EDIMARA GONALVES SOARES
EDUCAO ESCOLAR QUILOMBOLA: QUANDO A DIFERENA INDIFERENTE
CURITIBA 2012
EDIMARA GONALVES SOARES
EDUCAO ESCOLAR QUILOMBOLA: QUANDO A DIFERENA INDIFERENTE
Tese apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Educao, da Universidade Federal do Paran, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Doutora em Educao. Orientadora: Prof. Dr. Tnia Maria Baibich.
CURITIBA
2012
Catalogao na Publicao
Aline Brugnari Juvenncio CRB 9/1504 Biblioteca de Cincias Humanas e Educao - UFPR
Soares, Edimara Gonalves Educao escolar quilombola: quando a diferena indi- ferente / Edimara Gonalves Soares. Curitiba, 2012. 143 f. Orientadora: Prof. Dr. Tnia Maria Baibich Tese (Doutorado em Educao) Setor de Educao, Universidade Federal do Paran. 1. Quilombos Educao. 2. Educao Polticas pblicas. 3. Negros Discriminao racial. I. Ttulo. CDD 370
DEDICATRIA
Esta tese especialmente dedicada:
Aos meus bisavs, fundadores do Quilombo, por serem inspirao de fora e luta contra opresso e injustias sociais.
Aos meus avs, pelo legado de resistncia e coragem para seguir na vida.
s crianas negras quilombolas, na esperana de que esse trabalho possa servir como instrumento de luta na trajetria de suas vidas.
Aos meus pais Eva e Fernando, analfabeta e semianalfabeto, pelo incentivo e esforos feitos para que eu pudesse estudar. Minha eterna gratido.
Aos meus irmos, Ronaldo, Telmo, Mariza e Silvio, pelo carinho e incentivo. Ao meu querido sobrinho-afilhado Vincius, e meu querido sobrinho Antnio.
AGRADECIMENTOS
s foras que regem o Universo e conspiram a meu favor. Minha reverncia aos Orixs das religies de matriz africana.
Muitas pessoas me acompanharam nesta trajetria, desde Santa Maria-RS at Curitiba-PR, umas bem de perto, outras mais distantes. Agradeo a todas que de alguma forma contriburam nessa empreitada. Seria exaustivo nome-las e mencionar a forma como me ajudaram, mas h umas que no posso deixar de registrar.
famlia Salaib Springer, pelo apoio e incentivo, carinho e preocupao, enfim, por me tornarem parte da famlia. Meu profundo agradecimento e compromisso!
A Kalina Springer, que acompanhou bem de perto toda minha trajetria da Graduao at aqui, pelas ajudas permanentes, preocupao, carinho e amizade. Tambm ao Marcelo Rakssa, pela fora e incentivo. Meu imenso obrigada!
v Ziza, ento sogra de minha orientadora, que com muito carinho me acolheu em sua casa (aqui em Curitiba), adotando-me como verdadeira neta. Por ter me oferecido todas as condies para que eu pudesse concluir o Mestrado, meu eterno e imenso obrigada! Tambm a Clia, Augusto e toda a famlia, pela acolhida e pela amizade.
minha querida amiga professora Clemilda Santiago Neto, por ter me apresentado s Comunidades Quilombolas do Paran e pelo exemplo de coragem, resistncia e luta incansvel por polticas de reparao s Comunidades Quilombolas. Pela parceria em todos os momentos e por tomar para si a atitude de defender-me do racismo institucional, minha profunda gratido e compromisso!
Ao meu amigo-irmo Prof. Dr. Jair Santana, pelo incentivo e encorajamento permanentes, pelas crticas e sugestes feitas no decorrer do trabalho, e, sobretudo, por exigir que eu fizesse o melhor de mim. Meu profundo reconhecimento e gratido!
Ao meu querido Mario Fontes, que se fez presente em muitas emoes deste trabalho e com quem aprendo dia-a-dia que na vida sempre temos mais a agradecer do que lamentar ou pedir, e, sobretudo, que a vida s faz sentido quando vivemos intensa ou apaixonadamente cada momento. Meu carinho!
Ao meu amigo Denis Denilton Laurindo, pelo apoio emocional e intelectual. Mesmo nos momentos que pareciam becos sem sada, me fez acreditar que eu tinha foras para abrir uma passagem. Meu reconhecimento e gratido!
Ao Adir Simo, pelo empenho permanente em me ajudar a conseguir a licena do Estado para concluir a tese. Igualmente ao Adair Bernardino pelas ajudas sempre que precisei. Meu muito obrigada!
minha amiga Santina Bordini, pelo acolhimento, confiana e amizade. Meu muito obrigada!
s(aos) minhas(meus) amigas/os da Graduao na UFSM-Santa Maria-RS, Andria Secretti, Andressa Teixeira, Joana DArc, Danuza do Carmo, Priscila Machado, Tatiane Munhs, Lucas Kegler, Flamarion Dutra, Claudio Ferreira, mesmo distantes valeu pela torcida sempre positiva.
A Maria Zeli Cella Santos e Oscar Santos, pelo acolhimento e carinho. Meu muito obrigada!
minha amiga Claudinia Santos, pela parceria em todos os momentos que precisei, pelo apoio emocional, incentivo, preocupao. Meu carinho e reconhecimento!
minha amiga Karine Becker pela pacincia, compreenso e incentivo. Meu muito obrigada!
Ao meu amigo Claudio Ferreira, pela convivncia amorosa, incentivo e pacincia. Meu carinho e agradecimento!
IY Gun, importante lder espiritual da religio de matriz africana- Candombl. Meu muito obrigada, pelo encorajamento e energias positivas!
Agradeo banca examinadora da Tese na etapa da Qualificao, professores/a Prof. Dr. Leilah Bufren, Prof. Dr. Walter Praxedes, Prof. Dr. Pedro Bod e Prof. Dr. Jos Maurcio Arruti pelo olhar atento e rigoroso em cada pgina. Meu muito obrigada!
Prof. Dr. Leilah Bufren, ao Prof. Dr. Pedro Bod e ao Prof. Dr. Walter Praxedes, que acompanham minha trajetria na UFPR desde a Qualificao do Mestrado, pelas suas valiosas indicaes de leitura, pelas crticas e sugestes, pela afetividade. Meu reconhecimento e gratido!
Ao Prof. Dr. Francis Meneghetti, meu colega e amigo desde o Mestrado em Educao. Agradeo as contribuies valiosas feitas durante a defesa desta Tese.
Ao CNPq, bolsista durante a Graduao; ao Fundo de Incentivo Pesquisa FIPE e ao Fundo de Incentivo Extenso FIEX , ambos da UFSM; CAPES, bolsista durante o Mestrado e Doutorado; s Escolas pblicas e s Universidades pblicas federais.
Agradecimento Especial
minha querida orientadora Prof. Dr. Tnia Maria Baibich, que desde o Mestrado, de braos dados, com imensa cumplicidade e carinho, trabalho rduo e sem trgua, ajudas instrumentais de natureza para alm da orientao, como presentear-me com um computador, conseguir casa para que eu morasse e comesse e fosse cuidada, me fez acreditar que eu tambm podia desenvolver uma tese. A concretizao desta tese s foi possvel mediante o seu esforo permanente em perscrutar a minha subjetividade, buscando minar os resqucios inconscientes do fenmeno do auto-dio e me mostrando que no podia dar uma rasteira em mim mesma e no meu prprio grupo. Minha profunda GRATIDO por tudo e sempre!
RESUMO
A Tese defendida de que a poltica educacional idealizada pela Secretaria de Estado da Educao do Paran, no perodo compreendido entre 2009 e 2011, considerada exemplo nacional, voltada s Comunidades Remanescentes de Quilombos, foi incua, a despeito de todo o esforo empreendido para sua implementao. Essa inocuidade deve-se ausncia de aes pedaggicas de natureza sistemtica e permanente no interior das Escolas, falta de investimento nas dimenses de infraestrutura material e administrativa, bem como de uma articulao efetiva com as Instituies de Ensino Superior (IES) e com as Comunidades Remanescentes dos Quilombos (CRQs). Contudo, faz-se necessrio considerar seu efeito no sentido de oportunizar a evidenciao das marcas histricas e estruturais das desigualdades sociorraciais na educao escolar. A pesquisadora parte integrante da pesquisa e, assim, ao identificar-se com a prpria realidade vivida quilombola , a autora, atravs da observao de campo, entrevistas, questionrios e do arcabouo terico conceitual, tonifica o seu foco analtico. O objetivo central da pesquisa foi diagnosticar os efeitos gerados a partir da implementao da poltica de Educao Escolar Quilombola no Estado do Paran, no perodo compreendido entre os anos de 2009-2011, tanto nas Escolas Quilombolas quanto nas Escolas que atendem as CRQs. A pesquisa contextualiza o ineditismo do Paran como primeiro Estado a reconhecer a necessidade, absolutamente contempornea, de elaborar uma poltica educacional direcionada s CRQs. Ainda assim, a despeito de seu vanguardismo, importncia, planejamento, inverso de recursos financeiros e humanos estes ltimos, contando com o envolvimento de profissionais capacitados tcnica, cientfica e eticamente , sem estabelecer parcerias efetivas, planejar e executar, a experincia foi incua em termos de transformao genuna do status quo da Educao Escolar Quilombola no Estado. Desta feita, possvel afirmar que todo o investimento redundou em um somatrio de aes descontnuas e efmeras, que, sem apresentar resistncia, sofreu soluo de continuidade com o governo e a poltica que lhe sucedeu, sem deixar nas comunidades foras e conhecimentos suficientes para que pudessem frutificar e seguir existindo na e pela comunidade parceira.
Palavras chave: Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Educao Escolar Quilombola. Poltica Afirmativa.
ABSTRACT
The defended thesis is in matters of educational policy idealized by the States Secretary of Education of Paran, from 2009 to 2011, considered a nation example, related to Quilombs Remaining Communities, was innocuous, despite of every hard work input for its implementation. This safety is because of the leak of pedagogic action from the systematic and permanent nature in Schools, the leak investments on dimensions of material and administrative infrastructure, as well as an effective articulation with the Superior Education Institutes (IES) Quilombos Remaining Communities (CRQs). Overall, it is necessary to consider the effects in matters of giving opportunity to present facts of structural and historical highlights of social racial inequality in scholarship. The researcher makes part of the research and, with that said, thereby, when identifying herself as with her own lived reality as part of a Quilombos community the authoress, through a field observation, interviews, and questioners and conceptual theory outline, tones her analytic focus. The central target of the research was to diagnose the generated effects after the implementation of Scholar Education with Quilombos Community in Parans State between 2009 and 2011, not only in Quilombos schools, but also in schools that recive the CRQs. The research contextualize the originality of Paran as the first State to recognize the needs, absolutely contemporary, to elaborate an educational politic towards CRQs. Even though, despite its vanguardism, importance, planning, reversal of financial and human resources these last ones, counting with involvement of professionals technically, scientifically and ethically -, without establishing effectives partnerships, plan and execute, the experience was innocuous in matters of becoming genuine of status quo of Quilombos Scholar Education in Paran. From this, it is possible to affirm that all the investment resulted in a sum of actions discontinuous ephemeral, that, without presenting resistance, suffered solution of continuity with the government and the politic succeeded itself, without giving the communities the strength and knowledge enough they could use go ahead existing in and for the community partner. Key words: Quilombos Remaining Communities. Quilombos Scholar Education. Affirmative Politic
SUMRIO ABRINDO O FOCO...........................................................................................12 1. CARTOGRAFIA SOCIOAFETIVA: A QUILOMBOLA QUE SOU ...............25 1.1 O ENCONTRO COM A ESCOLA .............................................................. 29 1.2 O ENSINO MDIO..................................................................................... 33 1.3 O ENSINO SUPERIOR.............................................................................. 35 1.4 O MESTRADO EM CURITIBA................................................................... 37 1.5 MESTRADO E A DISCIPLINA O PRECONCEITO E AS PRTICAS ESCOLARES................................................................................................... 38 2. TRAJETRIA METODOLGICA: AS TRILHAS DA INVESTIGAO...... 40 3. QUILOMBO: TEIAS CONCEITUAIS............................................................ 50 3.1 A RESSEMANTIZAO DO CONCEITO HISTRICO DE QUILOMBO: O ARTIGO 68 DO ATO DAS DISPOSIES TRANSITRIAS CONSTITUCIONAIS......................................................................................... 71 4. EDUCAO ESCOLAR QUILOMBOLA: UM ESFORO CONCEITUAL E ANALTICO...................................................................................................... 75 5. EDUCAO ESCOLAR QUILOMBOLA: DA HISTRIA EM CURSO....... 87 5.1 ENTREVISTA COM A PROFESSORA CLEMILDA SANTIAGO NETO: EDUCAO ESCOLAR NOS QUILOMBOS PARANAENSES........................ 94 6. CATEGORIAS ANALTICAS: FERRAMENTAS CONCEITUAIS DA INVESTIGAO..............................................................................................100 6.1 EDUCAO ESCOLAR QUILOMBOLA: DA INTENO AO RETRATO DA REALIDADE.....................................................................................................105 6.2 A ESCOLA QUILOMBOLA AINDA NO DIFERENTE: DO PSEUDORRECONHECIMENTO.................................................................... 112 6.3 OS EFEITOS DA POLTICA DE EDUCAO ESCOLAR QUILOMBOLA PARANAENSE............................................................................................... 117 7. FECHANDO O FOCO: PARA REFLETIR................................................. 134 REFERNCIAS.............................................................................................. 137
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ABRINDO O FOCO
Cada um de ns uma pennsula, metade ligada terra firme, metade contemplando o oceano. Uma metade conectada famlia, cultura, ao pas. A outra metade que deixem s contemplando o oceano. [...] A condio de pennsula a prpria condio humana [...], em toda conexo humana, o que realmente temos uma relao entre uma srie de pennsulas. Nenhum deles [de ns] uma ilha, assim como nenhum deles [de ns] pode fundir-se completamente com o outro (OZ, 2002, p. 40).
A presente pesquisa defende a Tese de que a poltica educacional
idealizada pela Secretaria de Estado da Educao do Paran, no perodo
compreendido entre 2009 e 2011, considerada exemplo nacional, voltada s
Comunidades1 Remanescentes de Quilombos,2 foi incua, a despeito de todo o
esforo empreendido para sua implementao. Essa inocuidade deve-se
ausncia de aes pedaggicas de natureza sistemtica e permanente no
interior das Escolas, falta de investimento nas dimenses de infraestrutura
material e administrativa, bem como de uma articulao efetiva com as
Instituies de Ensino Superior (IES) e com as Comunidades Remanescentes
dos Quilombos (CRQs).
1 Entendo comunidade a partir da perspectiva terica de Zygmunt Bauman (2003, p. 7-8), que expressa os sentidos que essa palavra evoca e seus parodoxos. Para Bauman, comunidade produz uma sensao boa, pois carregada de significados que prometem prazeres que gostaramos de experimentar. A comunidade um lugar confortvel e aconchegante. como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada [...] L na rua toda sorte de perigo esta espreita [...] aqui na comunidade estamos seguros, no h perigos ocultos [...], portanto, comunidade sugere uma coisa boa. No entanto, o autor adverte que comunidade um tipo de mundo que no est, lamentavelmente, ao nosso alcance mas que gostaramos de viver e esperamos vir a possuir. Em suma, comunidade nos dias de hoje o nome do paraso perdido, mas ao qual esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem nos levar at l. Nesse sentido, em relao s CRQs, possvel afirmar que so lugares marcados por tenses, contradies e que a um s tempo compartilham os mesmos sofrimentos e celebram as mesmas alegrias e conquistas. 2 Conforme o Decreto 4.887/003, consideram-se Remanescentes das Comunidades dos Quilombos os grupos tnico-raciais, segundo critrios de autoatribuio com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territoriais especficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. Nesta Tese, optei por utilizar o termo Comunidades Remanescentes de Quilombos CRQs, pois comunidade o termo que marca o pertencimento identitrio dos sujeitos quilombolas. Nunca ouvi um quilombola dizer eu sou um Remanescente da Comunidade do Quilombo e sim eu sou da comunidade quilombola ou, eu sou quilombola da comunidade.
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A implementao da poltica de Educao Escolar Quilombola no
Paran incua; contudo, faz-se necessrio considerar seu efeito no sentido
de oportunizar a evidenciao das marcas histricas e estruturais das
desigualdades sociorraciais, destacando aqui o contexto educacional. Assim,
se por um lado a poltica educacional voltada s Comunidades Quilombolas do
Paran no produziu os efeitos pretendidos, por outro, possibilitou revelar os
vrios fenmenos sociais histricos e contemporneos que obstaculizam
sua efetividade.
O Paran o primeiro Estado a reconhecer a necessidade,
absolutamente contempornea, de elaborar uma poltica pblica afirmativa de
educao escolar direcionada s CRQs, com o objetivo de reduzir o abismo da
excluso educacional, que marca a vida de cada criana, jovem, adulto e idoso
quilombola. A iniciativa do Paran na proposio e implementao de uma
poltica educacional voltada s CRQs indubitavelmente o reconhecimento de
que no limiar do III Milnio ainda existe um grupo social que insiste, a despeito
de todos os obstculos que se apresentam, em ter acesso a um direito comum
a todos os brasileiros o direito educao.
Assim, o Estado,3 como principal promotor de polticas pblicas,
avanou na indita formulao e implementao de uma poltica educacional
especfica s CRQs; entretanto, sua atuao ficou restrita ao planejamento e
execuo de aes efmeras e intermitentes. Importante destacar de maneira
sucinta o entendimento acerca de polticas pblicas adotado nessa Tese, visto
que a literatura sobre o tema bastante ampla e heterognea. Conforme
Souza4 (2006, p.24) no existe uma nica, nem melhor, definio sobre o que
seja poltica pblica; portanto, possvel inferir que a melhor definio
aquela que est em consonncia com o objeto da investigao.
3 A concepo de Estado adotada aqui de uma instituio poltico-administrativa, que s pode ser compreendido luz das sociedades histrico-concretas, o que elimina a possibilidade de uma ideia universal a seu respeito (COSTA, 1992, p. 267). Assim, o Estado resulta das mediaes das formaes histricas especficas de cada sociedade e de cada pas. Fica afastada, assim, a possibilidade de uma estrutura geral do Estado Moderno, por mais que algumas de suas funes no interior das sociedades aparentemente se repitam de lugar para lugar ao tempo. 4 Celina Souza PhD em Cincia Poltica pela London School of Economics and Political Science (LSE); Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal da Bahia.
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Segundo Souza (2006, p. 25), da dimenso terica/conceitual, a poltica
pblica em geral e a poltica social em particular so campos
multidisciplinares, assim, elaborar uma teoria geral sobre poltica pblica
implica permear distintos campos do conhecimento, tais como Sociologia,
Cincia Poltica, Economia, Antropologia etc., e a partir da empreender uma
sntese terico/conceitual. No entanto, qualquer teoria sobre poltica pblica
precisa necessariamente explicitar as inter-relaes entre Estado, poltica,
economia e sociedade.
Compartilha-se com Souza (2006, p. 36) a sntese elaborada acerca das
diversas definies e modelos de polticas pblicas, na qual a autora destaca,
com base na literatura clssica5 (LASSWELL, 1936; SIMON, 1957; LINDBOM,
1959-1979; EASTON, 1965), as principais caractersticas terico-conceituais
sobre polticas pblicas:
a poltica pblica permite distinguir entre o que o governo pretende fazer
e o que, de fato, faz;
a poltica pblica envolve vrios atores e nveis de deciso, embora seja
materializada atravs dos governos, e no necessariamente se restringe
a participantes formais, j que os informais so tambm importantes;
a poltica pblica abrangente e no se limita a leis e regras;
a poltica pblica uma ao intencional, com objetivos a serem
alcanados;
a poltica pblica, embora tenha impactos no curto prazo, uma poltica
de longo prazo;
a poltica pblica envolve processos subsequentes aps sua deciso e
proposio, ou seja, implica tambm implementao, execuo e
avaliao.
5 H. Laswell, H. Simon, C. Lindblom e D. Easton so considerados os fundadores do campo de estudo sobre polticas pblicas, centradas na anlise do Estado, instituies e aes governamentais. Atravs deles so produzidas as definies terico/conceituais clssicas policy analysis (anlise da poltica pblica), policy makers (tomadores de deciso), policy cycle (ciclo de poltica), impact analysis or evaluation (impacto ou avaliao da poltica).
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O desenho da poltica de educao escolar dirigida s CRQs delineado
por tcnicos pedaggicos6 no mbito da Secretaria de Estado da Educao. As
demais polticas voltadas s CRQs e a instituio de um Grupo de Trabalho
intersecretarial na esfera governamental so desdobramentos do projeto
iniciado na SEED, em 2002, cujo objetivo era inserir a Histria e a Cultura da
populao negra no currculo escolar, como tambm desconstruir o discurso
hegemnico da Historiografia paranaense sobre a invisibilidade da populao
negra. Para atingir tal propsito, teve incio o mapeamento dos Quilombos
paranaenses e sistematizao de suas histrias, tradies e modo de vida.
Em 2003, esse projeto encontrou um contexto poltico e institucional
favorvel e inserido na agenda educacional como uma questo que merecia
tratamento diferenciado. vlido destacar que nesse mesmo ano sancionada
a Lei 10.639/03, que, alm de conferir respaldo legal para o fortalecimento
dessa proposio, desafia os gestores educacionais a elaborar mecanismos
didtico-pedaggicos para instituir a Histria e a Cultura Afro-Brasileira e
Africana no currculo escolar. Nessa situao, o reconhecimento das CRQs
assume uma importncia sem precedentes, pois corporifica e potencializa a
implementao da Lei 10.639/03.
No I Encontro de Educadores Negros do Paran, realizado em 2004, a
professora Clemilda Santiago Neto apresentou s vrias entidades do
movimento social negro o trabalho sobre o mapeamento das CRQs em
desenvolvimento na SEED at aquele momento. As diversas entidades do
Movimento Social Negro7 tambm contriburam com informaes sobre a
existncia de grupos negros centenrios em seus muncipios.
6 A professora Clemilda Santiago Neto, em entrevista concedida autora dessa Tese em junho de 2012, narrou a trajetria do que hoje se constitui na poltica de Educao Escolar Quilombola do Paran. considerada pelas lideranas quilombolas e pelo Estado como arquivo vivo da Historiografia Quilombola no Paran. Assim, no captulo Educao Escolar Quilombola no Paran: da Histria em curso, a entrevista ser apresentada. 7 Entendo que o Movimento Social Negro composto por vrias organizaes e entidades sociais, com diferentes posicionamentos ideolgicos e polticos; talvez possuam como denominador comum a luta contra os preconceitos/racismo e a discriminao racial. Compartilho com Castells (2002, p. 95) a definio de que os movimentos sociais podem ser conservadores, revolucionrios, ambas as coisas ou nenhuma delas. Afinal [...], no existe uma direo predeterminada no fenmeno da evoluo social, e que o nico sentido da histria a histria que nos faz sentido. Portanto, do ponto de vista analtico, no h movimentos sociais bons ou maus. Todos eles so sintomas de nossas sociedades e todos causam impactos nas estruturas sociais, em diferentes graus de intensidade e resultados distintos que devem ser determinados por meio de pesquisas. [...]. Parto do princpio de que todos representam indcios
15
Em 2005, com a criao do Grupo de Trabalho Clvis Moura-GTCM, as
CRQs tornaram-se pauta de discusso na agenda governamental e o projeto,
inicialmente restrito ao mbito da SEED, se espraiou por outras instncias
governamentais com o objetivo precpuo de coletar informaes sociais,
econmicas, histricas, culturais e educacionais sobre as CRQs e as
Comunidades Negras Tradicionais do Paran. A epgrafe do Relatrio8 do
GTCM registra a dedicao, esforo, persistncia e determinao da
professora Clemilda Santiago Neto, ressalta que sem sua atitude proativa o
GTCM no teria sido institudo, sendo responsvel pela coordenao dos
trabalhos de campo: no campo ela deu a tnica.
Nesse contexto, Cruz (2012) observou a existncia de dois projetos
distintos de levantamento das CRQs no Paran, ambos transitando na
estrutura de Estado. O primeiro, elaborado pela professora Clemilda Santiago
Neto, entre 2002 e 2003 na SEED, e o segundo, elaborado a partir de 2005
com a criao do GTCM. Tais projetos sinalizam a constituio de esferas
governamentais diferenciadas para proposio e execuo de polticas
pblicas voltadas s CRQs. Tambm demarcam nveis distintos de interao e
disputas entre os mediadores e atores envolvidos na incluso das questes
quilombolas na agenda governamental.
Ainda conforme Cruz (2012, p. 61), a criao do GTCM implicou a
transferncia poltica do levantamento das CRQs, esboado na SEED, como
tambm a redefinio do projeto. Mas adverte que esse fato no significou
uma transferncia da conduo tcnica do levantamento, pois a reelaborao
do projeto e os trabalhos de campo [...] permaneceram sob a coordenao da
professora Clemilda Santiago Neto, nessa fase coordenando os trabalhos de
campo da equipe do GTCM.
Como dito anteriormente, no que se refere proposio da poltica
educacional para as CRQs, a Lei 10.639/03 fortaleceu o desenvolvimento do
projeto em curso desde 2002. Mas, conforme Cruz (2012), somente em 2006
as aes educacionais voltadas para a educao escolar nas CRQs passam a
significativos de novos conflitos sociais, germes de resistncia social e, em alguns casos, de transformao social. 8 Relatrio publicado pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geocincias. Terra e Cidadania. Curitiba: ITCG, 2008.
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compor a agenda institucional da SEED. Esse fato foi marcado pela incluso da
temtica quilombola nas Diretrizes Curriculares da Educao do Campo no
Paran, elaboradas pela equipe da Coordenao de Educao do Campo-
CEC, na poca vinculada ao Departamento de Ensino Fundamental da SEED.
Em 2006, a SEED promove o I Curso de Aperfeioamento de
Professores das Escolas que atendem alunos quilombolas e tambm elabora
um projeto para construo de Escolas nas CRQs. No entanto, essas aes
foram desenvolvidas sem um diagnstico pormenorizado acerca dos reais
problemas educacionais que acometiam as CRQs. Segundo Cruz (2012), a
preocupao da SEED residia em cumprir o compromisso em relao ao
atendimento escolar nas CRQs. Assim, a ausncia de parcerias efetivas com
as prprias Comunidades um dos fatores determinantes para que a
implementao da poltica fosse gauche9. Ainda nesse perodo, o contexto
eleitoral contribui para ampliar a visibilidade das CRQs, de modo que foram
inseridas na agenda de campanha e nas propagandas polticas.
Tambm em maio de 2006 a professora Clemilda Santiago Neto,
coordenadora do trabalho de campo pelo CTCM, solicitou s instncias
governamentais estrutura para realizar uma Ao Pblica Articulada na CRQ
Joo Sur, no municpio de Adrianpolis, com a participao dos
representantes das Secretarias e autarquias de Estado, cujo objetivo era que
as CRQs apresentassem suas reivindicaes ao poder pblico. Nesta ocasio,
possvel inferir que os quilombolas, como principais sujeitos desse processo,
tinham cincia das aes em curso e de quais mudanas elas seriam capazes
de alavancar em suas Comunidades.
As lideranas expem suas reivindicaes para educao, sade,
saneamento, condies de mobilidade, meio ambiente e produo, as quais
so sistematizadas e encaminhadas Secretaria responsvel pela respectiva
demanda. Para a SEED, as reivindicaes enviadas esto relacionadas
construo de unidades escolares, em decorrncia das dificuldades de acesso
s Escolas existentes na regio. Tambm solicitam ampliao dos nveis da
educao bsica.
9 Parodiando o poeta Drummond de Andrade em Anjo torto.
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Nesse sentido, tomando como base a trajetria de 2002 a 2006, que
compreende a elaborao e reelaborao de projetos cujo foco consistia no
levantamento socioeconmico, educacional e cultural das CRQs, essa Tese faz
um recorte institucional sobre a implementao da poltica de educao escolar
voltada s CRQs entre 2009 e 2011, visto que, nessa fase, j haviam sido
especificadas as alternativas de proposio e implementao da educao
escolar nas CRQs. O discurso veiculado pela SEED e a visibilidade das CRQs
despertam a ateno da pesquisadora no sentido de refletir e compreender os
reais efeitos das aes educacionais nas Escolas Quilombolas10, nas Escolas
que atendem os alunos11 quilombolas, bem como a percepo das lideranas
quilombolas, do quadro docente e dos alunos sobre o ineditismo dessas aes.
Ao participar diretamente da implementao e acompanhamento das
aes educacionais propostas pela SEED direcionadas s CRQs (2009-2011)
e dialogar com o quadro docente das Escolas, com os alunos quilombolas e
com as lideranas quilombolas, passei a levantar algumas questes que me
permitiram problematizar os efeitos concretos da poltica de educao escolar
dirigida s CRQs. Tais questes me instigaram a uma reflexo a partir das
seguintes indagaes: quais parcerias efetivas foram estabelecidas pela SEED
para auxiliar no diagnstico, implementao, acompanhamento e avaliao da
poltica de Educao Escolar Quilombola? De que maneira contribuiu para o
estabelecimento de uma pedagogia antirracista a forma como foi
implementada? Como os professores percebem a visibilidade das CRQs na
Escola? Quais so as dificuldades apontadas pelo quadro docente das Escolas
Quilombolas e das Escolas que atendem as CRQs, pelas lideranas
quilombolas e pelos alunos para que a poltica de Educao Escolar
Quilombola seja efetivamente implementada? Quais referncias terico-
conceituais devem balizar a poltica de Educao Escolar Quilombola? Qual a
importncia do discurso de visibilidade feito pela SEED em relao s CRQs?
Quais so as transformaes nas Escolas Quilombolas, nas Escolas que
10 Os termos Escola e Quilombo sero utilizados em maisculo neste trabalho por opo terico-poltica. 11 Para facilitar a leitura do texto, optou-se pela utilizao do gnero masculino. No entanto, faz-se necessrio enfatizar que esta opo no tem inteno de ocultar o gnero feminino na linguagem textual.
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atendem alunos quilombolas e na vida da populao quilombola a partir da
implementao da poltica de Educao Escolar Quilombola?
Assim, essas e outras indagaes auxiliaram na delimitao do
problema central desta Tese, que saber se uma poltica educacional voltada
s CRQs definida pelo Estado pode se concretizar no mbito das salas de aula
onde estudam as crianas/jovens quilombolas, sem considerar, na qualidade
de parceiros efetivos, as instncias fundamentais para sua efetiva
implementao, quais sejam, as comunidades quilombolas e as instncias
formadoras.
A proposio de uma poltica educacional diferenciada12 para a
populao quilombola entendida, aqui, como uma ao afirmativa, cuja
finalidade precpua a reparao de uma lacuna produzida historicamente
entre a negao de oportunidades e a luta dessa parcela da populao pela
insero nas estruturas sociais, como escola e universidade. A efetividade
dessa poltica, desde sua nascente aos meandros que se formam durante seu
percurso, apresenta uma estreita relao com a implementao da Lei
10.639/003, uma ao afirmativa, que ainda hoje, quase uma dcada aps sua
promulgao, no mbito das salas de aulas encontra barreiras ainda no
ultrapassadas para se concretizar.
A Lei 10.639/03, que estabelece o ensino da Histria e Cultura Afro-
Brasileira e Africana nos currculos escolares, embora em vigor, apresenta
resultados quase inexpressivos, quando no contrrios ao propsito de sua
existncia, haja vista que alm de sua implementao ocorrer de forma
fragmentada e dispersa em aes efmeras, tem servido como uma espcie de
esconderijo legalizado para reproduo e manuteno do preconceito/racismo.
Em recente entrevista o professor Kabengele Munanga13 ao responder se a
escola brasileira est preparada para combater o racismo ele diz que: as leis 12 Arruti (2009) utiliza os termos educao diferenciada e escola quilombola diferenciada; ambos os termos aqui so compreendidos como ao afirmativa. Segundo Santana (2010, p. 117), as polticas afirmativas constituem um conjunto de aes positivas, tambm denominadas aes afirmativas, que se traduzem numa cumplicidade social e sinalizam para a possibilidade de mudanas prticas na vida dos cidados negros e, consequentemente, da sociedade brasileira em geral. Assim, nesta Tese, educao diferenciada e escola quilombola diferenciada corroboram uma ao de poltica afirmativa ou de reparao especfica s CRQs. 13 Entrevista concedida a Adriana Marcolini, publicada em 30/12/2012 na Revista Carta Capital Disponvel em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-educacao-colabora-para-a-perpetuacao-do-racismo/. Acesso em 03/01/2013.
19
existem, mas h dificuldades para que funcionem. Primeiro preciso formar os
educadores, porque eles receberam uma educao eurocntrica. A frica e os
povos indgenas eram deixados de lado.
Especificamente, em relao Educao Escolar Quilombola, so raros
os professores habilitados a formar futuros professores para ensinar sobre as
referncias histricas e culturais das CRQs e de maneira mais ampla sobre a
cultura e histria afro-brasileira. No entanto, no inteno deste trabalho
culp-los, tendo em vista que ningum ensina aquilo que no sabe; porque
somos fruto de uma educao eurocntrica, de um currculo monocultural;
porque nas Instituies de Educao Superior inexistem disciplinas dirigidas ao
estudo, diagnstico e problematizao alusivos formao e organizao
social, histrica, econmica e cultural das CRQs; porque a perversidade do
preconceito no reconhecida, dado o mito da democracia racial vigente na
sociedade brasileira.
Essa preocupao geradora da pesquisa, no caso da autora da Tese,
umbilicalmente ligada pela trajetria de vida de algum que um dia, na
condio de criana, negra, quilombola e pobre, constitui por si mesma
representao icnica das crianas negras quilombolas vtimas do preconceito
ao quadrado (SOARES, 2008) e da discriminao. Portanto, defende que a
poltica educacional voltada s CRQs seja de fato e de direito inclusiva. Dito de
outra maneira, que no utilize maquiagens para tentar esconder a excluso
feita por dentro da prpria incluso.
Nesse sentido, essa Tese tem como objetivo central diagnosticar os
efeitos gerados a partir da implementao da poltica de Educao Escolar
Quilombola, no Estado do Paran, no perodo compreendido entre os anos de
2009-2011, tanto nas Escolas Quilombolas quanto nas Escolas que atendem
as CRQs (localizadas fora do Quilombo). Tambm pretende atingir outras
metas: a) identificar os fenmenos socioculturais que tornam a poltica no
efetiva; b) mostrar como as dimenses de infraestrutura material, administrativa
e pedaggica influenciam na implementao da poltica afirmativa; c) ampliar o
quadro terico relativo ao conceito de Educao Escolar Quilombola; d)
contribuir com a discusso terica sobre o conceito de Quilombo.
A pesquisa pretende um equilbrio dinmico entre o afastamento
necessrio da pesquisadora, ela mesma negra, quilombola, tcnica da
20
Secretaria do Estado de Educao do Paran quando da implantao da
poltica aqui estudada, quanto problemtica de pesquisa, dada a relao
direta, umbilical de suas vivncias e sentimentos e entre a aproximao da
literatura e o mtodo de pesquisa. Entende-se que um tema de pesquisa fruto
de uma inquietao particular e, afirma-se que, em certa medida, esta pesquisa
carrega o eco daquilo que prprio da pesquisadora e de seu grupo tnico14
de pertena. Assim, a maneira como os sujeitos interagem com a proposio
da poltica de Educao Escolar Quilombola, expressando seus sentimentos,
faz emergir o valor da reflexo acerca da subjetividade como importante pilar
da pesquisa qualitativa.
Desse modo, o objeto de anlise desse estudo so os efeitos da
implementao da poltica educacional voltada s CRQs, no perodo
compreendido entre 2009-2011. Trata-se de mostrar, partindo das distintas
manifestaes dos sujeitos da pesquisa (quadro docente, alunos quilombolas e
lideranas quilombolas), que os efeitos da poltica educacional voltada s
CRQs trazem tona questes amplamente densas, complexas e paradoxais;
portanto, suscitam uma interpretao reflexiva luz das dimenses histricas,
socioeconmicas, polticas e culturais.
Compartilhando com Sartre (1989, p.64) que o escritor [pesquisador] fala
a seus compatriotas, seus irmos [de raa ou] de classe, tal como escreveu
Richard Wright (escritor negro que teorizou sobre a escravido nos EUA) e
pretendia atingir a todos os homens, por intermdio dos leitores negros, que
representavam a sua subjetividade: A mesma infncia, as mesmas dificuldades, os mesmos complexos: meia palavra basta, eles compreendem com o corao. Tentando esclarecer a sua situao pessoal, leva-os a se esclarecerem sobre si mesmos. A vida que levam no dia a dia, no imediato, e que suportam sem encontrar palavras para formular seus sofrimentos ele a mediatiza, nomeia, mostra a eles: o escritor a conscincia deles, e o movimento pelo qual ele se eleva do nvel imediato at a retomada reflexiva de sua condio o movimento de toda a sua [raa].
14Grupo tnico, de acordo com Banks (2002), um conjunto de indivduos que compartilham uma histria comum, sentimento de pertena e identidade, valores, caractersticas comportamentais e sistema de comunicao. Os membros de um grupo tnico, usualmente, o percebem distinto e separado dos outros grupos culturais em dada sociedade. (BANKS, J. A. An Introduction to Mulcultural Education. Boston, MA: Allyn and Bacon, 2002).
21
A anlise desenvolvida ancora-se na concepo de Freire (2007, p. 79)
de que a mudana do mundo implica a dialetizao entre a denncia da
situao desumanizante e o anncio de sua superao, no fundo, o nosso
sonho. Como no dizer de Santana (2010, p. 12), essa busca sustenta-se na
concepo de que a anlise do concreto vivido e a reflexo coletiva dos
agentes a envolvidos acerca de sua prpria realidade constituem pilar e mvel
de toda e qualquer mudana possvel.
A perspectiva deste trabalho que a teorizao decorrente do
diagnstico da implementao da poltica educacional voltada s CRQs,
dialeticamente, possa vicejar em possveis formas de mudanas na realidade
escolar e contribuir para que as diferenas tnico-culturais sejam reconhecidas
e respeitadas. Conforme Praxedes (2005, p. 110), muito mais fcil
chegarmos a um consenso sobre a necessidade do respeito s diferenas
entre os humanos do que termos, de fato, uma prtica cotidiana de respeito
aos diferentes.
A pesquisadora apresenta-se como parte integrante da pesquisa e, num
esforo autoreflexivo, busca responder como me tornei o que sou. Assim, ao
identificar-se com a prpria realidade vivida, a autora, atravs da observao
de campo, das entrevistas, dos questionrios e do arcabouo terico-
conceitual, tonifica o seu foco analtico, considerando que no s a
pesquisadora e seu objeto de investigao esto em processo de construo
intelectual. Tambm esto em processo de construo as relaes sociais
empricas investigadas, a saber, a educao escolar quilombola (PRAXEDES,
Exame de Qualificao, 2012). Entretanto, sua condio umbilical com a
realidade pesquisada permite, em certa medida, perscrutar e auscultar
situaes muitas vezes no percebidas ou pouco percebidas pelos
pesquisadores.
Minayo (1994, p. 13) nos lembra que a pesquisa social sempre
tateante, mas, ao progredir, elabora critrios de orientao cada vez mais
precisos e bem definidos. Em outras palavras, no apenas o investigador que d sentido a seu trabalho intelectual, mas os seres humanos, os grupos e as sociedades do significados e intencionalidades a suas aes e a suas construes, na medida em que as estruturas sociais nada mais so que aes objetivadas. (MINAYO, 1994, p.14).
22
Assim, essa Tese se organiza em (5) cinco captulos, os quais procuram
demonstrar, em sua constituio, as conexes possveis de serem identificadas
para compreender as repercusses e desdobramentos da poltica educacional
voltada s CRQs do Paran.
O primeiro captulo apresenta a trajetria de vida da autora, desde o
lugar Quilombo-, at os espaos sociais, de sada, absolutamente
estrangeiros Escola e Universidade. A inteno do captulo reunir e mostrar
elementos que possibilitam uma auto-anlise, no sentido bourdieusiano,
buscando evidenciar a relao orgnica entre a trajetria da pesquisadora e a
Educao Escolar Quilombola como a mais recente modalidade da poltica de
educao bsica brasileira.
O segundo captulo ilustra as trilhas metodolgicas construdas para
organizao e elaborao desta Tese. Foram trs as trilhas percorridas pela
autora, quais sejam: como quilombola, tcnica pedaggica do Ncleo de
Educao das Relaes tnico-Raciais e Afrodescendncia-NEREA/SEED e
como pesquisadora no curso de Doutorado em Educao da Universidade
Federal do Paran.
O terceiro captulo debrua-se sobre a problematizao e reflexo
acerca de um conceito de Quilombo que discuta as concepes
contemporneas existentes, propondo, a partir do emprico vivido, pensado e
dos prprios resultados da pesquisa, um conceito prprio. O sentido que se
pretende discutir traz em seu mago a reconsiderao fulcral da fuga na
constituio do Quilombo, que, historicamente, ainda que na perspectiva do
dominador, era constitutiva do conceito e que por este mesmo motivo foi sendo
esmaecida pela compreenso poltico-cientfica contempornea.
O quarto captulo instiga a discusso e a reflexo sobre a importncia,
os significados e as representaes de uma educao diferenciada ou escola
diferenciada para as CRQs no contexto da sociedade brasileira. Trata-se de
conceber e refletir sobre a Educao Escolar Quilombola a partir de duas
perspectivas, quais sejam: uma poltica afirmativa e a outra pelas noes de
diferena, identidade, cultura e diversidade no currculo escolar.
O quinto captulo apresenta e contextualiza os movimentos e
organizaes quilombolas que impulsionaram as reinvindicaes por uma
poltica educacional voltada s CRQs no cenrio nacional e os dispositivos
23
institucionais que orientam e regulamentam a implementao da poltica de
Educao Escolar Quilombola nos mbitos estadual e nacional. Com o objetivo
de mostrar como ocorre a educao escolar nas CRQs no Paran, apresenta-
se uma entrevista realizada com a professora Clemilda Santigo Neto, arquivo
vivo da historiografia quilombola no Paran. Tal entrevista corrobora o que
esta Tese defende.
O sexto captulo apresenta a anlise das situaes concretas,
pertinentes aos efeitos da poltica educacional voltada s CRQs do Paran.
Trata-se de uma anlise de conjunto dos fenmenos encontrados nas Escolas
Quilombolas e nas Escolas que atendem as CRQs.
Fecham o foco deste estudo algumas consideraes sobre Educao
Escolar Quilombola para refletir, seguidas das referncias.
24
1. CARTOGRAFIA SOCIOAFETIVA: A QUILOMBOLA QUE SOU
Peo licena Academia para contar na primeira pessoa do singular
sobre os cenrios sociais que constituem a trajetria de vida de quem nasceu e
cresceu num lugar onde a forma de marcar o tempo cronolgico era fazendo
pequenas marcas com um faco em uma viga de madeira que sustentava a
estrutura da cozinha um lugar chamado Quilombo.
Antes de iniciar o que vou contar, sublinho que meu objetivo no
mobilizar um discurso de lamentao em torno de minhas vivncias, nem
tampouco situar-me na condio de vtima, na inteno de provocar piedade ou
compaixo; quero sim, mostrar as condies sociais de uma trajetria15 desde
o lugar familiar at os espaos sociais, de sada, absolutamente estrangeiros
Escola e Universidade.
Hoje me utilizo das ferramentas fornecidas por esses espaos sociais,
outrora estruturas alheias e estranhas, para me auto-contar e, o mais
importante, atribuo um sentido plural a essa narrativa, porque, ao contar sobre
mim, conto sobre as vidas de um grupo de pessoas. Como no dizer de
Bourdieu (2005), queria [quero] apenas tentar reunir e revelar alguns dos
elementos para uma auto-anlise (p. 37).16 Minha inteno nesse captulo
aproxima-se do entendimento de Bourdieu (2005, p.109), quando destaca que
seu esboo de auto-anlise,
15 Utilizo o termo trajetria articulado perspectiva terica de Bourdieu (1996, p. 81), que, a partir da noo de histria de vida, elabora o conceito de trajetria [...] como uma srie de posies, sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) em um espao por ele prprio em devir e submetido a transformaes incessantes. Conforme o autor, no possvel compreender uma vida como uma srie nica, e por si s, suficiente de acontecimentos sucessivos, isso seria como tentar explicar um trajeto no metro sem levar em conta a estrutura da rede, a matriz das relaes objetivas entre as diversas estaes. 16 Coerente com sua crtica iluso biogrfica, Bourdieu abre seu Esboo de auto-anlise com uma epgrafe receosa: Isto no uma autobiografia. Na introduo intitulada A emoo raciocinada Sergio Miceli (2005, p. 8), destaca que [...] nessa obra Bourdieu tentou a faanha de refletir sobre o passado por meio do inqurito que ele mesmo fora refinando como mtodo de trabalho [...]. Importante mencionar que no artigo A iluso biogrfica Bourdieu (1996, p. 76) faz uma crtica s histrias de vida, s narrativas biogrficas e autobiogrficas que tentam extrair um sentido e um plano para a existncia narrada, uma lgica entre os acontecimentos e as etapas da vida, como se a vida fosse orientada por uma inteno original e um objetivo final. Assim, a partir desse entendimento, por questo de organizao didtica, narrarei os fatos seguindo uma sequncia demarcada pelo tempo, porm, isso no significa que sejam fatos nicos e isolados, antes disso, esto ligados s pequenas e distintas experincias, algumas descobertas, outras construdas, mas constantemente transformadas e aprimoradas durante a prpria trajetria descrita. Registro meu agradecimento ao Prof. Dr. Pedro Bod, pela valiosa indicao de leitura.
25
no pode deixar de lado a formao das disposies associadas posio de origem, das quais se sabe que, em relao aos espaos sociais em cujo interior elas se atualizam, contribuem para determinar as prticas.
O esforo empreendido aqui de simultnea transposio e
manuteno da subjetividade. Transposio da subjetividade porque fao de
minhas experincias, das lembranas de minha infncia e adolescncia no
Quilombo, ponto de partida para compreender a realidade social
contempornea vivida pelos quilombolas, e manuteno porque entendo que
escrever sobre a empiria da realidade da qual venho manifestar sentidos e
produzir significados muito particulares sobre o que ela representa.
Percebo, na condio de pesquisadora, que os Quilombos, hoje, so
espaos envolvidos em uma grande batalha cultural por significao, uma
disputa travada fora de seus limites, cujo objetivo expresso o de represent-
los, torn-los visveis perante a sociedade, mas, o que me preocupa, na
condio de quilombola pesquisadora, a maneira como so representados:
h uma sobrevalorizao das subcondies sociais, que passam a ser
carimbadas como cultura ou tradies culturais. O perigo desta
representao, cuja origem em geral a academia, reside na possvel
amenizao ou forma de suavizar a dureza do dia a dia concreto do Quilombo,
o que me permite temer o comprometimento de nossas/suas possibilidades de
ao/reao para enfrentar prticas tcitas de dominao e regulao. Ainda
que bem intencionada ou com justificativas tericas, supostamente
antropolgicas, esta interpretao, a meu ver, funciona como albergue para
ocultar condies de extrema excluso social, que defende a manuteno de
tradies culturais.
Por pertencer a esse grupo, ter vivido e sentido a realidade para alm da
imaginao, e principalmente por perceber que se no contar minhas
experincias enquanto quilombola a partir do lugar que me encontro, elas sero
capturadas e narradas desde outros lugares, por outrem, me outorgo o dever
de cont-las. Tambm o fao dado que observo o quanto as pessoas do meu
grupo esto muito distantes dos campos hegemnicos do poder e como isso
permite que, em determinadas situaes, sejam manejadas, aprisionadas
em jogos de poder que elas mesmas desconhecem.
26
Em sntese, por perceber que o olhar de fora se autoriza a narrar a partir
de seus paradigmas e de seu universo cultural vivncias jamais experienciadas
no seu mundo; por sentir que o discurso alheio atribui significados aos
quilombolas, dizendo quem so e como so, o que fazem e por que fazem; o
que devem mudar em suas vidas e o que devem manter, isto , por perceber
que o olhar e o discurso do estrangeiro paulatinamente tm produzido uma
identidade adequada para ns quilombolas, que me dedico confeco de
uma cartografia socioafetiva. E o fao utilizando um conjunto de informaes
inscritas em mim, que constituem a quilombola que sou. Cartografia
socioafetiva, porque os fatos esto diretamente vinculados a um contexto
scio-histrico e porque ter sado da casa de cho batido, com cobertura de
capim santa-f,17 de parede de tbua, no significa que essa casa deixou de
morar em mim. Mas, entendo que para auto-analisar esse universo a mim to
familiar, necessrio me distanciar, manter um olhar de fora para o olhar de
dentro.
Foto 1 Casa smbolo do Quilombo.
Autor: SOARES, 2012.
Na minha infncia, no tnhamos nenhuma preocupao com o tempo
cronolgico, nossas tarefas no seguiam o horrio convencional, e sim o 17 Capim santa-f Panicum prionitis. Uma espcie de vegetao encontrada em locais alagadios, prximo a cursos dgua, hoje quase em extino no Rio Grande do Sul, pois as lavouras de arroz necessitam de reas com essas mesmas caractersticas naturais.
27
movimento aparente do sol. Inverno ou vero, acordvamos sempre antes do
sol nascer e a primeira tarefa do dia era ordenhar as vacas, junto com meu pai.
Enquanto estvamos na mangueira, minha me fazia fogo (fogo metade ferro,
metade barro), processos lentos, que envolviam pacincia e algumas destrezas
adquiridas com a prtica.
Tnhamos um rdio a pilhas, que ficava um longo perodo sem funcionar,
devido falta de dinheiro para compr-las. Certa vez, uma prima me ensinou
que, se as pilhas usadas fossem aquecidas na chapa de ferro do fogo, elas
voltariam a funcionar, no por muito tempo (em mdia 30 minutos). Assim
fazia, sempre aos sbados, pois nesse dia havia uma programao infantil em
uma determinada emissora, com histrias infantis clssicas (Chapeuzinho
Vermelho, Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel); eu, alm de ouvir, me
transportava para o universo da histria.
A preocupao com o tempo cronolgico se imps na rotina familiar
quando eu e meu irmo entramos para a Escola. No inverno, eram raras s
vezes em que conseguamos chegar no horrio, pois, alm do frio, da pouca
roupa, da falta de calado adequado (usvamos chinelos de dedo),
percorramos cerca de 3 km at a Escola.
Hoje, observo que a cultura escolar imprimiu uma reorganizao no
nosso modo de vida, pois, aos poucos, a necessidade de saber o horrio
tornou-se independente da Escola. Foi estabelecido um horrio para a lida na
roa (lavoura) e no campo, no perodo escolar esse horrio no poderia ser
flexvel, no perodo de frias no deixvamos de segui-lo, porm com mais
flexibilidade. Meu pai e minha me tinham noo do tempo (horrio) pela
projeo da prpria sombra, mas esse recurso s funcionava se houvesse sol.
Quando tnhamos o horrio preciso atravs do rdio, meu pai, prevendo
que poderamos ficar algum tempo sem esse recurso e preocupado com o
nosso horrio para Escola, fez vrios picos (marcas) em uma das vigas de
madeira da cozinha. Assim, medida que a luz do sol atingia um determinado
pico, era possvel saber qual hora estava sendo indicada. A distncia entre
os picos maiores representava o intervalo entre 10h00min e 11h00min, por
exemplo, e os menores os intervalos de meia hora. Mas, era outra inveno til
somente com auxlio da luz solar. Pela manh, o canto dos galos foi sempre o
relgio mais prximo, independente das condies do tempo atmosfrico.
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O que me levou a contar sobre essas experincias em relao ao tempo
cronolgico no Quilombo foi um fato muito recente, ligado a uma data nica
para cada um de ns o dia em que nascemos. No dia 9 de abril desse ano,
telefonei para minha me para parabeniz-la pelo seu aniversrio. Ela se
surpreendeu e disse que havia esquecido. Eu me/lhe perguntei: como? Ser
que eu me confundi com a data? Logo, ela me diz: nesse lugar agora est
comum as pessoas esquecerem do aniversrio, raramente algum faz alguma
comemorao como em outros tempos.
Percebo que a preocupao com tempo cronolgico aos poucos deixou
de ter um sentido na vida das pessoas, nem mesmo o dia do aniversrio
motivo para alterar o ritmo cotidiano de suas vidas. A relao com o tempo se
estabelece conforme as necessidades externas. Internamente, as atividades
que desempenham no exigem o cumprimento preciso de horrios ou datas.
Tanto o manejo com os animais como o preparo do solo para novas plantaes
so feitos obedecendo s fases da lua e s estaes do ano.
At aqui, contei o que lembro sobre a relao entre o tempo cronolgico
e modo de vida no Quilombo. Destaquei que a Escola foi responsvel pela
construo de uma nova experincia com o tempo e pela necessidade de
inventar ou aprimorar mecanismos para marc-lo, na ausncia de recursos
mais precisos (rdio ou relgio). Assim, a seguir contarei minha trajetria no
espao escolar,18 desde as sries iniciais at o Mestrado em Educao.
1.1 O ENCONTRO COM A ESCOLA
A Escola foi o primeiro espao diferente de tudo que conhecia, o
encontro com as diferenas sociais, tnicas, culturais e histricas. Tambm o
encontro com ferramentas desconhecidas: lpis, borracha e cadernos. Para o
primeiro dia de aula, de casa levei um saco vazio de acar, pois a Escola
fornecia o material escolar para os chamados carentes.
Na primeira srie, a experincia inicial foi de encantamento e
contemplao, com o quadro-verde, o giz (de diversas cores), o lpis, a
18 Conforme orientao feita na Banca de Qualificao pelos professores Dr. Pedro Bod e Dr Leilah Santiago Bufrem, parte dessa escrita foi retomada da Dissertao de Mestrado (SOARES, 2008).
29
borracha, os cadernos, o livro Brincando com as Palavras. Eu e meu irmo
parecamos dois aliengenas na sala de aula: o que para as outras crianas era
natural, para ns era coisa de outro mundo.
Havia um entendimento familiar de que meninas no poderiam ir para
Escola sem companhia de um irmo ou de uma irm mais velha que estivesse
estudando, em funo da distncia a ser percorrida, cerca de 3 km, e tambm
porque um poderia cuidar do outro. Assim, entrei para Escola com 8 anos
(completei 9 na metade do ano), pois precisei esperar meu irmo, minha
companhia.
Um grande desafio na primeira srie foi com as atividades que deveriam
ser feitas em casa: os temas. Minha me analfabeta, meu pai, que havia
cursado at a 5 srie, s vezes ajudava, mas no concordava com o mtodo
de ensino. Para ele, a aprendizagem deveria comear pela escrita e leitura das
letras do alfabeto, as vogais e a tabuada. Ns, crianas, contvamos
professora que o pai havia dito que aquela forma de ensinar no estava certa e
dizamos como ele queria que fosse. Diante dessa situao, a professora e a
diretora da Escola foram at nossa casa e l explicaram ao pai e me sobre
as normas da Escola e o mtodo de ensinar adotado.
Hoje percebo que meu pai desejava que a Escola nos ensinasse de
imediato o que na concepo dele era essencial e primordial. No entanto, antes
disso, precisvamos aprender a utilizar as ferramentas escolares sem
estranhamento, entender a funo das linhas no caderno; em seguida,
descobrir que nem todas as folhas tinham linhas (folhas sulfite utilizadas para
atividades mimeografadas), enfim, desenvolver habilidade para manusear
rguas, tesourinhas, fita adesiva, cola tenaz (em casa, o nosso tenaz era feito
com farinha de trigo).
Esta fase inicial da escolarizao foi marcada pelo desejo de descobrir,
pelo envolvimento e encantamento com todos os aparatos alheios minha
realidade, mas, principalmente, pela vontade imensa de aprender a ler e a
escrever. Quando consegui escrever as primeiras palavras (juno das vogais,
exemplo: aia, oi, eu), pedi professora as sobras de giz para escrever nas
paredes de casa. Assim, escolhia as tbuas menos speras e s vezes
reescrevia a lio inteira. No recreio, geralmente ficava na sala de aula
30
desenhando ou concluindo alguma atividade, talvez por isso no lembre a
forma de interao com os colegas.
Mas, a partir da 2 srie, quando comecei a desejar participar das
brincadeiras, logo senti que no fazia parte do grupo dos iguais, havia
acordos tcitos entre quem poderia fazer parte das brincadeiras e qual seria a
forma de participar. Nessa fase escolar,19 comeo a perceber minha diferena,
como no dizer de Ciampa (2002, p. 17):
Se preciso examinar como o sujeito se autoidentifica, isto, ainda que necessrio, no suficiente. preciso ainda que haja o reconhecimento, pelos outros, dessa autoidentificao, podendo fazer com que a construo da identidade ocorra de modo diferente de uma e de outra. Ou seja, identidade de fato no se define por caractersticas de indivduos, mas por relaes entre indivduos, sempre em movimento, da se poder dizer que identidade metamorfose.
Na brincadeira de gata-cega, esse papel estava destinado a mim, se
quisesse participar da brincadeira. Aos poucos percebia que meus colegas me
viam como diferente. Diferena que servia ao mesmo tempo para afirmar a
identidade deles e subjugar a minha, percebia que tal diferena estava ligada
cor da pele e textura dos cabelos. Na 4 e 5 sries, os meus nomes
secundrios j haviam sido inventados e era a partir deles que seus inventores
me reconheciam os apelidos , diga-se de passagem, so os mesmos que
encontrei em minha pesquisa de Mestrado: macaca, bombril (marca de material
de limpeza, feito de palha de ao), macega (espcie de capim muito seco,
tpica de algumas reas do Estado do Rio Grande do Sul).
Compartilho do entendimento de Hritier (2000) que os apelidos
expressam o desejo do grupo maior de manter a sua identidade grupal como a
normal, desejvel, positiva; para tanto, imputam ao grupo minoritrio atributos
depreciativos que desembocam num profundo e dolorido sentimento de
inferioridade. Os apelidos funcionam como armas destrutivas que dilaceram a
identidade das vtimas, cujos efeitos podem desencadear a negao da prpria
19 No minha inteno mostrar o espao escolar como improdutivo para as crianas negras quilombolas, nem rotular como um espao onde a difuso dos preconceitos/racismos sejam manifestaes imperativas e majoritrias, mas, sim, apresentar e refletir sobre esses fenmenos que assumem dimenses capazes de conduzir para a negao da prpria natureza humana.
31
natureza humana, pois o seu eu diludo no caldeiro simblico dos
nomeados como animais e objetos.
A professora sempre elogiava a todos, quando a tarefa era realizada
sem nenhum erro. Tinha o hbito de colar figurinhas no caderno de cada aluno,
acompanhada de uma frase de incentivo, para as meninas geralmente eram
florzinhas (margaridas, rosas). Um dia eu tambm ganhei uma figurinha,
seguida de uma frase de incentivo, mas tal foi meu espanto e tristeza que
naquele momento desejei no ter ganhado figurinha, pois a figurinha era de
uma macaquinha subindo numa rvore, mas, macaca era o apelido que havia
recebido de meus colegas. A frase dizia voc vai longe. Difcil, entretanto,
naquele momento da vida, era entender por que a figurinha escolhida para mim
era diferente e reforava de maneira explcita o que os colegas diziam que eu
era. Senti uma profunda vergonha de mim mesma e tristeza. Esse episdio me
fez por algum tempo observar nos macacos bugios se de fato eu era
semelhante a eles, pois, se at a professora me achava parecida com eles,
ento, talvez fosse mesmo.
Na 6, 7 e 8 sries, estudei em Escola maior, tinha vrios colegas
negros/as, mas um querendo distncia do outro, parece que tnhamos
vergonha uns dos outros, mas todos ramos alvos do preconceito/racismo. No
tinha amigos/as, procurava ficar sempre isolada, no fundo sala, a minha fala
era para responder a chamada.
Quando ficava com dvidas, principalmente nas aulas de matemtica,
me dirigia humildemente mesa da professora para pedir ajuda. Todos faziam
isto, mas sempre quando ela estava me explicando tambm estava
preocupada em chamar ateno dos demais colegas, em colocar ordem na
sala, assim, me explicava rapidamente, eu percebia nitidamente a pouca
vontade em me explicar, no perguntava ao final se eu havia entendido ou no,
eu sempre ficava com dvidas e, obviamente, errava essas questes na prova.
Por fim, nas sries seguintes no lembro de ir mais at a mesa da professora.
Na 7 e 8, lembro que a hora do recreio era o momento mais triste, eu
ficava na sala de aula, era uma maneira de fugir dos apelidos, mas tinha a
educao fsica, dessa eu no podia fugir, era obrigatria, e a meus colegas
lembravam que eu existia, e lembravam tambm dos apelidos. Eu estudava
muito, sempre buscava tirar as melhores notas, em primeiro lugar porque eu
32
gostava de estudar e em segundo, talvez o motivo mais forte, era me destacar
entre os meus colegas, como uma forma de dizer a eles que mesmo tendo um
cabelo bombril eu era inteligente.
Nessa trajetria escolar, buscava me esconder, me disfarar como
podia. Alm das piadas e apelidos em relao aos cabelos e cor, carregava
outro distintivo que anunciava minha condio de pobre as roupas nunca
condizentes com meu tamanho, assim como os calados, isso tambm era
motivo de zombarias. A vergonha de mim mesma me acompanhava sempre,
principalmente em relao aos cabelos, que eu odiava, a ponto de usar um
vidro de mel misturado com leite para lav-los, na esperana de que ficassem
lisos e claros.
Assim, para finalizar sobre as experincias que marcaram meu trajeto no
ensino fundamental, desde as sries iniciais at a 8 srie, contarei uma
experincia que faz parte da trajetria de meu irmo no espao escolar. Um
dia, decidido a se livrar daquele defeito, que a cada circunstncia era
acionado para faz-lo lembrar de quem era e qual o lugar que ele deveria
ocupar na hierarquia das brincadeiras e na sala de aula, resolveu mudar de
cor, acreditando com veemncia no resultado positivo do remdio escolhido
para a mudana.
Foi assim que utilizou um litro de alvejante da marca Q-boa puro para
tornar-se branco, uma vez que a cor da pele era o motivo de seu sofrimento e
tristeza constante. A ideia era passar Q-boa no corpo inteiro, mas resolveu
primeiro testar a eficcia do produto, aplicando dos joelhos aos ps. Ficou,
efetivamente, branco; a pele em alguns instantes se desprendeu de seu corpo,
a dor foi sentida em dobro, a dor fsica, a qual no parecia ser maior que a dor
de descobrir que no poderia ser quem desejava, pelo menos no daquela
forma. Como no dizer de Lispector (1998), o acontecimento [ficou] tatuado em
marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com
horror (p. 18).
1.2 O ENSINO MDIO
Quando fui cursar o ensino mdio, inicialmente tinha tive companhia de
uma prima, mas os pais resolveram ir embora do lugar e eu perdi a nica
33
companheira de estrada. Eu acordava s 04h30min e saa de casa s
05h00min, pois dependia de nibus para chegar at a sede do municpio de
Formigueiro (RS), onde ficava o nico colgio que ofertava o ensino mdio.
Mas, antes, percorria cerca de 6 km para chegar at o ponto de nibus.
Meu pai e meu irmo faziam revezamento durante o ms para me
acompanhar at o ponto de nibus. No inverno, com chuva e frio, pouca roupa,
calados sempre cheios de panos e sacos plsticos, primeiro para ajustar o
tamanho do calado ao tamanho do p e, segundo, porque o plstico ajudava a
impedir o contato direto da gua com os ps, ainda que efetivamente no
funcionasse.
No retorno para casa, chegava por volta das 14h30min; quando estava
chovendo muito, 15h00min ou mais. Como sempre moramos no meio de
muitas rvores, no inverno s 17h00min comea a anoitecer. No tnhamos
energia eltrica e eu no podia ficar gastando muitas velas ou mesmo o
querosene utilizado no lampio. Diante dessa situao, era preciso inventar um
jeito para poder estudar para as provas do dia seguinte. No inverno, sempre
fazamos fogo no cho, forma necessria de aquecimento coletivo.
Assim, para eu poder estudar at mais tarde (mximo 21h00min),
colocava bastante bambu naquele mesmo fogo e, dessa maneira, as chamas
ficavam altas o suficiente para enxergar as letras. No sentia resignao ao
fazer isso, dado que o envolvimento com as leituras, principalmente, nas
disciplinas de Geografia, Histria e Literatura, me conduziam para outros
espaos, e diante disso as dificuldades se tornavam suportveis.
No 2 ano, fui morar na cidade, numa casa de famlia. O acordo era que
eu trabalhasse durante o dia e estudasse no turno da noite. Como no sabia
fazer nada dos servios domsticos ali solicitados, fui sendo ensinada. Assim,
pela necessidade, aprendi a limpar a casa, lavar e passar roupa e cozinhar.
Junto s atividades domsticas, cuidava de uma criana. Cuidar de criana eu
estava acostumada e gostava, pois, sempre preferi cuidar dos meus irmos
menores na lavoura (junto com o pai) do que ficar em casa ajudando a me
nas tarefas da casa. Alm disso, em determinados dias da semana, tinha que
fazer faxina na casa de outra pessoa da mesma famlia. Nessas condies,
estudar se tornou algo mais difcil do que eu havia imaginado. s vezes,
34
vencida pelo cansao, dormia no incio da primeira aula, acordava na metade.
Estudava para provas de madrugada.
Antes do final do ano, voltei para casa. Fiquei o tempo necessrio para
comprar os livros que no tinha conseguido adquirir no 1 ano, pois recebia R$
30,00 reais mensais e o valor de cada livro era em torno de R$ 40,00 reais.
No 3 ano, fiz outra tentativa de morar em casa de famlia. Nessa, o
acordo foi diferente, poderia estudar pela manh e tarde fazia o servio
bsico da casa. Por volta de 15h00mim conclua as tarefas da casa e estava
livre para estudar. Ainda recebia uma remunerao de R$ 120,00 mensais e,
com esse dinheiro, comprei um fogo para minha me. Fiz uma poupana, que
me possibilitou pagar as despesas do vestibular. Ganhei de uma pessoa da
mesma famlia todas as apostilas de um cursinho pr-vestibular, sendo o
estudo nesse material de suma importncia para passar no vestibular da
Universidade Federal de Santa Maria, no curso de Geografia.
No que se refere s relaes raciais nessa etapa escolar, fiz amizades,
que perduram at hoje. Mas procurei desenvolver outra imagem para mim
mesma, uma imagem que se aproximasse das minhas colegas brancas,
quando ouvia piadas e apelidos em relao a pessoas negras, ou dirigidas a
mim mesma, ficava quieta, fingia no ouvir, sofria em silncio. Exceto as
disciplinas de Exatas, nas demais sempre obtinha as notas mais altas, havia o
reconhecimento desse esforo redobrado por parte dos professores/as e o
respeito dos colegas.
1.3 O ENSINO SUPERIOR
Durante a graduao em Geografia Licenciatura, fui sempre a nica
aluna negra da minha turma, era chamada por alguns colegas de capacete,
referncia aos cabelos. Tambm diziam que os negros no so inteligentes,
mas que havia excees e, neste caso, eu representava a exceo.
importante dizer que tambm encontrei colegas maravilhosos/as, que me
ajudaram muito, (i) presenteando-me com roupas e calados para enfrentar os
dias congelados de inverno, (ii) por inmeras vezes, com alimentao, (iii) com
o emprstimo de computador e a boa vontade para me ensinar a utiliz-lo, (iv)
35
bem como nos congressos e sadas de campo fora do RS, nunca permitindo
que eu passasse fome ou frio.
A grade curricular do curso de Geografia era composta de disciplinas
distribudas nos turnos da manh (geralmente disciplinas pr-requisitos) e
tarde. No primeiro semestre, cursei somente as disciplinas do turno da manh,
pois precisava trabalhar em troca de um lugar para morar. A coordenadora do
curso percebeu minha situao e me alertou que daquela forma no
conseguiria concluir o curso no tempo estipulado, ou seja, seria jubilada.
Alguns colegas tambm j haviam me falado sobre a questo do tempo para
concluir o curso.
Naquele momento eu no tinha alternativas. Decidi estudar muito, na
inteno de ser a melhor aluna da turma. Assim fiz, e o resultado veio ainda no
primeiro semestre. Na avaliao final da disciplina de Formao Territorial do
Brasil, toda a turma estava concorrendo a uma bolsa de iniciao cientfica do
CNPq e o critrio para conseguir a referida bolsa adotado pela professora foi o
da maior nota na sua avaliao. Eu consegui a maior nota e ocupei a vaga de
bolsista Pibic do CNPq. Lembro que meus colegas no entendiam como eu
havia passado. Eu, por ora, no sabia o significado e a dimenso do que
estava assumindo.
Na primeira conversa que tive com a professora20 coordenadora do
projeto, ela me perguntou se eu tinha noo do que significava na Universidade
ser bolsista Pibic, e ela mesma responde algo que todo mundo deseja,
todos os teus colegas queriam essa vaga. A partir disso, entendi que ocupava
um lugar de cobia e prestgio. Assim, durante o curso sempre tive bolsas de
pesquisa, tanto do CNPq como bolsa de extenso da prpria Universidade.
Pois bem, no conhecia computador, e o episdio mais marcante em
relao a isto foi quando um dos meus colegas de laboratrio falou que havia
vrus no computador. No dia seguinte, eu fui para o laboratrio usando luvas e
20 No poderia deixar de registrar meu profundo agradecimento s professoras e professor que durante a Graduao foram meus orientadores nas Pesquisas de Iniciao Cientfica. Assim, agradeo professora Dr Ivaine Maria Tonini, com quem aprendi a importncia dos Estudos Culturais, para compreender as relaes de poder, os discursos, os regimes de verdade etc., nos vrios campos sociais. Igualmente professora Dr Andrea Valli Nummer, com quem aprendi muito sobre a necessidade de uma Geografia mais humana, que crie condies para o florescimento de paisagens acolhedoras, de esperana em lugares de extrema excluso social. E ao professor Dr. Hugo Fontana, que me instigou a refletir sobre as questes educacionais pelo prisma da Filosofia.
36
uma mscara cobrindo a boca e o nariz. Meu mundo quilombola era mesmo
outro.
Ao final do curso, decidi que queria fazer Mestrado em Educao, pois
durante todo o curso estive envolvida em pesquisas de cunho geogrfico, mas
voltadas s questes educacionais. Assim, ao olhar para minha trajetria at
onde havia chegado, constru um projeto de pesquisa intitulado Ensino, Escola
e Culturas Negadas, cujo propsito era elaborar um livro didtico sobre a
diversidade cultural/tnica no municpio de Formigueiro/RS. Uma tentativa de
tambm visibilizar nas salas de aula a histria dos Quilombos ou da populao
negra. Tal projeto foi enviado Universidade Federal do Paran-Programa de
Ps-Graduao em Educao, para concorrer a uma vaga no curso de
Mestrado em Educao.
1.4 O MESTRADO EM CURITIBA
Mesmo tendo feito a inscrio e enviado o projeto, ainda tinha dvidas
se realmente iria encarar o desafio de vir para Curitiba, pois, alm da distncia,
conhecia apenas uma amiga, colega da faculdade que estava fazendo
Mestrado em Geografia aqui.
Havia estudado exausto todos os textos indicados pela Linha de
Pesquisa, ento, alguns dias antes decidi que iria concorrer a uma vaga do
Mestrado em Educao. Condies financeiras para alugar ou mesmo dividir
um local para morar eu no possua, isso me preocupava um pouco, mas,
como estava bem adaptada a morar em casa de famlia, nutria a esperana de
conseguir um local onde pudesse trabalhar e em troca morar.
Aps o resultado de aprovao final, comecei a me comunicar com
minha orientadora e logo expliquei minha situao. Contei um pouco da minha
histria. A partir da, ela se empenhou em conseguir um lugar onde pudesse
morar e estudar.
Assim, em maro de 2008, mudei para Curitiba, fui morar na casa de sua
sogra. Ali, pude me dedicar exclusivamente ao curso e concluindo-o meio ano
antes do prazo estipulado. Tinha como me manter financeiramente e ainda
ajudar minha famlia no RS, como sempre fiz (comprei geladeira, providenciei a
instalao de energia eltrica, comprei alguns mveis para casa, como guarda-
37
roupa, pia, armrios etc.). Mantenho vnculos afetivos com toda famlia e,
principalmente, com v Ziza, que me acolheu e me adotou como uma neta.
Inicialmente, utilizava os computadores da sala de estudo do PPGE para
fazer trabalhos e tambm acessar a internet. Logo, minha orientadora percebeu
que eu precisava de um computador em casa para facilitar meu trabalho.
Assim, me emprestou seu laptop e depois me presentou com um notebook,
que utilizo para redigir a presente Tese.
1.5 MESTRADO E A DISCIPLINA O PRECONCEITO E AS PRTICAS ESCOLARES
O trabalho desenvolvido no decorrer dessa disciplina, ministrada pela
professora Dr Tnia Maria Baibich, fez com que eu pensasse seriamente em
assumir uma postura diante de atitudes que explicitamente revelam prticas de
discriminao e o preconceito/racismo em relao s pessoas negras. Por
muito tempo, me mantive em silncio, como uma forma paradoxal de proteo.
Hoje entendo que essa postura foi uma forma de me curvar diante daquilo que
o Outro diz que sou e passei a entender que essa postura que me mantm
alvo das diversas formas de discriminao. Curvar-se ou permanecer em
silncio um jeito de concordar que o meu/nosso lugar enquanto pessoa negra
j foi demarcado.
Assim, comecei a prestar mais ateno no meu crculo de amizades,
cuja composio por pessoas brancas, nos prprios espaos sociais em que
transito (Universidade e Escola) e a perceber que muitas prticas/dizeres
estavam naturalizadas para as pessoas no geral, para meus amigos/as e
naquele momento at mesmo pra mim. So prticas/dizeres ligados a ditos
populares, que se referem s pessoas negras, reforando esteretipos e
inferiorizando-as, por exemplo, negro quando no suja na entrada, suja na
sada; quando algo no executado como o esperado, tinha que ser servio
de negro, entre outros. Com meus amigos/as, passei a problematizar o uso
desses ditos populares, inicialmente rotulada de radical, estava vendo cabelo
em ovo, mas, hoje, alguns deles/as trabalham com as questes do preconceito
em suas aulas e s vezes me solicitam ajuda/orientao.
38
A postura de curvar-se ou permanecer em silncio diante da
inferioridade imputada ocorre muitas vezes porque as vtimas no dispem de
elementos necessrios para defesa. Tais elementos passam pelo entendimento
dos mecanismos sutis que perpetuam o racismo, o preconceito, a
discriminao e conferem a esses fenmenos credenciais de naturalidade.
Nesse sentido, o trabalho desenvolvido ao longo da disciplina me
possibilitou olhar para meu passado tentando entend-lo, medida que
tambm fui interpretando e refletindo sobre minhas prprias atitudes, mas,
principalmente, me forneceu munies necessrias para me posicionar com
firmeza contra os preconceitos/racismos e prticas de injustias.
medida que imergia nas leituras, percebia que no era possvel
continuar sendo a mesma, caso contrrio, no haveria sentido em estudar o
que estava estudando. O posicionamento do outro lado da fronteira era mais
que necessrio, era necessrio lutar com armas que antes no possua e
talvez por isso tenha optado pelo silncio, as vozes do senso comum so
tantas e todas formam um s eco, preciso armas capazes de enfrentar e
combat-las.
Essa minha trajetria, contei da forma como me recordo ter vivido.
Uma viagem de introspeco retroativa, autenticada por uma cartografia
socioafetiva.
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2. TRAJETRIA METODOLGICA: AS TRILHAS DA INVESTIGAO
As trilhas percorridas pela autora para compor essa produo foram
construdas a partir de trs perspectivas: como quilombola, tcnica pedaggica
do NEREA,21 situado no Departamento da Diversidade-DEDI da Secretaria de
Estado de Educao do Paran-SEED,22 e como pesquisadora no Curso de
Doutorado em Educao da UFPR.
Tais perspectivas demarcam os lugares de onde falo. A primeira alude
minha relao umbilical com o tema da investigao, pois, ao olhar para os
fenmenos sociais que marcam a vida de quem negro e quilombola, no
espao escolar, volto-me para um universo de experincias vividas como
criana estudante negra e quilombola. A segunda, de tcnica pedaggica do
NEREA, cujo envolvimento foi estritamente ligado temtica da educao nas
CRQs, durante 41 meses, o que me permitiu vivenciar organicamente como as
reivindicaes das CRQs, no que tange educao escolar, integram a
agenda de polticas pblicas educacionais da SEED; como so criados os
dispositivos institucionais para atender tais reivindicaes, respeitando as
necessidades, interesses e expectativas em relao Escola. E, por fim, a
dimenso de pesquisadora, imbuda das outras duas, buscou tornar concreto o
desejo de interpretar e compreender a elaborao, o desenvolvimento e os
efeitos de uma poltica pblica especfica educao escolar nas CRQs.
21 O NEREA (Ncleo de Educao das Relaes tnico-Raciais e Afrodescendncia) foi oficialmente criado no ms de fevereiro de 2009, vinculado ao DEDI. Cumpre destacar que, anteriormente sua criao, a SEED constituiu em 2005 uma comisso paritria com membros desta Secretaria e da APP Sindicato do Paran com a tarefa de orientar a conduo dos trabalhos para implementao da Lei Federal 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do Ensino da Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana nos currculos escolares. Em 2007, com a instaurao oficial do Departamento da Diversidade, a SEED constituiu uma equipe tcnica situada na Coordenao de Desafios Educacionais Contemporneos, a qual ficou responsvel pela implantao da Lei 10.639/03. Em 2008, a Coordenao de Desafios Educacionais Contemporneos passou a integrar a Diretoria de Polticas e Programas Educacionais. Em 2009, a responsabilidade pela execuo dessa ao migrou para o DEDI atravs do NEREA. Nessa nova organizao, o NEREA ficou responsvel pelo planejamento e desenvolvimento das aes orientadas para implementao da Lei 10.639/2003 e tambm pela coordenao e pelo planejamento da poltica educacional voltada s CRQs do Paran. 22 Atuou como tcnica pedaggica no Departamento da Diversidade-DEDI, no Ncleo de Educao das Relaes tnico-Raciais e Afrodescendncia-NEREA, da Secretaria de Estado de Educao do Paran SEED, no perodo de 2009 a 2011, a convite da professora Dr Yvelise Freitas de Souza-Arco-Verde, na poca Secretria de Estado da Educao do Paran.
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O amplo leque de informaes coletadas durante a elaborao desta
Tese , em parte, original do percurso da pesquisadora na qualidade de
membro do NEREA. Como no dizer de Amaral (2010, p. 31), sujeito
ontolgico, [...] confundido em alguns momentos com o sujeito gnosiolgico.
Assim, nessa dupla funo de sujeito que faz e sujeito que sistematiza,
organiza, analisa e reflete acerca da realidade na qual est envolvido, entrou
permanentemente em jogo o difcil exerccio de afastar-se, estranhar-se e,
principalmente, de indagar-se e refletir continuamente.
Desta forma, fez-se necessrio assumir um posicionamento de quem,
para alm das funes de natureza executivas desempenhadas, tambm
buscava compreender e refletir, desde as entranhas do espao institucional, os
mecanismos e estratgias de articulao e organizao das iniciativas e
proposies do Estado para compor uma poltica pblica estadual voltada para
a Educao Escolar Quilombola. Portanto, no possvel, nem inteno aqui,
omitir a relao direta da pesquisadora com o tema investigado e com os
sujeitos da pesquisa, nem tampouco ignorar o fato de ter contribudo na
formulao e no acompanhamento de aes dirigidas Educao Escolar nas
CRQs.
Nessa trajetria institucional, me permiti uma autorreflexo crtica de
minhas prprias aes, dado que penso e escrevo a partir de experincias
duplamente vividas. Muitas vezes, inclusive na escrita reflexiva, me senti no
interior de um refluxo ocenico, cuja turbulncia gerou em mim um
desequilbrio constante. Contudo, tal como os movimentos de toda tempestade,
aqui tambm houve posterior acomodao.
Assim, considero importante apresentar de maneira sucinta os eventos,
visitas tcnicas, reunies, cursos e produo de material terico, tarefas
experenciadas durante minha atuao como tcnica pedaggica do
NEREA/DEDI/SEED, considerando que os dados da pesquisa so, em parte,
originados por meio desse percurso. A seguir, refiro alguns desses momentos:
Organizao de eventos l Simpsio de Histria e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Quilombola,
Secretaria de Estado da Educao/PR, 2009.
41
l Curso de Formao Continuada de Professores que atuam em Comunidades Tradicionais, Secretaria de Estado da Educao/PR.
Realizado no perodo de 29/06 a 02/07/09 no Colgio Estadual
Quilombola Diogo Ramos, situado na Comunidade Quilombola Joo
Sur, no municpio de Adrianpolis.
ll Curso de Formao de Professores que atendem alunos quilombolas, Secretaria de Estado da Educao/PR. Realizado no perodo de 15/09 a
18/09/09 na Escola Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira, situada
na Comunidade Remanescente de Quilombo Adelaide Maria Trindade
Batista no municpio de Palmas.
I Seminrio Panorama Quilombola: Educao Quilombola e Polticas Pblicas Educacionais. Realizado no perodo de 11/05 a 12/05 de 2010,
em Curitiba.
Coordenao de eventos
l Encontro de Implementao da Proposta Pedaggica Quilombola do Paran, Secretaria de Estado da Educao/PR. Realizado no perodo de
24/06 a 25/06/2010 no Colgio Estadual Diogo Ramos.
ll Encontro de Implementao da Proposta Pedaggica Quilombola no Colgio Estadual Quilombola Diogo Ramos/Paran, Secretaria de
Estado da Educao/PR. Realizado no perodo de 29/11/2010 a
03/12/2010, no Centro Educacional de Capacitao Faxinal do Cu, no
municpio de Pinho.
I Encontro de Implementao da Proposta Pedaggica Quilombola do Paran. Realizado em Faxinal do Cu de 29/11/2010 a 03/12/2010.
I Encontro Estadual da Federao das Comunidades Quilombolas do Paran, 2011. Realizado em Curitiba.
Livros publicados/organizados e outros
Educao Escolar Quilombola: piles, peneiras e conhecimento escolar. Curitiba: Secretaria de Estado da Educao/PR, 2010.
42
Os sujeitos da Diversidade. Secretaria de Estado da Educao/PR, 2010.
No entendimento de BAIBICH (2012), minha orientadora, me constituo
como uma pesquisadora duplamente identificada nesta pesquisa, dado que
possuo a mesma arquitetura identitria do grupo que estudei e participei como