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    Rauter, C. Clnica e estratgias de resistncia: perspectivas para o trabalho do psiclogo em prises

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    CLNICA E ESTRATGIAS DE RESISTNCIA: PERSPECTIVASPARA O TRABALHO DO PSICLOGO EM PRISES

    Cristina RauterUniversidade Federal Fluminense, Niteri, Brasil

    RESUMO: Este trabalho um estudo sobre a instituio prisional tomada como um dos componentes do dispositivoda criminalidade. Esse dispositivo de controle social analisado como central no capitalismo contemporneo, engen-drando mltiplos efeitos mortificadores. Observa-se, no que diz respeito ao trabalho do psiclogo nas prises, a deca-dncia do discurso da recuperao e o fortalecimento de prticas coercitivas e punitivas. Por outro lado, o trabalho dopsiclogo pode se inserir entre as estratgias de resistncia e de vitalizao.

    PALAVRAS-CHAVE: Prises; clnica transdisciplinar; subjetividade contempornea.

    CLINICAL PSYCHOLOGY AND STRATEGIES OF RESISTANCE:PERSPECTIVES OF A PSYCHOLOGISTS WORK IN PRISONS

    ABSTRACT: This work is a study about penal institutions understood as a component of the criminality device.

    The analysis of this social control device is carried out with the comprehension that it is a central aspect of contem-porary capitalism, generating multiple lethal effects. Considering the work of psychologists in prisons, the decadenceof the discourse of recuperation and the strengthening of coercive and punitive strategies was observed. On the otherhand, a psychologists work can be inserted between the strategies of resistance and vitalization.

    KEYWORDS: Prisons; transdisciplinary clinics; contemporary subjectivity.

    Todos os que vivem, tm parentes presos ou trabalhamem prises so atingidos cotidianamente pelos seus efei-tos mortferos. Pensamos as instituies carcerrias comocomponentes de uma grande engrenagem que designamospor dispositivo da criminalidade. No seria possvel,

    como querem alguns, confinar os malfeitores num espao parte e deles se desobrigar, sem que essa prtica produ-zisse efeitos sobre todo o campo social. Pensamos que asprticas que mantm as prises em operao produzem en-venenamentos subjetivos, no sentido espinosista do termo.(Deleuze, 2003). A soluo prisional frente questo dacriminalidade s se torna possvel porque pe em ao ese utiliza de mltiplos mecanismos subjetivos, para almdas grades e muros. nesse sentido que entendemos aproposta do criminlogo ingls Jock Young (2003), queconsidera que a soluo penal e policial para a questo dacriminalidade no soluo, mas sintoma. O dispositivo

    da criminalidade se constitui hoje numa das principaisferramentas de controle social no mundo globalitrio.1 Oconceito de dispositivo, desenvolvido por Michel Foucaulte explicitado por Gilles Deleuze (1990) permite por emrelao diversos fenmenos que se processam no camposocial de modo aparentemente dissociado. Dessa maneira,para pensar o fenmeno da criminalidade no contempo-rneo, temos que considerar como parte de uma mesmaengrenagem os discursos, as prticas, as instituies ondese operam essas prticas e esses discursos e os efeitos sub-jetivos que estes produzem no campo extra-institucional.Assim, consideramos como fazendo parte desse disposi-

    tivo o medo criminalidade que se espalha nas cidades,as demandas punitivas produzidas atravs de discursos lei

    e ordem disseminados pela media, os efeitos subjetivosdessas campanhas, incluindo-se aqueles menos diretos,como a produo da apatia e o desnimo indo at o surgi-mento de mltiplas patologias que iro levar utilizaode medicao psiquitrica, patologias somticas, etc.

    No interior da priso processam-se complexos dispo-sitivos subjetivos que iro como que formar aquelesque exercero poder de mando e controle na instituiopenal. Como se d o estranho processo atravs do qualaqueles que provm do mesmo meio social, da mesmavizinhana, passam ocupar posies opostas, uns passandoa ser a autoridade encarregada da custdia, da disciplinae outros encarnando o lugar da obedincia, do erro, olugar do vagabundo, como costumam ser chamados osapenados pelos agentes penitencirios no Rio de Janeiro.Em especial na Amrica Latina, onde a ilegitimidade dosistema penal (Zaffaroni, 1991) to flagrante face a ex-trema disparidade de renda entre as classes sociais, tere-mos que responder a pergunta de como se processamessas transformaes subjetivas que acabam por opor deforma to radical guardas e presos, por exemplo. Qual oingrediente principal dessa transformao? A engrenagemcarcerria, ao contrrio das aparncias, no trabalha ape-nas com a agressividade transformada em ressentimentoe m conscincia (Deleuze, 1978), no sentido nietzscheano,mas tambm com os sonhos daqueles que a reproduzem.

    Como escapar do destino miservel daqueles que mo-ram em guetos mas que observam de suas janelas televisivas

    a desejada e rica vida retratada nas novelas dirias? Hum meio, e esse meio passa por romper com essas relaes

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    aplicao de punies disciplinares, alm de apreciadassolicitaes de internos ao longo do cumprimento da pena.A CTC uma espcie de reunio de equipe interdisciplinarda qual fazem parte agentes penitencirios e tcnicos quetrabalham numa unidade prisional. Ali so discutidas si-

    tuaes vividas no crcere sob uma tica predominante-mente disciplinar. De um lado, o preso, posto no lugar dequem comete faltas, infraes, ou na melhor das hipteses,faz solicitaes e do outro, os agentes e tcnicos, postosno lugar de quem julga, pune, absolve, concede etc. Aopsiclogo caberia, deste lugar, auxiliar na aplicao dessasmedidas disciplinares, uma difcil misso cujos parmetrosainda esto por ser definidos nos regulamentos oficiais.

    Que funo poderia caber ao Psiclogo a partir daLei n. 10.792 (2003)? Este instrumento legal, que con-siderado por juristas progressistas um grande retrocesso

    nas leis penais brasileiras cria o Regime Disciplinar Dife-renciado (RDD), que permite a manuteno de um ape-nado em situao de isolamento em perodo de at pr-ximo de um ano. A mesma lei torna desnecessrios ospareceres tcnicos para instruir a concesso de livramentocondicional e a progresso de regime. Esto reservadosesses exames, doravante, apenas individualizao dapena. Realizados no incio do seu cumprimento, eles orien-tariam a execuo, no sentido de adequ-la s caracters-ticas pessoais do apenado. Alguns psiclogos entendemque, com o fim dos laudos, o psiclogo estaria destinadoa uma tarefa teraputica. Outros temem que fora da rea-

    lizao de laudos, tornem-se profissionais descartveispara o sistema penal. De fato, ao menos no Rio de Janeiro,parece estar reservada preferencialmente igreja evan-glica essa tarefa de recuperao de almas nos crceres,tal a quantidade de religiosos que hoje tm acesso aospresos, e por outro lado, a pequena quantidade de psic-logos em exerccio nas unidades prisionais.

    Mas que tarefa teraputica seria essa qual o psiclogopoderia se dedicar no interior da engrenagem carcerria?

    Caso ele possa abster-se de fazer laudos (que comovimos, continuam ser solicitados apesar da nova lei2) abre-

    se diante deste profissional todo um campo de trabalhoque poderia ser da maior importncia no sentido da cons-truo de estratgias de resistncia frente ao dispositivoda criminalizao. O sistema penal vem se tornando des-tino de muitos jovens, preferencialmente os mais pobres,em nosso pas. A populao carcerria vem aumentandocomo decorrncia da ao desse dispositivo em larga es-cala. Atravs das polticas combate drogas, setoresdas classes mdias empobrecidos esto tambm chegandoaos crceres, condenados principalmente pelo trfico dedrogas. A criminalizao do uso e da comercializao dasdrogas, realizada por um discurso belicista de inspirao

    norte-americana que tem norteado nossa legislao anti-drogas desde a dcada de 70 (Carvalho, 2006), produz

    em larga escala o estigma do drogado e do traficante, quese generaliza por amplos setores da populao jovem dopas, que se torna como conseqncia cliente em poten-cial do sistema penal.

    esta complexa realidade com a qual se defronta o

    psiclogo que atua no sistema penal hoje. Caso possaescapar prisionizao da qual tambm alvo, poder sevoltar para estratgias de resistncia e no para a repro-duo da engrenagem carcerria. O trabalho com grupospode ser uma direo, como na experincia relatada pelopsiclogo Christian Fabiano Guimares(2005). Numainstituio prisional do Rio Grande do Sul, os presos uti-lizavam o artigo pelo qual foram condenados como umaespcie de marca escreviam-na nas paredes das celas,no prprio corpo... Embora se possa ver a tatuagem comoestratgia de resistncia na qual o corpo marcado servepara assinalar a criao de um territrio, o autor assinala

    que neste caso, a estratgia de resistncia estava penetradade ressentimento. Atravs dessa prtica o apenado colavadefinitivamente um artigo do cdigo penal ao seu corpoe sua existncia. Chamou ateno do psiclogo a inca-pacidade de colar um outro adereo ao corpo. Por queno um outro nome? Porque selar definitivamente umdestino de infrator do cdigo penal? O que problemati-zamos aqui, a partir de uma clnica de resistncia, aimpossibilidade de colar outros adereos ao corpo, cons-truir outros projetos de vida.

    Fenmenos como esse esto presentes tambm no traba-lho de Aline Pereira Diniz (1988). Nas assim denominadasassemblias realizadas a cada manh, num CRIAM, coma participao da equipe e dos jovens que ali cumpremmedidas scio-educativas, o assunto principal era o relato,feito pelos prprios jovens, de furtos realizados por cole-gas e o pedido de punies duras, freqentemente maisduras do que as que seriam impostas pelos profissionaisdo estabelecimento. Como se os jovens dissessem ironica-mente equipe: vocs nos consideram bandidos, ento... isso que somos! Ou; ns mesmos queremos a punio!O estigma do infrator parecia girar como no jogo do micopreto, entre os adolescentes participantes da reunio. Ao

    sarem para passeios longamente esperados, costumavamtambm furtar. Exibiam orgulhosamente o pertencimentos faces do trfico de drogas. Tal pertencimento eramuitas vezes gritado em tom entre orgulhoso e ameaa-dor. Novamente aqui a repetio estereotipada de estigmasrevela uma incapacidade de fazer diferente que atingetanto os tcnicos e os jovens clientes do CRIAM. Talimpossibilidade diz respeito ao funcionamento da engre-nagem carcerria e a seus efeitos.

    Francisco Gaspar Neto, em suas experimentaes comteatro realizadas numa instituio voltada para o trata-mento de jovens usurios de drogas em So Gonalo, o

    CRIAA-UFF, lida com as marcas produzidas tanto pelasinstituies penais e policias quanto pelo trfico de drogas.

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    Um corpo enrijecido um dos aspectos da produo doestigma do criminoso e do drogado.

    ... o efeito do exerccio [exerccio de guiar o cego]foi sentido particularmente sobre um dos adoles-

    centes; ele trabalhara no trfico desde os dez anos

    e j tinha passado por vrias instituies penais;

    ele era um dos que mais enunciava a lgica prisional,

    dizendo que homem no tomava banho, etc. Quando

    ele teve que tocar o rosto de outro companheiro era

    possvel perceber que suas mos estavam trmulas

    e hesitantes... quando foi pedido que todos ... se

    olhassem, esse adolescente deu um pulo para trs,

    correu para o outro canto da sala e ficou olhando o

    grupo com olhar assustado... o corpo do adolescente

    foi afetado, mas por foras estranhas, no mais aque-

    las que redundavam no territrio do j conhecido,

    foras que aprisionam, que obrigam a repetio do

    hbito, que suscitam sempre a mesma resposta cor-

    poral (Gaspar Neto, 2005, p. 107).

    Pertencer uma justa reivindicao adolescente. Maisdo que uma reivindicao, um poderoso impulso que odespertar da sexualidade adolescente traz consigo. O poderagregador de Eros! Sabemos o quanto a massificao, opertencimento modelizante pode afetar tambm a subjeti-vidade do adolescente. A propaganda consumista tambmse aproveita criminosamente desse seu anelo por perten-cimento. Para exercer essa clnica de resistncia no inte-rior da engrenagem carcerria o psiclogo ter que tiraro seu avental branco (Guattari, 1990, p. 20), deixar dipo

    no cabide, as famosas famlias desestruturadas e tambmcertas concepes sobre a pulso de morte, que propemque uma irresistvel tendncia para o mal esteja no coraodo psiquismo humano necessitando ser limitada ou coi-bida. A construo de estratgias de resistncia frente mortificao passar freqentemente pela arte, pelo tra-balho com grupos, ou por estratgias de atendimento in-dividual que possam intensificar os processos vitais. Nopara apontar a salvao, a expiao de culpas, para sesubstituir o julgamento externo por um auto-julgamento,ou para propor a vida eterna como compensao para ossofrimentos desse mundo... Seria necessrio, para aqueleque se prope a essa tarefa de tratamento, colocar o delitoentre parnteses, porque uma vez julgado e condenado, odetento comea a pagar sua dvida com a sociedade,como se diz no jargo carcerrio. O tratamento no podeser uma nova situao de julgamento.

    H uma certa monotonia reinante tambm no campodas psicoterapias (Rauter, 2005). Temos que ser capazesde propor algo alm de dar limites ou de fazer diag-nsticos de enfraquecimento da lei paterna, passando poruma compreenso do crime a partir de um interior (pulsode morte, etc.) se quisermos construir estratgias de resis-

    tncia prisionizao, tanto do psiclogo quanto dos quetm como o destino as nossas prises. Alguns referenciais

    tericos levam a que o psiclogo acabe no tendo nadade muito diferente a propor neste campo, tornando-ocmplice de estratgias repressivas, mortferas, de justi-ficao do encarceramento. Sabemos que o estigma docriminoso produzido pelo prprio dispositivo da crimi-

    nalizao em seus mltiplos componentes e no a partirdo cometimento pura e simples de atos criminosos.

    A denncia das pssimas condies carcerrias tam-bm tarefa do psiclogo e para que possa realiz-la, deveconstruir redes, rompendo o isolamento da priso. Nessadenncia ele tambm se utiliza de seus conhecimentos te-ricos, pesquisando e teorizando sobre os efeitos do isola-mento, de prticas como o RDD, da inatividade fsica emental, numa perspectiva em que clnica e poltica soindissociveis. No tivemos ainda no Brasil um movi-mento no campo penal semelhante ao da reforma psiqui-trica, que conseguiu a aprovao de uma lei que apontapara a extino progressiva dos manicmios. As nossasprises e instituies scio- educativas exibem uma facecruel. Um recente relatrio elaborado pelo Conselho Fede-ral de Psicologia sobre essas instituies destinadas a crian-as e adolescentes, mostrou numa delas a inexistncia debanheiros (no estado do Sergipe), noutra, o uso excessivode medicao psiquitrica. (no Rio Grande do Sul). Namaioria delas jovens so mantidos ociosos, a higiene precria. Em muitas, castigos fsicos so utilizados (Ordemdos Advogados do Brasil [OAB], Conselho Federal dePsicologia [CFP] & Comisses de Direitos Humanos dos

    Conselhos Regionais de Psicologia, 2006).O contexto atual da execuo penal est caracterizado

    pela decadncia do discurso da recuperao. Se at a d-cada de noventa esse discurso podia ser denunciado comofalso, hoje o que percebemos o fenmeno de sua rare-fao. H um clamor pela punio, pelo encarceramento,que se dissemina por amplos setores da populao, che-gando a justificar a tortura e o extermnio de bandidos.Uma lgica do bem e do mal perpassa os meios de comu-nicao e se impe de forma globalizada. Consideramosque a questo da criminalidade ganha hoje um lugar cen-tral na produo de subjetividade no contexto do capita-lismo globalizado atual. A difuso de lgicas binrias queopem cidados honestos que merecem viver a terroristase bandidos vai desde Guantnamo, passando pela Europae o Japo e chegando at o Brasil, com a adoo do RDD,acrescentando-se prtica semi-oficial do extermnio pelapolcia cu aberto, como verificamos nos acontecimen-tos que se seguiram aos denominados ataques atribu-dos a organizaes criminosas em So Paulo.

    Que papel estaria reservado aos psiclogos nos crceresnesse contexto de rarefao do discurso da recuperao?Um dos panoramas que podemos visualizar at mesmo

    o de um fortalecimento dos laudos psicolgicos com afuno de estabelecer uma triagem. nessa direo que

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    a aponta a tese da psiquisatra Hilda Morana (2003), aovalidar para a populao forense brasileira a Escala Hare-PCR, que permite diagnosticar a psicopatia, separandoassim o joio do trigo. Atravs da simples aplicao deum questionrio, o tcnico treinado poder produzir pare-

    ceres mais fundamentados para concesso de benefciose para a incluso ou no de determinado apenado numprograma re-socializador.

    A atual administrao da secretaria da administra-

    o penitenciria tem por critrio a separao dos

    condenados por tipo de delito... neste projeto que

    o trabalho tem relevncia, pois permite, com a apli-

    cao do PCL-R, separar os psicopatas do convvio

    com os criminosos comuns (Morana, 2003, p. 154).

    O trabalho dessa pesquisa j tem firmado com o

    senhor secretrio da administrao penitenciria

    uma proposta ulterior de uma vez treinadas equipespara aplicao do PCL-R, j traduzido e validado

    para a populao brasileira, identificar os psico-

    patas na populao carcerria e remove-los para

    ambiente penitencirio adequado. Esta proposio

    tem o objetivo de liberar as prises da influncia

    nefasta dos mesmos e dessa forma promover a reabi-

    litao dos criminosos no psicopatas, a exemplo

    de pases como Canad e Inglaterra... (Morana, 2003,p. 39).

    Para Morana (2003) h prisioneiros que no devementrar em programas de recuperao porque so psicopa-

    tas, acometidos do que ela prefere denominar transtornoglobal de personalidade (a autora prefere esse diagns-tico ao de Transtorno Anti-Social e desenvolve na tesealgumas razes, que no cabe aqui apresentar). So incur-veis e devem apenas cumprir penas de priso. A autoraapresenta s autoridades carcerrias um instrumento econ-mico e objetivo, capaz de medir se o apenado psicopatae em que grau. Na tese aprendemos tambm que, subme-tido a tratamento psicoterpico no importa com qualabordagem, os portadores do Transtorno Global de Perso-nalidade, no s no melhoram como chegam a piorar!E so apresentadas algumas possveis causas etiolgicaspara o transtorno, que vo desde as genticas at as relacio-nadas ao abuso sexual na infncia, enfatizando-se semprea incurabilidade.

    O instrumento consiste na aplicao de um questio-nrio que versa, de um modo geral, sobre sinais de litgiocom as normas e leis num histrico que comea desde ainfncia, passando pela capacidade de estabelecer vnculosafetivos que vo do familiar (separaes) ao escolar (aban-dono escolar), vnculos com trabalho, promiscuidadesexual, ao uso de drogas. Enfatiza-se a frieza afetiva e aversatilidade no cometimento de crimes, j que a psicopatia

    no est relacionada a um delito especial, mas a uma ten-dncia geral ao cometimento de delitos.

    Nesse contexto, creio eu, ser necessrio muitas vezesempunhar a bandeira do tratamento e da recuperao comoestratgia para colocar obstculos ao extermnio subjetivoque se anuncia no momento atual como tcnica de exe-cuo penal. A monotonia cinzenta dos presdios de segu-

    rana mxima, que leva muitos ao enlouquecimento e morte: talvez seja esse o tipo de estabelecimento conside-rado adequado para o cumprimento da pena quando setrata de psicopatas. E as prises esto mesmo cheia deles,segundo estatsticas que constam desse e de outros estudospsiquitricos atuais, realizados na perspectiva da atualpsiquiatria biolgica! As prises brasileiras tm sido com-paradas por organismos internacionais com campos deconcentrao, em muitos casos em verso piorada quelesconstrudos pelos nazistas, ao menos no que diz respeitoao espao fsico. Muitos profissionais acostumados a lidarem todo o mundo com realidades extremas como campos

    de refugiados e prises, confessam nunca terem visto algosemelhante extinta priso da Polinter no Rio de Janeiro,que foi mostrada no brilhante Documentrio de Jos Pa-dilha nibus 174, em 2002. A bandeira do tratamentoe da recuperao, se empunhada pelos tcnicos que atuamnos crceres, pode ser uma estratgia de resistncia pol-tica mortificao generalizada presente neste campo.Que tambm a mortificao dos prprios profissionais,caso estes no consigam articular sadas viveis para suaatuao. A palavra tratamento aqui usada estrategica-mente: construo de estratgias vitais diante de um hori-zonte de extermnio. Mas os psiclogos no estariam inven-tando sozinhos essas estratgias: elas j esto presentesno campo social e no interior das prprias prises, ca-bendo-lhes o papel de catalisador. Como a organizaodo poder no segue uma lgica binria, situaes com-plexas devero ser analisadas. No necessariamente dospresos estaro partindo estratgias de vida pois nem mesmoeles detm a verdade sobre a instituio carcerria, no sen-tido de que no so a voz do oprimido ou novamenteestaramos caindo num outro tipo de dicotomia. Outraconcepo que dever ser deixada no cabide a oposi-o binria opressor/oprimido (Gaspar Neto, 2005, p.

    116), se queremos compreender e intervir sobre o queaqui denominamos dispositivo da criminalizao.

    Notas

    1 Preferimos o termo globalitrio cunhado pelo gegrafo MiltonSantos j que permite destacar que no se trata de condenar osprocessos de globalizao em curso no capitalismo atual, masum certo tipo de globalizao, que condena misria e morteuma significativa parcela da populao no mundo atual. Poroutro lado, o fenmeno da globalizao que possibilita quehoje possamos alimentar toda a populao da terra com os meiostecnolgicos de que dispomos (Santos, 2001).

    2 No Rio Grande do Sul uma portaria da Secretaria de Justia reeditaa necessidade de realizao do exame criminolgico em flagrantecontradio com a lei federal.

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    Cristina Rauter Professora do Departamento dePsicologia da Universidade Federal Fluminense.Endereo para correspondncia: Rua Major Fres,

    225, So Francisco, Niteri, RJ, 2436-5030.

    [email protected]

    Clnica e estratgias de resistncia: perspectivaspara o trabalho do psiclogo em prisesCristina RauterRecebido: 06/12/20061 reviso: 19/03/2007Aceite final: 08/05/2007