguns casos.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
15
Comunitarismo, linha de pensamento que se opõe ao Liberalismo e que ganha corpo
especialmente na década de 90. Para aqueles autores e autoras, também
chamadas(os) coletivistas, não se pode afirmar que os indivíduos se determinam e
constroem suas noções de justiça apenas com base em valores abstratos, universais,
sem raízes comunitárias ou história.29
A referência ao local de nascimento – ao território – e à criação, que pode ser
tomada como categoria nativa que designa o desenvolvimento pessoal imerso em uma
determinada cultural, com características locais específicas.
Socializando nas Comunidades Quilombolas
Fora do espaço de encontros, os jovens quilombolas também possuem formas
de sociabilidade30 e práticas que contribuem na construção dessa identidade. Essas
práticas vão desde brincadeiras e atividades laborais até a religiosidade e a relação
com a natureza.
No cotidiano de algumas comunidades existem iniciativas recentes no sentido
de valorizar a cultura africana e de afirmar a identidade quilombola entre os jovens. No
quilombo de Deus Me Ajude, localizado no município de Salvaterra, por exemplo,
Pedro,31 jovem liderança da Associação quilombola da comunidade, impulsionou a
criação da brinquedoteca “cantinho da alegria”. Dentre as brincadeiras mencionadas,
há uma específica para que os jovens conheçam melhor as práticas dos antigos e para
que mantenham viva a cultura que herdaram dos antepassados. É a brincadeira da
macaca, também conhecida como amarelinha, onde, para avançar e vencer o jogo é
necessário responder a algumas perguntas sobre a comunidade. Pedro nos mostrou
um papel que trazia a pergunta: o que são plantas medicinais? E disse que esse
29 A discussão entre liberalismo e comunitarismo e teoria da justiça é longa e pode ser melhor aprofundada em Roberto Gargarella (1999). Sobre o debate referente ao multiculturalismo, à igualdade e ao pluralismo ver Michael Walzer (2003). 30 Utiliza-‐se aqui o conceito inaugurado por George Simmel. A sociação é a maneira pela qual os indivíduos formam uma unidade para satisfazerem seus interesses, sendo forma e conteúdo elementos inseparáveis na experiência concreta. A sociabilidade nada mais é que a apreciação do valor da sociação, ou seja, a “forma lúdica da sociação” (Simmel, 2009) 31 No presente artigo serão utilizados nomes fictícios para conservar a identidade dos interlocutores. Essa foi a forma encontrada para preservar as relações de compromisso e confiança estabelecidas durante as experiências de campo.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
16
aprendizado através do jogo faz com que os jovens valorizem mais as práticas
tradicionais.
Em Pau Furado, um dos interlocutores jovens, que é professor da escola da
comunidade, comentou que os jovens gostam de jogar capoeira e que um professor de
fora do quilombo vem eventualmente para dar oficinas. Nos encontros da Abayomi, a
organização do evento prepara oficinas de trançado, confecção de bijuterias e dança, à
exemplo do Lundú africano e do Carimbó. Essa combinação de atividades acaba
reforçando a herança africana e contribuindo para a construção da identidade
quilombola entre os jovens.
No Pau Furado, os jovens com os quais falamos se identificam como
quilombolas, mas nota-‐se alguma hesitação ainda frente à pergunta: você se diz
quilombola fora da comunidade? Todavia, nos foi relatado que os encontros da
Abayomi tem ajudado bastante no empoderamento para a construção dessa
identidade, apesar de que somente uma minoria dos jovens consegue participar dos
encontros, devido à limitação de vagas.
Em termos da religiosidade, os jovens têm um respeito e um envolvimento em
seu cotidiano com as práticas tradicionais. As mães e pais de santo e a figura dos Pajés
são comuns nas comunidades, o que revela também uma aproximação com a cultura
dos antepassados indígenas habitantes de aldeias na hoje chamada Ilha do Marajó.
Pedro nos relatou vários casos em que teve de recorrer à sabedoria dos pajés
para se curar de doenças e “flechadas” ocasionadas por diferentes motivos. Certa vez,
ele sonhou que não deveria matar animais na comunidade, no entanto, no dia
seguinte, matou uma cobra enquanto limpava uma área da Associação. Como
consequência, teve dores lancinantes nos olhos a ponto de alucinar, segundo seu
próprio relato. O único jeito foi recorrer ao pajé, que lhe recomendou alguns remédios
e enfatizou que obedecesse o desejo manifesto no sonho e não matasse mais os
animais.
Em outra ocasião, Pedro nos relatou que havia um projeto da prefeitura de
construir uma ponte para dar acesso à comunidade, porém essa construção teria que
passar sobre um rio. Esse rio, segundo Pedro, tem “Mãe”, portanto tem “dona”, e lhe
parecia que a dona do rio não estava satisfeita, posto que destruiu a ponte dez vezes.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
17
Em alguns dos momentos em que a ponte foi abaixo, o prefeito quase se envolve em
um acidente fatal. Pedro arrematou dizendo que sempre pede licença para entrar em
locais da floresta que tenham dona(o), como nos igarapés, por exemplo. Ouvimos
relatos no mesmo sentido de quilombolas de outras comunidades, que mantém um
respeito pela natureza e reconhecem certas localidades como sagradas.
O futebol é, sem dúvida, uma das principais formas de sociabilidade nas
comunidades quilombolas. Em Pau Furado, enquanto os mais velhos disputam partidas
no campinho, os mais novos brincam de “peru”32 com outra bola, e a brincadeira
envolve meninas e meninos. É normal que as mulheres também joguem bola, o que foi
verificado em várias outras comunidades, como em Bacabal, onde o pesquisador
participou de um jogo de meninas contra meninos.
Jogar bola é uma prática tão recorrente nas comunidades, que já há uma
tradição de organização de campeonatos entre os quilombos de Salvaterra. Jeremias
nos contou que há um sistema de organização desses torneios de futebol. Cada time
investe entre 300 e 500 reais na inscrição, enquanto que um dos quilombos organiza o
torneio, recebendo toda essa quantia. O prêmio são grades de cerveja, refrigerante ou
algum animal caçado anteriormente à partida (na ocasião, o prêmio foi carne de
porco). O dinheiro da inscrição “volta” aos times mais tarde, quando estes organizam o
evento (a organização tem uma rotação, que viabiliza economicamente a participação
das equipes).
Às vezes, pelo que se pôde notar, as partidas são jogadas ao som de
aparelhagens de Brega. Enquanto os homens jogam as partidas apostadas, as mulheres
ficam na margem do campo torcendo, comentando o jogo e fazendo brincadeiras com
os que jogam mal.
Jeremias nos contou também que frequentemente os jovens saem,
especialmente sábado à noite, para as festas em Salvaterra ou em outros quilombos, o
que é mais comum. Essa independência, de poder ir à cidade quando quiserem, parece
ser algo almejado por alguns jovens. Durante um campo em Pau Furado, o pesquisador
pegou carona de moto com Antônio, um jovem de 16 anos, que revelou saber andar
32 O “peru”, também chamado de “bobinho” em algumas regiões do país, é uma brincadeira cujo objetivo é impedir que o peru domine a bola. Enquanto as pessoas tocam a bola uma à outra na roda, o peru corre para tentar dominá-‐la. Se o faz, a pessoa que falhou no toque passa a ser o peru.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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de moto desde os 12. Ele disse que aprendeu com algumas pessoas em Salvaterra e
que somente no princípio sua mãe achava perigoso e tentava impedi-‐lo, mas
ataulmente não via problemas. Após esse episódio, os pesquisadores tomaram
conhecimento de que as filhas de Dona Jessica, que têm mais ou menos a mesma
idade de Antônio, também andam de moto e dirigem muito bem, segundo a mãe.
Observou-‐se dois episódios em que o marcador ‘orientação sexual’ ficou
manifesto na relação entre os jovens. A primeira foi após o jogo de futebol, quando
um pesquisador da nossa equipe ouviu alguns adultos e jovens “caçoando” da voz de
um jovem, da forma como gesticulava e do fato de não jogar futebol; insinuavam que
ele era homossexual. O jovem, em conversa com outro pesquisador, deu a entender
que não era homossexual ao referir-‐se com certo aborrecimento a uma situação em
que, no encontro da Abayomi, teve de ficar “só com cueca”33 em um alojamento,
enquanto o das meninas ficava afastado.
A outra ocasião foi durante o IV encontro da Abayomi, quando se estabelecia o
“termo de convivência”. Um dos acordos feitos, para vigorar durante todo o encontro
(quem o descumprisse teria de pagar uma “prenda” 34 ), foi a proibição de
relacionamentos amorosos. Ao anunciar o acordo, o facilitador35 disse claramente que
estavam proibidos abraços e beijos entre meninos e meninas. Imediatamente, Pedro
agregou que o relacionamento entre meninas e meninas e meninos e meninos
também estava proibido, clara referência à possibilidade de relações entre pessoas do
mesmo gênero.
A princípio, não foi possível observar detidamente as expressões ou reações
dos jovens quando do anúncio dessa proibição, no entanto pareceu que a organização
se preocupava muito com a questão, pois a coordenação da Abayomi foi enfática no
sentido de proibir “beijos e abraços” entre os jovens.
Ademais, com respeito à questão da orientação sexual, foi interessante notar a
intervenção de Pedro, que é estudante do curso de Etnodesenvolivmento na UFPA de 33 No contexto, a expressão utilizada significa que o interlocutor ficaria somente na presença de outros meninos, por isso a referência à peça de roupa associada ao gênero masculino. 34 É uma forma de sanção. Na ocasião no Encontro, consistia geralmente em fazer uma imitação ou dançar alguma música no centro da roda. 35 Termo utilizado na tradição da educação popular para indicar que a pessoa apenas “facilita” a troca de conhecimentos, e não “deposita” conhecimento, como sugere a lógica do palestrante dentro do paradigma que Paulo Freire classifica como educação bancária (Freire, 2005)
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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Altamira. Talvez o contato com as discussões LGBT – em conversa informal após o
terceiro campo realizado em Salvaterra, ele falou aos pesquisadores que passou a ter
contato com o debate LGBT durante as aulas do curso-‐ tenham estimulado nele uma
sensibilidade em relação aos comentários dos colegas e às opressões vividas por esse
grupo social.
Ainda durante o encontro, no momento de socialização de experiências, uma
jovem quilombola de Vila União disse que havia feito parte de um programa da
PLAN,36 chamado “levante as mãos pelas meninas”, que incentiva a igualdade de
gênero em vários países. Através dessa campanha, Katia foi à Brasília e teve a
oportunidade de falar dos problemas da sua comunidade, expondo as situações de
violência pelas quais passam mulheres e crianças no Arquipélago do Marajó e em
outras localidades do estado do Pará.
Katia nos contou que aprendeu que é preciso romper com o estereótipos de
gênero criados para as mulheres, e disse, citando um exemplo, que as meninas
também podem jogar futebol “Antes só os meninos podiam jogar bola”, comentou.
Além disso, ela teve que estudar bastante sobre os objetivos do milênio da
Organização das Nações Unidas (ONU), pois a ideia da ONG supra referida é incluir a
igualdade de gênero entre esses objetivos.
A jovem contou que teria possibilidade de viajar à Nova Iorque para expor a
realidade da sua região durante a reunião da ONU, mas teve que dispensar a
oportunidade porque não queria prejudicar o seu curso de Química na UEPA. Ela disse
que imagina que foi escolhida porque não tem medo de falar em público e porque ela
“fala mesmo”, independente dos ouvintes e da situação. No entendimento dela, a
personalidade deve ter chamado a atenção no momento de selecionar qual menina
viajaria aos Estados Unidos.
Os adultos possuem diferentes opiniões sobre os jovens. Dona Marluce, do
quilombo de Rosário, nos contou que as meninas de hoje gostam de ficar “se
enroscando” nos meninos durante as festas nas comunidades. Ela disse que no seu
36 ONG internacional que luta pelos direitos de crianças e jovens, em especial na questão da igualdade de gênero. Ver site da ONG: http://plan-‐international.org/where-‐we-‐work/americas/brazil?set_language=pt.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
20
tempo ia às festas para dançar e gostava dos meninos que dançavam bem. Às vezes,
punha sapatos com um prego dentro, para pisar nos pés dos maus dançarinos.
Seu Manoel, liderança do movimento quilombola37na região, nos contou,
durante conversa no quilombo do Pau Furado, do seu aborrecimento com o fato de os
jovens da Abayomi terem reunido para organizar o evento dos dias 14 e 15 de março,
e não terem chamado os adultos. Também ficou chateado com o fato de a
programação ter sido divulgada, mas de não constar qual seria o conteúdo da Roda de
Diálogos. Acrescentou que os jovens deveriam ter chamado os mais velhos das
comunidades para compor esse espaço e falar da história dos quilombos, dos saberes
ancestrais e etc. Pode-‐se interpretar essa reação como um incômodo gerado pela
auto-‐organização dos jovens e a consequente ausência de tutela ou orientação por
parte de militantes mais experientes.
Dona Maíra nos falou que, atualmente, está afastada da MALUNGU38 e prefere
ficar em casa cuidando das filhas e se dedicando aos assuntos do Pau Furado.
Entretanto, sente falta da militância e espera que suas filhas também contribuam nas
lutas como ela fez. Ela disse que tinha vontade de que suas filhas fossem aos encontros
da Abayomi, para que pudessem se organizar também e lutar pelos direitos dos
quilombolas.
De violações de direitos e exclusão social
Os jovens, nas comunidades quilombolas de Salvaterra, sofrem violações
cotidianas em seus direitos. Neste trabalho, objetiva-‐se demonstrá-‐las a partir dos
depoimentos e entrevistas não-‐direcionadas realizadas nas comunidades,
considerando o que os próprios interlocutores entendem como negativo e aquilo que
é tido como violação no entendimento do Direito Estatal.
37 Seguindo a abordagem de Oshai (2015), referências ao movimento quilombola são feitas, considerando a autodenominação adotada pelos agentes políticos que compõem o movimento, cujas demandas políticas têm 78 especificidades em relação às do movimento negro, sendo as titulações de territórios um exemplo emblemático dessas demandas. 38Coordenação Estadual das Associações de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará. Principal movimento social articulador das demandas dos quilombolas no Pará. MALUNGU, do idioma Iorubá, significa “companheiro”.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
21
Um dos casos que talvez melhor demonstre a situação de falta de atenção
básica ao alcance das comunidades quilombolas aconteceu em Pau Furado. Uma
jovem, de 10 anos, foi violentada pelo primo, que é de fora da comunidade. Após o
caso de estupro, a criança teve de ser levada à Belém para receber o atendimento
médico devido, já que em Salvaterra não havia Unidade Integrada de Saúde, que
poderia oferecer o serviço de acompanhamento psicológico, por exemplo.
Em decorrência da falta de recursos para fazer o tratamento necessário, os
moradores de Pau Furado organizaram um torneio de futebol entre os quilombos, cujo
prêmio era um porco. Com o dinheiro das inscrições puderam contribuir com a família
da menina. A situação havia acontecido há pouco tempo quando nos foi relatada
durante o campo, e todos comentavam sobre o caso, inclusive os jovens. Dona Helena
narrou um episódio em que uma menina de seis anos, que brincava com a menina que
foi alvo do estupro, se aborreceu com a colega em algum momento e disse que “por
isso ele tinha feito aquilo com ela”, em referência ao ato do estuprador.
Ainda no que diz respeito à saúde, no quilombo do Bacabal houve uma caso de
hanseníase rara em uma menina da comunidade. Ouvimos o relato de sua mãe, Dona
Carolina, que comentou que dificilmente, no passado, alguém tinha doenças como
câncer ou hipertensão. Ela atribuiu essa possível mudança aos “venenos” que hoje
existem nas comidas.
Outra grande dificuldade diz respeito ao acesso à educação. No quilombo de
Salvá, que é considerado o mais isolado e necessitado de serviços básicos, os jovens
têm que andar cerca de 3 horas para chegar até a escola em Mangueiras, o quilombo
mais próximo. Muitas pessoas se mudam para Mangueiras, por não aguentarem as
condições da comunidade, que ainda não recebeu energia elétrica, apesar dos
inúmeros ofícios aos órgãos pertinentes.
Durante a primeira roda de conversa do IV Encontro do Abayomi, discutiu-‐se
sobre evasão escolar. Os jovens disseram que há cinco razões que levam a esse
problema: trabalho, dificuldade de transporte, gestão escolar e metodologia de
ensino, desinteresse dos alunos e gravidez na adolescência.
Com relação ao trabalho, os jovens relataram que durante a época da safra e
colheita de algumas frutas, muitos têm que sair antes do término das aulas, e acabam
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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prejudicando o estudo. As principais atividades são: açaí; abacaxi; bacuri e a pesca.
Comentou-‐se que esses trabalhos extras são demandados pela família e que os
“atravessadores” chegam às 18h para comprar açaí, por exemplo, pelo que a coleta
deve ser feita antes.
No que diz respeito ao transporte, relatou-‐se que muitos jovens são
desestimulados a estudar porque as escolas ficam longe do local onde vivem (caso dos
quilombos onde não há Ensino Médio, por exemplo), e às vezes não é possível que o
ônibus venha apanhá-‐las. Também foi mencionado que alguns jovens tem de pedalar
até a escola por horas e passando por regiões perigosas, às vezes debaixo de chuva.
Em outro casos, têm de andar durante horas para chegar à escola, como no quilombo
de Salvá.
Nesse sentido, Pedro nos relatou que, quando era criança, ele seus amigos
saiam do quilombo de Deus me Ajude e iam caminhando até a escola de ensino médio,
em Salvaterra, o que lhes custava muitas horas do dia. Ele relata que “chegava lá já
pensando que horas teria que pegar a estrada pra voltar”. Isso fazia com que ele e seus
colegas não conseguissem absorver as informações passadas em sala de aula.
Atualmente, com a construção da ponte e a presença dos ônibus escolares na
comunidade, a situação melhorou, relata o protagonista.
Foi falado sobre a falta de estrutura geral nas escolas e, em especial, da falta de
lanche em alguns dias. Sobre esse tema, várias pessoas relataram que pela parte da
manhã é mais fácil, porque as pessoas contratadas para fazer a merenda estão
presentes, mas pela parte da tarde, muitas vezes -‐como na escola em que se realizou o
encontro, de Vila União -‐ não é possível servir lanche.
A metodologia usada em sala de aula às vezes deixa os alunos entendiados.
Houve depoimento de um aluno que disse que, certo dia na escola, só “escrevia e
escrevia, e que até doía a mão porque era o único que fazia durante a aula”.
Comentou-‐se também que falta “incentivo, seminários, oficinas, palestras e
instrumentos que possam envolver os alunos e estimular o estudo”. Além disso, foi
ressaltada a importância do incentivo dos pais. Ademais, argumentou-‐se que muitos
alunos não tinham interesse pelas aulas e pelos estudos, e que só queriam “bagunçar e
avacalhar” as aulas.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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Muitas meninas têm que abandonar os estudos para cuidar dos filhos, trabalhar
e cuidar da casa. A questão da gravidez na adolescência foi destacada reiteradas vezes
pelos próprios jovens, e inclusive foi sugerida como tema para a roda de conversa do
próximo encontro do grupo.
Pedro nos contou um pouco sobre as dificuldades que enfrenta no
Etnodesenvolvimento, curso oferecido para povos e comunidades tradicionais em
Altamira, pela UFPA. Ele relata que já sofreu várias vezes com situações de racismo e
de exclusão de espaços que poderia ocupar como aluno da Universidade, como por
exemplo na situação da Casa dos Estudantes. Ele e outros colegas do curso foram
impedidos de usar os armários pelos alunos que já estavam ocupando a casa e eram
constantemente discriminados e tratados como se não tivessem direito de estar ali.
Pedro nos falou dos olhares e dos comentários desagradáveis e discriminatórios que
receberam.
Relatou também que algumas autoridades e funcionários da própria
universidade ofenderam os estudantes do Curso, como na situação em que a
professora que disse que o curso era “avacalhado”.
Durante o IV Encontrão do Ijê Ofè, no espaço sobre racismo39, a facilitadora
Angelina comentou sobre várias situações pelas quais as pessoas negras passam nas
escolas e fora delas. Ela citou vários casos de violência, em que os negros são
chamados de “macacos” e “fedorentos”. Nos relatou que muitos sofrem com o
racismo no ambiente escolar, como no exemplo do colega que se senta a uma cadeira
de distância, porque o colega “fedia a mandioca”. Ela disse, a partir de experiências
pessoais, que as pessoas disparam um “olhar que dói” para as pessoas negras.
Outra intervenção veio de Ana Claudia, quilombola do Tocantins, que estava
mediando a mesa. Ela disse que, durante uma aula de Direito Civil em uma faculdade
particular, a professora estava falando sobre distribuição de renda e mencionou o
personagem Robin Hood. Intrigada, ela levantou a mão e perguntou quem era aquela
pessoa. Todos os alunos olharam pra ela com espanto e a professora caminhou até a
39 Tendência em considerar que as características intelectuais e morais de um determinado grupo são consequencias diretas de suas características físicas ou biológicas (Munanga, 2003)
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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sua carteira e disse “em que mundo você está?”. Ela disse que, naquele momento, ou
dava uma boa resposta à situação ou se retirava da sala para nunca mais voltar.
A jovem falou que, sem as formações que teve acesso no movimento negro e
quilombola, não teria conseguido responder à questão da professora como a situação
demandava. No entanto, ela respondeu que no mundo dela, que era diferente do da
professora, ela nunca tinha ouvido falar em Robin Hood e que, se estava ali como
aluna, tinha o direito de ser aprender quem era aquela pessoa. Ela falou isso, mas
também pensou em dizer que ela conhecia várias coisas que muitos ali nunca tinham
vivido, que ela sabia trabalhar no campo, com a mandioca, que sabia uma série de
coisas sobre a natureza, mas preferiu sintetizar a sua resposta.
Essas situações de racismo e de discriminação afetam também os jovens
quilombolas que vão estudar em escolas fora das comunidades. No entanto, segundo
Pedro, muitas delas às vezes não percebem a opressão. Nos encontros da Abayomi,
porém, quando perguntados sobre quais temas queriam tratar no próximo evento do
grupo, vários jovens elencaram o tema “racismo”, o que é um indicativo da
importância que dão ao tema.
Protagonismo político e empoderamento
Frente às violações de direitos, às opressões e à exclusão social que afetam os
quilombolas, estes sujeitos historicamente têm se organizado para superar essas
situações, o que levou a conformação de movimentos em todos o país a partir das
décadas de 80 e 90, que tiveram grande importância nas conquistas presentes na CFB.
No Pará, a MALUNGU foi criada em 1999 e oficialmente fundada em 2004, e até hoje
atua em defesa dos direitos quilombolas, especialmente no que tange ao território.
Na esteira dessas novas movimentações e vendo a necessidade de renovar as
lideranças do movimento, a MALUNGU e entidades parceiras passaram a atuar em
conjunto para realizar projetos e iniciativas que pudessem suprir essa necessidade.
Nesse contexto criou-‐se o projeto Ijê Ofè, realizado pelo Fórum da Amazônia Oriental
(FAOR) em pareceria com a UNIPOP. O projeto iniciou em 2011 e atualmente atua em
4 estados: Pará, Amapá, Tocantins e Maranhão.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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Em linhas gerais, o projeto se destina a formar novas lideranças para o
movimento quilombola e, concomitantemente, ajudar na elaboração de projetos de
manejo sustentável nas comunidades, a serem aplicados pelos próprios participantes.
Três jovens de Salvaterra participaram desse projeto, mas somente Maria
esteve desde o início, em 2011. Não foi possível ter acesso à programação dos outros
encontros, mas é interessante observar os temas das rodas de diálogo do IV
Encontrão, que revelam um pouco dos apontamentos políticos que o movimento
negro e quilombola tem buscado priorizar, quais sejam: “ avanços e retrocessos da luta
contra o racismo, a busca da igualdade racial e efetividade de políticas públicas para a
juventude quilombola”; “Extermínio da juventude negra, debate sobre a redução da
maioridade penal; e “A luta por Direitos Humanos e justiça ambiental na Amazônia:
afirmação da identidade e defesa do território e da agroecologia”.
Antes de iniciar os debates, a organização do encontro realizou uma “mística”40
de abertura, que consistiu em uma performance de uma militante do movimento
negro, que representava dois papéis: o de uma pessoa racista, que exclamava “sua
preta”; “negra”, em tom ofensivo, e outro de uma pessoa empoderada41, que repetia
“sou negra sim”, “sou preta sim”, com orgulho. Em meio a essa interpretação, outras
militantes exclamavam ofensas e fazia comentários racistas.
Em seguida, na dinâmica de apresentação das delegações, cada Estado fez uma
apresentação de elementos típicos da sua cultura. Pará e Tocantins fizeram
apresentações de dança e música. O Pará tocou e dançou Carimbó e o Tocantins se
apresentou com música popular e percussão. A apresentação do maranhão foi um
pouco diferente, pois cada pessoa do estado se levantou, se apresentou, disse de onde
vinha, citou um lutador ou lutadora42 da sua comunidade, e disse que via, em alguma
40 Para um entedimento mais aprofundado sobre a mística, ver Ademar Bogo (2001) e Leonardo Boff (2002). 41 Usa-‐se o conceito de empoderamento no sentido trabalhado por Maria Gohn (2004) qual seja o de um grupo social, indivíduo ou comunidade que busca tomar para si o protagonismo de sua própria história. É um processo de mobilizações e práticas que promovem o crescimento gradual e melhoria de vida, bem como uma visão crítica da realidade social. Outro conceito interessante seria a ação política de pessoas e grupos que, em função da participação, se fortalecem com vistas à superação de relações de opressão ou dominação social a qual estão submetidos (Beltrão, 2015) 42 Como dito anteriormente, os termos ‘lutadora’ e ‘lutador’ são utilizados em um contexto particular e prático –conceito nativo-‐ de militância política, fazendo referência a uma atuação em prol de uma trasnformação social, geralmente em nome de uma coletividade. Pode ser alguém que reivindica
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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pessoa ao lado, a pessoa homenageada. Logo, cada pessoa dizia o nome do(a)
lutador(a) homenageado(a), contava um pouco da sua história de resistência e dizia,
por exemplo “eu enxergo Negro Cosme em você”. Em seguida, todos repetiam o
nome, por exemplo: “Negro Cosme, presente, presente, presente!”. Esses lutadores e
lutadoras eram tidos como heróis e heroínas por quem os(as) apresentava.
É interessante notar que as pautas de revindicação e as práticas metodológicas
da educação popular de Paulo Freire presentes nos espaços são semelhantes às de
outros movimentos sociais contra-‐hegemônicos, como os movimentos camponeses do
Brasil e da América Latina. O Movimento Sem-‐Terra (MST), por exemplo, também
utiliza a mística como elemento sensibilizador, a música popular como recurso
agitativo e a defesa da terra e da agroecologia como pautas centrais. Igualmente, a
influência da religiosidade e a homenagem aos lutadores e lutadoras dos quilombos do
Maranhão nos remetem à importância do passado e ao “fio da história” que une os
lutadores de hoje aos de ontem, assim como o corre nas reuniões e espaços do MST. O
grito “presente, presente, presente” traz ao ambiente a presença imaterial de heróis e
heroínas e investe de responsabilidade os que estão de corpo presente. O Professor
Boaventura de Sousa Santos, discutindo a questão da interculturalidade das lutas
contra-‐hegemônicas no mundo, assim comenta o tema:
“Deste modo se gera um sentido intensificado de partilha e presença que, se for colocado ao serviço das lutas de resistência e libertação da opressão, pode contribuir para fortalecer e radicalizar a vontade de transformação social. Não é por capricho que as reuniões, encontros, protestos e ocupações de terras organizados por um dos movimentos sociais mais importantes do nosso tempo – o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) do Brasil – começam com aquilo a que chamam a “mística”, um momento de silêncio, oração e canto, com os militantes de mãos dadas, em círculo, corpos físicos individuais transformando-‐se num copro físico coletivo” (Santos, 2013, p. 132)
Esse diálogo político intercultural contra-‐hegemônico é um tema que pode ser
aprofundado mais adequadamente em trabalhos futuros e exigiria um estudo
etnográfico e bibliográfico mais atento.
Graças à experiência formativa do Ijê Ofè, os jovens de Salvaterra, reunidos
com militantes mais experientes da MALUNGU, tiveram a ideia de, em 2012, fundar
direitos perante o Estado ou que dedica a vida a uma causa, como no exemplo das lutas pelo território quilombola.
Jovens Quilombolas: da identificação à organização
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um grupo de jovens permanente no município, capaz de estender essa formação e
valorização da cultura afro-‐brasileira para novas e futuras lideranças das comunidades
quilombolas; assim nasceu o Abayomi.
O IV encontro do Abayomi teve lugar no quilombo de Vila União/Campina,
entre os dias 14 e 15 de março. Além das temáticas das rodas de conversa, já
discutidas acima neste trabalho, houve também oficinas de confeccção de bijuterias e
dança africana com os jovens. As meninas, em sua maioria, ficaram na oficina de
bijuterias e um grupo misto fez a oficina de Lundú Africano, da qual eu também
participei. Pela parte da noite, no mesmo dia, houve a apresentação do Lundú com os
casais que haviam ensaiado e depois dançamos carimbó e xote ao som da banda
“Nativos Marajoaras” e do Mestre Damasceno, grande expoente do Carimbó
marajoara e artista popular de renome internacional.
No último espaço do encontro, já no domingo do dia 14, os jovens tiveram a
oportunidade de avaliar o evento. Em geral as avaliações foram positivas, destacando
os aprendizados e parabenizando a organização. Nota-‐se a diferença entre os jovens
que já participam desde o início dos encontros da Abayomi e aqueles que estão se
aproximando agora. José do quilombo do Pau Furado, comentou que antes era tímido
para falar em público, mas com os encontros da Abayomi tem desenvolvido melhor
essa capacidade e hoje já não fica tão nervoso. Ele se juntou à coordenação da
Abayomi e disse que gostaria de substituir a sua mãe no movimento quilombola no
futuro.
O espaço de reflexão sobre a própria realidade e uso da arte e cultura locais e
ancestrais se configuram como elementos empoderadores dos jovens. O discurso da
importância da organização e da formação de novas lideranças permeou todos os
espaços do encontro, e foi visível a importância que os mais experientes depositam
sobre o grupo Abayomi.
Ao final do encontro, uma nova coordenação foi escolhida e os jovens foram
convidados a fazer parte do grupo. Muitos preferiram não formar parte porque diziam
que não tinham tempo ou experiência suficiente. Isso deixou os organizadores um
pouco frustrados, especialmente Maria, que declarou que se sentia muito triste, pois
ela teria que sair do cargo de presidenta e ninguém havia se colocado para substituí-‐la.
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De inclusão social e projetos de vida
Além dos logros recentemente conquistados no âmbito legal, o movimento
quilombola, em parceria com aliados estratégicos na Academia e com os povos
indígenas, conquistou o Processo Seletivo Especial (PSE) na UFPA, bem como o
Etnodesenvolvimento, curso destinado ao público de povos e comunidades
tradicionais, que hoje ainda está restrito ao campus de Altamira.
Nossa equipe tem feito, desde 2013, viagens à Salvaterra para divulgar o PSE
nas comunidades quilombolas, a partir do convite dos movimentos. A experiência tem
sido muito positiva e parece encontrar legitimidade nas famílias quilombolas. A última
visita da equipe, que contou com rodas de conversa sobre o PSE, foi em março de
2014:
[o] principal objetivo das discussões foi dirimir dúvidas relacionadas ao PSE, minimizando assim, o desconhecimento e o distanciamento entre o quilombola e a universidade. O projeto consistiu em um trabalho social idealizado e executado pelo grupo de pesquisa, onde procurou aproximar a universidade não somente dos possíveis candidatos, mas também da comunidade e, para isso, as reuniões e conversas foram sempre realizadas envolvendo pais, professores, lideranças comunitárias e os membros das comunidades envolvidas. (Relatório, 2014)
O interesse em ingressar no ensino superior, por parte dos quilombolas de
Salvaterra, tem crescido. Uma prova disso foi o fato de que a minha presença no IV
Encontro da Abayomi remeteu os organizadores ao PSE, mesmo que eu não estivesse
ali com a tarefa previamente combinada de falar sobre o Processo Seletivo. De
qualquer forma, por eu estar “representando a universidade” a situação se conduziu
para um ponto em que, durante o momento de socialização das experiências, eu fui
convidado para falar um pouco sobre o ingresso no ensino superior e as ações
afirmativas conquistadas que podem ser oportunidades importantes para a
consecução desse objetivo.
Luana nos revelou, durante um campo em Pau Furado, que a maioria dos
jovens procura os cursos de Letras e Pedagogia. Seu filho, Zé, diferentemente da
maioria, pretende cursar Medicina na UFPA, mas sua mãe lhe havia dito que o curso
era muito caro e que não teria estrutura para mantê-‐lo em Belém. Ele pareceu
desconhecer a possibilidade do Auxílio Permanência com valor diferenciado para
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povos tradicionais, ainda que essa ajuda não seja, por si só, suficiente para viabilizar a
permanência desses estudantes em Belém. Outra dificuldade com relação ao acesso ao
ensino superior é o próprio desconhecimento sobre as regras do edital e dos critérios
para a seleção.
O curso de Etnodesenevolvimento também tem sido uma possibilidade de
entrada da juventude quilombola de Salvaterra no ensino superior. Dona Jessica, do
quilombo do Pau Furado, se formou pela primeira turma de Etnodesenvolvimento e
fez seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre a mudança dos hábitos alimentares em
sua comunidade. Ela comentou que, nos últimos anos, os jovens têm comido mais
produtos industrializados e a própria merenda escolar contém alimentos com
produtos químicos danosos à saúde humana. Foi perceptível a alegria com a qual ela
mostrou o resultado do trabalho à nossa equipe, pois estava ciente da importância de
as próprias pessoas da comunidade produzirem conhecimento sobre a sua realidade.
Atualmente, dois jovens estudam nesse curso, que vem sendo cada vez mais
divulgado pelas próprias lideranças. No entanto, as dificuldades de deslocamento e
permanência em Altamira ainda consistem em obstáculos para os estudantes. Frente à
essas dificuldades, as lideranças da região têm se engajado na coleta de assinaturas
para um documento “abaixo-‐assinado” que solicita a instalação de um campus da
UFPA com os curos de Etnodesenvolvimento e Educação do Campo em Salvaterra.
As novas possibilidades de futuro acompanham difíceis momentos de tomada
de decisão por parte dos jovens quilombolas. Além do futuro acadêmico, cada vez
mais próximo da realidade das comunidades de Salvaterra, existe o dever com o
quilombo e a militância, que certamente se entrecruzam com as projeções de futuro
profissional e familiar.
Nesse sentido, algumas declarações são interessantes para refletir. Maria, ao
falar da sucessão do seu cargo de presidenta da Abayomi, durante o encontro do
grupo em Vila União, emocionou-‐se e comentou que estava se retirando pois não via
possibilidades de continuar militando, já que tinha afazeres em casa, no trabalho e
precisava cuidar do seu filho. Ficou evidente a importância que ela destinava ao grupo
e ao fato de estar ali para formar novas lideranças para o movimento. Sua emoção se
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intensificou quando ela viu que poucos jovens haviam se volutariado para ocupar
cargos na coordenação da Abayomi.
Dona Jessica, que integrou a MALUNGU desde o seu início, na década de 90,
comentou conosco, durante um campo em Pau Furado, que sentia falta da militância,
de andar por aí de quilombo em quilombo falando sobre a importância de se
identificar como quilombola e de lutar pela terra. Ela é recém-‐formada pelo
Etnodesenvolvimento e tem ficado mais em casa para cuidar das filhas e das questões
da sua comunidade, quando sobre tempo.
Ela mencionou também que, no auge da sua atividade militante, teve
problemas em casa. O marido a traiu, porque, segundo ela, suas viagens e afazeres
“abriam espaço para isso”. Ela parecia encarar a situação de forma muito pragmática,
embora com alguma tristeza pelo desfecho. Todavia, atualmente ela estava com um
marido muito bom que, segundo o seu relato, ajudava em casa e “não dava trabalho”.
Dona Vera, também recém-‐graduada pelo Etnodesenvolvimento, comentou,
durante a visita de nossa equipe ao quilombo do Bacabal, que depois de ingressar na
universidade o seu interesse pela leitura em casa aumentou muito, e que às vezes
passa horas na rede lendo um livro. Essa mudança de comportamento foi notada pelo
marido, que vez ou outra comenta que ela “não desgruda do livro”.
Da mesma maneira, uma pesquisa realizada com as discentes do curso supra
referido, que as entrevistou sobre situações de violência doméstica e relações com os
maridos, revela que “estudar fora” gera deslocamentos nos papéis de gênero, que
estão em andamento e se apresentam de maneira não linear, em âmbito conjugal.
Essa mudança causa ciúmes, traições e a própria violência física por parte dos maridos,
relatam as entrevistadas.
Em contrapartida, o ingresso no curso universitário contribui para o
empoderamento dessas mulheres, que passaram a enfrentar as situações de opressão:
“Depois que comecei a vir estudar pra cá, agora eu não tenho mais medo de enfrentar
ele. Agora, não! Eu não fico só calada”43. (Mariah Aleixo, 2015)
43 Depoimento de Fátima, entrevistada por Mariah Torres Aleixo, em 18 de agosto de 2011. Extraído de Aleixo (in: Beltrão e Oliveira , 2015)
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A trajetória de Pedro no movimento é precoce. Aos 18 anos ele assumiu a
presidência da Associação de Deus Me Ajude, e hoje, com 22 anos, é aluno do
Etnodesenvolvimento e divide os estudos com a Tesouraria da Abayomi. Ele também já
disfruta de uma relação muito próxima com secretários e outras autoridades do
município que, segundo ele, já o respeitam mais do que antes.
Da possibilidade de conclusão
O trabalho etnográfico foi o referencial de partida para refletir sobre a
juventude quilombola de Salvaterra. Através dele, pôde-‐se constatar que as perguntas
e problematizações do projeto de pesquisa são semelhantes às próprias perguntas
formuladas pelas lideranças jovens do movimento quilombola.
A bibliografia sobre o tema trouxe elementos importantes para discutir as
categorias de representação manifestas no trabalho de campo e ajudou a pesquisa a
ampliar o horizonte de análise, que considerou as lutas regionais e nacionais do
movimento negro e quilombola e descreveu problemas e desafios que se repetem em
nível local.
As violações pelas quais passam os jovens quilombolas em Salvaterra são
reflexo de desigualdades históricas, que alijam o povo negro de seus direitos básicos e
promovem a exclusão do sistema de saúde, das instituições de ensino e dos espaços
de poder. O racismo incrustrado nas instituições também é consequencia desse
processo histórico de violências, que começou com o sequestro do povo negro do
continente africano.
No entanto, é patente a conclusão de que, frente à todos esses problemas e
violações de direitos, a juventude quilombola têm se insurgido e as agências desses
sujeitos têm contribuído para lograr êxitos em âmbito institucional e em termos de
formação política de novas lideranças. Essa formação é feita em diversos âmbitos,
desde o cultural até o político, e permite que esses “novos quadros” estejam
preparados para dialogar com os órgãos do Estado e requerer direitos básicos que
deviam ser garantidos no âmbito dos quilombos. A relação com as secretarias em
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âmbito municipal, como a de Turismo, tem gerado novas perspectivas na luta do
movimento quilombola em Salvaterra.44
É importante ressaltar o protagonismo da juventude no processo de formação
e organização política, sem esquecer dos “conflitos geracionais” que essa tomada de
responsabilidade implica. Administrar as relações entre os militantes mais
experimentados e os mais novos é sempre desafiador, e pode gerar situações em que
os mais velhos se sintam “sem controle” dos mais novos.
Ademais, a entrada no Ensino Superior por meio do Processo Seletivo Especial e
do curso de Etnodesenvolvimento revela novas perspectivas de formação acadêmica e
política, que podem potencializar a ação militante nos quilombos e em organizações
como a Abayomi. Todavia, é preciso pontuar que muitas vezes as demandas
decorrentes do curso universitário acabam conflitando com a militância, levando a
situações de desgaste político e pessoal, que às vezes repercutem nas relações
familiares.
Nesse sentido, é necessário pontuar que o afastamento temporário da família
para o estudo em outro muninípio, por exemplo, tem como consequencia a
transformação das relações domésticas, que sempre pesam de maneira diferente e
assimétrica para homens e mulheres. No caso, como observado através das falas das
interlocutoras, dá-‐se um processo muitas vezes violento de mudança nos papéis de
gênero dentro relações conjugais.
À guisa de conclusão, etende-‐se que o presente trabalho não esgota (e nem
pretendia fazê-‐lo) a análise sobre a juventude quilombola, que continuará sendo alvo
de reflexões do autor e do grupo de pesquisa.
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Considerando o tempo de orientação do bolsista no projeto o resultado alcançado é excelente. Os dados coletados são de qualidade a análise realizada pelo bolsista reflete a boa leitura e o lastro que possui, além do interesse pala pesquisa. Belém, 10 de agosto de 2015.
Jane Felipe Beltrão
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