PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL EDITADA PELO
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)Diretoria Nacional
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RESPONSÁVEL PELA EDIÇÃO
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REVISÃO DE TEXTO
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FOTOS DA CAPA
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CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
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IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Armazém das Letras Gráfica e Editora
TIRAGEM
3.000 exemplares
Apoio:
Indexação:
Literatura Latino-Americana e do Caribe
em Ciências da Saúde (LILACS)
A Revista Saúde em Debate é associada à
Associação Brasileira de Editores Científicos
Rio de Janeiro v.25 n.58 maio/ago. 2001
ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
CONCEITUALMENTE A CAPA EXPRESSA A RICA PRODUÇÃO POLÍTICA,ARTÍSTICA E CULTURAL DO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA
FONTE – LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM SAÚDE MENTAL (LAPS/FIOCRUZ)
2 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999
SUMÁRIO
EDITORIAL ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 3
ARTIGOS ORIGINAIS
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergenteDeinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigmJacileide Guimarães, Soraya Maria de Medeiros, Toyoko Saeki &Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 5
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do Modo PsicossocialThe National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial wayAbílio da Costa-Rosa,Cristina Amélia Luzio & Silvio Yasui ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 12
A constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de doisprojetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no BrasilThe forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer projects in thePsychiatric Reform in BrazilPaulo Duarte de Carvalho Amarante & Eduardo Henrique Guimarães Torre ○ ○ ○ ○ ○ ○ 26
Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximaçõesteóricas e questões atuaisFrom health assesment to mental Health Assesment: birth, theoretical approaches andcurrent issuesPatty Fidelis de Almeida & Sarah Escorel
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 35
Ambiente construído e comportamento espacial na instituição psiquiátrica: questõeséticas em Observação ParticipanteBuilt environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues inParticipative ObservationMirian de Carvalho
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 48
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidadeSheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the cityRegina Benevides de Barros & Silvia Josephson
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 57
O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da FamíliaThe psycopharmic user in a Family Health ProgramMaria Célia F. Danese & Antonia Regina F. Furegato
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 70
A construção da diferença na assistência em Saúde Mental no município: aexperiência de São Lourenço do Sul – RSThe construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the experience ofSão Lourenço do Sul – RSChristine Wetzel & Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 77
Qualidade de vida de pessoas egressas de instituições psiquiátricas:o caso de Ilhéus – BAQuality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, caseRozemere Cardoso de Souza & Maria Cecília Morais Scatena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 88
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substutivos deSaúde MentalClinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Health substitutive servicesRosana Onocko Campos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 98
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 3
EDITORIAL
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 3, maio./ago. 2001 3
Este número da Saúde em Debate é dedicado à Saúde
Mental e será lançado por ocasião da III Conferên-
cia Nacional de Saúde Mental, em Brasília, no período
entre 11 e 15 de dezembro de 2001.
Desde os primórdios da Reforma Sanitária, no iní-
cio do CEBES que completa 25 anos, o campo da Saúde
Mental têm sido vanguarda e integrante do movimento
sanitário, resguardando suas especificidades que in-
tegram o Movimento da Reforma Psiquiátrica no Bra-
sil e, ao mesmo tempo, inserindo objetos, teorias,
temas, atores e arenas no movimento mais geral que
luta pela transformação das condições de saúde da
população brasileira.
Desnecessário enfatizar a importância da III Confe-
rência Nacional de Saúde Mental, desejada há mais de
uma década e que se realiza num contexto nacional e
internacional auspicioso. Há cerca de dez anos vêm
sendo implantados serviços substitutivos e novas prá-
ticas assistenciais e este é um bom momento para ava-
liar avanços e impasses. Depois de muitos anos tra-
mitando no congresso, e de muita luta do movimento
social por uma sociedade sem manicômios, foi apro-
vada a Lei da Reforma Psiquiátrica abrindo possibili-
dades de inovação e de regulação. A OMS declarou 2001
o ano da Saúde Mental com a proposta “cuidar sim,
excluir não”. Mas, estas boas novas inserem-se no velho
e conhecido cenário de pobreza e extremas desigual-
dades sociais. Portanto, há que se pensar nas necessi-
dades específicas de proteção social dos portadores de
sofrimento psíquico no interior do contexto de recons-
trução de um efetivo sistema de proteção social.
Este número é a contribuição do CEBES aos importan-
tes debates da III Conferência Nacional de Saúde Men-
tal. Desinstitucionalização, novas práticas, práticas clí-
nicas nos serviços substitutivos, avaliação, relações dos
lares abrigados com a cidade, uso de psicofármacos no
PSF, experiências municipais de assistência em saúde
mental e qualidade de vida dos egressos de instituições
psiquiátricas são os temas abordados além do artigo
que recupera as conferências anteriores na área de Saú-
de Mental que nos lembra e relembra que a Reforma
Sanitária em geral, e a Reforma Psiquiátrica em parti-
cular, são processos, nem contínuos nem lineares e que
dependem da participação de todos os segmentos para
alcançar efetivamente os objetivos desejados: inclusão,
solidariedade e cidadania emancipada.
A Diretoria Nacional
4 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999
QUEM SOMOS
Desde a sua criação, em 1976, o CEBES tem como centro de seu projeto a
luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 25 anos, como
centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve
assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta,
seja em nível dos movimentos sociais, das instituições ou do parlamento.
Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado
em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar
sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas
políticas e práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e
a formulação teórica sobre as questões de saúde; e em contribuir para a
consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade
mais justa.
A produção editorial do CEBES tem sido fruto de um trabalho coletivo. Estamos
certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação.
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 5
ARTIGOS ORIGINAIS
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre oparadigma emergente1
Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm
Jacileide Guimarães2
Soraya Maria de Medeiros3
Toyoko Saeki4
Maria Cecília Puntel de Almeida5
1 Trabalho elaborado a partir da disciplina
Seminários de Saúde Mental do Mestrado
de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde
Mental da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo – EERP/ USP, 1999.
2 Mestranda em Enfermagem Psiquiátrica
e Saúde Mental na Escola de Enfermagem
de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo – EERP/USP.
3 Professora Doutora do Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte.
e-mail: [email protected]
4 Professora Doutora do Departamento de
Enfermagem Psiquiátrica e Ciências
Humanas da EERP/USP.
e-mail: [email protected]
5 Professora Doutora do Departamento
de Materno Infantil e Saúde Pública da
EERP/USP.
e-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar a pós-modernidade
epistemológica, social e política do saber/fazer psiquiátrico no Brasil. Para
tanto partimos dos pressupostos do Paradigma Emergente no âmbito
epistemológico e dos Novos Movimentos Sociais (NMS) no âmbito social e
político ambos segundo Santos (1997a, 1998), acrescido das experiências
práticas da assistência em saúde mental no Brasil nas duas últimas décadas
(1979-1999). Verificamos a congruência existente entre os movimentos de
mudança da atenção psiquiátrica e as prerrogativas do paradigma
emergente, podendo-se destacar a complexidade e complementariedade
exigida por esse paradigma e defendida pelas experiências brasileiras de
desinstitucionalização de orientação basagliana.
PALAVRAS-CHAVE: desinstitucionalização; saúde mental; paradigma emergente.
ABSTRACT
This essay aims to analyze the epistemological, social and political post-
modernity of psychiatric knowledge/performance in Brazil. With that objective,
we started from the presuppositions of the Emergent Paradigm in the
epistemological level and of the New Social Movements in the social level,
both according to Santos (1997a, 1998), in addition to practical experience
on mental health care in Brazil in the past two decades (1979-1999). We
observed the congruence that exists between both movements related to
psychiatric health care change and the prerogatives of the emergent
paradigm. The complexity and complementarity required by such paradigm,
which is defended by the Brazilian deinstitutionalization experiences based
on the theories of Basaglia, can be highlighted.
KEY WORDS: deinstitutionalization; mental health; emergent paradigm.
GUIMARÃES, J. et al.
6 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como ob-
jetivo analisar a pós-modernida-
de epistemológica, social e políti-
ca do saber/fazer psiquiátrico no
Brasil nas duas últimas décadas
(1979 - 1999).
Santos (1998: 37) define as
transformações epistemológicas no
modo de se fazer/ver ciência ou o
Paradigma Emergente como um
“paradigma de um conhecimento
prudente para uma vida decente”
assim atestando a novidade de que
a ciência comporta, simultaneamen-
te ao aspecto estritamente investi-
gativo, o aspecto social da vida das
pessoas. Com base neste pensamen-
to tecido como um discurso sobre
as ciências e introdução a uma ci-
ência pós-moderna, este autor de-
fende um conjunto de teses que têm
em comum a superação do paradig-
ma dominante1, sobre o que nos in-
teressa citar sucintamente:
1. Todo o conhecimento científico-
natural é científico-social;
2. Todo o conhecimento é local
e total;
3. Todo o conhecimento é autoco-
nhecimento;
4. Todo o conhecimento cientí-
fico visa constituir-se em sen-
so comum.
A primeira tese – Todo o conhe-
cimento científico-natural é cientí-
fico-social – fudamenta-se na su-
peração das dicotomias na não-du-
alidade do conhecimento, abolin-
do-se assim o sentido que continha
interpretações estanques como, por
exemplo, natureza/cultura, natural/
artificial, observador/observado,
saúde/doença, razão/desatino. A
segunda tese – Todo o conhecimen-
to é local e total – visa a um co-
nhecimento interdisciplinar que
una ao que estudamos” (SANTOS,
1998: 53). A quarta tese – Todo o
conhecimento científico visa cons-
tituir-se em senso comum –, por
fim, visa ao diálogo entre o conhe-
cimento científico e o senso comum
enquanto possibilidade qualitativa
de ampliação do fenômeno obser-
vado e em detrimento do autorita-
rismo e dominação de um sobre o
outro, ou seja, do primeiro sobre
o segundo.
Ressalta-se a importância deci-
siva do desvelamento pelo paradig-
ma emergente, da chamada neutra-
lidade científica – preconizada pelo
paradigma dominante – na qual o
observador separado, cindido do
observado atuava sobre este sem
no entanto responsabilizar-se so-
cialmente, enquanto que o obser-
vado por sua vez, possuía um lu-
gar passivo e coisificado no proces-
so de investigação.
No âmbito social e político, San-
tos (1997a) atesta um estado pós-
moderno dos acontecimentos atra-
vés dos denominados Novos Mo-
vimentos Sociais (NMSs), presen-
tes em todo o mundo, principal-
mente nas décadas de 70 e 80, de
forma mais ou menos intensa con-
forme o estágio de desenvolvimen-
to econômico local.
Os NMSs são os movimentos ti-
picamente pós-industriais que de-
1 Dentre vasta bibliografia sobre o paradigma científico dominante, pode-se consultar o próprio Santos (1989, 1998).
perceba a totalidade dos aconteci-
mentos específicos, complexifican-
do-os e assim enriquecendo-os. A
terceira tese - Todo o conhecimen-
to é auto-conhecimento - refere-se
a integração e intencionalidade en-
tre sujeitos e não entre ‘um sujeito
e um objeto’, assim trata-se de “um
conhecimento compreensivo e ín-
timo que não nos separe e antes nos
NO ÂMBITO SOCIAL E POLÍTICO,SANTOS (1997A) ATESTA UM ESTADO
PÓS-MODERNO DOS ACONTECIMENTOS
ATRAVÉS DOS DENOMINADOS NOVOS
MOVIMENTOS SOCIAIS (NMSS)
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 7
nunciam as formas de opressão
cotidianas contidas na violência,
na poluição, no sexismo, no racis-
mo e no produtivismo, dentre ou-
tras formas de exclusão. Para San-
tos (1997a: 258), os NMSs trazem
como “novidade maior tanto uma
crítica da regulação social capita-
lista como uma crítica da emanci-
pação social socialista tal como
foi defendida pelo marxismo”.
Assim denunciando ‘com uma ra-
dicalidade sem precedentes os ex-
cessos de regulação da moderni-
dade’ e contribuindo para a cons-
trução, no dizer deste autor, de
uma equação que comungue si-
multaneamente ‘subjetividade, ci-
dadania e emancipação’.
Segundo Santos (1997a: 257), a
América Latina destaca-se dos de-
mais países periféricos e semiperi-
féricos com relação a atuação dos
NMSs, sendo que aqui estes movi-
mentos são peculiarmente ‘nutridos
por inúmeras energias’ que compi-
lam desde reivindicações pós-ma-
terialistas a lutas por condições bá-
sicas de sobrevivência, diferente-
mente do que se passa nos países
centrais onde os movimentos são
‘puros’ ou bem definidos.
Com relação ao Brasil particu-
larmente, tem-se na ‘década de se-
tenta e de oitenta um notável flo-
rescimento de NMSs’ (Santos,
1997a), atente-se para o momento
político de luta pela transição de-
mocrática pós-ditadura que se de-
lineava. Vale situar esse momento
crucial para a transformação da
sociedade brasileira, denominado
por Sader (1990) como ‘entre o ve-
lho e o novo’. Segundo Sader (1990:
48), o ponto de partida da transi-
ção é claro: uma ditadura militar
permeada por uma ideologia de se-
gurança nacional favorável ao
grande capital monopolista e finan-
ceiro nacional e internacional. Já o
ponto de chegada é menos claro:
um regime híbrido, em que deixaram
de existir as leis de exceção, em que
pacote de medidas que revogava dis-
posições que limitavam os direitos
políticos estabelecidos pela ditadu-
ra militar (Sader, 1990: 48).
Mas, à revelia da menor clareza
do ponto de chegada da transição,
não se pode negar o surgimento de
algo novo que se podia dizer germe
da redemocratização do país:
A chamada Nova República foi
sendo instaurada assim como uma
mistura híbrida entre o velho e o
novo. Inegavelmente se trata de um
novo regime. A forma de domina-
ção política foi modificada, subs-
tituindo as instâncias militares
por formas parlamentares: a nova
Constituição fortaleceu o papel do
Congresso, as liberdades individu-
ais foram ampliadas, o direito de
organização política foi explicita-
do, introduziram-se direitos da ci-
dadania que antes não constavam
de nosso sistema jurídico, tem vi-
gência, ao menos teoricamente, um
Estado de direito, baseado em leis
votadas por um Parlamento eleito
pelo voto universal e direto (Sader,
1990: 54).
Assim finalizamos a década de
70 e adentramos a década de 80 com
um Brasil efervescente, manifesta-
das as contradições e reduzido o
poder ditatorial das elites dirigen-
tes. A sociedade civil despertava de
um pesadelo que durara vinte e um
anos e havia muito o que ser ques-
tionado. Emergem denúncias e in-
dignação acerca da questão psiqui-
átrica no âmbito da saúde.
os partidos políticos, as associações
civis e a grande imprensa não en-
contram limitações do ponto de vis-
ta legal. Os próprios militares se re-
tiraram do centro da cena política
para um lugar mais discreto. Dei-
xou de haver presos políticos, os ór-
gãos de segurança tiveram seu pa-
pel diminuído, foram restabelecidos
os mecanismos eleitorais na sua ple-
nitude. Antes mesmo da nova Cons-
tituição, o Congresso já havia remo-
vido o que considerou como ‘entu-
lhos autoritários’, aprovando um
PARA SANTOS (1997A: 258),OS NMSS TRAZEM COMO “NOVIDADE
MAIOR TANTO UMA CRÍTICA DA REGULAÇÃO
SOCIAL CAPITALISTA COMO UMA CRÍTICA DA
EMANCIPAÇÃO SOCIAL SOCIALISTA TAL
COMO FOI DEFENDIDA PELO MARXISMO”
GUIMARÃES, J. et al.
8 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001
O PROCESSO SAÚDE/DOENÇA MENTAL:A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO SOB O SIGNO
DO PARADIGMA EMERGENTE
Feita esta breve localização teó-
rico-metodológica à luz do Paradig-
ma Emergente e dos Novos Movi-
mentos Sociais conforme Santos
(1997a, 1998), retomamos o recor-
te das duas últimas décadas no Bra-
sil no âmbito das políticas e práti-
cas em saúde mental.
A saúde mental brasileira nas
duas últimas décadas, mais precisa-
mente de 1979 a 1999, passou por
transformações através de avanços
que constituíram e constituem o pro-
cesso contemporâneo desta prática.
Em 1979, o Brasil recebe a visi-
ta do psiquiatra italiano Franco Ba-
saglia, cujo discurso sobre a desins-
titucionalização do aparato psiqui-
átrico repercute no meio social e
político que passa por contestações
e desejos de mudança em uma soci-
edade que vivencia um processo de
abertura após anos de regime mili-
tar ditatorial. Surge o Movimento
dos Trabalhadores em Saúde Men-
tal – então um NMS – que fortaleci-
do pela sociedade civil organizada
e pelas primeiras experiências de
desinstitucionalização, destacada-
mente a experiência santista, cul-
mina em 1989 com o movimento de
Reforma Psiquiátrica, a criação do
Projeto de Lei 3657 de autoria do
deputado federal Paulo Delgado (PT-
MG) – que dispõe sobre a supera-
ção do manicômio e a construção
de assistência substitutiva – e com
a Luta Antimanicomial. Em janeiro
de 1999, o referido projeto foi apro-
vado no Senado, devendo, para tor-
nar-se lei, ser aprovado em nova
votação na Câmara. Em abril deste
ano (2001) foi aprovado e sancio-
nado pelo Presidente da República,
tornando-se lei. Temos passado
pouco mais de duas décadas (1979
– 1999), marcadas por indignação,
contestação, lutas e conquistas sig-
nificativas de um processo que se
Amarante (1999: 48) destaca a
dualidade do processo epistêmico
científico dominante onde
a natureza de um conceito ou teoria
científica significa uma determinada
forma pela qual o homem se relacio-
na com a natureza. A ciência moder-
na, de base predominantemente po-
sitivista, vem exercitando um proces-
so de objetivação da natureza, em que
a relação que se estabelece é entre
sujeitos epistêmicos, de um lado, e
de coisas e objetos de outro.
Esse autor ressalta o pensamen-
to de Franco Basaglia, que diz que é
preciso pôr a doença, e não o homem,
entre parênteses, assim invertendo
a tradição psiquiátrica e cientifica-
mente moderna de objetivação do
sujeito. Com tal inversão, se estabe-
lece uma ruptura operada pela Luta
Antimanicomial e pela Reforma Psi-
quiátrica brasileira, de orientação
basagliana, com o método da ciên-
cia moderna. No dizer de Amarante
(1999: 48), podemos conferir:
Neste sentido, o que vimos deno-
minando como Luta Antimanicomial,
ou como Reforma Psiquiátrica, tem
como princípio básico uma ruptura
com essa tradição científica [a ciên-
cia moderna ou paradigma dominan-
te]. Em primeiro lugar, por romper com
o processo de objetivação da loucura
e do louco (inscrevendo a questão ho-
mem-natureza ou a questão do nor-
mal-patológico em termos éticos, isto
é, de relação e não de objetivação). Em
segundo lugar, por romper com o pro-
cesso de patologização dos comporta-
inspira em um conhecimento que
pressupõe o diálogo como instru-
mento da contratualidade estabe-
lecida nos inter-relacionamentos,
sendo assim, um processo delibe-
radamente contra a opressão, onde
é seguro afirmar a presença decisi-
va dos pressupostos deste estudo
– ou seja, do Paradigma Emergen-
te e da atuação dos Novos Movi-
mentos Sociais segundo Santos
(1997a, 1998) – no âmbito da saú-
de mental brasileira.
A SAÚDE MENTAL BRASILEIRA NAS DUAS
ÚLTIMAS DÉCADAS, MAIS PRECISAMENTE
DE 1979 A 1999, PASSOU POR
TRANSFORMAÇÕES ATRAVÉS DE AVANÇOS
QUE CONSTITUÍRAM E CONSTITUEM OPROCESSO CONTEMPORÂNEO DESTA PRÁTICA
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 9
mentos humanos, com base em um
pressusposto teleológico ou ontológi-
co de normalidade. Daí advém o prin-
cípio de colocar a doença mental en-
tre parênteses, como forma de inver-
ter a tradição psiquiátrica, que é a de
colocar o homem entre parênteses para
se ocupar da doença, como ressaltou
Basaglia (Amarante, 1999: 48).
E relembrando as quatro teses de
Santos (1998), vejamos o que ain-
da nos diz Amarante (1999: 49) so-
bre a démarche de colocarmos a
doença entre parênteses:
Colocar um ‘fenômeno’ entre pa-
rênteses representa uma importante
demarcação epistemológica no âmbi-
to da tradição do pensamento filosó-
fico existencial: consiste na idéia de
que o ‘fenômeno’ não existe em si,
mas é construído pelo observador, é
um constructo da ciência, e só existe
enquanto inter-relação com o obser-
vador. E, portanto, se o observador,
sujeito do conhecimento, constrói o
‘fenômeno’, este é parte do primeiro,
é parte de sua cultura e de sua sub-
jetividade (Amarante, 1999: 49).
Daí a complexidade e a comple-
mentariedade da mudança em saú-
de mental acentuada por Amaran-
te (1999: 50), em pelo menos qua-
tro campos: a) o teórico-conceitu-
al; b) o técnico-assistencial; c) o
jurídico-político e d) o sócio-cultu-
ral. Ou seja, trata-se de uma inter-
relação de reconstrução de concei-
tos; de espaços substitutivos de
sociabilidade de possibilidades plu-
rais e singulares concretas para
sujeitos concretos; de direito ao tra-
balho, à família, aos amigos, ao
cotidiano da vida social e coletiva;
de solidariedade e inclusão de su-
jeitos em desvantagem social.
Assim o processo de desinstitu-
cionalização da psiquiatria brasilei-
ra, enquanto conhecimento e práti-
ca centrados no paradigma emer-
gente, inscreve-se na contra-mão do
(1997b: 117), as “imagens desesta-
bilizadoras” são os veículos, no tem-
po presente, portadores das “inter-
rogações poderosas” – “tomadas de
posições apaixonadas, capazes de
sentidos inesgotáveis”. As imagens,
potencializam as interrogações ao
flagrarem o fato de que “tudo de-
pende de nós e tudo podia ser dife-
rente e melhor”.
PARA UM CONCEITO EMERGENTEDE SAÚDE MENTAL
Para um conceito de saúde men-
tal assentado no paradigma emer-
gente é seguro indicar a necessida-
de fundamental de se conhecer a
historicidade da chamada psiquia-
tria moderna, resguardando as suas
conquistas e superando os limites
por ela determinados, atendo-se no
dizer de Santos ao “paradigma de
um conhecimento prudente para
uma vida decente”. Aqui faz-se
oportuno reiterarmos a necessida-
de de uma vigilância constante con-
tra o atavismo manicomial real ou
travestido na psiquiatrização do
cotidiano ou no institucionalismo
sutil, sobre o qual Amarante (1999:
49) ressalta a importância de estar-
mos atentos e munidos com estra-
tégias de enfrentamento capazes de
identificar e propugnar “um certo
olhar que classifica desclassifican-
2 Sobre esta questão confira por exemplo: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.), 1999. Fim de século: aindamanicômios? São Paulo: IPUSP.
projeto científico, político e econô-
mico dominante: o neoliberalismo2.
Uma novidade fruto da concepção
epistemológica que “se assenta na
idéia de que não há só uma forma
de conhecimento, mas várias, e de
que é preciso optar pela que favore-
ce a criação de imagens desestabi-
lizadoras e a atitude de inconformis-
mo perante elas”. Para Santos
“...NÃO HÁ SÓ UMA FORMA DE
CONHECIMENTO, MAS VÁRIAS,E DE QUE É PRECISO OPTAR PELA QUE
FAVORECE A CRIAÇÃO DE IMAGENS
DESESTABILIZADORAS E A ATITUDE DE
INCONFORMISMO PERANTE ELAS”
GUIMARÃES, J. et al.
10 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001
do, que inclui excluindo, que nomeia
desmerecendo, que vê sem olhar”.
Não seria fácil a luta e manu-
tenção de um tal paradigma emer-
gente. No entanto, a saúde mental
brasileira, nas duas últimas déca-
das, tem demonstrado que é possí-
vel. Hoje, embora o projeto neolibe-
ral seja dominante e pululem trans-
tornos/sofrimentos mentais e o gas-
to público com internações psiquiá-
tricas – que conforme dados do Mi-
nistério da Saúde em apenas seis
anos aumentou de 224 milhões de
dólares em 1991 para aproximada-
mente 370 milhões de dólares em
1996 (Ministério da Saúde apud
Daúd Júnior, 1999: 65-6) – vemos a
redução palpável do hospitalocen-
trismo psiquiátrico e a implemen-
tação de serviços substitutivos em
26 dos 27 Estados do Brasil (Alves,
1999). Serviços substitutivos, ou
seja, serviços que, mais do que al-
ternativas, preconizam a substitui-
ção do modelo manicomial, notoria-
mente iatrogênico. Serviços substi-
tutivos pautados numa nova cidada-
nia e numa nova ética, que superem
a cidadania social e a ética política
da responsabilidade liberal voltada
apenas para a reciprocidade entre
direitos e deveres, buscando uma ci-
dadania que, somada à subjetivida-
de emancipatória, seja nova e esteja
atenta às novas formas de exclusão
social (Santos, 1997a).
Apontamos como possibilidade
de ampliação das estratégias de
enfrentamento em prol desta nova
cidadania, as ‘imagens desestabili-
zadoras’ e as ‘interrogações pode-
rosas’ de que fala Santos (1997b:
117-8), que, além de comprometi-
das com a transformação do real,
lançam um desafio que potencializa
a indignação, o inconformismo e a
ação qualitativamente emancipató-
ria. As ‘interrogações poderosas’
são as que nos fazem refletir sobre
realidade que poderia ser melhor.
Imagens desestabilizadoras não nos
falta no âmbito da saúde mental
brasileira e as interrogações pode-
rosas, felizmente, estão em nosso
meio, pelo menos, há duas décadas.
De tais imagens e interrogações nas-
ce o vértice do tripé: a realização de
uma nova prática.
Retomando as teses de Santos
(1998: 37-58) sobre o paradigma
emergente, podemos inferir que:
• todo o conhecimento científico
transmitido nos órgãos forma-
dores, reproduzido e (re)criado
nas instituições e entidades que
atuam com o processo saúde/
doença mental, é essencialmen-
te um conhecimento científico-
social e como tal, não é neutro,
resulta de escolhas cotidianas
e prática política;
• sendo o conhecimento local e to-
tal, quando apreendemos e so-
cializamos através das experi-
ências e vivências de trabalhos
em saúde mental, estamos
(re)criando esse conhecimento,
e contribuindo para a mudança
ou a reprodução do “discurso
competente”3 sobre a saúde, a
doença e o doente mental;
• que todo o conhecimento técni-
co-científico e ético-político so-
bre saúde mental, com o qual
atuamos, na cotidianidade de
3 Confira CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 4 ed. São Paulo: Cortez.
o motivo, a causa dos acontecimen-
tos e trazem em si o traço de serem
mais relevantes do que as próprias
respostas – “como interrogar de
modo que a interrogação seja mais
partilhada do que as respostas que
lhe forem dadas?” – As ‘imagens
desestabilizadoras’ são as que su-
primem do presente a característica
de inculpável, trazendo à tona uma
SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS PAUTADOS NUMA
NOVA CIDADANIA E NUMA NOVA ÉTICA, QUE
SUPEREM A CIDADANIA SOCIAL E A ÉTICA
POLÍTICA DA RESPONSABILIDADE LIBERAL
VOLTADA APENAS PARA A RECIPROCIDADE
ENTRE DIREITOS E DEVERES
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 11
nossa prática no âmbito das ins-
tituições de ensino, nos servi-
ços de saúde e movimentos so-
ciais, constituem-se como par-
te do autoconhecimento de nos-
sas subjetividades e das respec-
tivas interlocuções entre socie-
dade e indivíduo; entre a vida no
âmbito público e no privado; en-
tre os sujeitos sociais e estrutu-
ras de micro e macro poder polí-
tico. Dessa forma, podemos in-
tervir nesse processo, na pers-
pectiva de melhorá-lo, a partir de
nossas contribuições cotidianas
individuais e coletivas;
• considerando que todo o conhe-
cimento científico visa consti-
tuir-se em senso comum, a pers-
pectiva de mudança do paradig-
ma emergente na saúde mental,
caminha no sentido da pro-
posta de uma visão do ser
doente mental como sujeito,
como cidadão, respeitado em
sua alteridade, abandonando a
visão do doente como ‘um ser
perigoso’, anormal, excluído. En-
fim, contribuindo para a gera-
ção de um imaginário coletivo
onde o ‘trem dos doidos de Bar-
bacena’, o ‘beribéri do São João
de Deus’, a ‘imensidão lotada do
Juquery’, e tantos outros emble-
mas/realidades similares cruas
ou maquiadas que conhecemos
na assistência ao sofrimento psí-
quico, não sejam mais toleradas
na sociedade brasileira.
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Angelus Novus: para além da
equação moderna entre raízes e
opções. NOVOS ESTUDOS –
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blicacão quadrimestral do Centro
Brasileiro de Análises e Planeja-
mento (CEBRAP).
SANTOS, B. de S., 1998. Um discurso
sobre as ciências. 10 ed. Porto:
Afrontamento, 58p.
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
12 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas doModo Psicossocial
The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way
Abílio da Costa-Rosa1
Cristina Amélia Luzio2
Silvio Yasui3
1 Professor assistente-doutor do
Departamento de Psicologia Clínica da
Universidade Estadual Paulista, campus
Assis, doutor em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo; psicanalista e
analista institucional.
e-mail: [email protected]
2 Professora assistente do Departamento de
Psicologia Clínica da Universidade
Estadual Paulista, campus Assis,
doutoranda em Saúde Coletiva na
Universidade de Campinas.
e-mail: [email protected]
3 Professor assistente do Departamento de
Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da
Universidade Paulista, campus Assis,
doutorando em Psicologia Social na
Universidade de São Paulo.
e-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo pretende analisar as proposições básicas e os marcos
conceituais das duas conferências nacionais de saúde mental ocorridas até
o momento, à luz dos parâmetros do Modo Psicossocial construídos por
Costa-Rosa. Pretende-se, também, indicar a sua exeqüibilidade nos
dispositivos construídos pelas práticas de Atenção Psicossocial, que têm
proposto superar a lógica manicomial, observar os avanços e retrocessos do
processo de estratégia de hegemonia na saúde mental. Finaliza apresentando
alguns pontos para uma proposta de agenda de discussão.
PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; políticas públicas; conferências nacionais
de saúde mental.
ABSTRACT
The present article intends to analyze the basic propositions and the
conceptual marks of the two Mental Health National Conferences that have
occurred up until now, under the light of the Psychosocial Way parameters
built by Costa-Rosa. It is intended, also, to indicate its feasibility in devices
built by Psychosocial Attention's practices, that intend to overcome the
manicomial logic, to observe the progresses and setbacks of the hegemony
strategy process in mental health. It concludes presenting a few points for a
proposed discussion.
KEY WORDS: psychosocial attention; public politics; national conferences of
mental health.
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 13
INTRODUÇÃO
Neste artigo retomamos os ‘mar-
cos conceituais’ e as proposições
básicas das duas conferências na-
cionais de saúde mental ocorridas
até o momento, a fim de efetuar-
mos uma análise à luz dos parâ-
metros do Modo Psicossocial (Cos-
ta-Rosa, 2000:141-168). Pretende-
mos, ao mesmo tempo, indicar a
sua exeqüibilidade nos dispositivos
construídos pelas práticas de Aten-
ção Psicossocial que têm proposto
superar a lógica manicomial.
PRIMEIRA CONFERÊNCIA NACIONALDE SAÚDE MENTAL (CNSM)
Proposições gerais: concepção
de saúde, participação popular, ci-
dadania e interesses dos usuários.
Em junho de 1987, como des-
dobramento da histórica 8a Confe-
rência Nacional de Saúde de 1986,
ocorreu, na cidade do Rio de Janei-
ro, a I Conferência Nacional de Saú-
de Mental (CNSM).
A Conferência foi realizada em um
clima de intensas discussões e o seu
relatório final ficou para a história
do movimento da reforma psiquiátri-
ca, que fez prevalecer suas teses em
praticamente todos os temas.
No tema I – Economia, Socieda-
de e Estado: impactos sobre a saú-
de e doença mental, o relatório ana-
lisa o modelo econômico altamen-
te concentrador brasileiro, apontan-
do para a necessidade de se ampli-
ar o conceito de saúde, consideran-
do em seus determinantes as con-
dições materiais de vida. Destaca-
mos o seguinte trecho:
Situando a saúde mental no
bojo da luta de classes, podemos
afirmar que seu papel tem consis-
tido na classificação e exclusão dos
‘incapacitados’ para a produção
(...) É urgente pois o reconhecimen-
to da função de dominação dos tra-
balhadores de saúde mental e a sua
Único de Saúde, com garantia da
participação popular. No plano as-
sistencial, aponta para os mesmos
princípios já consagrados, tais
como reversão da tendência hospi-
talocêntrica, com prioridade para o
sistema extra-hospitalar.
Por fim, no tema III – Cidada-
nia e Doença mental: direitos, de-
veres e legislação, o relatório rea-
firma, também, teses do Movimen-
to Sanitário, sugerindo inclusões
no texto constitucional no que se
refere ao direito à saúde e propon-
do reformulações da legislação or-
dinária que trata especificamente
da saúde mental, ou seja: Código
Civil; Código Penal e legislação sa-
nitária; propõe, ainda, modifica-
ções na legislação trabalhista,
considerando a interface trabalho/
saúde mental.
O texto do relatório demonstra
uma estreita vinculação entre o
Movimento Sanitário e o Movi-
mento da Reforma Psiquiátrica.
Ambos tratam a saúde como uma
questão revolucionária, no eixo da
luta pela transformação da socie-
dade. Aponta, especificamente,
aos trabalhadores de saúde men-
tal, a necessária revisão de seu
papel de agentes de exclusão e de
dominação, para reorientá-lo na
direção de uma identidade com os
interesses da classe trabalhadora.
Estão presentes nesse documento
oficial, não apenas propostas téc-
nicas, mas argumentos e proposi-
ções que engajam o processo de
revisão crítica, redefinindo seu pa-
pel, reorientando a sua prática e
configurando a sua identidade ao
lado das classes trabalhadoras.
(BRASIL/MS, 1992:15)
No tema II – Reforma Sanitária
e reorganização da assistência à
saúde mental, o relatório reafirma
as teses do Movimento Sanitário,
introduzindo a especificidade da
saúde mental no contexto de suas
diretrizes e princípios, apontando
para a constituição de um Sistema
EM JUNHO DE 1987, COMO
DESDOBRAMENTO DA HISTÓRICA
8A CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE
DE 1986, OCORREU, NA CIDADE DO
RIO DE JANEIRO, A I CONFERÊNCIA
NACIONAL DE SAÚDE MENTAL (CNSM)
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
14 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
transformação de um setor espe-
cifico da saúde, a saúde mental,
em uma luta que transcende essa
especificidade, vinculando-a à
luta pela transformação da socie-
dade. Mas foi apenas mais um do-
cumento oficial, talvez o primeiro
que colocou a questão da saúde
mental nessa perspectiva da luta
entre os interesses de classes.
O Modo Psicossocial e a I ConferênciaNacional de Saúde Mental
Costa-Rosa (2000:151-164),
conceitua o Modo Psicossocial de
acordo com quatro parâmetros fun-
damentais, que podemos definir, su-
cintamente, nos seguintes termos:
• em relação à concepção do ‘ob-
jeto’ e dos meios de trabalho
preconiza a implicação subje-
tiva do usuário, o que pressu-
põe a superação do modo de
relação sujeito-objeto caracte-
rístico do modelo médico e das
disciplinas especializadas que
ainda se pautam pelas ciênci-
as positivas. Preconiza-se, ao
mesmo tempo, a horizontali-
zação das relações interprofis-
sionais como condição básica
para a horizontalização das
relações com os usuários e a
população da área;
• no que diz respeito às formas
de organização das relações in-
trainstitucionais preconiza-se a
sua horizontalização, com a
distinção obrigatória entre as
esferas do poder decisório, de
origem política e as esferas do
poder de coordenação, de natu-
reza mais operativa. Esta reo-
rientação das relações intrains-
titucionais vai na mesma dire-
ção das relações especificamen-
te interprofissionais e faz parte
dos requisitos necessários para
o exercício da subjetivação sin-
gularizada que é meta cara ao
Modo Psicossocial;
• quanto à forma como a insti-
tuição se situa no espaço geo-
gráfico, no imaginário e no
simbólico o Modo Psicossocial
preconiza antes de tudo a in-
tegralidade das ações no terri-
tório. Além disso ao preconizar
o posicionamento da institui-
ção como espaço de interlocu-
ção, como instância de ‘supos-
to saber’ e, ao fazer dela um
espaço de absoluta e intensa
porosidade em relação ao ter-
ritório, praticamente subverte
a própria natureza da institui-
ção como dispositivo. A natu-
reza da instituição como orga-
nização fica modificada e o lo-
cal de execução de suas práti-
cas desloca-se do antigo inte-
rior da instituição para tomar
o próprio território como refe-
rência. A instituição, enquan-
to equipamento, posiciona-se
num foco em que se entrecru-
zam as diferentes linhas de
ação no território e para onde
podem remeter-se as primeiras
pulsações da Demanda;
• destacando a ética dos efeitos
das práticas em saúde mental,
o Modo Psicossocial preconiza a
superação da ética da adapta-
ção, que tem seu suporte nas
ações de tratamento como rever-
sibilidade dos problemas e na
adequação do indivíduo ao meio
e do ego à realidade. Ao propor
suas ações na perspectiva de
uma ética de duplo eixo, que
considera por um lado a relação
sujeito-desejo e por outro a di-
mensão carecimento-Ideais1,
deixa firmada a meta da produ-
1 Carecimento, por oposição ao conceito de carência ou de necessidade, abarca uma dimensão do homem que inclui o desejo (como propõe a
psicanálise) e toda a abertura do homem para os Ideais, possíveis ou não de imediato. Mas inclui também a abertura para a produção e usufruto
de todos os bens da produção social, muito além do preenchimento de necessidades, e que, muito mais que estas, correspondem à especificida-
de humana. Pode-se considerar que aqui estão incluídas também as criações da Filosofia, da Arte, da Ciência, e até da Religião, mas não sem
passar pela aspiração pertinente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas no mais alto grau da sua evolução histórica, tal como
encontrado em Marx nos Manuscritos de 1844. Quanto aos Ideais, na mesma perspectiva do conceito de desejo, é preciso sublinhar seu caráter
além da dimenção teleológica. (Costa-Rosa, 2000:162)
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 15
ção de subjetividade singulari-
zada, tanto nas relações imedi-
atas com o usuário propriamen-
te dito, quanto nas relações com
toda a população do território.
Retornando às proposições da I
CNSM, em primeiro lugar merece
destaque a proposta de ampliação
do conceito de saúde, incluindo em
seus determinantes as condições
gerais de vida. Além de sua sintonia
com os princípios gerais da Refor-
ma Sanitária, podemos indicar, ain-
da, o alinhamento dessa preocupa-
ção com as do campo da Atenção
Psicossocial, que insistem, de mo-
dos diversos, na reformulação da
concepção do ‘objeto’ das práticas em
saúde mental. Essa ampliação da
definição é sem dúvida um bom pon-
to de partida para tal reformulação.
Outra proposição que deve ser
sublinhada diz respeito à exigência
da ‘participação popular’ na saúde
mental. Além de uma proposta co-
erente com a ética da participação
geral do cidadão na vida social, é
fundamental percebermos sua coe-
rência com a ética da Atenção Psi-
cossocial. Uma série de evidências
apontam as relações diretas exis-
tentes entre as formas da organi-
zação intrainstitucional e as formas
como essa instituição (através de
seus agentes) se dirige e se relacio-
na com a clientela e a população de
sua área de ação. Se nas práticas
da Atenção Psicossocial a exigên-
cia da superação do paradigma su-
jeito-objeto é um objetivo funda-
mental, parece mais do que justifi-
cado que a participação popular nas
instituições seja elevada à catego-
ria de dispositivo necessário, não
apenas contingente. Por outro lado,
o Modo Psicossocial propõe que a
ética da implicação subjetiva e so-
ciocultural dos usuários das insti-
tuições de saúde mental nos con-
flitos e contradições que os atraves-
sam, fazendo-os procurarem ajuda,
seja um componente essencial da
Atenção. Essa implicação do sujei-
exclusão e dominação, ao mesmo
tempo propondo sua reorientação
na direção dos interesses da classe
trabalhadora. Esta é mais uma pro-
posição que ultrapassa os interes-
ses ético-políticos globais. Sua tra-
dução nos pressupostos do Modo
Psicossocial exige um percurso um
pouco mais complexo. Antes de
tudo é preciso firmarmos uma con-
ceituação de Sociedade como arti-
culação de interesses contraditóri-
os, num processo político-social que
Gramsci denominou Processo de
Estratégia de Hegemonia (PEH). A
seguir temos de recorrer a uma das
proposições importantes do Modo
Psicossocial, que conceitua as prá-
ticas em saúde mental neste mo-
mento histórico, como conjunto ar-
ticulado (nos mesmos termos do
PEH), podendo aí designar-se dois
pólos bem configurados e com ló-
gicas contraditórias: o Modo Asilar
e o Modo Psicossocial. (Costa-Rosa,
2000:141-168).
Uma vez colocados na situação
de trabalhadores de saúde mental
não há como escapar ao alinhamen-
to com uma dessas lógicas. É fácil
demonstrar que a lógica asilar é
perfeitamente congruente com a do
Modo Capitalista de Produção, na
qual os interesses dos usuários são
inequivocamente subordinados aos
interesses do Hospital. A proposi-
ção de se alinhar com os interesses
dos usuários é, portanto, uma exi-
gência inadiável dos que pretendem
fazer das práticas em saúde men-
to na sua situação específica nun-
ca poderia ser realizada se, no con-
texto mais amplo da sua existên-
cia, o exercício dessa implicação lhe
fosse negado. No Modo Psicossoci-
al o engajamento subjetivo e socio-
cultural são indissociáveis da defi-
nição de saúde mental.
Um terceiro aspecto, que é opor-
tuno sublinhar, refere-se à concla-
mação dos trabalhadores da área a
reverem os riscos, ou mesmo, a efe-
tivação do seu papel de agentes de
RETORNANDO ÀS PROPOSIÇÕES
DA I CNSM, EM PRIMEIRO LUGAR
MERECE DESTAQUE A PROPOSTA DE
AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE,INCLUINDO EM SEUS DETERMINANTES
AS CONDIÇÕES GERAIS DE VIDA
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
16 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
tal dispositivos alternativos ao
Modo Asilar; ou seja, práticas ca-
pazes da produção de subjetivida-
de singularizada, em que os lucros
principais das ações de produção de
saúde sejam apropriados pelos usu-
ários das instituições, como pólo
socialmente subordinado.
Observamos, de modo geral, como
parece justo esperar por tratar-se da
I CNSM, uma ênfase em proposições
na esfera político-ideológica e no
âmbito jurídico. Pode-se notar clara-
mente, agora, como ali se tratava de
produzir bases para as propostas e
experiências práticas que viriam, na
seqüência, exercitar outras lógicas
contrárias à asilar. Deve-se registrar,
ainda, que a proposição antimanico-
mial, que vai atravessar os passos de
boa parte das práticas da Reforma
Psiquiátrica, até os dias de hoje, já
se apresenta aí bem clara e plena-
mente afirmada.
A SEGUNDA CONFERÊNCIA NACIONALDE SAÚDE MENTAL
Proposições gerais: Atenção IntegralTerritorializada, direitos e terapêutica cidadã
Quatro anos depois, em dezem-
bro de 1992, foi realizada a II Con-
ferência Nacional de Saúde Mental
(II CNSM) com uma organização di-
ferente da anterior. Precedida de
etapas municipais, regionais e es-
taduais, que contaram com o envol-
vimento direto de cerca de vinte mil
pessoas, a etapa nacional contou
com a participação de quinhentos
delegados eleitos nas conferências
estaduais, com composição paritá-
ria dos dois segmentos: usuários e
sociedade civil, governo e prestado-
res de serviços.
Diversos pontos do relatório,
aprovados na plenária final, tive-
ram a defesa emocionada e firme
dos usuários.
Foram discutidos três grandes
temas: crise, democracia e reforma
visão integrada das várias dimensões
humanas da vida do indivíduo, em
diferentes e múltiplos âmbitos de in-
tervenção (educativo, assistencial e de
reabilitação). (Brasil-MS,1994:13)
Reafirma os princípios da uni-
versalidade, integralidade, eqüida-
de, descentralização, participação
popular e municipalização, propon-
do a substituição do modelo hospi-
talocêntrico por uma rede de servi-
ços, diversificada e qualificada, e a
intensificação da desospitalização
através dos programas públicos de
lares e pensões protegidas. Propõe,
também, a articulação com os recur-
sos existentes na comunidade e a
necessária transformação das rela-
ções cotidianas entre trabalhadores
de saúde mental, usuários, famílias,
comunidade e serviços, em busca da
desinstitucionalização, bem como da
humanização das relações no campo
da saúde mental. (Idem:16)
Chama a atenção para uma ne-
cessária construção coletiva de prá-
ticas e saberes cotidianos que con-
sidere: o trabalho em equipe, ou-
tros campos de conhecimento e os
saberes populares. Por fim, desta-
ca a relação entre cidadania, Esta-
do e Sociedade, propondo estimu-
lar a organização dos cidadãos em
associações comunitárias, altera-
ções na legislação e ações no cam-
po da informação e educação.
Em sua segunda parte, o relató-
rio apresenta inúmeras propostas
relativas à atenção em saúde men-
psiquiátrica; modelos de atenção
em saúde mental; direitos e cida-
dania. O relatório final subdivide-
se em três partes: marcos conceitu-
ais; atenção à saúde mental e mu-
nicipalização; direitos e legislação.
Em sua primeira parte, o relató-
rio aponta a atenção integral e cida-
dania como conceitos direcionado-
res das deliberações da Conferência.
A atenção integral deverá propor
um conjunto de dispositivos sanitári-
os e socioculturais que partam de uma
EM DEZEMBRO DE 1992,FOI REALIZADA A II CONFERÊNCIA
NACIONAL DE SAÚDE MENTAL
(II CNSM) COM UMA ORGANIZAÇÃO
DIFERENTE DA ANTERIOR
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 17
tal e municipalização. No capítulo
sobre as recomendações gerais, além
de reafirmar o princípio da munici-
palização, acrescentou a proposta de
utilização dos conceitos de território
e responsabilidade como dispositivos
para uma ruptura com o modelo hos-
pitalocêntrico. Finaliza essa segun-
da parte com propostas para a capa-
citação dos trabalhadores de saúde,
sobre as relações no trabalho em ter-
mos de organização e conquista de
direitos, e sobre a promoção de pes-
quisas voltadas para a investigação
epidemiológica e sócio-antropológi-
cas e para a avaliação da rede de
atenção em saúde mental.
A terceira parte do relatório apre-
senta propostas referentes ao tema
Direitos e Legislação. São cinco ca-
pítulos abrangendo os seguintes te-
mas: questões gerais sobre uma ne-
cessária revisão legal; direitos civis
e cidadania; direitos trabalhistas;
drogas e legislação; direitos dos usu-
ários. Talvez tenha sido a parte do
relatório na qual os usuários parti-
ciparam de forma mais ativa, espe-
cialmente na plenária final.
Realizada em circunstâncias
históricas distintas da I CNSM, cujo
relatório apresentava diversas pro-
posições de caráter político, o texto
da II CNSM não foi tão contunden-
te na crítica ao modelo econômico
nem ao momento político que se
estava vivendo. Embora aquelas
questões estivessem como pano de
fundo, o relatório era muito mais
extenso e específico nas questões
da saúde mental.
A II CNSM foi realizada em um
momento em que diversas experi-
ências já estavam consolidadas e
espalhando-se pelo país;2 já exis-
tia uma lei, aprovada na Câmara
dos Deputados e tramitando no Se-
nado, e leis estaduais aprovadas ou
em tramitação; já existiam dispo-
sitivos institucionais (portarias mi-
O Modo Psicossocial e a II ConferênciaNacional de Saúde Mental.
Podemos considerar como de
significativa relevância o fato de
que os ‘marcos conceituais’ do RE-
LATÓRIO DA SEGUNDA CONFE-
RÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE
MENTAL, realizada em 1992, este-
jam perfeitamente em sintonia com
as premissas gerais do Modo Psi-
cossocial para os tratamentos psí-
quicos na Saúde Coletiva.
Ainda que se possa considerar
que tais marcos conceituais este-
jam muito mais na perspectiva de
transformações na esfera político-
ideológica, eles podem ser tradu-
zidos em dispositivos teórico-prá-
ticos, capazes de fazerem de pre-
ceitos gerais, verdadeiros instru-
mentos de transformação das prá-
ticas cotidianas nas instituições
de saúde mental, sobretudo das
relações destas com os usuários e
com a população das suas áreas
de referência.
Senão vejamos:
1. “I. ATENÇÃO INTEGRAL E CI-
DADANIA são conceitos direciona-
dores das deliberações da II Confe-
rência Nacional de Saúde Mental”.
(Brasil/MS,1994:11)
Definir a integralidade da con-
cepção e do exercício dos programas
e ações implica operar uma série de
2 Como exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira já era uma realidade consolidada, o Programa de Saúde Mental de
Santos já era reconhecido internacionalmente como experiência modelar, inclusive pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).
nisteriais) que possibilitavam a im-
plantação de novos serviços e au-
mentavam a fiscalização dos hos-
pitais; já existiam diversas associ-
ações de usuários atuando ativa-
mente pelo país. Ou seja, estava em
curso um processo de transforma-
ção da saúde mental no campo teó-
rico, no campo assistencial, no cam-
po jurídico e no campo cultural.
ESTAVA EM CURSO UM PROCESSO
DE TRANSFORMAÇÃO DA SAÚDE MENTAL
NO CAMPO TEÓRICO, NO CAMPO
ASSISTENCIAL, NO CAMPO JURÍDICO
E NO CAMPO CULTURAL
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
18 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
transformações no modo de traba-
lho. Estas transformações é que são
condição para o exercício de ações
integrais, e ao mesmo tempo cons-
tituem a base para a efetivação de
um princípio de cidadania nas prá-
ticas dos trabalhadores de saúde
mental que seja coerente com a
meta da singularização.
Na perspectiva do Modo Psicos-
social é de fundamental importân-
cia que se tenha proposto a aten-
ção integral e a cidadania como
conceitos direcionadores, mas não
se pode perder de vista, por outro
lado, o conjunto dos passos concre-
tos que ainda precisam ser dados
para estar no exercício efetivo de
ações integrais em Saúde e de cida-
dania singularizada. Também não
podemos esquecer que a integrali-
dade, supondo o conceito de Terri-
tório, deve ocorrer simultaneamen-
te em extensão e profundidade, su-
perando as mazelas da Atenção es-
tratificada por níveis (primário, se-
cundário e terciário).
2. “II. A democratização do Es-
tado com o controle da sociedade ci-
vil é fundamento do direito à cida-
dania e da transformação da legis-
lação de saúde mental”. (idem:11)
Esta diretriz, colocada em âm-
bito de análise política da Forma-
ção Social global é muito pertinen-
te, porém é necessário aproximá-
la das nossas esferas cotidianas
de ação. Desse modo, ao preconi-
zar a democratização das institui-
ções e de suas relações com os
usuários e com a população, e a
partir da condição de trabalhado-
res da Saúde, cuida-se da aplica-
ção daquela diretriz. Uma das
maneiras mais eficazes de cumprir,
nesta esfera de atuação, a diretriz
de controle social, pela sociedade
civil, é pondo em prática disposi-
tivos como os conselhos ‘gestores
de unidades de saúde’ e como os
‘conselhos comunitários de saú-
3. “III. O processo saúde/doença
mental deverá ser entendido a par-
tir de uma perspectiva contextuali-
zada, onde qualidade e modo de vida
são determinantes para a compre-
ensão do sujeito, sendo de impor-
tância fundamental vincular o con-
ceito de saúde ao exercício de cida-
dania, respeitando-se as diferenças
e as diversidades”. (idem, idem)
3.1. Contextualizar o processo
saúde/doença exige várias opera-
ções articuladas:
Primeira: o Modo Psicossocial
preconiza uma definição de saúde
numa perspectiva que a contextua-
lize em relação a uma concepção de
sociedade, entendida como conjun-
to de interesses contraditórios arti-
culados, possíveis de serem descri-
tos e compreendidos através do con-
ceito de Processo de Estratégia de
Hegemonia (PEH). Essa contextua-
lização, nos termos do PEH, obriga
a considerar a própria luta por saú-
de, tanto entendida como estado
das condições de vida, quanto en-
tendida como reivindicação de cui-
dados de saúde, como componente
da própria definição de saúde.
Segunda: no Modo Psicossocial
define-se a especificidade da saúde
mental, de tal modo que se visualiza
a participação da dimensão sociocul-
tural como intrínseca ao próprio pro-
cesso de subjetivação. Desse modo a
própria forma de atravessamento da
dimensão sócio-simbólica pode ser
parte constitutiva dos problemas que
de’, aliás, instrumentos já garan-
tidos na constituição do país. Além
disso devemos lembrar que as
metas de livre trânsito dos usuá-
rios pelas instituições e de sua
participação direta na instituição,
preconizadas pelo Modo Psicosso-
cial, podem ser implementadas cri-
ando condições para que os con-
selhos e comissões de usuários e
população participem em esferas
da instituição relacionadas com o
poder decisório.
NA PERSPECTIVA DO MODO
PSICOSSOCIAL É DE FUNDAMENTAL
IMPORTÂNCIA QUE SE TENHA
PROPOSTO A ATENÇÃO INTEGRAL
E A CIDADANIA COMO CONCEITOS
DIRECIONADORES
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 19
tendem a apresentar-se como típicos
ou preponderantes numa determina-
da conjuntura histórico-social.
Terceira, o Modo Psicossocial
inclui em sua caracterização a
consideração da especificidade da
saúde mental com a inclusão da
própria noção de ‘crise’ como seu
componente estrutural. Ou seja,
dada a concepção de saúde que
inclui em sua definição a partici-
pação ativa do homem na busca
de melhores condições de vida e
de melhor atendimento à saúde, e
dada a circunstância histórica de
que a sociedade liberal - ainda
mais gravemente nos contextos
chamados de capitalismos depen-
dentes - é conjunção de interes-
ses contraditórios, portanto um
processo que envolve luta e confli-
to entre esses interesses, então só
é possível conceber a saúde men-
tal como um certo modo do posici-
onamento subjetivo e sociocultu-
ral dos indivíduos na conjuntura
conflitiva particular que os atra-
vessa e pela qual são atravessados.
3.2. Vincular o conceito de saúde
ao exercício de cidadania, no âmbito
das práticas em Saúde, é possível
apenas em decorrência da própria
contextualização da definição de saú-
de nos termos acima propostos. Nes-
te sentido também é importante não
perder de vista algumas nuances in-
cluídas na questão, que podem ser
capciosas se tomadas em sentido
muito estrito ou muito genérico.
Dizer que o exercício de cidada-
nia é resolutivo e preventivo de
problemas psíquicos e mentais
pode ser muito pertinente, porém
isto está longe de significar que
prevenção em saúde mental e tra-
tamento psíquico em Saúde Cole-
tiva possam ser reduzidos ao exer-
cício de ações de cidadania, qual-
quer que seja a definição em que
se tome esta última.
Disso resulta que o mais impor-
tante é especificar quais são as con-
prisma, não ignoramos as dramá-
ticas condições de vida dos usuári-
os do hospital psiquiátrico, cuja re-
vogação há muito tarda.
4. “IV. A vida exige uma aborda-
gem abrangente no campo da saú-
de mental, capaz de romper com a
usual e ainda hegemônica concep-
ção compartimentalizada do sujei-
to, com as dissociações mente/cor-
po e trabalho/prazer ...”. Refletida
em: a) “Mudança no modo de pen-
sar a pessoa com transtornos men-
tais em sua existência-sofrimento,
e não apenas a partir do seu diag-
nóstico”; b) “Diversificação das re-
ferências conceituais e operacionais,
indo além das fronteiras delimita-
das pelas profissões clássicas em
saúde mental”; c) “uma ética da
autonomia e singularização que
rompa com o conjunto de mecanis-
mos institucionais e técnicos em
Saúde, que têm produzido, nos últi-
mos séculos, subjetividades proscri-
tas e prescritas.” (idem:11-12)
Este talvez seja, entre todos os
outros, o marco conceitual mais
complexo. Isto se deve ao fato de aí
se mesclarem, como veremos, as-
pectos teórico-técnicos e éticos:
4.1. Para mudarmos nossa ati-
tude asilar, reformista e tecnicista
diante da pessoa com transtornos
psíquicos ou mentais, e considerá-
la a partir de sua existência-sofri-
mento, faz-se necessário especificar
dições das próprias práticas em
saúde mental, capazes de criar os
meios de exercício de cidadania nas
relações das instituições e dos tra-
balhadores com os usuários e a po-
pulação, e, ao mesmo tempo, mos-
trar como essas condições podem
estar em sintonia com a ética da ci-
dadania singularizada e da produ-
ção de subjetividade singularizada,
explicitadas no Modo Psicossocial.
É importante sublinhar, ainda, que,
ao tomarmos a questão por esse
É IMPORTANTE SUBLINHAR, AINDA,QUE, AO TOMARMOS A QUESTÃO
POR ESSE PRISMA, NÃO IGNORAMOS
AS DRAMÁTICAS CONDIÇÕES DE VIDA
DOS USUÁRIOS DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO,CUJA REVOGAÇÃO HÁ MUITO TARDA
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
20 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
uma concepção de subjetividade e
de saúde psíquica que deixem cla-
ro qual é o lugar e o estatuto das
crises e dos diferentes desencadea-
mentos problemáticos.
É necessário dar às crises um
lugar estrutural (depois de extirpa-
das de sua porção indesejável e evi-
tável). As crises só terão uma aco-
lhida como efeitos estruturais e,
portanto, também estruturantes, se
elas forem concebidas como inte-
grantes do modo de o sujeito se po-
sicionar em relação às conjunturas
conflitivas (subjetivas e sociocultu-
rais) que os atravessam. Apenas
numa concepção de saúde psíquica
assim formulada será possível con-
siderar seriamente os indivíduos
como ‘existência-sofrimento’.
Também já sabemos que esta
diretriz da II Conferência Nacional
de Saúde Mental sai explicitamen-
te do modelo italiano. Sobre isso,
Rotelli et al. (1990:28), afirmam
que para considerar, de fato, o in-
divíduo como existência-sofrimen-
to é ‘preciso começar a desmontar
a relação problema-solução, renun-
ciando a perseguir aquela solução
racional (tendencialmente ótima)
que no caso é a normalidade ple-
namente restabelecida’.
O modelo italiano, do qual tam-
bém é tributário o Modo Psicosso-
cial, proclama que
o mal da Psiquiatria está em haver
separado um objeto fictício, a ‘doen-
ça’, da existência global complexa e
concreta dos pacientes e do corpo so-
cial. Sobre essa separação artificial
se construiu o conjunto de aparatos
científicos, legislativos, administra-
tivos (precisamente a ‘instituição’),
todos referidos à ‘doença’. É este con-
junto que se pretende desmontar (de-
sinstitucionalizar) para retomar o
contato com aquela existência dos
pacientes, enquanto existência-sofri-
mento. (idem, idem).
O problema não é cura (a vida
produtiva) mas a produção de vida
sentir o sofrimento do ‘paciente’ e
que, ao mesmo tempo, se transforme
sua vida concreta e cotidiana, que ali-
menta esse sofrimento (...) Por isso a
festa, a comunidade difusa, a recon-
versão contínua dos recursos insti-
tucionais, e por isso solidariedade e
afetividade se tornarão momentos e
objetivos centrais... ( idem:30).
Esta diretriz está perfeitamen-
te em sintonia com o que, no Modo
Psicossocial, se define em termos de
implicação subjetiva e sociocultu-
ral dos indivíduos que recorrem às
instituições de saúde mental.
4.2. Para superarmos as referên-
cias conceituais e operacionais,
para além das profissões clássicas,
serão necessárias pelo menos duas
operações articuladas.
Primeira, será preciso rever e
modificar a concepção de saúde e
doença e dos meios de tratamento
decorrentes dos postulados psiqui-
átricos, como detentores exclusivos
ou preponderantes do saber sobre
o psíquico e o humano neste con-
texto. Isso só poderá ser feito rela-
tivizando a importância das con-
tribuições desse campo de saber,
agregando-lhe de modo bastante
radical (não apenas como acessó-
rios) uma série de conceitos e téc-
nicas geradas no campo da Psica-
nálise e do Materialismo Históri-
co, além de contribuições da Filo-
sofia (filosofia da Diferença), da
Arte e da Estética.
e de sentido, de sociabilidade, a uti-
lização das formas (dos espaços co-
letivos) de convivência dispersa
(idem:30).
Assim, o modelo italiano assen-
ta-se em uma redefenição do tra-
balho terapêutico voltado para a re-
constituição de pessoas enquanto
pessoas que sofrem, como sujeitos
(idem:33). Fala-se menos em cura
do que em cuidado.
Cuidar significa ...fazer com que
se transformem os modos de viver e
O MAL DA PSIQUIATRIA ESTÁ
EM HAVER SEPARADO UM OBJETO
FICTÍCIO, A ‘DOENÇA’, DA EXISTÊNCIA
GLOBAL COMPLEXA E CONCRETA DOS
PACIENTES E DO CORPO SOCIAL
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 21
A segunda operação deverá con-
sistir numa crítica à divisão do tra-
balho tal qual ela está em ação des-
de o primeiro momento em que se
congregaram diferentes disciplinas
no campo do saber e das práticas
em saúde mental. Essa crítica terá
que passar pela demonstração
(como via para a superação) de que
o modo da divisão do trabalho aí
atuante é o mesmo que vige no con-
texto da produção em geral e que
tem sido chamado de modo taylo-
rizado ou ‘linha de montagem’,
(Costa-Rosa, 1987:222-252).
Nesta linha de raciocínio é pos-
sível demonstrar que essa frag-
mentação do cliente e da própria
subjetividade são os meios através
dos quais se reproduzem as rela-
ções sociais dominantes no contex-
to social (as relações sociais de
produção e de poder). Ao mesmo
tempo será possível demonstrar
que essas relações sociais domi-
nantes (já conhecidas nossas com
as seguintes fisionomias: como
trabalho intelectual e decisório
versus trabalho de execução, e sob
a forma da própria cisão fragmen-
tadora do processo de trabalho, por
exemplo, em termos da separação
entre momento diagnóstico e mo-
mento terapêutico, mas não apenas)
são alguns dos modos de expropria-
ção, tanto de trabalhadores quanto
de usuários, do excedente precioso,
que é o equivalente da “mais-valia”
no contexto das práticas em saúde
mental. Ou seja, onde há muita re-
produção há pouca produção; onde
há subjetividade serializada falta
subjetividade singularizada.
Em suma, esta segunda opera-
ção inclui a superação teórico-téc-
nica e ideológica do modelo taylo-
rista no processo de trabalho na
saúde mental, e sua substituição
por outro modo capaz de permitir
que o saldo mais precioso do pro-
cesso de trabalho ( a implicação
subjetiva e a singularização) seja
apropriado pelos trabalhadores e
ciais em sintonia com o agencia-
mento dos interesses sociais subor-
dinados (intersubjetividade hori-
zontal singularizada).
4.3. Para sustentar na prática
uma ética da autonomia e da sin-
gularização também será necessá-
rio realizar no mínimo outras duas
operações conjugadas.
A primeira diz respeito à auto-
nomia. A autonomia dos usuários
só pode estar associada à autono-
mia dos trabalhadores. A autono-
mia dos trabalhadores e dos usuá-
rios por sua vez associa-se à supe-
ração dos modos de existência e
funcionamento das instituições que
são características do Modo Asilar.
A organização da instituição de
saúde mental como dispositivo se-
gundo a mesma lógica das institui-
ções típicas do Modo Capitalista de
Produção (MCP) produz uma série
de efeitos refletidos na sua ‘produ-
ção’, que são desastrosos e às ve-
zes letais. Há muito que teorizar e
transformar a fim de driblar esse
intermediário necessário (já que
não dá para escapar neste momen-
to histórico da intermediação da
instituição nas práticas de Atenção)
da relação dos trabalhadores de
saúde mental e dos usuários. Mas
o melhor começo será, sem dúvida,
reconhecer essa intermediação e
desvendar-lhe a anatomia para des-
cobrir as operações que são neces-
sárias para fazer esse intermediá-
rio trabalhar a favor da ética que
pelos usuários e posto a seu servi-
ço – ao contrário do que acontece
no Modo Asilar, em que é o inter-
mediário, dono dos meios de pro-
dução e das decisões do quê e como
produzir, quem dele se apropria.
Convém não perdermos de vista que
a natureza desse excedente muda
conforme o seu destinatário. Num
caso dá-se como reprodução das
relações sociais dominantes (sub-
jetividade capitalista), no outro dá-
se como recriação de relações so-
A ORGANIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE
MENTAL COMO DISPOSITIVO SEGUNDO AMESMA LÓGICA DAS INSTITUIÇÕES TÍPICAS
DO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO
(MCP) PRODUZ UMA SÉRIE DE EFEITOS
REFLETIDOS NA SUA ‘PRODUÇÃO’, QUE SÃO
DESASTROSOS E ÀS VEZES LETAIS
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
22 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
preconizamos para nossas práticas
de Atenção. Quanto a este aspecto
também propomos retomar as di-
retrizes de Modo Psicossocial em
relação à instituição como disposi-
tivo, e quanto ao modo de ela se
situar em relação à clientela e ao
território que lhe correspondem.
A segunda operação a respeito
da singularização inclui justamen-
te a nossa capacidade de criar uma
mínima sintonia (ainda que com
concessões táticas inevitáveis) en-
tre a forma de conceber e atuar as
definições de saúde e doença e dos
meios de tratamento; a forma das
relações intrainstitucionais; a for-
ma da relação da Instituição como
equipamento com seus usuários e
com o território; e, finalmente,
como se concebe o estatuto de nos-
sas ações em termos de performan-
ce e de ética.
A meta da singularização, no
Modo só poderá ser almejada por
uma concepção do ‘objeto’ e dos
meios, e da relação dos dois, que
seja capaz de atender à especifici-
dade da subjetividade humana, e
que inclua a própria ação e autode-
terminação como constitutivas do
homem. Ninguém trabalhará na
subjetividade à revelia do sujeito,
a não ser para a produção de efei-
tos de destituição subjetiva.
Para ser almejada e alcançada, a
singularização dependerá de que a
forma das relações sociais e huma-
nas na instituição parta da horizon-
talização como meta e, em alguma
medida, seja vivida como exercício.
Sem isto não há a menor plausibili-
dade em propor a implicação subje-
tiva e sociocultural do usuário e do
trabalhador; sem estas parece-nos
que não pode haver terapêutica na
perspectiva da singularização.
Apenas poderá ser meta realis-
ta, na medida em que a instituição
seja capaz de desfazer seu imagi-
nário repressivo e segregador (pa-
trimônio que neste momento histó-
rico não é exclusividade do Hospi-
so aos usuários e da população do
território a todos os espaços insti-
tucionais; criar modelos de recep-
ção e de escuta das primeiras de-
mandas, que sejam capazes de der-
rogar os atuais balcões e filas de
espera, construindo uma relação di-
reta que permita à instituição situ-
ar-se no imaginário e no simbólico
como ‘sujeito-suposto-saber’, ou
seja, que lhe permita funcionar como
primeiro interlocutor e até como te-
rapeuta, se for o caso, ali onde a ins-
tituição está acostumada a pensar e
agir apenas como ‘natureza morta’
ou, na melhor das hipóteses, como
suporte das relações sociais da sua
produção ali atualizadas.
Finalmente, a singularização só
poderá ser almejada como meta éti-
ca realista se formos capazes de
superar o modo da ética vigente
nas práticas atuais do Modo Asi-
lar. A atitude ética de uma prática
em saúde mental pode ser decifra-
da a partir de uma análise de seus
efeitos de tratamento e cura e tam-
bém através das finalidades socio-
culturais para que concorrem es-
ses efeitos. A ética da singulariza-
ção terá que superar os modelos
funcionalistas das práticas que tra-
balham nos eixos da adequação do
indivíduo ao meio e do ego à reali-
dade, e no eixo da relação entre
carências e suprimentos da mais
variada natureza.
Essa superação só poderá ser
alcançada na perspectiva de uma
prática que seja capaz de propor,
tal Psiquiátrico). Isto, por sua vez,
só será possível se os seus agentes
forem capazes de fazer prevalecer
ações que tendam a transformá-la
em espaço privilegiado de interlo-
cução para questões subjetivas e
socioculturais. Para isso será neces-
sário que tais agentes sejam capa-
zes de rever, de forma drástica, sua
representação da sintaxe e da se-
mântica em termos lingüísticos e
em termos dos conjuntos do arqui-
tetônico e do mobiliário; abrir aces-
A ATITUDE ÉTICA DE UMA PRÁTICA EM
SAÚDE MENTAL PODE SER DECIFRADA APARTIR DE UMA ANÁLISE DE SEUS EFEITOS
DE TRATAMENTO E CURA E TAMBÉM
ATRAVÉS DAS FINALIDADES SOCIOCULTURAIS
PARA QUE CONCORREM ESSES EFEITOS
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 23
como efeito principal das suas
ações de tratamento, a implicação
subjetiva como meta radical, na re-
lação do sujeito com o desejo (por
oposição ao ego-realidade) e na re-
lação carecimento-Ideais (por opo-
sição à carência-suprimento); dese-
jo e carecimento considerados como
o que mais essencialmente define
a especificidade do homem.
O PROCESSO DE ESTRATÉGIADE HEGEMONIA NA SAÚDE MENTAL:
AVANÇOS E RETROCESSOS
Muitas das propostas apresen-
tadas nas duas Conferências se con-
cretizaram, como, por exemplo, a
criação de lei federal, leis estadu-
ais e municipais, que incorporaram
as propostas apresentadas no rela-
tório e a criação da Comissão Naci-
onal de Reforma Psiquiátrica que
teve, posteriormente, a sua deno-
minação mudada para Comissão
Nacional de Saúde Mental. Nesse
sentido, o relatório da II CNSM
apontou para a consolidação das
conquistas e para onde avançar. Os
avanços, entretanto, parecem ter
sido mais difíceis num dos eixos
centrais e mais importantes da luta:
a Lei Paulo Delgado.
A II CNSM consolidou também
a conquista dos espaços institucio-
nais. A posição oficial do aparato
estatal estava alicerçada pelas di-
retrizes propostas e pelos conceitos
do Movimento da Reforma Psiqui-
átrica. Utilizando-se da mesma es-
tratégia do Movimento Sanitário, a
Reforma Psiquiátrica instituciona-
lizou-se enquanto política oficial (se
é que, pelo menos desde os anos
setenta, em algum momento deixou
de ser política oficial, ao menos no
discurso). Na ‘guerra de posições’
no interior da construção de um
processo de hegemonia, o Movi-
mento da Reforma Psiquiátrica con-
quistou territórios no interior do
aparelho estatal.
Primeira inflexão: as críticas ao
manicômio e à sua lógica. Esta é
identificada a do Estado autoritá-
rio naquele momento em uma de
suas faces mais evidentes; nesse
momento também o modelo econô-
mico excludente é colocado em pa-
ralelo com o paradigma excludente
da saúde mental e vice-versa. Até
este momento, as lutas contra o
hospital psiquiátrico se mesclam
inteiramente com as lutas sociais,
podendo-se dizer que elas se auto-
reforçam. Até aqui parecia reagir-
se contra um adversário que insis-
tia em ficar impassível, embora
para olhos mais avisados fosse ine-
quívoco tratar-se sempre das ações
da contraface hegemônica que, na
seqüência, ficariam mais evidentes.
Segunda inflexão: os movimen-
tos da Reforma Psiquiátrica se am-
pliam, ganhando um novo eco so-
cial. Agora pode se dizer que a pró-
pria sociedade se envolve na luta
contra o manicômio e sua lógica;
firma-se o Movimento da Luta An-
timanicomial, cujo lema, ‘por uma
sociedade sem manicômios’, ajuda
a definir com clareza um preceito
central das ações dos interesses até
aí subordinados: os trabalhadores
das instituições de saúde mental e
seus usuários. Na mesma seqüên-
cia vão se firmando várias experi-
ências e práticas, exercitando no-
vas lógicas e demonstrando sua ca-
pacidade de substituir o hospital
psiquiátrico; firmam-se novos sig-
nificantes sociais antimanicômiais:
Finalmente, poderia ser útil subli-
nharmos que esse processo de lutas
e conquistas pontuado pelas duas
CNSM transcorre atravessado por um
movimento de sinal contrário, que se
processa, neste caso, muito mais
como reação às ações da Reforma
Psiquiátrica, do que como movimen-
to deliberado capaz de desfraldar sua
própria bandeira. No transcurso his-
tórico dessa luta podemos ver dese-
nhadas algumas inflexões maiores
que vale a pena sublinhar.
A II CNSMCONSOLIDOU TAMBÉM
A CONQUISTA DOS
ESPAÇOS INSTITUCIONAIS
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
24 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) e Núcleos de Atenção Psi-
cossocial (NAPS). Assistimos a al-
gumas manifestações oficiais,
mesmo que ainda tímidas no sen-
tido de subtraírem espaço e pode-
rio ao hospital psiquiátrico. Aqui
as forças contra-hegemônicas mos-
tram sua face bem configurada;
força que poderíamos flagrar na
sua maior visibilidade se nos deti-
véssemos na observação dos avan-
ços e retrocessos de uma das pe-
ças mais notáveis da luta antima-
nicomial: a Lei Paulo Delgado. Pa-
rece-nos que nada poderia ser mais
indicativo da intensidade e virulên-
cia das forças contra-hegemônicas
à Reforma Psiquiátrica do que a di-
ferença entre o que se propunha
como objetivos dessa lei e o que se
conseguiu transformar em Lei.
Terceira inflexão: podemos ver
esboçado um momento, de aparên-
cia mais serena, em que se vão se-
dimentando novos conceitos e no-
vos significantes, novas práticas e
novos movimentos; momento em
que se destacam os movimentos de
usuários, dentro da perspectiva da
participação popular. Também ve-
mos tentativas cada vez mais fre-
qüentes de teorização das novas
práticas e de sua lógica teórico-téc-
nica e ética, a ponto de visualizar,
sem maiores dificuldades, a perti-
nência e a possibilidade de novos
serviços na perspectiva de uma te-
rapêutica cidadã.
Quanto a esta terceira inflexão
nas lutas pela Reforma Psiquiátri-
ca, às reações contra-hegemônicas,
do tipo que nos é familiar, devemos
acrescentar outras de ordem micro-
física; uma espécie de patrimônio
sinistro herdado da constância do
lugar de subordinado no Processo
de Estratégia de Hegemonia.
PONTOS PARA UMA PROPOSTADE AGENDA DE DISCUSSÃO.
1. Refletir sobre as atuais estra-
tégias de fortalecimento do
movimento de usuários e pro-
por avanços.
2. Avançar nas propostas de acom-
panhamento e avaliação da rede
de serviços substitutivos por
comissões paritárias de usuári-
os e gestores e trabalhadores.
3. Discutir o surgimento de uma
nova demanda – dependência
química – que apresenta uma
interface com assistência soci-
al e judiciária.
4. Discutir a demanda dos usuá-
rios – ex-internos – que acabam
desassistidos sofrendo com
processo de marginalização.
5. Discutir a transinstitucionaliza-
ção – criação de outras institui-
ções menores de segregação –
em que são abandonadas as es-
truturas asilares mas não a pos-
sibilidade da cronicidade e de
medicalização da demanda.
6. Criação de dispositivos que ga-
rantam a transferência dos re-
cursos financeiros das interna-
ções para os serviços substitu-
tivos em saúde mental.
7. Discussão sobre a revisão da
formação profissional, com pro-
posta para a reforma curricular
dos profissionais da saúde con-
siderando os parâmetros da re-
forma psiquiátrica.
8. Construção de espaços de aco-
lhimento e cuidado, flexíveis e
que façam uma ponte com ou-
tros setores, principalmente as-
sistência social, educação, cul-
tura. Trabalho na perspectiva
de uma rede intersetorial.
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AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.
26 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
A constituição de novas práticas no campo da AtençãoPsicossocial: análise de dois projetos pioneiros na ReformaPsiquiátrica no Brasil
The forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneerprojects in the Psychiatric Reform in Brazil
1 Médico, Doutor em Saúde Pública,
Pesquisador Titular da ENSP/FIOCRUZ
2 Psicólogo, Especialista em Saúde
Mental, Mestrando em Saúde Pública na
ENSP/FIOCRUZ
Paulo Duarte de Carvalho Amarante1
Eduardo Henrique Guimarães Torre2
Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 4036/506
CEP 21040-361 – Manguinhos – RJ.
e-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar documentos históricos de dois
serviços pioneiros no âmbito da Reforma Psiquiátrica no Brasil num contexto
específico de transformações no campo da saúde mental. Busca-se captar os
principais conceitos e dados históricos contidos nos projetos originais a fim de
entender a constituição deste novo campo de intervenção em saúde mental e de
estudar a produção teórica que dá base às novas formas de atenção e cuidado
aos sujeitos em sofrimento mental e situações de crise. Também é destacada a
necessidade de discussão sobre as portarias ministeriais que instituíram a
regulamentação dos novos serviços. Neste sentido, as reflexões aqui presentes
podem servir como subsídio para o trabalho de técnicos, profissionais,
pesquisadores e gestores na produção de novos conhecimentos, políticas e ações
de saúde mental no momento atual de implementação da Reforma Psiquiátrica.
PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; serviços substitutivos; Modelo Assistencial
em Saúde Mental
ABSTRACT
This paper aims to review historical documents from two pioneer services of
the Psychiatric Reform in Brazil within a specific context of transformations in
Mental Health. We seek to capture the main concepts and historical data found
in the original projects so as to understand the development of this new field on
Mental Health intervention and to study the theoretical production that supports
new ways of providing attention and care to individuals in psychiatric suffering
or crisis situations. We also highlight the need for discussion over ministerial
decrees which regulate the new services. In that way, the reflections put forward
here can be used as a source of work for technicians, professionals, researchers
and managers in producing new knowledge, politics and Mental Health actions
as the Psychiatric Reform is implemented today.
KEY WORDS: psychiatric-social care; substitutive services; assistance model in
mental health
A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 27
INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade dos
anos 80, no Brasil, o movimento de
transformação no campo da saúde
mental passa por importantes mu-
danças, caracterizadas pelo surgi-
mento de novos serviços num con-
texto histórico, político e conceitu-
al emergente. A realização de duas
Conferências Nacionais de Saúde
Mental em 1987 e 1992, somada à
inscrição da proposta do Sistema
Único de Saúde (SUS) na Carta Cons-
titucional de 1988, abrem novos ca-
minhos para a saúde pública no Bra-
sil da “redemocratização”. Junto a
esses movimentos, profissionais da
saúde mental, articulados por todo
o país em torno do lema “Por uma
sociedade sem manicômios” (ado-
tado no II Congresso Nacional de
Trabalhadores de Saúde Mental em
dezembro de 1987), promovem dis-
cussões e produzem uma série de
novas experiências em suas inter-
venções junto à loucura e ao sofri-
mento psíquico.
Dentre estas novas experiênci-
as, destacam-se a criação do Cen-
tro de Atenção Psicossocial (CAPS)
Prof. Luis da Rocha Cerqueira, em
março de 1987 em São Paulo, e do
primeiro Núcleo de Atenção Psicos-
social (NAPS) em Santos, no bojo
das transformações mais gerais
ocorridas naquele município no
âmbito da saúde mental, após a
histórica intervenção na Clínica An-
chieta em 03 de maio de 1989.
Neste contexto de transforma-
ções e eventos sociais, políticos, téc-
nicos e ideológicos, são promulga-
das as Portarias Ministeriais 189/91
e 224/92, que instituem novos gru-
pos de procedimentos nas tabelas
dos Sistemas de Informações Hos-
pitalares (SIH) e Sistemas de Infor-
mações Ambulatoriais (SIA)/ Siste-
ma Único de Saúde (SUS), viabili-
zando a criação de muitos novos ser-
viços de atenção em saúde mental.
Assim, torna-se essencial refletir so-
pla sobre os novos serviços de saú-
de mental no Brasil, indicada na
bibliografia ao final deste texto.
O Centro de Atenção Psicossocial
Prof. Luiz da Rocha Cerqueira e o
Núcleo de Atenção Psicossocial de
Santos são pioneiros enquanto ser-
viços alternativos à internação e ao
tratamento psiquiátricos convencio-
nais. Apesar de existirem outros ti-
pos de dispositivos alternativos à
internação psiquiátrica (como hos-
pitais-dia, pensões protegidas, etc.),
alguns talvez até mesmo anteriores
à criação do CAPS e do NAPS, os pro-
jetos destes serviços foram escolhi-
dos como objeto de análise deste es-
tudo devido ao fato de tais experiên-
cias serem consideradas referências
para se pensar o contexto atual da
problemática existente no campo da
saúde mental. Sabemos que os ser-
viços evoluíram, incorporaram novas
questões e sofreram transformações,
mas seus projetos de origem marca-
ram um certo campo de intervenção,
e estas experiências primárias vêm
ainda influenciando a criação de
novos serviços, na medida em que
serviram de referência para as refe-
ridas portarias ministeriais.
A análise dos projetos não visa
estabelecer uma comparação entre
os serviços, mas captar as singula-
ridades e especificidades dos mes-
mos, procurando identificar suas
bases teóricas, suas estratégias e
tendências, com o objetivo de ser-
vir de instrumento para o planeja-
mento e invenção de novas possibi-
bre os chamados “novos serviços”,
considerando fazerem parte de um
processo importante na construção
de uma nova praxis da área.
HISTÓRICO
Este artigo foi escrito a partir da
reformulação de trabalho produzi-
do anteriormente em colaboração
com outros autores (Amarante et al.,
1999). Este, por sua vez, surge no
âmbito de uma pesquisa mais am-
DENTRE ESTAS NOVAS EXPERIÊNCIAS,DESTACAM-SE A CRIAÇÃO DO CENTRO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS) PROF.LUIS DA ROCHA CERQUEIRA, EM MARÇO
DE 1987 EM SÃO PAULO, E DO
PRIMEIRO NÚCLEO DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL (NAPS) EM SANTOS
AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.
28 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001
lidades para muitas outras experi-
ências que venham a surgir. Cum-
pre ressaltar que, para um maior
aprofundamento acerca destes ser-
viços pioneiros existem as disserta-
ções de Goldberg (1992), A doença
mental e as instituições – a perspec-
tiva de novas práticas, e Yasui (1999)
sobre o CAPS, e Nicácio (1994), O
processo de transformação da saú-
de mental em Santos: desconstrução
de saberes, instituições e cultura,
sobre o NAPS, dentre outras referên-
cias, algumas das quais indicadas
nas referências bibliográficas.
METODOLOGIA E ADVERTÊNCIAS
No presente trabalho, utilizamos
a análise de conteúdo que consiste
em “um método de tratamento e
análise de informações, colhidas por
meio de técnicas de coleta de dados,
consubstanciadas em um documen-
to” (Chizzotti, 1995, 98). Analisa-
mos os documentos referentes aos
projetos originais do Centro de Aten-
ção Psicossocial Prof. Luiz da Ro-
cha Cerqueira e do Núcleo de Aten-
ção Psicossocial de Santos, desta-
cando “unidades de registro” como
palavras, expressões e conceitos que
possibilitam analisar o conteúdo de
sua mensagem, além de “unidades
de contexto” (Minayo, 1994, 75),
procurando situá-los dentro de um
contexto específico.
Os projetos analisados são do-
cumentos de natureza distinta: o
projeto do Centro de Atenção Psicos-
social Prof. Luiz da Rocha Cerquei-
ra (Coordenadoria de Saúde Mental,
1987), criado em São Paulo; e o tex-
to de apresentação do Núcleo de
Atenção Psicossocial (Nicácio et al.,
1990), criado em Santos em 1989.
Embora os documentos tenham
sido elaborados com objetivos de
divulgação ou de tramitação admi-
nistrativa, e apesar de oferecerem
algumas limitações enquanto ins-
trumentos de análise, possuem
tificar conceitos e noções que pa-
recem ser próprios à equipe, e ter
nascido da própria experiência do
serviço e de sua reflexão sobre ela.
Além disso, se faz necessário aten-
tar ao fato de que tais serviços evo-
luíram radicalmente em determina-
dos aspectos. O objetivo da presen-
te análise não é, mais uma vez,
compará-los, mas subsidiar o de-
bate sobre a construção de novas
formas de atenção e cuidado no
campo da saúde mental.
O PROJETO ORIGINAL DO CAPS
O CAPS é inaugurado em março
de 1987, em meio a um processo de
redemocratização do país e num
contexto de transição de uma fase
sanitarista (de reformas que tinham
como princípio a inversão de uma
política nacional de privatizante
para estatizante e a implementação
de serviços extra-hospitalares), para
a chamada “desinstitucionalização”
ligada, por um lado, à idéia de de-
sospitalização (influência do mode-
lo americano), e por outro à idéia
de transformação cultural (influên-
cia do movimento italiano). O pro-
jeto, de autoria da Coordenadoria de
Saúde Mental, define a estrutura de
seu funcionamento e a clientela pri-
oritária a que se propõe a atender,
descrevendo-a como aquela “soci-
almente invalidada”, com “formas
diferentes e especiais de ser”, com
“patologias de maior complexida-
conceitos e noções que lhes confe-
rem representatividade. A nature-
za destes deve ser levada em con-
sideração, sendo importante ressal-
tar que o documento do CAPS é um
projeto escrito antes da montagem
do serviço, com o objetivo de obter
recursos para sua implementação,
portanto, sem uma preocupação de
fundamentação teórica; enquanto
que o documento do NAPS é um
texto preparado a partir da criação
do serviço, no qual podemos iden-
ANALISAMOS OS DOCUMENTOS REFERENTES
AOS PROJETOS ORIGINAIS DO CENTRO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA
ROCHA CERQUEIRA E DO NÚCLEO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE SANTOS
A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 29
de”, de “pessoas que tenham enve-
redado por um circuito de cronifica-
ção”, de “pessoas com graus variá-
veis de limitações sociais” e com
“graves dificuldades de relaciona-
mento e inserção social” (Coordena-
doria de Saúde Mental, 1987, 01).
Tratando-se de um documento
de natureza eminentemente admi-
nistrativa, não cita explicitamente
autores de referência, nem define
um marco teórico específico.
O projeto define o CAPS como “es-
trutura intermediária” entre o hospi-
tal e a comunidade, que oferece às
pessoas “um espaço institucional que
buscasse entendê-las e instrumenta-
lizá-las para o exercício da vida civil”.
Neste contexto, pensa-se, portanto,
numa rede assistencial externa inter-
mediária, não-cronificante e não-bu-
rocratizada, ligada à sociedade e à
comunidade, quando é ressaltada a
cronificação do hospital e a burocra-
tização dos serviços externos. O CAPS
corresponde, então, a um “filtro de
atendimento entre o hospital e a co-
munidade com vistas à construção de
uma rede de prestação de serviços
preferencialmente comunitária”
(idem: 02), de cunho desburocratizan-
te e de caráter multiprofissional, for-
mando uma “estrutura de continên-
cia multiprofissional que busque es-
timular múltiplos aspectos necessá-
rios ao exercício da vida em socieda-
de respeitando-se a singularidade dos
sujeitos”. (idem, ibidem).
O serviço propõe um funciona-
mento de 8 h/dia, 5 dias por sema-
na, tendo como núcleo organizador
a assistência, a reflexão sobre suas
práticas e a transmissão de suas ex-
periências a outros profissionais.
Trata-se de uma dinâmica docente-
assistencial que pretende uma dupla
instrumentalização: a dos profissio-
nais que atuam neste campo, a fim
de que possam lidar melhor com as
“patologias de maior complexidade”
(idem: 01), e a dos usuários, para a
vida em sociedade. A assistência é
definida como de atenção integral
culturais. O serviço deve buscar um
“cuidado personalizado” a quem
atende, através de um “tratamento
de intensidade máxima”, funcionan-
do como um núcleo de reflexão dos
serviços, de sistematização de infor-
mações e experiências, gerando uma
tecnologia capaz de ser transmitida
aos profissionais de saúde mental,
realizando investigações epidemio-
lógicas, clínicas e institucionais na
construção desta rede de serviços
preferencialmente comunitária.
O PROJETO ORIGINAL DO NAPS
O primeiro Núcleo de Atenção
Psicossocial nasce em setembro de
1989, na Zona Noroeste de Santos,
vinculado à Secretaria de Higiene e
Saúde, no contexto do processo de
transformação da Saúde Mental que
se desenrola em Santos, a partir da
intervenção municipal na Casa de
Saúde Anchieta.
O projeto foi elaborado após a
criação do serviço, e fundamenta-
se em determinados autores, a co-
meçar por Basaglia, do qual é to-
mada a noção de utopia para pen-
sar a ação prática de transformar a
realidade, entendendo que “abrir o
manicômio não é apenas abrir as
suas portas, mas ao abri-las, abrir
as nossas cabeças para a realidade
de vida dos pacientes” (Basaglia
apud Nicácio et al., 1990, 02).
O NAPS tem como eixo “a des-
construção do manicômio”, produ-
(no sentido psicossocial), personali-
zada, exercida através de “progra-
mas de atividades psicoterápicas,
socioterápicas de arte e de terapia
ocupacional” (idem: 02), dentro de
um enfoque “multidisciplinar” e
“pluri-institucional”. A doença men-
tal deve ser pensada no campo da
saúde coletiva, levando-se em conta
os contextos micro e macro social,
como a família, o trabalho e seu con-
texto histórico, tentando produzir
uma reinterpretação de elementos
O PROJETO DEFINE O CAPS COMO
“ESTRUTURA INTERMEDIÁRIA” ENTRE OHOSPITAL E A COMUNIDADE, QUE OFERECE
ÀS PESSOAS “UM ESPAÇO INSTITUCIONAL
QUE BUSCASSE ENTENDÊ-LAS EINSTRUMENTALIZÁ-LAS PARA O
EXERCÍCIO DA VIDA CIVIL”
AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.
30 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001
zindo um novo projeto de Saúde
Mental que se constitua numa ins-
tituição que não segregue e não ex-
clua. Tendo o manicômio como lu-
gar de violência, sua desconstrução
implica uma ética que permeia o tra-
balho. Este é um ponto-chave no
NAPS que visa superar a lógica da
assistência em direção à lógica da
produção de saúde: “A ética, en-
quanto o buscar realizar pratica-
mente a utopia é seu maior impul-
so; utopia como ação prática de
transformar a realidade (Basaglia)
e a clareza de que a negação do
manicômio como lugar de violência
não se realiza no sonho das idéias”
(Nicácio, 1990: 02).
A partir de Rotelli, outro autor
referido no texto, entende-se que, ao
contribuir com um processo de ação
e reflexão para a transformação da
estrutura manicomial, possibilita-se
uma nova e complexa realidade no
campo da saúde mental:
“(...) sair do manicômio (e esta saí-
da não é aquela triunfal, românti-
ca, mas um processo cotidiano, téc-
nico, político, cultural, legislativo)
abre um campo de possibilidades e
como tal incerto, rico, contraditório,
por vezes extremamente difícil, novo,
e belo (...) A complexidade desta
nova realidade implica instituições
em movimento, (...) em ‘aceitar o
desafio da complexidade dos múlti-
plos planos da existência não redu-
zindo o sujeito à doença ou a comu-
nicação ‘perturbada’, ou e apenas a
pobre, ou autonomizando o corpo e
ou o psíquico, mas reinscrevendo-o
no corpo social’.” (idem: 02-03).
Este desafio, acredita-se, é o da
construção de algo que não é dado,
o que requer uma certa abertura no
enfrentamento de incertezas e con-
flitos, além da necessidade de envol-
vimento de diferentes atores sociais.
Algumas estratégias da estrutu-
ra e ação do NAPS são considera-
das fundamentais para a realiza-
ção de seus objetivos. A estratégia
tar o real acesso ao serviço e do ser-
viço às pessoas que implica superar
a lógica da assistência como repara-
ção do dano para a lógica de produ-
ção de saúde (...)” (idem: 03).
Outra estratégia consiste na
abertura do debate aos cidadãos, no
dialogar com a comunidade através
das associações, Sindicatos, Igrejas.
Este debate, “não mais compreen-
dido como de domínio exclusivo dos
técnicos”, deve abordar
“(...) o significado social do manicô-
mio e de uma instituição aberta (...),
as diferentes formas de compreender a
loucura, sobre a exclusão social, a ques-
tão da cidadania. Este é um trabalho
constante (...) na prática concreta na
região: são as visitas domiciliares, a
conversa com a vizinhança quando
alguém está em crise, o diálogo no lo-
cal de trabalho (...)” (idem: 03-04).
Mais uma estratégia na ação do
NAPS é a de ter um projeto terapêu-
tico, que envolve o “cuidar de uma
pessoa”, “fazer-se responsável”,
“evitar o abandono”, “atender à cri-
se” e “responsabilizar-se pela de-
manda”, através de diferentes ins-
trumentos técnicos:
“O ‘cuidar de uma pessoa’, ou
seja a construção do projeto terapêu-
tico implica a existência daquele su-
jeito para além da remissão do sin-
toma, reparação do dano ou o olhar
para a doença. (...) Este projeto co-
loca em ação os diferentes instru-
mentos técnicos de conhecimento: a
medicação, o estar junto, os grupos,
a reunião de familiares, o atendi-
de regionalização, compreendida
como o ponto de partida para a
mudança de perspectiva, visando
uma ação de transformação cultu-
ral, e não como uma divisão admi-
nistrativa da cidade:
“(...) ou seja, o trabalho na região,
conhecer as necessidades, a deman-
da, o percurso da demanda psiqui-
átrica, conhecer e intervir nas orga-
nizações institucionais que tecem
esta Região, no sentido do NAPS ser
um ponto de referência, de possibili-
MAIS UMA ESTRATÉGIA NA AÇÃO DO NAPSÉ A DE TER UM PROJETO TERAPÊUTICO, QUE
ENVOLVE O “CUIDAR DE UMA PESSOA”,“FAZER-SE RESPONSÁVEL”, “EVITAR O
ABANDONO”, “ATENDER À CRISE” E“RESPONSABILIZAR-SE PELA DEMANDA”
A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 31
mento individual, o atendimento
familiar, a assembléia, o grupo de
mulheres, os núcleos de trabalho, o
passeio na cidade e na praia, a visi-
ta domiciliar.” (idem: 04).
O projeto terapêutico requer res-
ponsabilidade pela demanda, que
tem dois aspectos. Primeiro, a não-
separação entre prevenção/trata-
mento/reabilitação. Segundo, o
atendimento à crise, que não se li-
mita ao atendimento das emergên-
cias que chegam ao Pronto-Socor-
ro, mas também no NAPS e nas ca-
sas. Em síntese, “(...) a presença e
intervenção ativas do serviço em
diferentes momentos e situações
numa ação de transformação cul-
tural” (idem,ibidem).
É a partir destes princípios que
o NAPS pretende tornar-se um ser-
viço substitutivo ao modelo mani-
comial: “Esta compreensão e a real
possibilidade do atendimento à cri-
se são fundamentais para as insti-
tuições que se pretendem ser subs-
titutivas ao manicômio.” (idem: 05-
06). Com fundamento nesta estra-
tégia, a proposta do NAPS é de fun-
cionamento integral, isto é, de fun-
cionamento de 24 horas, 07 dias
na semana, com um conjunto de re-
cursos que incluem a existência de
seis leitos.
A transformação da equipe (as-
sim como o conceito de equipe) é
outra estratégia importante:
“A equipe é aqui compreendida
como o trabalhar junto, como o es-
paço coletivo de ação e reflexão das
práticas profissionais, do confronto,
das ‘crises’ e do pensar e repensar o
próprio serviço. (...) A transformação
do papel do técnico, as crises gera-
das na construção de um serviço
aberto, o se perceber sem as conheci-
das grades, chaves e muros na rela-
ção com a loucura, são alguns dos
temas nas reuniões diárias da equi-
pe. (...) além dos prontuários de cada
paciente, escreve-se no ‘livrão’, de
forma a ter informações mais imedi-
atas, registro do que é necessário ser
mismo da prática, serve de inspi-
ração para a proposta de dois ei-
xos fundamentais de discussão:
“ – a construção de uma política de
saúde mental a partir de experiênci-
as locais e de transformação do inte-
rior das estruturas institucionais em
particular o manicômio;”
“ – no desenvolvimento desse proces-
so a construção de estruturas exter-
nas que busquem ser totalmente subs-
titutivas à internação.” (idem: 08-09)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos projetos dos dois
serviços demonstra, por um lado,
uma riqueza de concepções e uma
multiplicidade de estratégias no
enfrentamento do modelo assis-
tencial psiquiátrico tradicional.
Por outro lado, existem várias
distinções entre os mesmos, o
que vem a indicar sua natureza
diversa. Tanto a multiplicidade
do conjunto de suas contribui-
ções, quanto suas diferenças, fa-
zem de tais projetos documentos
fundamentais de referência para
auxiliar a reflexão e a constru-
ção das novas experiências no
campo da Saúde Mental.
As portarias 189/91 e 224/92 do
Ministério da Saúde instituíram e re-
gulamentaram a estrutura dos novos
serviços em saúde mental. Embora
tenham viabilizado a construção de
muitos novos serviços, produziram
feito, do que está sendo realizado,
uma comunicação informal; as reu-
niões e o ‘livrão’ são a base da orga-
nização do trabalho. (...) Talvez a fra-
se que mais expresse todo esse pro-
cesso seja a de Rotelli, dos profissio-
nais que ‘aprendem a aprender’; e
fundamentalmente que as relações de
poder e de saber possam ser coloca-
das em discussão (...)” (idem: 06)
Gramsci é o outro autor citado
no texto, do qual a premissa con-
tra o pessimismo da razão o oti-
AS PORTARIAS
189/91 E 224/92DO MINISTÉRIO DA SAÚDE
INSTITUÍRAM E REGULAMENTARAM
A ESTRUTURA DOS NOVOS
SERVIÇOS EM SAÚDE MENTAL
AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.
32 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001
uma homogeneização das experiên-
cias originais, uma vez que as pio-
neiras, porém distintas, experiências
do CAPS e do NAPS, são considera-
das sinônimos em tais portarias1.
Na medida em que a utilização
dos “nomes próprios” de ambas as
instituições tornou-as modelos ou
modalidades de serviços, e ainda,
modelos idênticos, perdeu-se a plu-
ralidade das questões por elas intro-
duzidas. Uma das contradições im-
portantes está no fato de que, em-
bora esteja previsto o funcionamen-
to de NAPS/CAPS por 24 horas, sua
definição é a de serviço intermediá-
rio entre o regime ambulatorial e a
internação hospitalar, não sendo uti-
lizado o conceito de serviço substi-
tutivo introduzido pelo Núcleo de
Atenção Psicossocial de Santos.
Os documentos analisados dese-
nham serviços distintos que surgi-
ram da crítica prático-teórica ao tra-
tamento psiquiátrico convencional,
não correspondendo a qualquer tipo
de prática em saúde mental, a prin-
cípio, até então desenvolvida no Bra-
sil. A presente preocupação com este
tipo de análise se deve à grande im-
portância desses serviços no contex-
to das transformações ocorridas na
área, que buscam construir não uma
modernização ou humanização do
modelo anterior, mas uma superação
efetiva do mesmo. Estes têm sido, ao
menos, os princípios explícitos do
amplo e plural movimento no cam-
po denominado de antimanicomial
ou de reforma psiquiátrica.
Serem denominados de “novos”
não garante que os serviços de saú-
de mental criados sejam mediadores
e operadores de novas formas de in-
Neste sentido, acreditamos existirem
algumas questões e noções de base
que necessitem de maior debate, a
fim de oferecerem um aprofunda-
mento e uma clareza acerca da pro-
blemática dos novos serviços, num
contexto de construção do campo da
saúde mental e suas práticas.
Mais importante que os termos
são os seus significados. Por exem-
plo, ocorre que sob a denominação
“antimanicomial”, são realizadas
práticas bastante conservadoras, e
sob a de “Reforma Psiquiátrica”
muitas inovadoras. O fundamental
é precisamente esta clareza com que
os princípios são postos em discus-
são, assim como as estratégias cons-
cientes que visam, e tornam possí-
vel ou não, a superação do modelo
tradicional. A reflexão sobre os no-
vos serviços só é realizada de forma
consistente quando se coloca um
questionamento dos princípios que
norteiam a relação com a loucura. É
a partir deste aspecto central que a
inovação pode ser analisada. Isso
envolve, portanto, uma abordagem
histórica que oriente o enfrentamen-
to do processo de desconstrução do
manicômio e que funcione para ana-
1 A Portaria 189/91 introduz dois códigos de NAPS/CAPS na Tabela SIA/SUS, um para serviço de um turno e outro para serviço de dois turnos.
A Portaria 224/92 define os NAPS/CAPS como “unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com uma população adscrita definida pelo
nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos
de 4 horas, por equipe multiprofissional”, e que “podem constituir-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas
à saúde mental, considerando sua característica de unidade local e regionalizada. Atendem também a pacientes referenciados de outros
serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. Deverão estar integrados a uma rede descentra-
lizada e hierarquizada de cuidados em saúde mental”. E ainda: “São unidades assistenciais que podem funcionar 24 horas por dia, durante os
sete dias da semana ou durante os cinco dias úteis, das 8:00 às 18:00 h, segundo definições do Órgão Gestor Local. Devem contar com leitos
para repouso eventual”. (MS, PM 224;91). Grifo nosso.
tervenção no trato com a loucura ou
que sejam substitutivos do modelo
manicomial. “Novo” implica certa
direção, que deve ser explicitada.
OS DOCUMENTOS ANALISADOS DESENHAM
SERVIÇOS DISTINTOS QUE SURGIRAM DA
CRÍTICA PRÁTICO-TEÓRICA AO TRATAMENTO
PSIQUIÁTRICO CONVENCIONAL, NÃO
CORRESPONDENDO A QUALQUER TIPO DE
PRÁTICA EM SAÚDE MENTAL
A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 33
lisar a reprodução do modelo psiqui-
átrico, risco considerável com o qual
todos os novos serviços lidam ao ten-
tar se constituir. Para o trabalho no
campo da saúde mental, hoje, estas
idéias são decisivas.
O objetivo dos novos serviços,
caso procurem inscrever-se no pro-
cesso de rupturas – aqui entendi-
das no sentido epistemológico ou ar-
queológico, de rompimento radical
com determinado paradigma, ou de
construção de um novo paradigma
– com o modelo anterior, é o de pro-
duzir estruturas ou recursos que
efetivamente não reproduzam as
bases teórico-práticas do modelo
psiquiátrico clássico, que fundou a
noção de doença mental como sinô-
nimo de desrazão e patologia, que
fundou o manicômio como lugar de
cura e que fundou a cura como or-
topedia e normalização.
É importante que o Ministério da
Saúde, que normaliza as ações e
princípios do SUS, assim como o seu
financiamento, enriqueça as deno-
minações CAPS e NAPS com outras
tipificações que digam mais respei-
to à natureza dos serviços, o que
não significa que a terminologia
CAPS e NAPS deixaria de ser impor-
tante. Talvez ainda mais importan-
te, e isto não compete apenas ao
Ministério, é a formação de técni-
cos, de profissionais, nas questões
conceituais e práticas que envolvem
os novos serviços, para que os mes-
mos não sejam atualizações da psi-
quiatria, não sejam reformas, no
sentido mais precário do termo, e
sim rupturas. E como rupturas fun-
damentais entende-se, aquelas ope-
radas com:
• método epistêmico da psiquiatria,
centrado nas ciências naturais;
• conceito de doença mental, en-
quanto erro, desrazão, periculo-
sidade; e como doença, patolo-
gia, desordem;
• princípio da instituição asilar
como recurso terapêutico (o
princípio pineliano do isolamen-
to terapêutico), ainda hoje mui-
to presente em nossas velhas e
“novas” instituições e serviços;
• os princípios do tratamento
moral, atualmente presentes
nas bases das terapêuticas
normalizadoras.
Isto é, se não existirem ruptu-
ras, não existirão os novos (sem
aspas) serviços, existirão não mais
que metamorfoses, roupagens ‘no-
vas’ para velhos princípios. Assim,
cumpre verificar como se organi-
zam os novos serviços no sentido
de produzir uma instituição com
caráter substitutivo, assumindo a
demanda real dos portadores de
sofrimento psíquico e assumindo
os recursos financeiros e o pesso-
al atualmente destinado ao siste-
ma hospitalar, ao invés de seguir
criando uma nova demanda, for-
mando uma rede paralela, talvez
medicalizante/ psicologizante, tal-
vez cronicizante.
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Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 35
ARTIGOS ORIGINAIS
Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental:gênese, aproximações teóricas e questões atuais1
From health assesment to Mental Health assesment: birth, theoretical approachesand current issues
Patty Fidelis de Almeida1
Sarah Escorel2
1 As autoras agradecem às pertinentes
observações do parecerista.
2 Mestranda em Saúde Pública – ENSP/
Fiocruz.
Endereço: Avenida Maracanã 617, bloco 1,
apt. 203 – Tijuca – Rio de Janeiro – RJ
CEP: 20511 000
Fone: (21)2567-0803 / (21)9853-9103
e-mail: [email protected]
3 Pesquisadora Titular – DAPS/ENSP/Fiocruz.
Endereço: Rua Almirante Alexandrino,
3051– Santa Teresa – Rio de Janeiro – RJ
CEP: 20241 262
Fone: (21) 2270-6937
e-mail: [email protected]
RESUMO
A avaliação em saúde apresenta-se como um dos processos capazes de
fornecer subsídios importantes à tomada de decisão no setor e de responder
demandas por maior transparência no uso de recursos públicos por parte da
sociedade civil organizada. Elegendo como ponto de partida as principais
mudanças ocorridas na assistência em Saúde Mental em curso a partir do
movimento pela Reforma Psiquiátrica no país, o presente artigo discute
questões pertinentes às definições de avaliação, ao desenvolvimento de estudos
em outros países, além de expor algumas especificidades relativas à atenção
psicossocial. A seguir são apresentadas algumas considerações sobre impasses
e perspectivas pertinentes à avaliação em saúde, com ênfase em metodologias
de avaliação participativas.
PALAVRAS-CHAVE: avaliação em saúde, avaliação em Saúde Mental, serviços
substitutivos
ABSTRACT
Health evaluation comes forward as one of the processes capable of
providing important foundations for decision making in the field and of
satisfying demands of the organized civil society for more transparency in
the use of public resources. Using as a start point the main changes in
Mental Health assistance due to the Psychiatric Reform in this country, the
present paper discusses the issues pertinent to the definitions of evaluation,
development of studies in foreign countries, as well as presenting a few
specificities of psychiatric-social care. Then a few considerations over the
obstacles and perspectives pertinent to health care evaluation, focusing on
collaborative evaluation methods are presented.
KEY-WORDS: health evaluation, mental health evaluation, substitutive services
ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.
36 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001
INTRODUÇÃO
Em termos históricos, foi só a
partir da década de 80 que o movi-
mento pela Reforma Psiquiátrica1 no
Brasil ganhou importância, tanto
política como social. Para a sua im-
plementação foi preciso inventar
novos locais, instrumentos técnicos
e terapêuticos, como também novos
modos sociais de estabelecer rela-
ções com a loucura.
Nos anos 90, assistimos à cria-
ção e à consolidação de propostas
como Centros de Atenção Psicosso-
cial (CAPS), Núcleos de Atenção Psi-
cossocial (NAPS), Lares Abrigados,
etc., embora desde a década de 80
algumas experiências já estivessem
sendo desenvolvidas (Venancio,
1990). O desafio atual parece ser efe-
tivar as propostas da Reforma Psi-
quiátrica no sentido de implementar
novos dispositivos, embora os hos-
pitais tradicionais ainda absorvam
a maior parte das verbas destinadas
ao atendimento em psiquiatria.
Tendo em vista a reforma da as-
sistência psiquiátrica e a mudança do
paradigma asilar/hospitalocêntrico de
tratamento, o campo da atenção psi-
cossocial na última década foi grada-
tivamente delineando-se como um
espaço marcado pela diversidade de
linhas teóricas, de propostas terapêu-
ticas e de objetivos. Contudo, ainda
são escassos os estudos que priori-
zam a avaliação dos serviços substi-
tutivos, tanto em relação à qualida-
de, quanto ao acompanhamento dos
resultados que permitam auxiliar nas
mudanças estratégicas. Buscando for-
necer elementos para o debate sobre
os desafios e possibilidades que ca-
racterizam o campo da avaliação de
políticas, programas e serviços de
saúde, enfatizando as especificidades
da área de Saúde Mental, o presente
artigo apresenta uma breve revisão
da literatura pertinente ao tema, para
cebe-se que as definições são nume-
rosas e, de certa forma, construídas
a partir do referencial do próprio
avaliador. Guba e Lincoln (1989)
identificam na história da avaliação
quatro gerações. Cabe ressaltar que
a passagem de uma a outra não re-
presentou o desaparecimento da
etapa anterior, sendo a categoriza-
ção por gerações um elemento di-
dático. A primeira geração caracte-
rizou-se pelas técnicas de medida
como testes de inteligência e avali-
ação de desempenho escolar. O ava-
liador era um técnico que deveria
saber construir e/ou utilizar instru-
mentos de medida. Entre os anos 20
e 30 desenvolveu-se a segunda ge-
ração preocupada em identificar e
descrever como os programas edu-
cacionais atingiam seus resultados
e, para tanto, concentraram-se na
análise de currículo. Para a terceira
geração a avaliação permitiria não
só descrever e mensurar, mas tam-
bém julgar o mérito de uma inter-
venção a partir de referenciais ex-
ternos. Atualmente, segundo os au-
tores, estaríamos vivendo a quarta
geração, momento em que a avalia-
ção é caracterizada por um proces-
so de negociação entre avaliado e
avaliador, com propostas de caráter
participativo e inclusivo.
Contandriopoulos et al. (1997)
consideram que o processo de ava-
liação é caracterizado por estabele-
a seguir tecer considerações sobre os
impasses, além de discutir propostas
de metodologias de avaliação.
(IN) DEFINIÇÕES DE AVALIAÇÃO:NOTAS INTRODUTÓRIAS
Quando empreende-se a tarefa
de tentar conceituar ‘avaliação’, per-
1 Sobre esse assunto ver Amarante, 1995 e 1996; Birman e Costa, 1994; Desviat, 1999.
O DESAFIO ATUAL PARECE SER EFETIVAR AS
PROPOSTAS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO
SENTIDO DE IMPLEMENTAR NOVOS
DISPOSITIVOS, EMBORA OS HOSPITAIS
TRADICIONAIS AINDA ABSORVAM A MAIOR
PARTE DAS VERBAS DESTINADAS AO
ATENDIMENTO EM PSIQUIATRIA
Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 37
cer um julgamento de valor sobre
uma determinada intervenção ou
qualquer um de seus elementos,
com o objetivo de auxiliar a toma-
da de decisões. Para a OMS avalia-
ção é um processo importante para
o planejamento estratégico na me-
dida em que permite a formulação
de juízos apoiados em análises de
situações específicas, com o objeti-
vo de chegar a conclusões bem fun-
damentadas que subsidiem ações
futuras. Os julgamentos formados
não devem pressupor uma senten-
ça final, ao contrário, devem ser
pertinentes, sensíveis e acessíveis a
todos os que deles possam fazer uso
(OMS, apud Aguilar e Ander-Egg,
1994). Dessa forma, a avaliação só
justifica-se quando permite uma re-
troalimentação dos processos em
curso, a fim de corrigir, sanar ou
evitar eventuais ‘erros’, estabelecen-
do estratégias para melhorar a qua-
lidade da assistência prestada.
Os objetivos de um processo ava-
liativo serão distintos em função do
que se pretende avaliar. A análise
de políticas, programas ou serviços
exige diferenciações na escolha das
variáveis, dos atores e do locus so-
bre o qual incidirá a avaliação. Ape-
sar disso, ainda é recente na litera-
tura o esforço para destacar as es-
pecificidades da avaliação no cam-
po das políticas sociais e da avalia-
ção de programas e serviços, espe-
cialmente no campo da saúde.
Toda perspectiva de avaliação
está comprometida com formas de
conceber e interpretar a realidade.
Tentativas de tornar crenças e valo-
res do pesquisador menos tenden-
ciosos passam pela compreensão de
que o modelo adotado é somente
uma das possibilidades de interpre-
tar a realidade, mas não a contem-
pla em sua plenitude. O objetivo de
um processo avaliativo é “(...) rea-
limentar ações buscando aferir re-
sultados e impactos na alteração da
qualidade de vida da população be-
neficiária, ou ainda, mais precisa-
entre avaliador e contexto avaliado
sobre a forma por meio da qual os
resultados obtidos nesta interação
poderiam ser utilizados.
Para Donabedian (1990) seriam
três os enfoques possíveis para um
processo de avaliação. Na avaliação
de estrutura analisam-se os recur-
sos utilizados (físicos, humanos,
materiais, etc.) e organizacionais da
atenção. Vuori (1991) considera que
o pressuposto principal da aborda-
gem estrutural é que boas pré-con-
dições, ou boa disponibilidade de
recursos como força de trabalho,
instalações, equipamentos, entre
outros, tendem a gerar resultados
mais favoráveis.
A avaliação de processo enfoca
as atividades desenvolvidas em ter-
mos de utilização de recursos, qua-
litativos e quantitativos, pela equi-
pe em benefício do usuário. Inclui
também o que os pacientes fazem
por si próprios (Donabedian, 1990).
A avaliação de resultados em
saúde corresponderia à análise das
conseqüências na saúde de indivídu-
os e populações da atenção ofereci-
da pelo serviço ou por um profissio-
nal específico. Para Vuori (1991) se
os objetivos da atenção forem curar
ou evitar a progressão de doenças,
restaurar o estado de saúde ou alivi-
ar a dor e o sofrimento, pode-se con-
siderar o êxito da assistência quan-
do são alcançados esses resultados.
O ‘resultado’ supõe uma mudança no
estado de saúde, para melhor ou pior,
que possa ser atribuída à atenção
mente, repensar as opções políticas
e programáticas” (Carvalho, 1999).
A imparcialidade e independên-
cia dos dados obtidos na avaliação
ganham ainda mais destaque na
avaliação interna, ou seja, quando
se quer julgar uma realidade da qual
o pesquisador faz parte. Em qualquer
caso, alguns fatores poderiam garan-
tir a qualidade e a utilidade da ava-
liação como, por exemplo, uma boa
qualificação dos profissionais envol-
vidos e as estratégias construídas
AINDA É RECENTE NA LITERATURA
O ESFORÇO PARA DESTACAR AS
ESPECIFICIDADES DA AVALIAÇÃO NO
CAMPO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E DA
AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS E SERVIÇOS,ESPECIALMENTE NO CAMPO DA SAÚDE
ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.
38 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001
recebida. Pode incluir outros elemen-
tos como conhecimento sobre a en-
fermidade, mudanças de conduta
que promovam saúde, produção de
indicadores ou índices do nível de
saúde de determinada população e
satisfação do paciente.
As críticas sobre a avaliação de
resultados recaem sobre a dificul-
dade em atribuir determinada mu-
dança no estado de saúde da popu-
lação à intervenção específica pois
os ‘resultados’ sofrem influência de
inúmeras variáveis. Para Vuori
(1991) os impasses apresentam-se
também na definição de padrões,
por meio dos quais possam ser men-
surados os resultados observados.
Defensores desse enfoque argumen-
tam que a melhoria nas condições
de saúde do paciente seria a prova
final de que a atenção foi positiva
(Donabedian,1990).
Não existe qualquer tipo de ava-
liação que possa ser definida como
instrumental, técnica ou neutra vis-
à-vis as opções valorativas de quem
empreende esse processo. Entretan-
to, conforme ressalta Arretche: “(...)
o uso adequado dos instrumentos
de análise e avaliação são funda-
mentais para que não se confundam
opções pessoais com resultados de
pesquisa” (1999:30). Dessa forma,
uma questão que deve estar sem-
pre presente, refere-se ao ambiente
político ou ao lugar ocupado pelo
programa ou serviço em análise
dentro do campo das políticas pú-
blicas em determinado contexto.
Lobo (1999) destaca que as forças
políticas que apoiam ou sabotam
um determinado programa, a lógi-
ca econômico-financeira que norteia
a alocação do gasto público, as cren-
ças sobre a maior ou menor neces-
sidade de democratização do Esta-
do, bem como as concepções de efi-
ciência, efetividade e eficácia das
ações governamentais na área soci-
al, fazem parte da reflexão mais
ampla que ajudam a definir de fato
o que está sendo avaliado. Para Hartz
Guerra Mundial, com o objetivo de
tornar mais eficiente a distribuição
de recursos pelo Estado. Segundo
Contandriopoulos et al. (1997) tais
abordagens logo mostraram-se in-
suficientes quando aplicadas a pro-
gramas sociais e educacionais.
Nos EUA, desde os anos 50, de-
senvolveram-se pesquisas de avali-
ação que utilizavam inquéritos e
análises estatísticas sob uma pers-
pectiva pluridisciplinar, tendo como
base conhecimentos das ciências
sociais. No mesmo país, a imple-
mentação de políticas sociais gover-
namentais de nível federal nos pe-
ríodos Kennedy e Johnson reforça-
ram a importância de pesquisas
avaliativas (Perez, 1999). Na déca-
da de 70, a necessidade de avaliar
ações sanitárias impôs-se como um
meio de controlar os custos do sis-
tema de saúde. Desde então, em um
número significativo de países
(EUA, Canadá, França, etc.) a avali-
ação sanitária detém grande prestí-
gio e investimentos.
Na França a função avaliação de
programas/políticas públicas está
institucionalizada, funcionando, ao
mesmo tempo, como um dispositi-
vo analítico e de gestão, moldado
como uma política. Um importante
marco da institucionalização foi a
fundação do Office Parlementaire
d’Evaluation des Choix Scientifiques
et Technologiques (1983), inspira-
do no Office of Technology Assess-
ment, órgão ligado ao congresso
norte-americano. O modelo francês
(1999) seria importante considerar
também as orientações ideológicas
que atravessam os programas sob
análise, ressaltando o fato de que,
mesmo para abordagens teórico-
metodológicas da mesma natureza,
os valores podem ser contrastantes.
AVALIAÇÃO EM SAÚDE: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
A avaliação de programas públi-
cos surgiu logo após a Segunda
CONFORME RESSALTA ARRETCHE:“(...) O USO ADEQUADO DOS
INSTRUMENTOS DE ANÁLISE EAVALIAÇÃO SÃO FUNDAMENTAIS
PARA QUE NÃO SE CONFUNDAM
OPÇÕES PESSOAIS COM RESULTADOS
DE PESQUISA” (1999:30)
Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 39
é caracterizado por sua abordagem
setorial, que apresenta resultados
promissores vis-à-vis modalidades
mais tradicionais e centralizadas
(Hartz, 1999 a).
Em relação aos países latino-
americanos criou-se, em 1944, na
Argentina, com financiamento do
Banco Mundial, o Sistema de Infor-
mação, Avaliação e Monitoramento
de Programas Sociais (SIEMPRO).
Os objetivos do sistema são acom-
panhar gastos na área social, pro-
duzir diagnósticos sobre a alocação
de recursos públicos, fornecer à Se-
cretaria de Desenvolvimento Social
recursos e instrumentos necessári-
os à operação de um sistema de in-
formação social, monitoramento,
avaliação e capacitação em gestão
social. A meta é integrar os siste-
mas de informação social aos pro-
cessos de avaliação, democratizan-
do as informações geradas. Apesar
de ter atingido um grau de institu-
cionalidade no país, a implementa-
ção da função avaliação ainda está
muito limitada aos programas fo-
calizados dirigidos às populações
pobres e grupos vulneráveis (Silva
e Costa, 2000).
No Chile, a função avaliadora
está relacionada à criação do Comi-
tê Intersetorial de Modernização da
Gestão Pública, instituído com o
objetivo de fornecer subsídios à
modernização das instituições pú-
blicas. Embora nesse país esteja
explícita uma orientação normati-
va à incorporação de instrumentos
de responsabilização e desempenho
para a administração pública, os
resultados da avaliação acabam por
tornar-se difusos na medida em que
não está claramente definida a ins-
tância operacional da gestão públi-
ca que será alvo de avaliação (Silva
e Costa, 2000).
Uma exploração inicial sobre o
campo da avaliação no Brasil de-
monstra que grande parte das aná-
lises existentes priorizam a racio-
nalização de gastos por meio de
nuidade, falta de documentação e
de sistematização dos resultados
obtidos. Duas características predo-
minantes no planejamento governa-
mental do Brasil seriam responsá-
veis pela situação: “a ênfase na for-
mulação de planos e elaboração de
programas e projetos; e, baixo de-
senvolvimento das etapas de acom-
panhamento e de avaliação dos pro-
cessos, resultados e impactos” (Sil-
va e Costa, 2000: 10).
Atualmente, organismos inter-
nacionais como o Banco Mundial,
provedor de assistência técnica e fi-
nanceira de reconhecida importân-
cia nos países em desenvolvimen-
to, incorporaram a “capacidade em
avaliação” como uma das priorida-
des para a gestão do setor público,
com o objetivo de garantir a sus-
tentabilidade dos programas (Pic-
cioto, 1997 apud Hartz, 1999). Ou-
tra consideração importante rela-
ciona-se à necessidade corrente-
mente apontada de uma pluralida-
de de abordagens metodológicas,
em que análises qualitativas agre-
gam tanto valor quanto julgamen-
tos de cunho estatístico.
O cenário atual coloca em evi-
dência também o interesse social
pelo processo de avaliação, em par-
ticular dos segmentos definidos
como stakeholders de alguns pro-
gramas governamentais. De acordo
com Silva e Costa, uma das exigên-
cias feitas aos programas sociais
seria “ (...) a definição de mecanis-
mos de acompanhamento e avalia-
abordagens de custo-benefício, le-
gitimam ações sanitárias muitas
vezes questionáveis ou estão inti-
mamente relacionadas a enfoques
pessoais de técnicas ou programas
(Pitta, 1992). Segundo Silva e Cos-
ta (2000), o país apresenta grande
diversidade e amplitude de concei-
tos e abordagens no campo da ava-
liação, embora as experiências de-
senvolvidas sejam consideradas in-
suficientes e insatisfatórias, princi-
palmente pela dispersão, desconti-
SEGUNDO SILVA E COSTA (2000),O PAÍS APRESENTA GRANDE DIVERSIDADE
E AMPLITUDE DE CONCEITOS EABORDAGENS NO CAMPO DA AVALIAÇÃO,
EMBORA AS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDAS
SEJAM CONSIDERADAS INSUFICIENTES
E INSATISFATÓRIAS
ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.
40 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001
ção que facilitem a comunicação do
governo com os beneficiários e aten-
dam aos requisitos de responsabili-
zação perante a sociedade” (2000: 9).
AVALIAÇÃO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL
A avaliação de serviços em Saú-
de Mental ainda é um campo de es-
tudos bastante recente no Brasil,
embora alguns trabalhos já estejam
sendo desenvolvidos (Pitta et al.,
1997; Silva Filho et al., 1996, Li-
bério, 1999). Tais propostas procu-
ram criar novos instrumentos de
avaliação capazes de superar os
tradicionalmente utilizados pela
clínica psiquiátrica como número
de altas, diagnóstico e remissão de
sintomas. Contudo, apesar da his-
tória também recente dos modelos
substitutivos no país, a necessida-
de de um processo de avaliação tor-
nou-se um imperativo tanto para a
superação de modelos tradicionais,
incapazes de estabelecer fluxos
entre a implementação de determi-
nadas políticas ou programas e
seus resultados, quanto para o con-
trole e participação da sociedade
civil organizada. É consenso entre
os estudos realizados na área que
os parâmetros avaliativos de que
dispomos no campo da atenção
psicossocial são insuficientes, prin-
cipalmente no que diz respeito aos
indicadores produzidos no interior
dos serviços, que possam refletir o
dia-a-dia desses serviços.
Amarante e Carvalho (1996)
chamam a atenção para o proble-
ma de utilizar “técnica-pura” como
solução para questões cotidianas
sob o risco de homogeneização e
mecanização da realidade. A cons-
trução de novos parâmetros deve-
ria ter como fonte o interior dos
serviços permitindo, dessa forma,
a interação pesquisador-institui-
ção na construção de “(...) indica-
a ser apreendido como processo
em construção.
Em trabalho realizado em servi-
ços substitutivos da cidade do Rio
de Janeiro, Rietra (1999) destacou
a ausência de indicadores qualita-
tivos e quantitativos que possibili-
tem mensurar o alcance ou não das
metas estipuladas pelos serviços.
Embora ressalte que o trabalho de-
senvolvido seja de difícil medição,
reafirma a necessidade da elabora-
ção de indicadores específicos que
possibilitem o acompanhamento
dos resultados. Na perspectiva de
Saraceno e Bologaro (apud Silva Fi-
lho, 1996), que têm como referenci-
al a experiência da “Instituição Ne-
gada”2, o modelo a ser construído
para avaliação de serviços de Saú-
de Mental não deve considerar so-
mente a supressão ou redução dos
sintomas. Deve-se analisar também
a inserção familiar, no trabalho e na
vida cotidiana, captadas por meio
do que os autores denominaram
como variáveis soft, em função de
sua difícil mensurabilidade por en-
volver motivação de técnicos, expec-
tativas e satisfação da equipe com
o serviço. Neste sentido, haveria
“eventos sentinela”, fatos que seri-
am inadmissíveis no cotidiano dos
serviços substitutivos de Saúde
Mental, como ausência de projeto
terapêutico para o usuário. Ainda
assim, os autores não negam a im-
portância de variáveis hard como
tivos que possuam como fonte
principal as relações exercitadas
na instituição, principalmente no
que elas possam construir enquan-
to ética de inclusão e produção de
vida, tais como o conceito de au-
tonomia” (Amarante e Carvalho,
1996:81). Esses princípios impli-
cam a superação da dicotomia
quantitativo-qualitativo e elegem
as relações do cotidiano como algo
2 Sobre este assunto ver Basaglia, 1981.
A AVALIAÇÃO DE SERVIÇOS EM
SAÚDE MENTAL AINDA É UM CAMPO DE
ESTUDOS BASTANTE RECENTE NO BRASIL,EMBORA ALGUNS TRABALHOS JÁ ESTEJAM
SENDO DESENVOLVIDOS (PITTA ET AL.,1997; SILVA FILHO ET AL.,1996, LIBÉRIO, 1999)
Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 41
número de técnicos, número de sa-
las, carga horária, entre outras. Su-
gerem que a identificação de um
problema relevante, definição dos
critérios e padrões de qualidade,
construção de indicadores a partir
das informações coletadas na reali-
dade sob avaliação, posterior con-
fronto entre dados obtidos e critéri-
os previamente definidos, bem como
a discussão dos resultados são eta-
pas fundamentais a serem observa-
das (apud Silva Filho, 1996).
Com o objetivo de desenvolver
instrumentos de avaliação em Saú-
de Mental, O Laboratório de Inves-
tigação em Saúde Mental do Depar-
tamento de Medicina Preventiva da
USP3 empreendeu uma pesquisa
cujo objetivo foi caracterizar a po-
pulação atendida em um ambulató-
rio de Saúde Mental, no município
de São Paulo, dando ênfase aos as-
pectos epidemiológicos clássicos
(idade, sexo, diagnóstico, etc.) e in-
vestigando entre os usuários a pre-
sença ou ausência de autonomia.
Esta pesquisa fez parte de um estu-
do multicêntrico de Avaliação de
Qualidade de Programas e Serviços
de Saúde Mental desenvolvido e es-
timulado em diversos países4 pela
OMS. O instrumento básico de ava-
liação foi a Ficha de Caracterização
da Clientela (FCC). A pretensão da
pesquisa foi testar este instrumen-
to, verificando sua aplicabilidade
para estendê-lo posteriormente à
avaliação de outros serviços. A
questão da autonomia na pesquisa
citada, considerou os critérios prag-
máticos de autonomia para higie-
ne, alimentação, medicação, ir e vir,
trabalho e relações sociais (família,
amigos, grupos sociais).
Também considerando a produ-
ção de autonomia como uma das
vias possíveis para pensar a avalia-
ção da qualidade de serviços em Saú-
idéia de que o sujeito possa falar al-
guma coisa e ser entendido naquilo
que está dizendo. Assim, quando o
sujeito psicótico expressa-se, ainda
que tudo não tenha sido compreen-
dido, “algo da ordem de uma subje-
tividade se dá”. Ao mesmo tempo, o
tratamento proporcionaria também
a aquisição de habilidades de ordem
pragmática, como capacidade de ge-
rir dinheiro, ir e vir, cuidados com a
higiene entre outras habilidades ne-
cessárias à gestão do cotidiano, au-
mentando com isso a “qualidade de
vida” (Santos e Almeida, 2000).
Em trabalho que vem sendo rea-
lizado em um CAPS do município do
Rio de Janeiro pode-se apontar que
algumas iniciativas de avaliação do
serviço começam a ser implemen-
tadas. Para tal, vem sendo empre-
endida ampla discussão sobre quais
os objetivos de alguns dispositivos
terapêuticos utilizados, como as ofi-
cinas, redefinição de contratos dos
usuários e porta de entrada do ser-
viço. Em meio a essas discussões,
alguns critérios podem ser aponta-
dos nas discussões de equipe como
indicativos importantes a serem
atingidos pelo serviço: participação
de familiares no tratamento, parti-
cipação dos usuários em atividades
geradoras de renda, estabelecimen-
to de vínculos entre usuários e ou-
tros dispositivos da rede social do
3 Sobre a pesquisa ver Pitta et al. (Org.), 1997.
4 No Brasil, esse estudo envolveu o município de Niterói no estado do Rio de Janeiro e os municípios de Santos, Campinas e São Paulo, em
São Paulo.
de Mental, um estudo realizado em
um CAPS no estado de Minas Gerais
viabilizou a percepção de que, para
os técnicos, autonomia relaciona-se
à melhoria da “qualidade de vida”.
Neste sentido, os usuários passari-
am a estabelecer “laços sociais” não
verificados antes do início do trata-
mento. Esse conceito traduz-se pela
UM ESTUDO REALIZADO EM UM
CAPS NO ESTADO DE MINAS GERAIS
VIABILIZOU A PERCEPÇÃO DE QUE, PARA OS
TÉCNICOS, AUTONOMIA RELACIONA-SE ÀMELHORIA DA “QUALIDADE DE VIDA”
ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.
42 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001
bairro como locais de lazer e cursos
profissionalizantes, e desenvolvi-
mento da capacidade de reivindicar
direitos. Para a consecução desses
objetivos, iniciativas relacionadas
ao incremento de oficinas produti-
vas, estabelecimento de contato com
outras instâncias da rede social da
área, busca de vagas em cursos de
informática, marcenaria, entre ou-
tros, além de um trabalho de cunho
político com a associação de usuá-
rios e familiares, começam a ser in-
tensificadas e discutidas com mai-
or profundidade (Almeida, 2001).
A Gerência de Programas de Saú-
de Mental do município do Rio de
Janeiro, com o objetivo de acompa-
nhar a qualidade da assistência pres-
tada pelos CAPS vem desenvolven-
do o Programa de Acompanhamen-
to da Qualidade dos Centros de Aten-
ção Psicossocial, propondo o moni-
toramento de alguns indicadores
como: perfil da clientela atendida,
índices de internação, abandono do
tratamento e adesão de famílias ao
tratamento, número de usuários do
serviço que retornam à escola, ao
trabalho ou a atividades da vida co-
munitária. Neste sentido, avaliações
periódicas da assistência prestada
vem sendo compreendida pela Gerên-
cia como um dever ético dos gesto-
res públicos, mas principalmente
como um instrumento de reflexão
para os atores diretamente envolvi-
dos na assistência (Libério, 1999).
A necessidade de apontar os re-
sultados da assistência no campo da
Saúde Mental é um tema controver-
tido. Como desenvolver um proces-
so de avaliação e quais instrumen-
tos utilizar que considerem a sin-
gularidade da atenção à loucura e
que respondam às exigências de re-
solutividade de um serviço público?
A adoção apenas de critérios prag-
máticos não parece suficiente para
abarcar a complexidade da experi-
ência de uma clientela específica
como os portadores de sofrimento
psíquico. De acordo com Pitta (1997)
vidas no cotidiano dos serviços
substitutivos, talvez seja uma estra-
tégia para caracterizar os pontos
que distinguem as novas modalida-
des terapêuticas dos velhos dispo-
sitivos manicomiais, além de cons-
tituir um instrumento analítico pri-
vilegiado, sem o qual corre-se o ris-
co de reproduzir hegemonias e no-
vos enclausuramentos.
DILEMAS DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE: DOSIMPASSES ÀS SOLUÇÕES POSSÍVEIS
Nesta breve tentativa de delimi-
tar conceitualmente as diversas nu-
ances que o pensar a avaliação nos
impõe, pode-se apontar também
impasses que fazem parte de um
contexto mais geral, externo à ava-
liação stricto sensu, mas que po-
dem funcionar ora como facilitado-
res e ora como dificultadores des-
se processo.
Uma dificuldade arrolada refe-
re-se à institucionalidade da função
avaliação. No Brasil, a avaliação de
políticas e de programas públicos
ainda não está conformada como
parte da administração pública, que
pressupõe, segundo Hartz, “(...) in-
tegrá-la em um modelo orientado
para ação, ligando atividades ana-
líticas às de gestão, constituindo
assim uma formulação da política
de avaliação para avaliação de po-
líticas” (1999a:229). Para Cotta
(1998) tal dificuldade é gerada em
parte pela complexidade de algumas
os impasses tornam-se prementes
nas áreas em que julgamentos de-
vem ser construídos singularmen-
te, como no caso da loucura e por
tratar-se de uma atividade humana
caracterizada por trocas intersubje-
tivas entre alguém que precisa de
ajuda e aquele que se coloca no lu-
gar de proporcionar essa ajuda. O
desenvolvimento de metodologias
de avaliação mais participativas,
que envolvam um conhecimento
mais amplo das práticas desenvol-
A NECESSIDADE DE
APONTAR OS RESULTADOS
DA ASSISTÊNCIA NO
CAMPO DA SAÚDE MENTAL
É UM TEMA CONTROVERTIDO
Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 43
metodologias de avaliação e tam-
bém por desinteresse dos policy
makers e receio dos gestores dos
programas públicos. Dessa forma,
deixa-se de utilizar um importante
instrumento gerencial, capaz de for-
necer elementos tanto para o pro-
cesso decisório como para a lógica
de funcionamento de intervenções
em realidades sociais.
A ausência de um modelo teóri-
co definido em relação aos progra-
mas e serviços públicos de saúde, e
especialmente para os serviços de
Saúde Mental, traz outras importan-
tes dificuldades para o campo da
avaliação. O modelo teórico preco-
niza e define de que forma deveria
funcionar um programa ou um ser-
viço, de modo a explicitar o proble-
ma, a população e o contexto alvos
da intervenção, os efeitos a curto,
médio e longo prazo que se preten-
de atingir, bem como os recursos e
atributos do programa necessários
ao alcance dos objetivos propostos.
Sua importância é tão significativa
que, para Hennessy (apud Hartz,
1999), somente as políticas e pro-
gramas que tivessem um modelo
teórico bem definido, assim como as
medidas e indicadores pertinentes,
deveriam ser alvo de avaliações.
Na área de Saúde Mental, para
que um modelo teórico possa ser
produzido, algumas questões mere-
cem reflexão: sob que aspectos deve-
se intervir, ou melhor dito, sob que
parâmetros éticos pode-se construir
um novo modelo de intervenção
médico-social? Parece que os dispo-
sitivos de Saúde Mental, que evolu-
em do interesse em contextualizar
socialmente vidas humanas por trás
das crises vislumbradas de forma
reducionista pela psiquiatria, trans-
formou-se em um amálgama de dis-
ciplinas que unem-se por um discur-
so que, ora está ligado à psicanáli-
se, ora ao assistencialismo, ora a
um retorno à própria psiquiatria,
mas que, de certo modo, ainda não
conseguiu vislumbrar uma coerên-
vias; experiências, idéias e perspec-
tivas de diversos grupos de interes-
se (avaliadores e gestores); e, por
meio de conhecimento produzido
pelas ciências sociais (Hartz, 1999;
Chen, 1990 apud Furtado, 2001).
Sugere-se que o modelo teórico a ser
construído deva incorporar elemen-
tos das diversas fontes de geração
de dados e conhecimentos disponí-
veis no momento de implementação
de determinado programa ou servi-
ço, a fim de incorporar tanto a par-
ticipação dos grupos de interesse
quanto a possibilidade de releitura
da realidade a partir de contribui-
ções externas.
Contudo, apesar da inegável im-
portância da definição de um mo-
delo teórico como etapa prévia da
implementação de programas e ser-
viços públicos, iniciativas de ava-
liação não podem estar condicio-
nadas a sua existência, mesmo por-
que a tradição brasileira não incor-
pora esta fase como parte da im-
plementação de projetos. Nesse
sentido, um processo de avaliação
pode incluir também a construção
de um modelo teórico da realidade
a ser estudada, a partir dos objeti-
vos implícitos e explícitos existen-
tes, de modo que o produto final
seja discutido e legitimado pelos
atores sociais envolvidos.
Pode-se afirmar que para reali-
zar qualquer tipo de avaliação é pre-
ciso que estejam disponíveis indi-
cadores capazes de quantificar e/ou
qualificar de forma o mais próxima
cia transdiciplinar unificadora. O
objetivo não é construir um pensa-
mento único dominante no campo,
mas apontar a necessidade de uma
certa coerência teórica entre os di-
versos saberes que o constituem, até
para que seja possível estabelecer
práticas de intervenção social e de
cuidados que possam ser avaliados
de forma mais clara e sistemática.
O modelo teórico pode ser cons-
truído a partir de diversas fontes
como: resultados de pesquisas pré-
A AUSÊNCIA DE UM MODELO TEÓRICO
DEFINIDO EM RELAÇÃO AOS PROGRAMAS
E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE, EESPECIALMENTE PARA OS SERVIÇOS DE
SAÚDE MENTAL, TRAZ OUTRAS
IMPORTANTES DIFICULDADES PARA
O CAMPO DA AVALIAÇÃO
ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.
44 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001
possível do real fatos, processos e
situações. Avaliações de determina-
dos tipos de programas e serviços
envolvem geralmente situações
complexas que não podem ser apre-
endidas sem mediações. Dessa for-
ma, “(...) o indicador é, simplesmen-
te, uma forma de nos aproximarmos
do conhecimento de algo que não
podemos captar diretamente” ou
então podemos compreendê-lo como
“(...) medidas específicas (explícitas)
e objetivamente verificáveis das
mudanças ou resultados de uma
atividade” (Aguilar & Ander-Egg,
1994: 123-124). Cabe ressaltar que
por mais numerosos que sejam os
indicadores utilizados, estes não
refletem totalmente um conceito.
Como já mencionado anterior-
mente, o campo da atenção psicos-
social carece ainda de indicadores
capazes de traduzir a nova realida-
de da assistência. A quantidade e
qualidade das informações disponí-
veis sobre o que se pretende avaliar
tem importância fundamental para
a escolha ou elaboração dos indica-
dores. Para Aguilar e Ander-Egg
(1994) o ideal seria produzir indi-
cadores que utilizem os dados já
existentes ou disponíveis. Além dis-
so, para a avaliação de processos
sociais que guardam em si maior
complexidade pode-se optar pelo
uso de indicadores consensuais, que
parece ser o caso de algumas inter-
venções em Saúde Mental.
Cabe destacar ainda algumas
críticas aos processos tradicionais,
mesmo porque o campo do sofri-
mento psíquico e das suas formas
de cuidado traz em si especificida-
des de ordem subjetiva e social que
não devem ser ignoradas. Alguns
dos questionamentos sobre as tra-
dicionais formas de avaliar recaem
sobre o caráter externo desses pro-
cessos, busca de objetividade como
sinônimo de significância quantita-
tiva, preocupação exclusiva com a
eficiência, incapacidade de incorpo-
rar dados contextuais e baixa rele-
aos serviços substitutivos em Saú-
de Mental que já incorporam em sua
lógica de funcionamento o desenvol-
vimento de estratégias e espaços
produzidos coletivamente.
A metodologia da avaliação par-
ticipativa surgiu no rastro da cha-
mada pesquisa-ação e, por esse
motivo, faz uso de princípios, pro-
cedimentos e estratégias corrente-
mente utilizadas pela mesma. Essa
abordagem justifica-se na medida
em que se tem como objetivo incor-
porar técnicos, usuários, familiares
ou gestores como atores das ações
públicas, de forma a auxiliar as to-
madas de decisão. Parte-se do prin-
cípio de que a participação dos im-
plicados na assistência sob análise
“(...) retira o avaliador da posição
solitária de único agente valorati-
vo” (Carvalho, 1999:91). Pretende-
se, dessa forma, que o processo de
avaliação ganhe em confiabilidade
e legitimidade entre os atores soci-
ais envolvidos.
Nessa perspectiva, ganham
destaque os estudos de caso, que,
de acordo com Hartz, são recomen-
dados com ênfase quando “(...) o
objeto de investigação é de gran-
de complexidade, a tal ponto que
o fenômeno de interesse não se
distingue facilmente das condições
contextuais, necessitando infor-
mações de ambos” (1999:344).
São indicados também quando o
alvo da avaliação é uma interven-
ção inovadora, da qual ainda não
se tenha muitas informações. Uma
vância dos resultados para os ato-
res envolvidos na intervenção. Tal-
vez em função de um ou mais dos
fatores acima mencionados, a ava-
liação seja associada, em muitas
ocasiões, a auditorias ou controles
externos com o objetivo de controle
de produtividade.
Metodologias de avaliação par-
ticipativas, somadas à pluralidade
metodológica, possibilitam superar
esses impasses. Tais estratégias
parecem ser bastante pertinentes
PARA A AVALIAÇÃO DE PROCESSOS
SOCIAIS QUE GUARDAM EM SI
MAIOR COMPLEXIDADE PODE-SE]OPTAR PELO USO DE INDICADORES
CONSENSUAIS, QUE PARECE SER OCASO DE ALGUMAS INTERVENÇÕES
EM SAÚDE MENTAL
Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 45
das técnicas que vêm sendo cada
vez mais utilizadas são os grupos
focais, instrumento de pesquisa
que permite ao investigador cap-
tar aspectos normativos e valora-
tivos presentes em um determina-
do grupo. Na área das ciências
sociais, tal metodologia tem sido
utilizada como uma das formas
para apreender atitudes, opiniões,
motivações e preocupações dos in-
divíduos. Um dos grandes benefí-
cios do grupo focal é a geração de
dados por meio da interação entre
os atores envolvidos e a facilida-
de em combiná-lo a outros instru-
mentos de pesquisa, como questi-
onários, entrevistas e observação.
Apesar disso, o grupo focal pode ser
a única metodologia de uma pes-
quisa, visto que seus resultados
apresentam sustentação própria.
Embora seja possível apreender
o que é ‘avaliação’ por diversos ân-
gulos e objetivos implícitos ou ex-
plícitos, seu papel fundamental
como instrumento de auxílio no
processo de tomada de decisões
parece ser um traço comum entre
as várias conceituações. Por essa
mesma razão, avaliar adquire sen-
tido se e quando pactuado entre
os atores envolvidos na ação sob
‘julgamento’. Um processo de ava-
liação perde sua razão quando não
se presta ao objetivo de melhorar
a qualidade do serviço oferecido,
aliado à maior efetividade e efici-
ência possíveis.
O que se pretendeu discutir no
presente artigo é que o campo da
Saúde Mental enfrenta os mesmos
desafios da avaliação em saúde de
forma geral, e ainda outras especi-
ficidades que tornam complexo o
processo. Os serviços substitutivos
apresentam-se como uma realida-
de muito recente e não hegemôni-
ca em termos de destinação de re-
cursos relativos à assistência psi-
quiátrica no país. A produção de in-
dicadores adequados ainda é bas-
tante incipiente e a assistência ao
louco envolve determinantes soci-
ais complexos. Apesar disso, as for-
mas coletivas de organização e ges-
tão dos serviços substitutivos po-
dem ser elementos facilitadores da
implementação de processos ava-
liativos mais participativos em seu
cotidiano que contribuam para a
sustentabilidade e manutenção
desses projetos.
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48 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
Mirian de Carvalho1
1 Doutora em Filosofia. Leciona Filosofia e
Estética da Arquitetura no PROARQ:
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ambiente construído e comportamento espacial na instituiçãopsiquiátrica: questões éticas em Observação Participante
Built environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues inparticipative observation
RESUMO
Este artigo é uma reflexão de base ética – fundamentada no pensamento
de Enrique Dussel – quanto à relevância do procedimento de observação
participante utilizado numa pesquisa que está em desenvolvimento, tendo
como objeto a relação entre ambiente construído e comportamento espacial
na instituição psiquiátrica. Tal aproximação envolve uma epistemologia e
uma poética do espaço, centradas, respectivamente, na psicologia de Robert
Sommer e na filosofia de Gaston Bachelard, incluindo no trabalho de campo
outros procedimentos metodológicos além da observação. Os resultados até
agora obtidos indicam problemas relativos ao espaço construído, suscitando
questões éticas pertinentes à metodologia.
PALAVRAS-CHAVE: espaço; ambiente; comportamento.
ABSTRACT
An ethical reflection – based on Enrique Dussel's thought – concerning
the relevance of the participative observation procedure employed in a
research under development, aiming at the relation between the built
environment and e the spatial behavior in the psychiatric institution. Such
approach involves an epistemology and a space poetics, according to Robert
Sommer's psychology and Gaston Bachelard's philosophy, respectively,
including in the field work other methodological procedures. Results obtained
up to now indicate that there are problems related to built environment,
raising ethical issues related to the methodology.
KEY-WORDS: space; environment; behavior.
Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 49
INTRODUÇÃO
Há cinco anos, juntamente com
quatro arquitetos1, vimos desenvol-
vendo estudos em instituições psi-
quiátricas no Rio de Janeiro, partin-
do da hipótese de que o espaço cons-
truído interfere no comportamento
dos usuários – definindo-se por usu-
ários todas as pessoas que se relaci-
onam com a instituição (Sommer,
1973:X). Além dos procedimentos de
observação, utilizamos vários ou-
tros, comuns à pesquisa de campo.
Valorizando a fala e o comportamen-
to do usuário-alvo, registramos tam-
bém comportamentos espaciais ob-
servados em todos os segmentos de
usuários da instituição, bem como
entrevistamos - em etapas diversas
- usuários igualmente representati-
vos de todos os segmentos afetos às
instituições psiquiátricas estudadas.
A avaliação desses procedimentos
nos revelou que a demanda de trans-
formação desses ambientes não só é
verbalizada por eles, como se eviden-
cia através de vários índices compor-
tamentais registrados durante o tra-
balho de observação.
A fala do usuário-alvo se refere
com clareza às dependências insti-
tucionais, sugerindo e descrevendo
com detalhes ambientes íntimos e
de convivência. Mas ressaltamos
que, embora considerando todos
aqueles que estão afetos à institui-
ção, voltamo-nos primordialmente
para o usuário assistido, tendo por
meta avaliar e recomendar espaços
construídos que possam facilitar as
metas da Reforma Psiquiátrica e da
Reabilitação Psicossocial. No pre-
sente texto, teceremos reflexões de
cunho ético sobre a importância da
técnica de observação participante,
resguardando-nos de mencionar o
nome das instituições estudadas.
O corpus teórico de nosso estu-
do tem por base a psicologia de
aos elementos da imaginação ati-
nentes à espacialidade desejada,
indicando espaços de atração, espa-
ços habitáveis, abrigos e refúgios
(Bachelard, 1998:25), onde o indi-
víduo deseja ser e estar.
O trabalho de Sommer implicou
técnicas de observação; do mesmo
modo, em nosso estudo, constata-
mos que a obtenção de certos da-
dos relevantes só seria viável atra-
vés da observação – em alguns ca-
sos, participante; em outros, dire-
ta. Esse tipo de estudo, por circuns-
crever relações sociais, comporta-
mento humano e políticas espaciais
no âmbito do ambiente construído,
envolve questões éticas, pois se re-
fere ao homem no espaço instituci-
onal e na urbe, considerando as hi-
erarquias e invasões espaciais a que
estamos submetidos todos nós, em
maior ou menor escala.
Em lugares públicos ou coletivos,
torna-se difícil ou impossível demar-
car espaços pessoais. Com freqüên-
cia, na instituição psiquiátrica, o pa-
ciente, mais que qualquer outro usu-
ário, está sujeito à invasão espacial
(Sommer, 1973:40-41) e o pesquisa-
dor pode identificar esses dados atra-
vés do trabalho de campo: “A melhor
maneira para conhecer as fronteiras
invisíveis é continuar andando, até
que alguém reclame.” (id., ibid.:33).
Registramos que nessas instituições
a demarcação do espaço pessoal é
1 Colaboram nesta pesquisa os arquitetos Andréa Borges, Marcos Fávero, Naylor Vilas Boas e Wanda Vilhena Freire.
Sommer, da qual utilizamos a no-
ção de espaço pessoal, e a filosofia
de Bachelard, a partir da qual con-
sideramos as abordagens do espa-
ço poético. Em Sommer, “o espaço
pessoal refere-se a uma área com
limites invisíveis que cercam o cor-
po da pessoa, e na qual os estra-
nhos não podem entrar” (id.,
ibid.:33). O espaço poético refere-se
O CORPUS TEÓRICO DE NOSSO ESTUDO TEM
POR BASE A PSICOLOGIA DE SOMMER,DA QUAL UTILIZAMOS A NOÇÃO DE ESPAÇO
PESSOAL, E A FILOSOFIA DE BACHELARD,A PARTIR DA QUAL CONSIDERAMOS AS
ABORDAGENS DO ESPAÇO POÉTICO
CARVALHO, M. de
50 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001
dificultada pelo ambiente construído,
refletindo precariedades e lacunas que
podem afetar inclusive os serviços al-
ternativos ao sofrerem interferência
das formas manicomiais. Quanto a
isso, deparamos com uma situação
básica: usuários convivendo simulta-
neamente com os espaços hospitala-
res e/ou asilares e com formas alter-
nativas de assistência. Tal situação
ocorre algumas vezes no mesmo pré-
dio e/ou no mesmo terreno. Outra si-
tuação não-favorável é a existência
de serviço alternativo em bairro di-
verso do hospital, porém preservan-
do atendimento hospitalar tradicio-
nal, quando - necessitando por algum
tempo de cuidados especiais - o usu-
ário volta à tradicional enfermaria.
Registramos igualmente problemas
básicos de conforto ambiental, sem
mencionar as questões estéticas re-
ferentes à visualidade dos espaços,
bem como ambientes alternativos mal
projetados ou impropriamente refor-
mados, e ainda uma situação afeta
ao patrimônio histórico: prédios, tom-
bados ou não-tombados – mas repre-
sentando significativos estilos de Ar-
quitetura –, descaracterizados por in-
terferências arquitetônicas inadequa-
das, ou em ruínas.
Percebemos que os ambientes
construídos funcionam muitas vezes
como regiões limítrofes, não permi-
tindo vias de transversalidade (Car-
valho, 2000b:337-358). Esses luga-
res são freqüentemente demarcados
por recortes espaciais (Carvalho,
1998:77), reproduzindo funcional-
mente espacialidades de natureza
panóptica com áreas de fechamento
e retração que os subordinam à visi-
bilidade controlada. Eles são diversos
dos espaços poéticos, que ensejam a
criação de outros ambientes, imagi-
nados pelo usuário, incentivando vá-
rios níveis de contratualidade. Mui-
tos dos locais observados refletem
mecanismos de controle pelo espaço
– ou seja, evidenciam uma política es-
pacial geradora de invasões de domí-
nio no sentido sommeriano, em que
violados por visitantes bem intenci-
onados que ignoram os avisos de ‘vi-
sitas proibidas’. (Sommer, 1973:35)
Esse autor constatou vários níveis
de invasão espacial, comuns em hos-
pitais psiquiátricos (id., ibid.:40-44).
Do mesmo modo, na hierarquia es-
pacial, percebemos sobretudo a im-
possibilidade de caracterização de um
espaço próprio do usuário, que, em
face ao impedimento de posicionar-
se pessoalmente, o faz através do cor-
po, acrescentando objetos às vestes,
usando roupas bizarras, ou de várias
outras formas, podendo chegar até à
nudez (Carvalho, 2000b:354), indi-
cando síndromes espaciais que po-
dem estar relacionadas com certas pa-
tologias (id., ibid.:354).
O trabalho de observação parti-
cipante nos revelou indicativos de
espaços precários e demandas por
espaços humanizados. A poética do
espaço nos leva ao plano estético, ao
plano sensível de realização dos es-
paços pessoais expressos pela ima-
ginação e pelo desejo de mudanças
ambientais. Na maioria das vezes,
esses ambientes são descritos como
a casa (Carvalho, 2000a:123), com
todas as parcialidades da intimida-
de protegida (Bachelard, 1998:21).
DESENVOLVIMENTO: A ÉTICA NOCAMPO DA METODOLOGIA
No Brasil, sendo relativamente
recente e progressiva a implantação
das formas alternativas de assistên-
o espaço pessoal não pode ser ‘habi-
tado’ (Carvalho, 2000a:121), não fun-
cionando como o desejado abrigo (Ba-
chelard, 1998:21).
Em relação a hospitais em geral,
diz Sommer:
Os pacientes de hospital se quei-
xam, não apenas do fato de seu es-
paço pessoal ser continuamente vio-
lado por enfermeiras, internos e mé-
dicos, que sequer se preocupam em
apresentar-se ou explicar suas ativi-
dades, mas que seus territórios são
DEPARAMOS COM UMA SITUAÇÃO BÁSICA:USUÁRIOS CONVIVENDO SIMULTANEAMENTE
COM OS ESPAÇOS HOSPITALARES
E/OU ASILARES E COM FORMAS
ALTERNATIVAS DE ASSISTÊNCIA
Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 51
cia, torna-se necessário o desenvol-
vimento de pesquisas sobre proble-
mas pertinentes à relação entre
ambiente construído e comporta-
mento espacial, para que se alcan-
cem as metas da Reforma Psiquiá-
trica e da Reabilitação Psicossocial.
O hospital-dia, a oficina comunitá-
ria, o centro de atenção psicossoci-
al, as residências protegidas e ou-
tros ambientes assistenciais teriam
maior eficácia quanto a suas metas
se essa relação fosse observada com
mais cuidado. Por outro lado, se se
oferecem meras adaptações de ser-
viços manicomiais, tais metas ficam
prejudicadas em função da precari-
edade dos ambientes. Mas é natu-
ral que existam tais problemas, em
sendo esta uma área nova do saber,
que, por falta de conhecimentos se-
dimentados e pela constante emer-
gência de dúvidas, vem destacar a
necessidade de pesquisas.
Em nosso estudo, deparamos
com várias situações que suscita-
ram este texto. No plano teórico, a
carência de bibliografia indicando
questões específicas da instituição
psiquiátrica. No plano da práxis, ti-
veram relevância as dificuldades e
dúvidas suscitadas pelo trabalho de
campo, mediante temática e mate-
rial inusitados, sobretudo quanto à
técnica de ‘observação participante’,
que requer muito tempo do pesqui-
sador, fornecendo-lhe, porém, um
material de inestimável riqueza, não
suprido por outro procedimento e
merecendo uma reflexão filosófica
no plano da ética voltada para os
procedimentos metodológicos, tan-
genciando o projeto arquitetônico.
Em Arquitetura, o projeto deve
ser realizado segundo metodologia
própria (Cf. Del Rio, 1998:201-214).
O projeto arquitetônico não pode ser
considerado meramente por seu as-
pecto estético, ou como fruto da
imaginação do projetista. Quanto a
essa questão, ressaltamos que há
métodos de avaliação do ambiente,
que vêm sendo desenvolvidos no
presidente da associação de bairro,
da direção do clube ou de um diri-
gente de instituição como a escola,
o hospital, o posto de saúde.
O projeto e sua avaliação inclu-
em conhecimento de tecnologias e
domínio das ciências do espaço,
envolvendo levantamentos e ques-
tões complexas no âmbito dos obje-
tivos, compreendendo funcionalida-
de, conforto ambiental, aspectos
estéticos. Tais dimensões se tornam
indissociáveis na realização de um
ambiente que atenda às necessida-
des e às aspirações dos usuários em
sentido amplo. A avaliação do am-
biente construído, visando as boas
condições de atendimento do usuá-
rio, nos conduz ao terreno da ética.
No tocante à instituição psiquiátri-
ca, a ética tangencia um compromis-
so fundamental com o usuário-alvo,
já que a escolha do espaço em que
ele é atendido raramente é opção
sua. Aqui o termo ‘ética’ tem igual-
mente alcance profissional e políti-
co, porque diz respeito à participa-
ção do pesquisador também en-
quanto cidadão, capaz de emitir ju-
ízo de valor quanto à espacialidade
do entorno institucional e urbano.
Quanto à cidade e à instituição,
é dever e direito do cidadão zelar
pelo ambiente em que vive, estuda,
trabalha, ou de alguma forma é as-
sistido, seja conservando-o, aprimo-
rando-o ou cobrando das autorida-
des o zelo pelos espaços em que ‘vi-
vemos’. Assim, é tarefa do cidadão
observar qualquer ambiente que
Brasil por profissionais com traba-
lhos de pesquisa em vários campos
da Arquitetura.
O ambiente construído deve ser
observado e reavaliado em qualquer
circunstância – da casa à escola, do
lar à cidade, e em qualquer institui-
ção de assistência, seja ela pública
ou privada. Em se tratando princi-
palmente de espaço público e/ou
institucional, o ambiente construí-
do não pode depender da decisão e
do gosto do prefeito da cidade, do
TORNA-SE NECESSÁRIO O DESENVOLVIMENTO
DE PESQUISAS SOBRE PROBLEMAS
PERTINENTES À RELAÇÃO ENTRE AMBIENTE
CONSTRUÍDO E COMPORTAMENTO ESPACIAL,PARA QUE SE ALCANCEM AS METAS
DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E DA
REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL
CARVALHO, M. de
52 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001
diga respeito à população, em esca-
la urbana, ou a um segmento da po-
pulação, em escala reduzida, através
de um serviço que lhe é prestado.
Esta observação inclui problemas ou
acertos relativos à malha viária da
cidade, à iluminação das ruas ou a
qualquer outro lugar onde estejamos
inseridos; assim, a instituição se si-
tua como espaço observável.
Em qualquer instituição, a obser-
vação dos espaços por profissionais
que ali atuam, ou por qualquer pes-
soa afeta a esse ambiente, pode ser
vista como prática do exercício da
cidadania. Nesse sentido, na vigên-
cia da legislação que rege novas
metas de assistência, torna-se ne-
cessário avaliar periodicamente os
atuais espaços – novos ou reforma-
dos – com vistas aos objetivos a se-
rem alcançados, sem que se repro-
duzam espaços manicomiais. Vamos
agora encaminhar esta questão, dos
pontos de vista ético e metodológi-
co, valorizando a técnica da obser-
vação participante, que em certas
circunstâncias é insubstituível no
caso da instituição psiquiátrica.
É pensamento comum entre pes-
quisadores e estudiosos de metodo-
logia que a presença do observador,
quando este é identificado como tal,
tende a interferir no comportamen-
to das pessoas ou dos grupos ob-
servados. Notamos, em situações de
entrevista, uma certa ‘ansiedade’
diante dos pesquisadores por parte
de alguns profissionais quando sa-
bedores dos objetivos do estudo,
mostrando comportamentos que
não foram notados na observação
participante. Principalmente no caso
do profissional da instituição, essa
interferência pode levar, em maior
escala, à distorção e à camuflagem
de dados e de resultados.
Por outro lado, “Pode-se aceitar
como certo que, se os membros ‘des-
conhecem’ os propósitos do cientis-
ta, seus comportamentos tenderão a
ser menos influenciados. Assim po-
deremos registrar o comportamento
volvida por Apel, centrada na ar-
gumentação do indivíduo capaz de
uma formulação enunciativa como
membro da comunidade (Apel,
1995:44-68), até o campo da prá-
xis, há uma distância por vezes in-
transponível. Essa distância é ana-
lisada pelo pensamento de Dussel:
quando se trata de questões ético-
políticas devemos, em primeira
instância, direcionar-nos à práxis
e não à argumentação, evitando
assim o distanciamento e a distor-
ção do objeto pelo discurso. Enfa-
tizando a questão da práxis, e ci-
tando Hinkelammert, Dussel con-
sidera nas questões sociais a im-
portância do corpo:
El acceso a la realidad corporalcorporalcorporalcorporalcorporal –
esto es, el estado corporal incólume
en la relación social entre los seres
humanos –, y el acceso a los valores
de uso en la relación del ser humano
con la naturaleza, es el criterio de
validez ética de las normas en el caso
concreto. (Apud Dussel, 1995:77).
No trabalho de observação parti-
cipante, percebemos matizes dos
problemas espaciais pertinentes ao
corpo. Esse critério de validade ética
que considera os valores de uso na
relação homem/natureza supera as
hierarquias e dicotomias da mente
com reação ao e do conhecimento
com relação à práxis, buscando por-
tanto uma validade concreta – numa
unidade – pertinente aos espaços que
acolhem ou excluem o corpo – o in-
divíduo e o cidadão – nos ambientes
natural do grupo” (Goode & Hatt,
1972:158). Nesse sentido, é desejá-
vel a não-identificação da situação
de pesquisa, viabilizando-se a técni-
ca da observação participante, con-
siderando-se suas vantagens e des-
vantagens, que estamos avaliando
no andamento de nosso estudo.
Quanto à referida técnica, nas
duas acepções mencionadas – na di-
mensão ética e na metodológica –
há relevantes questões a ser consi-
deradas. Da ética do discurso desen-
TORNA-SE NECESSÁRIO AVALIAR
PERIODICAMENTE OS ATUAIS
ESPAÇOS – NOVOS OU
REFORMADOS – COM VISTAS AOS
OBJETIVOS A SEREM ALCANÇADOS,SEM QUE SE REPRODUZAM
ESPAÇOS MANICOMIAIS
Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 53
em que circulamos e/ou nos aloja-
mos. A relação corpo-espaço mos-
tra, em certas situações observa-
das, a necessidade urgente de pro-
jetos adequados e de um estudo
para avaliação dos espaços existen-
tes, sobretudo no tocante à conco-
mitância de ambientes manicomi-
ais e de formas alternativas.
A avaliação dos espaços institu-
cionais objetiva políticas espaciais
que busquem a inserção do homem
na urbe – consideradas suas limita-
ções –, começando pela inserção do
corpo nos ambientes comunitários,
da rua ao quarteirão, e deste ao bair-
ro e à pólis. Para isso, é necessário
um posicionamento do pesquisador,
questionando ‘os mitos da neutrali-
dade científica’, para ultrapassar os
limites do discurso. Nessa perspec-
tiva, o pesquisador se insere nos
ambientes através da observação
participante, que pode assim ter al-
cance ético, além de metodológico.
Se tomarmos por base a ética de
Dussel, o simples ‘reconhecimento’
de precariedades espaciais não é
motivo para modificá-las. Articula-
do somente ao plano da linguagem,
o reconhecimento da diferença ou
da exclusão não implica ação ou
tomada de consciência de um fato
significativo de alcance social. O ‘co-
nhecimento’ dos novos espaços se
inicia pela inserção do pesquisador
na instituição. É no trabalho de
campo que o observador percebe
invasões espaciais e formula os pa-
râmetros de transformação espaci-
al; para isso, ele se torna um mem-
bro daquele grupo, vivendo na prá-
xis o dia-a-dia dos ambientes, ao
circunscrever-se nesses espaços
através das atividades que permei-
am a observação participante.
Sobre este procedimento metodo-
lógico, vejamos o que dizem alguns
autores: “Este procedimento é usa-
do quando o investigador pode dis-
farçar-se e ser aceito como membro
do grupo” (Goode & Hatt, 1973:157).
Esta mesma questão é tematizada e
Esse procedimento tem sido uti-
lizado em larga escala em pesqui-
sa social e em Antropologia, tendo
sido adotado por cientistas ao es-
tudarem sociedades tribais, operá-
rios, seitas religiosas, pacientes ou
grupos sociais, e foi utilizado no
estudo dos hobo (Anderson, 1923).
Diz respeito também ao arquiteto
e ao estudioso do espaço, que, em
certa escala, lidam com questões
comportamentais, em que a obser-
vação é imprescindível.
Na observação participante afe-
ta à instituição psiquiátrica, o dis-
farce do pesquisador pode ocorrer de
vários modos. Ele pode participar de
uma atividade cotidiana, como a vi-
sita a um paciente. Pode freqüentar
lugares de convívio, usar a cantina,
a biblioteca, o jardim, o banheiro ou
qualquer outra dependência da ins-
tituição, ou ainda participar como
expositor ou como ouvinte em con-
ferências, seminários e grupos de
estudo. O pesquisador pode também
participar da inauguração de um ser-
viço, do festejo de uma data, ou fa-
zer um curso na instituição. Como já
foi dito, outros pesquisadores agem
da mesma forma: “O grupo inglês
Mass Observation, ao estudar a opi-
nião de eleitores, utilizou-se de téc-
nicas de camuflagem. Um observa-
dor pode confundir-se com operári-
os entre outros operários ou traba-
lhar como porteiro numa barbearia.”
(Goode & Hatt, 1972:158).
No procedimento de observação
participante, uma dentre as vanta-
endossada por outros teóricos men-
cionando esses dois pesquisadores:
Para esses autores, a observa-
ção participativa é um procedimen-
to usado quando o investigador se
disfarça ou pede para ingressar em
um grupo com o objetivo de inves-
tigá-lo. Na observação participan-
te, o pesquisador assume no grupo
dois papéis: o de estranho ao gru-
po [observador] e o de participante
[membro aceito pelo grupo].
(Denker & Da Viá, 2001:147)
O ‘CONHECIMENTO’DOS NOVOS ESPAÇOS
SE INICIA PELA INSERÇÃO
DO PESQUISADOR NA INSTITUIÇÃO
CARVALHO, M. de
54 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001
gens apontadas se refere à espon-
taneidade dos comportamentos: “se
os membros ‘desconhecem’ os pro-
pósitos do cientista, seus compor-
tamentos tenderão a ser menos in-
fluenciados.” (id., ibid.:158). Ao
participar, por exemplo, de um gru-
po de estudos ou de um seminário,
ou ao dar aula nas dependências de
um hospital ou de um serviço alter-
nativo, caso o pesquisador seja tam-
bém professor - situações comuns
em nossa pesquisa - tais eventos
devem ser ressaltados como vanta-
gem dessa técnica: “Assim ele [o
pesquisador] tem acesso a um cor-
po de informações que não seria
facilmente obtido somente olhando
de maneira desinteressada. [...].
Obtém assim uma experiência mais
profunda, enquanto registra o com-
portamento dos outros participan-
tes.” (id., ibid.:158).
Outra vantagem, dentre outras,
é relativa ao tempo da pesquisa:
“Como seu período de participação
pode continuar durante meses, a
variação do material obtido será
muito mais ampla do que aquela
obtida através de uma série de en-
trevistas, embora longas” (id.,
ibid.:158). Nossos primeiros conta-
tos duraram, em média, de um a
dois anos, tendo sido breves em
outras instituições.
Expostas as vantagens deste pro-
cedimento, vamos às desvantagens.
Uma das desvantagens aponta-
das pelos estudiosos da metodolo-
gia enfatiza a questão da hierarquia
do pesquisador diante do grupo: “À
medida que o investigador se torna
um participante real, paradoxal-
mente ele restringe a amplitude da
experiência. Ele assume uma deter-
minada posição dentro do grupo,
com um determinado grupo ou cír-
culo de amigos” (id., ibid.:159). Isto
pode colocá-lo numa situação de
hierarquia, favorável ou não, fe-
chando vias de informação.
Há outro senão mencionado pe-
los teóricos, quanto ao envolvimen-
como na não participante o proble-
ma do controle da observação não
está resolvido. À medida que o obser-
vador se torna um participante, suas
experiências tendem a ser únicas,
próprias, e assim, nesse caso, um
segundo pesquisador não seria ca-
paz de anotar os mesmos fatos. Exis-
tirá, pois, menor padronização dos
dados (id., ibid.:159).
Tais desvantagens não pesaram
para o cômputo de nossos dados, le-
vando-nos a concluir que elas ope-
ram com maior ou menor intensida-
de, dependendo do tipo de pesquisa,
do objeto pesquisado e da avaliação
constante do viés que possa intervir
em cada etapa do estudo na fase de
sistematização do conhecimento.
RESULTADOS PARCELARES
Os dados obtidos na observação
participante foram relacionados e
entrecruzados com os demais, obti-
dos por outros procedimentos. Por
outro lado, o espaço construído tem
uma objetividade no plano físico ou
estético, que nos permite filtrar ele-
mentos informativos e sistematizá-
los em categorias. O comportamen-
to espacial tem sempre a possibili-
dade de ser igualmente dimensio-
nado de modo objetivo, como, por
exemplo, os efeitos de um aposento
sem janelas, a padronização das en-
fermarias, ou os conflitos ocasiona-
dos durante as refeições pela dis-
posição das mesas, gerando inva-
to emocional e afetivo por parte do
cientista: “Assim também, à medi-
da que participa emocionalmente,
perde a objetividade, que é a sua
grande virtude” (id., ibid.:159). Pode
ele reagir com carinho ou raiva,
buscar apoio e prestígio, simpatizar
com as tragédias de um grupo, par-
ticipar de suas alegrias e tristezas.
Outro problema apontado é do
controle dos dados:
Finalmente, como é natural, é cla-
ro que na observação participante
“COMO SEU PERÍODO DE PARTICIPAÇÃO
PODE CONTINUAR DURANTE MESES, AVARIAÇÃO DO MATERIAL OBTIDO SERÁ MUITO
MAIS AMPLA DO QUE AQUELA OBTIDA
ATRAVÉS DE UMA SÉRIE DE ENTREVISTAS,EMBORA LONGAS” (ID., IBID.:158)
Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 55
sões espaciais. São também objeti-
vamente observáveis questões de
conforto ambiental, do ponto de vis-
ta do asseio, da conservação, da ae-
ração, da temperatura dos interio-
res e exteriores, da poluição visual
e sonora etc. Tais dados podem ser
observados em seus efeitos sobre o
usuário na relação corpo/ambiência.
Os lugares observados podem
ser enquadrados nas categorias
atração, neutralidade e hostilidade.
Finalmente, utilizando-nos de um
entrecruzamento de dados, foi pos-
sível agruparmos as referências es-
paciais por suas características ou
predominantemente subjetivas, ou
predominantemente objetivas, ou
expressivas, através da imaginação
de espaços desejados. Para classifi-
car esta ordem de dados, nós os
descrevemos respectivamente como
espaços imagético-simbólicos, ma-
terialidade espacial e espaços idea-
lizados. Embora valendo-nos de
outras técnicas de sondagem, res-
saltamos como fundamental o acer-
vo de dados obtidos pela observa-
ção participante, pelos motivos ex-
postos do ponto de vista ético-me-
todológico, visando critérios de
transformação dos espaços.
Para isso são necessários novos
paradigmas (Kuhn, 1982:13), que
recusem os modelos da ciência nor-
mal (id., ibid.:43), daquela que é
aceita a priori pela comunidade ci-
entífica. Aqui o cientista deverá en-
frentar desafios. Deverá questionar
modelos e até conceber espaços
sem modelo (Carvalho, 2000b:356).
Do contrário, corremos o risco de
dominar teorias sobre o espaço e
na prática reproduzir os mecanis-
mos manicomiais, mudando ape-
nas as ‘cores’ ou a ‘fachada’. E é
através da experiência do espaço
que o pesquisador pode se posicio-
nar na instituição, enquanto cor-
po, inserido numa atividade inte-
grada ao trabalho de campo.
Os dados obtidos pela observa-
ção participante podem ser analisa-
Em nossa pesquisa, não partimos
da argumentação para estabelecer-
mos uma práxis. Ao tomarmos par-
te de algumas atividades nas insti-
tuições em que realizamos observa-
ção participante, nosso objetivo foi
colher dados, optando por uma pos-
tura ética que privilegia nossa expe-
riência nos espaços institucionais,
caracterizando uma perspectiva vol-
tada para os problemas da pólis:
Participar de una ‘comunidad de
productores’ o ‘comunidad de vivien-
tes’ es condición primera del sujeto ar-
gumentante ‘como viviente’. . . . . La Ética
de la Liberación por su parte considera
como el criterio y punto de partida, la
corporalidad sufriente del dominado o
excluído: la alteridad del Outro nega-
do en su dignidad (Dussel, 1995:77).
O pesquisador nesse caso realiza
sua própria inserção no campo de
estudo, como indivíduo e teórico,
mas, em primeira instância, como
membro da comunidade valorizan-
do todas as possibilidades de alteri-
dade (Dussel, 1992), considerando
do ponto de vista ético uma referên-
cia às raízes históricas da América
Latina, quando se inicia aqui o en-
cobrimento do outro (Dussel,1993).
Isto nos leva a considerar o sofrimen-
to dentro de uma dupla exclusão.
Esta é a meta que nos permite
dar continuidade à nossa pesqui-
sa, desvencilhando-nos a cada pas-
so das teorias dos espaços vazios,
construídas sobre o ermo dos lu-
gares preenchidos por neutralida-
de e indiferença.
dos, confrontados e posteriormente
trabalhados, numa busca de cate-
gorias que os sistematize e corrija
as distorções advindas desta técni-
ca. Esta prática propiciou a elabo-
ração de resultados gerais e parce-
lares na referida pesquisa, estabe-
lecendo categorias que nos permiti-
ram ‘ler’ os espaços estudados, bem
como formular recomendações ca-
bíveis em cada caso e, mais ampla-
mente, na instituição que elegemos
como estudo de caso.
CORREMOS O RISCO DE
DOMINAR TEORIAS SOBRE
O ESPAÇO E NA PRÁTICA
REPRODUZIR OS MECANISMOS
MANICOMIAIS, MUDANDO APENAS
AS ‘CORES’ OU A ‘FACHADA’
CARVALHO, M. de
56 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001
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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 57
ARTIGOS ORIGINAIS
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse darelação com a cidade
Sheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the city
Regina Benevides de Barros1
Silvia Josephson2
1 Professora do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal Fluminense,
Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica
(PUC/SP), Pós-Doutorado na área de
Planejamento e Administração em Saúde
do Departamento de Medicina Preventiva e
Social da FCM da UNICAMP
e-mail: [email protected]
2 Professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal
Fluminense, Psicóloga, Mestre em
Psicologia Social – UERJ, Doutoranda em
Psicologia Social – UERJ
e-mail: [email protected]
RESUMO
Os avanços do processo de desospitalização e de desinstitucionalizaçãopromovidos a partir da Reforma Psiquiátrica tem sido acompanhados dedesafios e impasses especialmente quando se busca o reposicionamentosócio-político do ‘paciente psiquiátrico’. A saída do paciente do hospitaldeve ser acompanhada de ofertas que lhe permitam passagens até entãoobstruídas na relação com o socius. Os ‘lares abrigados’ destacam-se comoconfiguração na qual os usuários podem experimentar e vivenciar redes derelações sociais mais amplas. A relação com a cidade no contemporâneo,entretanto, traz elementos novos que precisam ser analisados sem o quepoderíamos incorrer em equívocos de se buscar inclusão em configuraçõesurbanas bastante avessas às misturas. O planejamento da assistência nasaúde não pode, assim, estar dissociado da análise das característicassociais/políticas/econômicas/culturais dos diferentes espaços urbanos.
PALAVRAS-CHAVE: saúde mental, dispositivo institucional, reforma psiquiátrica,cidade
ABSTRACT
The progress of deshopitalisation and desinstitutionalization processespromoted by the Psychiatric Reform has been followed by challenges anddeadlocks specially when it comes to look for social-politic replacement ofthe ́ psychiatric patient´. The patient´s exit from hospital must be allied byoffers which open passages until then obstructed in the relationship withthe socius. The ´sheltered homes´ stand out as a configuration in whichthe users can experiment and take part in larger social networks. Therelationship with the city at present, however, brings new elements whichneed to be analyzed so as not to incurr in mistakes in the search for inclusionin urban configurations against mixtures. The health assistance planningcannot, however, be dissociated from the social/ political/ economical/ culturalcharacteristics of different urban spaces.
KEY WORDS: mental health; institutional apparatus; psychiatric reform; city
BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.
58 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001
INTRODUÇÃO
Dentre os impasses produzidos
pelo movimento desospitalizante e
desinstitucionalizante no campo da
saúde mental está, certamente, o
reposicionamento sócio-político do
‘paciente psiquiátrico’ quando in-
vestido pelos novos equipamentos
de assistência.
O hospital tomado, até então,
como locus do tratamento, seguido
da crítica aos métodos de conten-
ção e asilamento ali praticados, tem
posto, cotidianamente, problemas
que os profissionais da saúde, ao
se engajarem na ‘luta anti-manico-
mial’, conseguem muitas vezes ape-
nas dimensionar.
A retirada do paciente do mani-
cômio, por exemplo, como logo se
viu, tornou visível a complexidade
e amplitude da tarefa da proposta
antimanicomial: lidar com a expe-
riência da loucura sem tratá-la como
doença, lidar com o sofrimento do
paciente e da família, estabelecer li-
gações com a cidade para pacientes
isolados pelas fortes políticas segre-
gacionistas sobre a doença mental.
A clínica, voltada até então para o
‘tratamento’ do paciente, este di-
mensionado quase sempre como in-
tervenção sobre o sintoma, viu-se
imediatamente convocada ao indis-
sociável exercício político de produ-
ção de subjetividade, aqui entendi-
da como processo de produção do
eu e do mundo.
O paciente, agora usuário dos
serviços substitutivos de saúde
mental, passa a ser observado além
dos muros do hospital psiquiátrico,
além de seu código de inscrição na
‘Classificação Internacional das Do-
Em pesquisa realizada nos últi-
mos quatro anos sobre o tema da
‘Desinstitucionalização da loucura,
os estabelecimentos de cuidado e as
práticas grupais’1, dirigimos nosso
olhar, na sua última fase, ao mape-
amento das experiências dos cha-
mados Lares Abrigados no municí-
pio do Rio de Janeiro.
A direção da pesquisa foi, na ver-
dade, definida pelas indicações do
próprio campo pesquisado já que,
em contato com alguns Serviços de
Atenção Diária, pode-se acompa-
nhar a inquietação dos profissionais
de saúde frente à situação de paci-
entes que haviam perdido contato
com suas famílias nos longos perí-
odos de internação ou aqueles cu-
jas famílias apresentavam dificulda-
des de os receberem de volta à casa.
A oferta de espaços habitacionais
para estes pacientes, em que pudes-
sem ser acompanhados por um tra-
balho com ênfase na crescente au-
tonomização de suas ações, mostra-
va-se, portanto, fundamental.
Dessa forma, decidimos redire-
cionar a pesquisa2 incluindo outro
eixo, este relativo à análise das
fronteiras entre o ‘dentro’ e o ‘fora’
dos Serviços permitindo-nos o
1 “Desinstitucionalização da loucura, os estabelecimentos de cuidado e as práticas grupais”, pesquisa coordenada por Regina Benevides de
Barros e co-coordenada por Silvia Josephson, contou com a participação de dois bolsistas de inciação científica e com o apoio do CNPq/PIBIC/
UFF, Departamento de Psicologia/UFF.
2 A pesquisa, até aquele momento, havia tomado como objeto de investigação a utilização das práticas grupais no campo da Reforma Psiquiá-
trica (cf. Benevides de Barros, R. & Josephson, S. “As práticas grupais, a Instituição da Saúde Mental e os estabelecimentos de cuidado” ,
subprojeto do “Projeto de Integrado de Pesquisa: Saúde Mental, Desinstitucionalização e Abordagens Psicossociais”, coordenado por Eduardo
Mourão Vasconcellos. Projeto integrado UFF/UFRJ, 1996-1998, com apoio do CNPq).
enças’. A saída do paciente do hos-
pital deve, portanto, ser acompa-
nhada de ofertas que lhe permitam
passagens até então obstruídas na
relação com o socius.
O PACIENTE, AGORA USUÁRIO DOS SERVIÇOS
SUBSTITUTIVOS DE SAÚDE MENTAL, PASSA ASER OBSERVADO ALÉM DOS MUROS DO
HOSPITAL PSIQUIÁTRICO, ALÉM DE SEU
CÓDIGO DE INSCRIÇÃO NA ‘CLASSIFICAÇÃO
INTERNACIONAL DAS DOENÇAS’
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 59
acesso a outras práticas voltadas
para o que, no movimento da Re-
forma Psiquiátrica, é nomeado por
‘reinserção social’.3
Este redirecionamento veio ao
encontro das propostas formuladas
inicialmente pela Reforma Psiquiá-
trica italiana, modelo privilegiado
pela Reforma brasileira, onde se
constata a preocupação com inves-
timento em uma luta por condições
de vida para os ‘doentes mentais’ que
lhes permitam exercer sua cidadania
e reconstruir suas existências, tanto
subjetiva quanto objetivamente. As-
sim, paralelamente à abertura dos
portões dos grandes hospícios, pro-
curou-se construir um envolvimen-
to progressivo com a população e
com a cidade. Com esse movimento
buscou-se a reconstrução de uma
relação cotidiana com a família e
com os equipamentos sociais, refor-
çando-se a idéia de que a desinstitu-
cionalização da loucura dever-se-ia
estender no espaço urbano, porque
nele existiriam forças vivas que se
configuram como elementos impor-
tantíssimos para o desenvolvimen-
to de estratégias terapêuticas.
Ao lado desta preocupação, en-
tretanto, temos tido contato com
trabalhos e debates nos quais se
analisa a relação entre o individua-
lismo exacerbado do mundo con-
temporâneo e o desinteresse com as
questões de ordem coletiva. Questi-
ona-se o recuo do envolvimento nos
problemas de cunho social e políti-
co, o aumento de comportamentos
‘bairristas’ e o enclausuramento dos
indivíduos em comunidades homo-
gêneas que promovem a desvitali-
zação e desqualificação dos espa-
ços urbanos. (Sennett, 1988; Rago,
1993; Chauí,1992).
Paralelamente, pesquisas em
áreas como a filosofia, geografia,
psicologia, antropologia, entre ou-
Estes autores têm trabalhado
com uma concepção que considera
os espaços urbanos para além de
seu aspecto puramente técnico, pri-
orizando o aspecto político e identi-
ficando-os com uma máquina pro-
dutiva que tanto pode se orientar no
sentido de um esmagamento unifor-
mizador, quanto na direção de uma
ressingularização (Fourquet, 1978).
O tom comum dos trabalhos re-
feridos acima refere-se à existên-
cia de dispositivos e estratégias de
disciplina e controle que têm pre-
sidido a organização e reformula-
ção dos espaços urbanos e têm re-
dundado na produção de cidadani-
as hierarquizadas, com a segrega-
ção e marginalização de grandes
camadas da população em áreas
onde a oferta de serviços e tecno-
logias é subdesenvolvida em todos
os aspectos – as favelas, os bair-
ros de periferia e as invasões de
grandes terrenos desabitados.
Algumas dessas pesquisas, pri-
vilegiando uma abordagem históri-
co – genealógica, nos apresentam
um quadro onde aparece em cores
vivas o mecanismo pelo qual o pro-
jeto político de normalização social
do espaço urbano, formulado e di-
fundido pela medicina social do sé-
culo XIX (1840 a 1890), escolheu
como alvo privilegiado de sua inter-
venção a população que tinha nas
3 Usamos aqui o termo tal como é frenquentemente referido na literatura especializada. Destacamos,entretanto, que este mereceria análise
mais cuidadosa, que foge ao escopo deste trabalho.
tras, têm trabalhado no sentido de
analisar os modos de produção que,
nas grandes cidades contemporâne-
as, fazem emergir tais comporta-
mentos individualistas em conso-
nância com o aparecimento de es-
paços de exclusão e hierarquização
sociais (Josephson, 1999; Guattari,
1992; Rolnik, 1994).
PARALELAMENTE À ABERTURA
DOS PORTÕES DOS GRANDES HOSPÍCIOS,PROCUROU-SE CONSTRUIR UM
ENVOLVIMENTO PROGRESSIVO COM APOPULAÇÃO E COM A CIDADE
BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.
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ruas seu espaço de vida e circula-
ção: os pobres, os loucos, as prosti-
tutas, os operários e os prisionei-
ros. Todos eram, então, considera-
dos como classes perigosas, porque
sem domicílio certo, sem família,
sem ocupação reconhecida. As pro-
postas de reordenação dos espaços
urbanos caracterizaram-se em disci-
plinar essa massa de indivíduos, se-
gregando-os em grupos e isolando-
os do convívio das classes detento-
ras do poder econômico e político,
direcionando alguns para os subúr-
bios e favelas, outros para lugares
escondidos das vistas das famílias:
para as prisões e os manicômios.
Em que pese o passar dos anos
e o quanto se conseguiu avançar
em relação aos processos discrimi-
nalizadores do lidar com a diferen-
ça, continuamos a conviver com
estas e outras segregações e nos
perguntamos como, no caso espe-
cífico dos loucos, ultrapassar um
preconceito secular e que, em nos-
sos dias, encontra-se agenciado a
interesses outros como, por exem-
plo, os interesses da indústria da
medicalização ou os da indústria
da privatização da saúde? Como
proceder para que o resgate (ou
melhor seria dizer – construção?)
da cidadania dos chamados ‘doen-
tes mentais’, não se configure como
uma resposta à demanda de dimi-
nuição de gastos públicos pela sim-
ples delegação às comunidades do
cuidado com a saúde?
Vale destacar que os conceitos
de cidadania, autonomia e reinser-
ção social, amplamente utilizados
nas propostas da Reforma Psiqui-
átrica, merecem, também ser pro-
blematizados posto que, grande
parte das vezes estão calcados em
definições universalistas e abstra-
tas que pouco se detêm na análise
das intrincadas ligações com a
questão das classes sociais, dos
às práticas de reinserção social. Isto
nos possibilitaria conhecer as res-
postas que os profissionais da saú-
de, os territórios urbanos e os equi-
pamentos sociais têm dado à essas
iniciativas, tanto quanto os efeitos
que esse movimento pode estar pro-
duzindo no trabalho desenvolvido
na rede de saúde mental com os
usuários e seus familiares.
Dentre os dispositivos que têm
sido experimentados, os Lares Abri-
gados destacaram-se como configu-
ração na qual os usuários podem
estabelecer um tipo de inserção dife-
rente de outros desenvolvidos nos
Serviços diários (Centro de Atenção
Diária – CADS, Núcleos de Atenção
Psicossocial – NAPS, Hospitais-Dia
– HDS, Centros de Atenção Psicosso-
cial – CAPS) já colocados em prática
pelo movimento da Reforma. Trata-
se de um lugar não mais caracteris-
ticamente terapêutico, mas um es-
paço em que se espera que o usuário
possa experimentar e vivenciar redes
de relações sociais mais amplas.
Traçamos, então, como objetivo,
mapear os projetos existentes na ci-
dade do Rio de Janeiro procurando
acompanhar como tais propostas
estão sendo implementadas e que
efeitos têm produzido quanto à pre-
tensão de reinserção social dos usu-
ários. Queríamos, também, saber
que práticas ‘psi’ vêm sendo desen-
volvidas e que contribuições têm
gêneros, dos processos de trabalho
no contemporâneo. Tais categori-
as, quando tomadas de forma abs-
trata, apenas reproduzem, de ma-
neira ingênua, certos modos de
operar hegemônicos das formações
sociais em que se inserem.
Tais questões apontaram para
a necessidade de um trabalho de
campo4 que nos permita ter acesso
4 O trabalho de campo foi realizado pelas bolsistas de iniciação científica Wilma Mascarenhas e Alessandra Daflon
TRAÇAMOS, ENTÃO, COMO OBJETIVO,MAPEAR OS PROJETOS EXISTENTES NA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO PROCURANDO
ACOMPANHAR COMO TAIS PROPOSTAS ESTÃO
SENDO IMPLEMENTADAS E QUE EFEITOS TÊM
PRODUZIDO QUANTO À PRETENSÃO DE
REINSERÇÃO SOCIAL DOS USUÁRIOS
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 61
dado para o movimento da Refor-
ma Psiquiátrica.
O material que se segue apresen-
ta algumas conclusões parciais so-
bre tais experiências. A parcialidade
refere-se menos a uma posição que
se pretenda, um dia, ser ‘completa’,
do que a uma certeza das pesquisa-
doras de que o olhar, a escuta, a aná-
lise são sempre recortes do que foi
vivido na situação de pesquisa.
EIXO I: O SURGIMENTO DOS LARES ABRIGADOS
Os primeiros lares abrigados fo-
ram criados em São Paulo e no Rio
Grande do Sul. O movimento dos pro-
fissionais em Saúde Mental para a
criação de lares abrigados no Rio de
Janeiro começou há pouco tempo.
Seguindo os moldes da reforma,
a proposta relativa aos lares abriga-
dos objetivava, inicialmente, retirar
as pessoas das enfermarias, deslo-
cando a ênfase do tratamento, atre-
lada à lógica medicalizadora, para
alternativas crescentes de maior par-
ticipação do usuário na gestão de sua
vida e na diversificação de contato
com o espaço urbano.
Há quatro projetos de Lares em
funcionamento hoje no município
do Rio de Janeiro:5 o Lar Abrigado
Paulo Barreto, vinculado ao Institu-
to Philippe Pinel; o da Colônia Juli-
ano Moreira,6 ambos municipaliza-
dos; o Lar Abrigado do Instituto de
Psiquiatria da UFRJ (IPUB), e a Re-
pública de Pasárgada do Centro Psi-
quiátrico Pedro II (CPPII).
O Hospital Philippe Pinel foi uma
das primeiras instituições a imple-
mentar esta proposta. Há dez anos
vem promovendo a reformulação
dos seus serviços, seja pela organi-
zação de um hospital-dia, seja pe-
las inovadoras experiências de dis-
tria do terceiro ano (R3), uma aluna
do Curso de Assistência ao Psicótico
e duas assistentes sociais. Estes pro-
fissionais interessaram-se em dar
andamento a um projeto desta na-
tureza a partir da constatação de
haver, na enfermaria do hospital,
pessoas que não tinham para onde
ir depois de estarem em alta médica.
No CPPII existem, como proje-
tos de moradia, a República de Pa-
sárgada, os ‘Colaboradores Sociais’,
a Pensão Feminina, a Pensão Mas-
culina, e a pensão do EAT (Espaço
Aberto ao Tempo). O EAT é um hos-
pital-dia, que tem um trabalho de
moradia a ele vinculado. Os Colabo-
radores Sociais existem desde o iní-
cio da década de 80 e as pensões fo-
ram-se organizando mais recente-
mente. A República é de 1995 e as
Pensões Feminina e Masculina são
contemporâneas da República. O
projeto dos Colaboradores Sociais
não era, inicialmente, um serviço de
moradia, tendo nascido como um
serviço de trabalho protegido.
EIXO II: A PROPOSTA DO LAR ABRIGADO E SUALIGAÇÃO COM A REDE DE ASSISTÊNCIA
Segundo os entrevistados, este
tipo de serviço substitutivo não se
constitui em espaço de atendimen-
positivos de intervenção – a TV Pi-
nel, por exemplo – seja pela propos-
ta do Lar Abrigado, este, denomi-
nado Lar Abrigado Paulo Barreto.
O projeto de Lar Abrigado do IPUB
começou no segundo semestre de
1998. Havia um primeiro grupo com-
posto por um residente de psiquia-
5 Os dados colhidos referem-se ao período da realização da pesquisa: jul/99 a jul/00.
6 O contato estabelecido com a Colônia Juliano Moreira restringiu-se, por motivos institucionais e de prazo da pesquisa, a uma visita seguida
de observações assistemáticas. Como não foi possível entrevistar os profissionais que lá trabalham, não estaremos, na análise, incluindo este
estabelecimento.
OS PRIMEIROS LARES ABRIGADOS FORAM
CRIADOS EM SÃO PAULO E NO RIO GRANDE
DO SUL. O MOVIMENTO DOS PROFISSIONAIS
EM SAÚDE MENTAL PARA A CRIAÇÃO DE
LARES ABRIGADOS NO RIO DE JANEIRO
COMEÇOU HÁ POUCO TEMPO
BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.
62 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001
to. A meta é fazer dele uma resi-
dência, um lugar onde os usuári-
os possam conviver com outras
pessoas, fazer novos vínculos afe-
tivos e construir suas vidas fora
do hospital. O atendimento médi-
co-psicoterápico oferecido é ambu-
latorial e realizado com profissio-
nais externos aos lares, nos hos-
pitais de referência. Este funcio-
namento também obriga os usuá-
rios a circular, a aprender a andar
nas ruas e estabelecer outras re-
lações, mediante o contato com
outras pessoas.
O importante para este novo
modelo de assistência é promover o
trabalho em saúde mental conside-
rando as experiências de cada pro-
fissional e de cada usuário. Uma das
funções da equipe, segundo os co-
ordenadores, é promover e dar su-
porte à ligação entre a instituição
que presta assistência ambulatori-
al ou diária (como é o caso dos
CAPS) e o Lar e entre os moradores
e os profissionais de saúde.
A proposta dos Lares Abrigados,
então, é a de trabalhar com pes-
soas que já estiveram internadas
e que perderam seus vínculos, ou
mesmo com aquelas que, ainda
tendo referências familiares, não
querem ou não conseguem ‘retor-
nar ao núcleo familiar’. Além dis-
so, trata-se de criar oportunidades
para o estabelecimento de relações
diferentes daquelas do hospital,
investindo na mudança da cultu-
ra hospitalocêntrica para a de uma
residência, cujo funcionamento te-
rão que gerir.
Um ponto importante destacado
é a constante ausência de técnicos
nas casas, a partir do momento em
que os moradores assumem o geren-
ciamento das mesmas. Segundo os
técnicos do Lar Paulo Barreto, eles
estão ali cuidando para que, cada vez
mais, os moradores assumam suas
vidas, o que significa que, aos pou-
cos eles devem assumir as ações di-
árias e os técnicos serem cada vez
EQUIPES
No Lar Paulo Barreto trabalham
seis estagiários de psicologia, dois
voluntários (alunos da UFRJ) e um
coordenador. Existe espaço para ou-
tras especialidades, mas ultimamen-
te têm recebido apenas estagiários
de psicologia. A equipe do Lar do
IPUB é composta por três assisten-
tes, três psicólogas, sendo uma de-
las professora da UFRJ, além de duas
cuidadoras. A equipe ressalta o ter-
mo ‘cuidadora’, para designar a fun-
ção de duas funcionárias do IPUB
que dormem no apartamento com as
moradoras. No caso da República do
CPPII existe uma coordenadora que
é assistente social e conta com o
apoio e trabalho de dois estagiários
do programa em Saúde Mental.
RECURSOS
Os recursos com que os Lares con-
tam são basicamente oriundos de
suas instituições de origem. No caso
do Lar Paulo Barreto, o Instituto Fran-
co Basaglia contribui com apoio téc-
nico; já o Instituto Philippe Pinel é
responsável pelo aluguel da casa. No
dia-a-dia, os técnicos têm procurado
incentivar os moradores a retirarem
o benefício de R$150,00 do INSS a que
todos têm direito (benefício para por-
tadores de deficiência). Este é um pon-
to polêmico entre os técnicos, pois a
República do CPPII não apóia esta ati-
tude por considerar que isto legitima-
mais somente apoiadores destas ta-
refas. Acreditam serem necessários
outros serviços para que os Lares
Abrigados não sejam a única saída
dos hospícios. Chamam a atenção
para o fato de que a rede de assis-
tência oferece vários dispositivos de
atendimento e que os Lares não de-
vem ser tomados como um fim em si
mesmos, um ideal, mas devem con-
tribuir para a articulação da plurali-
dade de propostas disponíveis no
campo da Saúde Mental.
A PROPOSTA DOS LARES ABRIGADOS, ENTÃO,É A DE TRABALHAR COM PESSOAS QUE JÁESTIVERAM INTERNADAS E QUE PERDERAM
SEUS VÍNCULOS, OU MESMO COM AQUELAS
QUE, AINDA TENDO REFERÊNCIAS FAMILIARES,NÃO QUEREM OU NÃO CONSEGUEM
‘RETORNAR AO NÚCLEO FAMILIAR’
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 63
ria a incapacidade dos usuários. No
caso dos lares do IPUB e do Instituto
Pinel, a partir do momento em que
os usuários começam a receber o be-
nefício, existe uma contribuição para
a caixinha da casa, em torno de 1/5
do que recebem de seus benefícios,
destinada para a administração da
casa. No Lar Abrigado do IPUB, a Se-
cretaria Municipal de Desenvolvi-
mento Social financia 50% do aluguel
e o IPUB complementa o restante:
IPTU, condomínio, alimentação, a
parte de medicação, além do paga-
mento dos técnicos.
EIXO III: FUNCIONAMENTO E ROTINA
Observamos que as regras de con-
vívio e a rotina dos Lares são estabe-
lecidas em conjunto pelos moradores
e técnicos em reuniões agendadas
entre eles. Os técnicos participam des-
te momento auxiliando na organiza-
ção do dia-a-dia e acompanhando os
moradores em suas atividades, quan-
do necessário. No Lar Paulo Barreto
estipulou-se a hora do jantar como
este momento. No Lar coordenado
pelo IPUB, este encontro ocorre uma
vez por semana, todas as quintas-fei-
ras à tarde e os temas costumam ser:
a caixinha, a dificuldade de dar di-
nheiro para a caixinha, o que está fal-
tando, o que está acontecendo na se-
mana, quais os problemas que estão
ocorrendo. Tais encontros não têm o
aspecto de reunião, como ocorre na
República do CPPII, onde a presença
é obrigatória para os usuários e toda
a equipe. Geralmente os próprios
moradores cuidam de seus objetos
pessoais, do espaço da casa e de suas
refeições. No Lar do IPUB existe, como
dissemos, a figura da ‘cuidadora’, que
possui formação na área de saúde e
que participa mais cotidianamente da
administração da casa.
Todos os projetos de lares abriga-
dos visitados por nós trabalham com
a idéia de que a casa não é um espa-
ço de assistência à crise. Caso exista
moradores são: estar com indicação
de alta, ou seja, não estar em crise,
e não ter para onde ir. No Lar Paulo
Barreto existe um período de adap-
tação que é variável (mais ou me-
nos um mês) em que o usuário é
acompanhado por um membro da
equipe. Este processo compreende
passeios pelo bairro e visitas perió-
dicas à casa, com o intuito de es-
treitar laços com o lar e os outros
moradores. Nesta casa, atualmen-
te, moram seis pessoas, de ambos
os sexos e a proposta é chegar a tra-
balhar com 11 pessoas.
No Lar do IPUB os critérios são
os mesmos. Trabalham com flexibi-
lidade procurando saber sobre a
demanda do usuário pelo serviço da
moradia. O grupo é composto por
mulheres, fato não premeditado.
Algumas destas usuárias eram fre-
qüentadoras do Hospital Dia e ti-
nham dificuldades em encontrar
moradia, por isso foram convidadas
a participar do projeto.
Na República do CPPII não há
restrições à participação de depen-
dentes químicos no projeto, como
ocorre nos demais. A equipe enten-
de que a dependência química está,
em geral, associada a alguma outra
questão psiquiátrica. Desde que es-
tejam em tratamento, os usuários
são recebidos neste projeto. Esta
equipe ressalta a questão da vonta-
de e da autonomia como condições
importantes para a adesão do usu-
ário ao trabalho.
a necessidade de internação, os usu-
ários são encaminhados ao lugar de
referência. Os Lares Abrigados não
têm estrutura e nem como proposta
acolher pessoas em crise, porém as
equipes mantêm-se alerta e sempre
prontas para atuar quando preciso.
EIXO IV: OS CRITÉRIOS
Em todos os serviços pesquisa-
dos, os critérios para selecionar os
GERALMENTE OS PRÓPRIOS
MORADORES CUIDAM DE
SEUS OBJETOS PESSOAIS,DO ESPAÇO DA CASA
E DE SUAS REFEIÇÕES
BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.
64 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001
EIXO V: A CASA E O TERRITÓRIO
Nos projetos do Instituto Pinel e
do IPUB, o que representou um gran-
de obstáculo à sua implementação,
segundo os coordenadores entrevis-
tados, foi a dificuldade de uma ins-
tituição pública assumir o aluguel
de uma residência, com finalidade
de ‘moradia’.
No Lar Paulo Barreto houve a pre-
ocupação, por parte da equipe idea-
lizadora do projeto, de freqüentar as
reuniões da associação de morado-
res, travando contato com os mora-
dores do bairro, o que facilitou a ins-
talação do Lar. Em relação à intera-
ção com a comunidade, existe o que
eles chamam de ‘Amigos do Lar Abri-
gado Paulo Barreto’ que é um grupo
de pessoas que freqüenta a casa em
algumas ocasiões organizadas pelos
moradores e técnicos, como jantares,
churrascos, etc. A equipe ressalta um
outro tipo de obstáculo encontrado:
o preconceito, não tanto em relação
à doença mental, mas, principalmen-
te, em relação à pobreza. A aparên-
cia e os hábitos dos moradores inco-
modaram inicialmente seus vizi-
nhos. A atitude da equipe se dirigiu
no sentido de promover uma refle-
xão com estas pessoas sobre os mo-
tivos do incômodo.
Um caso especial é o da Repú-
blica de Pasárgada (CPP II), onde a
vizinhança é a própria instituição.
O objetivo do projeto é ter uma casa
fora do espaço asilar mas, no mo-
mento, a moradia funciona dentro
do Centro Comunitário, que é um
prédio de imensa circulação. Este
Centro é um programa do Hospital
que acontece numa antiga unidade
de internação com uma área cons-
truída de 10.000 m ², que ficou de-
sativada por oito anos, à espera de
uma obra do Ministério da Saúde
que não aconteceu. Houve uma pro-
posta de ocupar este espaço com
atividades de promoção de saúde,
em parceria com a sociedade civil
organizada. A idéia era que os es-
que a comunidade freqüente a ins-
tituição investindo na desconstru-
ção do preconceito por meio do con-
vívio e do contato.
Todos os projetos dos lares pro-
curam desenvolver trabalhos que
promovam a autonomia de seus
moradores para que estes possam
gerir a própria vida. Os técnicos do
Lar Paulo Barreto enfatizam a pre-
ocupação em não tratar os usuári-
os como crianças, estando atentos
à questão da infantilização tão pre-
sente nos espaços asilares. Eles afir-
mam que ali não há atividades te-
rapêuticas, mas o espaço, o ambi-
ente e o convívio em si são terapêu-
ticos, pois permitem que os mora-
dores criem laços afetivos a partir
do contato com as outras pessoas
da casa. A relação entre os técnicos
e os moradores desta residência é
vista como a mais espontânea pos-
sível, pois ali não existe uma hie-
rarquia como no hospital onde há
relações distanciadas entre pacien-
te, médico e psicólogo. Este traba-
lho realizado fora da instituição
asilar possibilita a técnicos e estu-
dantes estar em contato com as pes-
soas, constituindo um outro olhar
“um olhar dirigido para o ser hu-
mano” (sic).
Em todos os projetos existem
tentativas de aproximação com a
comunidade, seja por meios de even-
tos e festas, seja por meio de proje-
tos desenvolvidos pela própria ins-
tituição, como é o caso da Repúbli-
ca do CPPII, onde o Centro Comuni-
paços fossem reinvestidos fisica-
mente e ocupados por entidades
como a Associação de Moradores,
grupos como Alcoólatras Anônimos,
Narcóticos Anônimos, grupos de
escoteiros; enfim, organizações que
pudessem estar em parcerias com a
instituição oferecendo atividades
gratuitas e que pudessem incluir
alguns usuários. Todos estes proje-
tos buscam a lógica da desmistifi-
cação da doença mental, a inclusão,
a troca social e a insistência para
A EQUIPE RESSALTA UM
OUTRO TIPO DE OBSTÁCULO
ENCONTRADO: O PRECONCEITO,NÃO TANTO EM RELAÇÃO À
DOENÇA MENTAL, MAS,PRINCIPALMENTE, EM RELAÇÃO
À POBREZA
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 65
tário é o lugar de intercâmbio entre
a comunidade e a instituição. Este
é um espaço que se incumbe de ati-
vidades de lazer e de cultura para a
comunidade interna e externa, gra-
tuitamente. Desta maneira, partici-
pando ativamente destes eventos, a
comunidade é convidada a ‘entrar’
na instituição. Espera-se que, a par-
tir do encontro dos moradores com
a vizinhança outras formas de rela-
ção venham a ser construídas.
ALGUNS COMENTÁRIOS SOBREO MAPEAMENTO REALIZADO
O movimento da Reforma Psiqui-
átrica no Brasil iniciou-se a partir da
organização do Movimento dos Tra-
balhadores em Saúde Mental
(MTSM), na década de 70. Este mo-
vimento deu-se num contexto de lu-
tas, fazendo com que viessem à tona,
mais do que reivindicações salariais,
inquietações com relação às condi-
ções de trabalho e ao tipo de trata-
mento até então oferecido, como as
práticas das longas internações em
hospitais psiquiátricos com seus efei-
tos de estagnação, degradação, in-
fantilização, alienação e exclusão
dos chamados ‘doentes mentais’.
Desde então inúmeras lutas têm
sido travadas pela garantia da as-
sistência àqueles que durante sécu-
los, tem estado alijados dos direi-
tos sociais básicos – os ‘mentais’.7
Entretanto, tais lutas, se têm avan-
çado em suas conquistas têm, por
outro lado, enfrentado os efeitos das
políticas neoliberais que, no campo
da saúde (embora não só neste),
vêm diminuindo o amparo aos ci-
dadãos, especialmente àqueles que
se encontram em condições de mai-
or vulnerabilidade, acentuando dra-
maticamente as injustiças sociais.
saneamento e habitação, a diminui-
ção da oferta de trabalho, acarre-
tando um incremento da massa de
desempregados e subempregados.
Outro aspecto a ser levado em
conta diz respeito à existência de um
processo contínuo de aceleração que
transforma todas as coisas em algo
absolutamente volátil e que exige,
em termos subjetivos, comporta-
mentos flexíveis. A flexibilidade é
valorizada como um ‘algo mais’
para a autonomia pessoal e a mol-
dagem das vidas individuais.
Apostar e arriscar-se são palavras
fortes em um mundo onde valores e
comportamentos são voláteis e se
transformam em seqüências aleató-
rias e infinitas, engendrando subje-
tividades desterritorializadas por
esta ‘ditadura da velocidade’, às
quais faltam condições de montar
territórios criativos e potencializado-
res (Machado, 1999). A busca inces-
sante pela produção de territórios
existenciais gera, por sua vez, ima-
gens identitárias que se refazem ao
sabor de um mercado que a toda hora
exige novas capacidades, novos ros-
tos, novos comportamentos.
Mundo de ‘novos começos’, onde
também a questão das diferenças
exclusivas adquire um novo contor-
no (Bauman, 1998). Constata-se
uma certa dissensão entre o normal
7 Este termo é recorrentemente utilizado pelos próprios usuários dos serviços de assistência em saúde mental. Observa-se aí uma “identificação
pela classificação” fortemente implantada pelo discurso normalizador da psiquiatria e que no vocabulário popular chega de forma simplificada
(doente mental=mental). Chama a atenção o modo naturalizado com que, nas lutas pelos direitos previdenciários, por exemplo, ou por vale
transporte para deficiente, familiares e associações de usuários e familiares utilizam-se do termo.
Cientes disso, damo-nos conta
de diversos problemas que assolam
as grandes cidades contemporâne-
as. Destacam-se questões como a
violência urbana, o aumento da po-
pulação de rua, a proliferação de
favelas e bairros onde se constata a
inexistência de serviços básicos de
DESTA MANEIRA, PARTICIPANDO ATIVAMENTE
DESTES EVENTOS, A COMUNIDADE ÉCONVIDADA A ‘ENTRAR’ NA INSTITUIÇÃO.ESPERA-SE QUE, A PARTIR DO ENCONTRO
DOS MORADORES COM A VIZINHANÇA
OUTRAS FORMAS DE RELAÇÃO VENHAM
A SER CONSTRUÍDAS
BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.
66 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001
e o anormal, o comum e o bizarro, o
familiar e o estranho. Os ‘estranhos’
já não são mais previamente seleci-
onados, rotulados e separados e/ ou
excluídos como o foram até a um
tempo atrás (o caso dos loucos, por
exemplo). Eles são tão erráticos e
voláteis quanto é todo o restante da
sociedade contemporânea.
Neste modelo de funcionamen-
to onde nada é garantido, constata-
se, rotineiramente, o aparecimento
de novos ‘excluídos’ e marginaliza-
dos: os novos desempregados, os
novos sem-teto, os novos pobres, os
novos assentamentos irregulares.
Para estes existem sempre os espa-
ços públicos abandonados e os ter-
ritórios esquecidos da cidade, bem
como o aparelho repressivo, a fim
de reprimir os sintomas de desagre-
gação e mantê-los nos limites.
Complementando este quadro
encontramos um número cada vez
maior de construção de bairros
mais e mais fechados, exclusivos,
homogêneos e seguros, onde se re-
força a valorização da privacidade,
da ‘liberdade e autonomia’. Bairros
que se bastam a si mesmos, ‘simu-
lacros de cidades’ (Sarlo, 1997)
onde não se encontram os signos
de um texto urbano que expressa
as diferentes formas de vida de
seus cidadãos e onde se procura
evitar o contato com ‘estranhos’.
A partir destas considerações, o
estudo, o mapeamento e o planeja-
mento da assistência na saúde não
podem estar dissociados da análise
das características sociais/ políticas/
econômicas/ culturais dos diferen-
tes espaços urbanos. Esta análise
abriria um importante canal para se
pensar estratégias mais eficientes
na construção de modos variados de
relação dos usuários com o socius.
Diante disso, cabe a pergunta
sobre como se dá, ou se dará, a cir-
culação dos indivíduos que estão
‘fora dos padrões hegemônicos de
sociabilidade’. Até recentemente
espaços específicos foram historica-
vêm problematizando a prática da
reabilitação, com o intuito de que
esta não se transforme em um novo
jargão, vazio de sentido e repleto de
velhas práticas disciplinares.
Algumas práticas de reinserção
podem ser traduzidas em inúmeros
empreendimentos que tentam res-
tituir ao ‘louco’ seu lugar de cida-
dão perante a sociedade. De acordo
com esta conceituação espera-se
devolver ao sujeito ‘comprometido
psiquicamente’, o que a doença su-
postamente lhe usurpou: a possibi-
lidade de existência fora dos muros
excludentes dos asilos.
Noções como autonomia e rea-
bilitação emergem como palavras de
ordem. E as práticas grupais – que
aparecem sob formas variadas como
assembléias, oficinas e grupos te-
rapêuticos – apresentam-se como
um importante dispositivo (Benevi-
des de Barros, 2000) para promo-
ver a ‘inclusão’ dos loucos na socie-
dade, assim como, os projetos de
moradia dos lares abrigados.
Quanto a estes, suas singulari-
dades estão, a nosso ver, relaciona-
das ao processo de elaboração dos
projetos específicos de cada Casa
que, por sua vez, expressa o funci-
onamento, a estrutura e as condi-
ções gerais das instituições/estabe-
lecimentos aos quais estes lares es-
tão vinculados.
Por outro lado, apesar das dife-
renças encontradas – estruturação
da casa, articulação com o territó-
rio urbano, tomada de decisões in-
mente construídos para os loucos,
para as crianças problemáticas,
para os portadores de deficiência
mental e tantas outras categorias
estigmatizadas e excluídas.
Atualmente nos deparamos com
estas discussões dentro do movimen-
to de reforma que reflete sobre a pos-
sibilidade de estes indivíduos existi-
rem nos espaços da cidade contem-
porânea, discutindo questões como
as da reabilitação, autonomia e ci-
dadania e trabalho. Muitos autores
NESTE MODELO DE FUNCIONAMENTO ONDE
NADA É GARANTIDO, CONSTATA-SE,ROTINEIRAMENTE, O APARECIMENTO DE
NOVOS ‘EXCLUÍDOS’ E MARGINALIZADOS:OS NOVOS DESEMPREGADOS, OS NOVOS
SEM-TETO, OS NOVOS POBRES, OS NOVOS
ASSENTAMENTOS IRREGULARES
Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 67
ternas, critérios para seleção dos
moradores das casas, tipo de mora-
dia (casa, apartamento), localização
das mesmas (dentro ou fora dos
hospitais psiquiátricos) – uma cons-
tatação se impõe: a de não conside-
rar os Lares como “depósitos de lou-
cos” (sic) , mas dar-lhes uma feição
de moradia, de residência, onde ou-
tras formas de relações sociais, di-
versas daquelas mantidas no âm-
bito do hospital e da família, pos-
sam ser experimentadas.
Outro ponto, que aparece como
questão fechada em todos os proje-
tos dos Lares pesquisados, refere-
se à questão de seu caráter não te-
rapêutico. Mais especificamente, os
coordenadores afirmam que nestes
espaços não se faz terapia, em sen-
tido estrito, de tratamento, indivi-
dual ou grupal (este, como já apon-
tado, é realizado nos ambulatórios
dos hospitais de referência dos mo-
radores). Enfatizam o ‘efeito tera-
pêutico’ da proposta que advém, não
só da ampliação das redes associa-
tivas que se formam, como da plu-
ralidade de serviços de atendimento
que a rede de Saúde Mental oferece
atualmente (CAPS, NAPS, Hospital-
Dia, Centro de Atenção Diária – CAD)
e que deve continuar a se ampliar.
O projeto dos Lares Abrigados é
um dos dispositivos que, juntamen-
te com os demais serviços da Rede
de Saúde Mental, objetiva a reinser-
ção social pela construção da cida-
dania e promoção da autonomia dos
usuários. A nosso ver, esse movi-
mento tem se mostrado extrema-
mente importante e decisivo para os
processos de desospitalização dos
loucos e desinstitucionalização da
loucura. Sem dúvida ele demonstra,
de forma explícita, a implicação dos
profissionais de Saúde Mental com
as metas da Reforma Psiquiátrica
tanto como seu engajamento na luta
o acesso aos bens sociais e culturais
e à sua circulação pela cidade.
Entretanto, e considerando que
o mais antigo destes Lares tem me-
nos de cinco anos de existência,
observamos que, apesar de se esta-
belecerem como casas residenciais
e procurarem funcionar como tal,
ainda não conseguiram aprofundar
uma discussão acerca de sua efeti-
va inserção social nos espaços ur-
banos. Apesar da problematização
dos vínculos dos Serviços com os
espaços da cidade ainda se encon-
trar em seus passos iniciais, cons-
tatamos, junto aos profissionais
entrevistados, a preocupação e a
necessidade de serem ampliados os
estudos sobre o tema, através da
discussão acerca dos impasses, di-
ficuldades e alternativas para os
problemas que uma metrópole como
o Rio de Janeiro pode apresentar, de
modo e redimensionar as propostas
para a Saúde Mental dentro de um
quadro mais realista e concreto.8
Aqui, sem dúvida é o tema da auto-
nomia que se coloca como ponto de
reflexão crucial para que se possa
avançar em propostas mais arroja-
das para o movimento da Reforma,
pois como discriminar, cotidiana-
mente, o cuidado da tutela? Como
trabalhar no sentido de que os usu-
ários se tornem efetivamente poten-
tes para eles próprios estabelecerem
pela invenção de outros meios de
lidar com a loucura. O esforço tem
sido grande, por parte daqueles en-
volvidos nos projetos dos ‘lares’ no
sentido da reinserção dos usuários
no espaço urbano, promovendo re-
lações com a cidade, com o socius,
de tal modo a que estes não se colo-
quem em situações que inviabilizem
8 Outras importantes análises de experiências no Brasil têm contribuído para o debate sobre os serviços de moradia em Saúde Mental. O
trabalho de Carmem Vera Passos Ferreira sobre a Pensão Nova Vida, em Porto Alegre, traz, neste sentido rico material. Cf. Ferreira, Carmen V. P.,
1999. Em busca de uma Nova Vida: Trajetória de um Serviço de Moradia de Saúde Mental. Transversões,1 (1): 76-131
O PROJETO DOS LARES ABRIGADOS É UM
DOS DISPOSITIVOS QUE, JUNTAMENTE COM
OS DEMAIS SERVIÇOS DA REDE DE SAÚDE
MENTAL, OBJETIVA A REINSERÇÃO SOCIAL
PELA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA EPROMOÇÃO DA AUTONOMIA DOS USUÁRIOS
BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.
68 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001
relações de troca e de transformação
sobre a cidade e, ainda, o que ela, a
cidade, põe em funcionamento?
Nossa questão, então, refere-se
a como proceder para incluir os lou-
cos em uma cidade que a cada mo-
mento procura se fechar mais e mais
em locais homogêneos, circunscri-
tos, exclusivos/excludentes, ao mes-
mo tempo regida por fluxos velozes
onde toda a diferença se perde e
tudo passa a fazer parte apenas de
mais uma engrenagem para o bom
funcionamento do capitalismo.
Cabe, então, ampliar nosso
questionamento. Como articular os
avanços promovidos pela experiên-
cia do ‘dispositivo-lares’ com os
impasses contemporâneos, especi-
almente vividos nas grandes cida-
des, de confronto com a violência e
com relações de trabalho cada vez
mais marcadas pelo desemprego,
pelo subemprego e pelo emprego
informal? Como não desatrelar tais
discussões, sem que isto paralise as
experiências inovadoras dos lares?
Neste sentido, é urgente que o
debate sobre os dispositivos imple-
mentados a partir da Reforma Psi-
quiátrica, como os lares abrigados,
mas também os Centros de Atenção
Psicossocial, os Hospitais-Dia, etc,
estejam sendo analisados tanto em
sua relação com as políticas de saú-
de e, em especial, com as políticas
de saúde mental, quanto com as de-
mais políticas públicas: de habita-
ção, de transporte, de educação e de
previdência. Sem este cuidado, po-
deremos estar promovendo movi-
mentos isolados que não terão des-
dobramentos no sentido do que
se quer como produção de uma ou-
tra cultura, outra sociabilidade, ou-
tra subjetividade.
O estudo e o aprofundamento de
tais questões poderão nos impedir
de corrermos o risco de aprisionar-
mos a reinserção dos ‘loucos’ ao
modo de produção capitalístico que
prima pela serialização. Da mesma
forma, tais apontamentos podem
nos possibilitar abarcar questões do
cotidiano inserindo-os neste proces-
so de construção da ‘cidadania’.
Acreditamos, em suma, que esta
discussão pode nos dar condições
para problematizarmos os mecanis-
mos de produção da exclusão, dis-
seminados nos espaços urbanos
contemporâneos, que vêm se somar
à exclusão histórica a que os cha-
mados ‘doentes mentais’ têm sido
submetidos.
Tais conclusões, parciais, são
bem mais inquietações que devem
funcionar como bússolas no árduo
processo de construção da Refor-
ma Psiquiátrica. Somente a aber-
tura ao debate e a análise crítica
cotidiana de nossas práticas nos
darão condições de escapar das ar-
madilhas, freqüentemente postas,
de produção da exclusão. Devemos,
ainda, colocar em discussão como,
no funcionamento contemporâneo
do capitalismo mundial integrado
(Guattari, 1981), o processo de ex-
clusão se dá não mais separando,
como podíamos mais claramente
identificar nos séculos passados,
mas anexando, incluindo. O tema
merece cuidadosa análise que cer-
tamente teremos oportunidade, em
outra ocasião, de abordar.
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DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.
70 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da Família1
The psycopharmic user in a Family Health Program
Maria Célia F. Danese2
Antonia Regina F. Furegato3
1 Conteúdo abstraído da Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Enfermagem
Psiquiátrica, EERP – Universidade
de São Paulo.
2 Enfermeira do Programa Saúde da
Família. Mestre em Enfermagem
Psiquiátrica.
3 Professora Titular do DEPCH da
EERP – Universidade de São Paulo
e-mail: [email protected]
RESUMO
Baseado na participação da enfermeira no Programa Saúde da Família
(PSF), este trabalho foi preparado tendo por objetivo identificar as repre-
sentações de usuários de psicofármacos sobre os tratamentos que recebem.
Esta pesquisa qualitativa, construída à luz da etnografia, foi realizada no
Jardim Eldorado, Assis/SP com 45 sujeitos. Os dados coletados, através de
entrevistas semi-estruturadas e complementados pela observação partici-
pante revelaram que estes mesmos usuários do sistema de saúde lançaram
mão dos serviços religiosos como solução alternativa e coadjuvante para
enfrentamento de seus problemas.
PALAVRAS CHAVE: Saúde da Família; Saúde Mental; Religião; Psicofármacos.
ABSTRACT
Based on nurse participation in the Family Health Program, this work
was prepared aiming to identify psycopharmic users' representations about
their treatment. This qualitative study, built on ethnographic research, was
performed at the "Jardim Eldorado", Assis-SP with forty five persons. The
data collected by semi-structured interviews and taking into consideration
the participants' observations, revealed that the same users of the health
system used the religious services as alternatives and supporting solutions
to face their problems.
KEY WORDS: Family health; Mental health; Religion; Psycopharmics.
O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 71
INTRODUÇÃO
A convite da Prefeitura Munici-
pal de Assis, fomos conhecer uma
nova proposta de assistência que
estava sendo implantada, o Progra-
ma Saúde da Família (PSF).
Esta estratégia propõe um novo
caminho dentro das políticas públi-
cas de saúde, priorizando o ser hu-
mano enquanto cidadão, através da
universalidade da atenção, descen-
tralização de decisões e definição
de bases territoriais para a atua-
ção. O pensar e o agir com trans-
parência na atuação com o cidadão
enquanto pessoa, dentro da visão
antropológica do núcleo familiar e
comunitário, levou-nos a vivenci-
ar a nova realidade.
Participamos deste programa
desde o início, experienciando todo
o processo de implantação, imple-
mentação e solidificação do mesmo.
Dentre os objetivos teóricos que
norteiam este novo modelo de aten-
dimento e interação, interpretado e
adaptado segundo características
sociais e econômicas de áreas deli-
mitadas para contemplar as neces-
sidades do processo saúde/doença
de uma população específica, os que
motivaram nosso trabalho foram os
destacados abaixo.
• promoção da família como nú-
cleo básico de abordagem no
atendimento à saúde da popu-
lação, considerando que é nes-
te contexto que se desenvolvem
grandes crises de amor e de
ódio, sempre resguardadas pelo
espaço físico da casa e o silên-
cio da privacidade familiar;
• humanização do atendimento à
população com base nas normas
dos programas de saúde, atra-
vés das visitas domiciliares, fa-
cilitando a interação com os
usuários, dentro de seu contex-
to sociocultural;
• participação da real condição de
vida da comunidade, pois resi-
frimento (Rodrigues, 1996; Furega-
to, 1999). Este referencial faz sen-
tido para a prática da assistência de
enfermagem no PSF.
Através desta vivência, observa-
mos a presença de significativo nú-
mero de usuários de psicotrópicos.
Nessa população de 1457 pessoas,
maiores de 15 anos, 795 (54,6%)
faziam uso de algum tipo de psico-
fármaco, receitado por médico.
Neste contexto, querendo com-
preender a realidade psicossocial
da população e contribuir para
melhor desempenho do enfermei-
ro, propusemo-nos realizar esta
pesquisa que teve por objetivo iden-
tificar as representações dos usuá-
rios de psicofármacos sobre os ser-
viços de saúde e os serviços, num
Programa Saúde da Família.
CARACTERIZAÇÃO DO CONTEXTO
A trajetória histórica de saúde em
Assis não foi diferente das demais
cidades brasileiras. Em 1991 foi cri-
ado o Conselho Municipal de Saúde
que efetivou suas ações a partir de 6
de outubro de 1993, consolidando a
participação popular no gerencia-
mento da saúde do município.
Concomitante à atuação do
Conselho Municipal de Saúde, fo-
ram criados, em cada Centro de
Apoio à Saúde (CAPS), os Conse-
lhos Gestores para planejar, acom-
panhar, avaliar e fiscalizar os ser-
viços de saúde desenvolvidos em
sua área de abrangência.
dindo no espaço territorial onde
atuamos, como prestadoras de
serviço e usuárias, vivenciamos
as mesmas condições sociais,
econômicas e culturais.
Partimos dos pressupostos de
que é através das relações interpes-
soais e do uso de técnicas de comu-
nicação em abordagem humanista
que a enfermagem aproxima-se da
pessoa, identifica suas necessidades
e pode ajudá-la na busca de solu-
ções sadias para minorar seu so-
A CONVITE DA PREFEITURA
MUNICIPAL DE ASSIS, FOMOS
CONHECER UMA NOVA PROPOSTA
DE ASSISTÊNCIA QUE ESTAVA SENDO
IMPLANTADA, O PROGRAMA SAÚDE
DA FAMÍLIA (PSF)
DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.
72 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001
Seguindo este modelo, com adoção de políticas de saúde mais demo-
cráticas, resolutivas e humanas, iniciou-se o processo de implantação do
Programa Saúde da Família. Nesta construção social de saúde podem-se
estabelecer algumas diferenças entre o modelo médico vigente e a nova
proposta do PSF.
Para Levcovitz & Garrido (1996), o PSF é um modelo de atenção que
pressupõe o reconhecimento da saúde como um direito de cidadania.
Rodrigues (1996), com base nos
estudos de psiquiatria preventiva,
apresenta os mecanismos de insta-
lação do enfrentamento de dificul-
dades cotidianas e seu desfecho,
resultando em crescimento e ama-
durecimento ou criando tensões,
conflitos ou mesmo ameaça à inte-
gridade da pessoa.
A não resolutividade dos seus
problemas deixa o indivíduo vulne-
rável, à mercê dos caminhos alter-
nativos que a comunidade respon-
de com respaldo místico-religioso.
METODOLOGIA
Estudar o homem é estudar tudo
aquilo que mais intimamente lhe diz
respeito, partindo das instituições,
costumes, códigos e comportamen-
tos para atingir os desejos e senti-
mentos (Malinowski, 1984).
De acordo com a natureza deste
campo de atuação, propusemo-nos
trabalhar à luz da etnografia pois
levamos em consideração os espa-
ços físico, social, cultural e econô-
mico como componentes e interve-
nientes no processo saúde/doença.
Leininger (1985) define etnogra-
fia como um processo sistemático
de observar, detalhar, descrever, do-
cumentar e analisar o estilo de vida
ou padrões de cultura para apreen-
der o modo de viver das pessoas.
Aplica estes princípios para pesqui-
sas em enfermagem que denomina
de etnoenfermagem.
QUADRO 1 – Diferenças entre o modelo médico e o PSF
Modelo Médico Saúde da Família
• atuação na doença
• trata o indíviduo
• tratamento medicalizado e individual
• ênfase da medicina curativa
• atuação ocasional
• isolamento do profissional na atuação e saber
• atuação no doente
• trata a família
• tratamento da pessoa dentro do contexto social em que vive
• ênfase na medicina promocional e preventiva
• atende território adstrito
• interação contínua
• trabalho em equipe, somando conhecimentos e
vinculação social
Foram instalados nove núcleos do PSF, abrangendo toda a área mais
carente do município de Assis. Cada núcleo era composto por um médico,
um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e quatro agentes comunitá-
rios de saúde. Sendo prerrogativa do programa morar na área de abrangên-
cia, a enfermeira trabalhava e morava no bairro Jardim Eldorado.
Este núcleo do PSF era responsável por 609 famílias cadastradas, num
total de 2.334 pessoas, sendo 1.233 do sexo masculino e 1101 do sexo
feminino. A infra-estrutura do bairro é precária e grande parcela da popula-
ção tem um padrão de vida muito baixo, ou seja, 72% ganham até dois
salários mínimos e 21,3% ganham de dois a quatro salários mínimos.
Os principais problemas de saúde que afetavam as famílias do PSF Jardim
Eldorado emergiam de fatores sociais, econômicos, culturais e geográficos.
Pela nossa vivência diária e observação, outro fator que estava provocando
aumento nos transtornos, principalmente psíquicos, era o misticismo religio-
so interferindo inclusive nos tratamentos da medicina tradicional.
Nas áreas mais carentes, onde todos os recursos são mais escassos, a
vida parece ser uma sucessão de crises e, enfrentar o cotidiano se converte
num desafio para a existência numa luta solitária (Danese, 1998).
O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 73
Neste sentido, trabalhar inserido
no campo, fazendo um estudo apro-
fundado de uma comunidade para
melhor atuar, dando sentido às inter-
venções de enfermagem, é tornar-se
um etnoenfermeiro. O conhecimento
de uma comunidade, dentro de um
contexto sócio-econômico-cultural,
facilita o direcionamento dos cuida-
dos de assistência primária à saúde.
As condições ideais para desen-
volver esta pesquisa estavam nas
cláusulas de contrato de trabalho que
exigia a residência no bairro como
forma de participação do processo
social. A família, a vizinhança, os
grupos de lazer e religiosos formam
um conjunto disciplinar e organiza-
do de um modo de vida adequado às
necessidade do ser humano numa
realidade própria e peculiar.
A pesquisa qualitativa considera
como sujeitos de estudo “pessoas em
determinada condição social, perten-
cente à determinado grupo social ou
classe com suas crenças valores e
significados” (Minayo, 1996).
Local da pesquisa
A pesquisa foi realizada na ci-
dade de Assis – SP, no bairro Jar-
dim Eldorado onde está implanta-
do um dos núcleos do Programa
Saúde da Família.
Seleção dos sujeitos
Foram considerados como crité-
rios de inclusão: ser morador do
bairro Jardim Eldorado; participar
do PSF; ser usuário de algum tipo
de psicofármaco, receitado por médico; ter capacidade de comunicação; acei-
tar participar da pesquisa.
Procedimento de coleta de dados
A coleta de dados foi desenvolvida em cinco etapas:
1 – Após a consolidação dos dados cadastrais das famílias inscritas
no PSF fizemos um levantamento de todas as pessoas que esta-
vam usando psicofármacos. De posse desses dados, iniciamos as
visitas domiciliares.
2 – Com o consentimento dos sujeitos fizemos uma pergunta inicial:
As respostas foram relatos de crises acidentais não superadas mas
medicalizadas. A não superação, através da intervenção médica, levou
estas pessoas a procurarem, na religião, soluções alternativas.
3 – A terceira etapa surgiu a partir da análise das informações coleta-
das na primeira interação, levando-nos a um levantamento históri-
co da cidade, do serviço de saúde até a implantação do PSF. Dentro
da visão etnografista, contextualizamos a população e o espaço ge-
ográfico do bairro Jardim Eldorado, tentando encontrar alguma in-
dicação para o deslocamento dos pacientes em relação ao trata-
mento medicamentoso.
4 – A quarta etapa constituiu-se de entrevistas realizadas com todos os
participantes do grupo, sujeitos desta investigação, fazendo-lhes as
seguintes indagações:
Por que você começou a tomar ...............(nome do psicofármaco)
Há quanto tempo você faz uso da medicação?
Você acredita na cura com o tratamento?
Por que continua fazendo uso da medicação?
5 – Em função desses achados que apontavam claramente para a des-
crença nos tratamentos tradicionais e para a busca de soluções atra-
vés da religião, os mesmos sujeitos foram abordados novamente
com a seguinte questão:
Como a religião ajuda você a resolver seu problema?
Estes procedimentos fecharam uma triangulação na coleta de dados onde
o problema inicial (medicalização) levou-nos a uma interação mais apro-
DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.
74 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001
fundada com o grupo e à constata-
ção da ineficácia do tratamento, de-
sencadeando uma busca alternati-
va no suporte religioso.
Instrumento de coleta de dados
Malinowski (1984) diz que o tra-
balho de campo é uma condição ir-
restrita na pesquisa etnográfica. O
requisito do PSF de trabalhar, mo-
rar e conviver com a comunidade
permitiu que desenvolvêssemos um
trabalho de campo, operacionaliza-
do através de entrevistas seqüenci-
ais e de observação participante.
O procedimento de análise de dados
A análise dos resultados da pes-
quisa foi desenvolvida através de des-
dobramento das informações colhidas
e posterior reagrupamento analógico
em um critério temático abstraído de
cada grupo de dados. Este estudo es-
teve apoiado na Teoria das Represen-
tações Sociais edificada por Moscovi-
ci (1978), a partir do seu Estudo das
Representações Sociais da Psicanálise.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS
A análise dos dados, embasada na
pesquisa etnográfica e tendo como
suporte o referencial teórico das Re-
presentações Sociais, considerando
tanto os dados qualitativos como os
quantitativos, esteve voltada para
uma visão real da população, buscan-
do compreender o comportamento do
usuário de psicofármacos, dentro do
seu contexto socioeconômico-cultu-
ral. Selecionamos os principais resul-
tados para esta apresentação.
Dos quarenta e cinco sujeitos que
se propuseram a colaborar com esta
pesquisa, trinta e três eram do sexo
feminino e doze do sexo masculino. A
idade apresentada, por ocasião do ca-
dastramento, variou de dezoito a ses-
senta e cinco anos, sendo 40% anal-
fabetos ou semi-alfabetizados. Vinte
e uma mulheres (46,66%) são donas-
vou-os à busca de outras soluções
na sua comunidade.
Os motivos desencadeantes foram
avaliados como crises acidentais tor-
nadas crônicas pela falta de resolu-
ção das situações conflituosas. O tem-
po de uso dos medicamentos é um
dado importante que corrobora o ca-
ráter crônico das crises; onze pesso-
as estão fazendo uso do psicofárma-
co de dez a vinte anos, trinta e duas
de um a dez anos, e duas sequer sa-
bem precisar a data de seu uso.
Bezerra Júnior (1992) reconhece a
importância dos psicofármacos nos
tratamentos de transtornos psíquicos
mas pondera a prescrição e o uso, em
nível de atendimento de massa. Re-
portando-se ao tempo gasto na con-
sulta, o autor diz que não há tempo
razoável para um atendimento dig-
no, visto que a maioria dos psiquia-
tras da rede pública não atende, des-
pacha, não medica, repete receitas.
A demora e a falta de resolução
do problema transmitem descrédito
e levam a não adesão dos pacientes
ao tratamento. Por outro lado, ape-
sar da descrença no serviço, muitos
já são dependentes dos fármacos.
Em muitos casos, o paciente conta
com este efeito prático para supor-
tar a carga emocional de sua vida.
Esta dificuldade de relacionamen-
to com o serviço de saúde, que serve
apenas para medicalizar os proble-
mas do paciente, leva-o a procurar na
comunidade um apoio mais eficaz, o
que é encontrado na religião, princi-
palmente a neopentecostal. Esta é a
de-casa e seis homens (13,33%) estão
desempregados, formando um univer-
so de 59,99% que não têm renda pró-
pria, sendo este dado importante na
avaliação socioeconômica da popula-
ção estudada. Os demais têm renda
mensal entre dois e três salários.
A população investigada usa
psicofármacos, receitado por mé-
dico, para sintomas de transtor-
nos mentais ou situações de cri-
se acidental. Entretanto, a irre-
solutividade dos tratamentos le-
BEZERRA JÚNIOR (1992) RECONHECE AIMPORTÂNCIA DOS PSICOFÁRMACOS NOS
TRATAMENTOS DE TRANSTORNOS PSÍQUICOS
MAS PONDERA A PRESCRIÇÃO E O USO, EM
NÍVEL DE ATENDIMENTO DE MASSA
O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 75
que conta com maior número de adep-
tos no bairro e contato mais direto
com o povo. A religião, de certa ma-
neira, ocupa o espaço terapêutico do
serviço de saúde.
Como solução para seus proble-
mas, trinta e nove pessoas (86,6%)
buscam respostas na religião, qua-
tro estão desesperançados, apon-
tando a morte como solução. Ape-
nas dois mencionaram crédito e con-
fiança no tratamento convencional.
Os sentimentos advindos de
todo o processo pelo qual tem pas-
sado cada um dos quarenta e cinco
sujeitos são de insegurança, ansi-
edade e principalmente de procura
por soluções.
A causa do ingresso no serviço
de saúde está relacionada com per-
das que, por não terem sido tra-
balhadas adequadamente, torna-
ram-se crônicas e estimularam a
dependência medicamentosa. A
falta de resolubilidade pode estar
levando o portador de transtorno
mental a refugiar-se na transcen-
dência da religião.
O mecanismo de enfrentamento
encontrado nesta população vem
carregado de ‘sentimentos novos’,
‘adaptações às perdas’ e ‘reformu-
lações de expectativas de vida’, cul-
minando na ‘doença’.
Dois tipos de serviço acolhem o
doente, conduzindo seus relaciona-
mentos, as suas concepções de saú-
de e de doença, bem como, propon-
do tratamento e cura de maneiras
próprias. Os serviços de saúde e os
serviços religiosos.
QUADRO 2 – Comparação entre os Serviços de Saúde e os Serviços Religiosos
1 – Serviços de Saúde 2 – Comunidade Religiosa
Relações entre doentes x serviço de saúde
Doença x medicação
Tratamento x cura
Relações entre doentes x serviços religiosos
Doença punição x doença mérito
Tratamento x cura
Na tentativa do reequilíbrio individual e do seu grupo de origem, o sujeito
caminha entre domínios distintos e diferentes poderes: médico e religioso.
Embora os dois serviços estejam organizados socialmente para o aten-
dimento do indivíduo, somente na religião é possível visualizar uma ten-
dência à centralidade nos sentimentos e expectativas do sujeito adoecido,
uma vez que nos serviços de saúde a conduta profissional está centrada
na doença do sujeito.
QUADRO 3 – Apresentação dos temas e categorias, identificando as representações dosusuários de psicofármacos sobre os serviços de saúde e serviços religiosos, a partir do seuingresso no sistema.
INGRESSO NO SISTEMA DE SAÚDE
• PERDAS
Saúde, morte de parente, separação,mutilação física, emprego, liberdade,de identidade social, econômica, vi-olência, tragédia.
• SENTIMENTOSRaiva, culpa, revolta, resignação,medo, punição, rejeição, angústia,vingança, desesperança, inconformis-mo, descrença.
• EXPECTATIVASAcalmar, dormir, esquecer, tranqüi-lizar, aliviar, ajudar a viver, ampa-rar, dar segurança, dar apoio.
• A DOENÇAMuitas dores, dores nos nervos, ner-vos pulam, muito doido, zueira, cabe-ça quente, muito nervoso, sem con-trole, faz o que deve, fala muito, batea cabeça na parede, a voz não sai, mui-to agressiva, cabeça quente, dor nopeito, tristeza, velhice, insônia, corporepuxado, pressão alta, diabetes.
SERVIÇOS RELIGIOSOS
• DOENTE X SERVIÇOS RELIGIOSOS
Companheirismo, apoio, conforto,amizade, fanatismo, presença, conso-lo, cobrança, vigilância, intolerância,preconceito, cooperação obediência,afasta do demônio, melhor lugar.
• DOENÇA COMO PUNIÇÃO X MÉRITOCaminho da purificação, vontade deDeus, escolhido por Deus, privilégio,salvação da alma, sofrer agrada aDeus, cumprir a missão.
• TRATAMENTO X CURASó Deus cura, Jesus é grande médico,exorcismo, fé, oração, bênção do pas-tor, ser justo é bom, ter boa intenção,participar, ler a Bíblia, louvar e agrade-cer, comparecer aos cultos, orar, não de-sobedecer, divulgar a palavra de Deus,ajudar na comunidade, ir à missa, fa-zer encontros. Único caminho. Oraçãoé remédio. Cura pela graça divina.
SERVIÇOS DE SAÚDE
• DOENTE X SERVIÇO DE SAÚDE
Irresolutividade, descrença, falta decompromisso, descontinuidade, faltade vínculo, preconceito, baixa-auto-estima, desinteresse, dificuldade deconsulta, dificuldade de locomoção.
• DOENÇA X MEDICAÇÃONão fico sem as pílulas, não custa to-mar, é a ajuda de Deus na terra, deveservir para alguma coisa, tomo escon-dido, misturo com álcool, paliativo,ajudou um pouco, não tem vantagem.
• TRATAMENTO X CURASó pego receita, não conheço o médi-co, cada vez é um, pego remédio emqualquer posto, qualquer um pegaremédio pra mim, não preciso ir, nãoescutam a gente, o remédio é de gra-ça, só vou lá de 6 em 6 meses, elesnão têm paciência.
DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.
76 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001
A justaposição desses dois ser-
viços tem dado ao sujeito a possibi-
lidade de enfrentamento da crise,
enquanto espaços de confidências
e, sob certa medida, de perscruta-
ção da individualidade, autonomia,
dependência e interdependência de
si e dos outros. Para surtir o efeito
desejado ao seu reequilíbrio, é dada
ao sujeito a possibilidade da união
de dados que configurem esse pro-
cesso de adoecimento: de um lado,
os dados científicos da esfera dos
serviços de saúde e, do outro, os
dados da subjetividade representa-
tiva da religião.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo realizado em um PSF,
com os 45 sujeitos usuários de psi-
cofármacos, possibilitou entender
que atrás da doença, da medicali-
zação crônica, da busca religiosa,
estava uma história de vida que não
pôde ser escrita, nem verbalizada.
Na busca da solução para os seus
problemas, o sujeito caminha entre
domínios distintos e diferentes po-
deres: médico e religioso. Em am-
bos, ele precisa expressar e apresen-
tar uma causa que justifique seu
ingresso e inclusão. Ambos têm efei-
tos sobre sua vida e a justaposição
melhora as possibilidades de en-
frentamento da crise.
O início das crises acidentais re-
latadas provocaram sentimentos e
expectativas que, não atendidas em
sua plenitude, favoreceram o desen-
cadear da doença. Esta, por sua vez,
foi banalizada no serviço de saúde,
por sua ineficácia, assim como tam-
bém na religião, pela falta dos ele-
mentos adequados para atender às
reais necessidades do doente.
Diante dos dados apresentados
nesta pesquisa, que contou com a
informação direta dos usuários de
psicofármacos e do pesquisador,
ambos participantes no Programa
Saúde da Família, podemos concluir
que torna-se necessário uma pro-
funda reflexão sobre a organização
dos serviços de saúde e sobre a con-
duta do enfermeiro de saúde men-
tal, se de fato queremos ajudar a
pessoa que sofre.
A necessidade de atuação da
enfermagem, fora das instituições
manicomiais, modificando o mode-
lo de atendimento, mudando o pa-
radigma e sendo agente transforma-
dor social levou-nos ao entendimen-
to da solidez das descrições histori-
camente construídas pelos sujeitos,
jogando questões de suas próprias
posições. A etnografia, ou conforme
Leininger (1985) a etnoenferma-
gem, mostrou-se eficaz como mode-
lo de abordagem, visando uma
transformação estrutural.
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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 77
ARTIGOS ORIGINAIS
A construção da diferença na assistência em Saúde Mental nomunicípio: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
The construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: theexperience of São Lourenço do Sul – RS
Christine Wetzel2
Maria Cecília Puntel de Almeida3
1 Artigo elaborado com base na dissertação
de mestrado intitulada
“Desinstitucionalização em Saúde Mental: a
experiência de São Lourenço do Sul – RS”,
apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Enfemagem Psiquiátrica da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto
2 Professora da Escola de Enfermagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo.
e-mail: [email protected]
3 Professora Titular do Departamento de
Enfermagem Materno Infantil e Saúde
Pública da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
RESUMO
Frente às mudanças nas políticas de saúde mental no Brasil e a todo um
movimento que se instalou de questionamento ao modelo hospitalocêntrico e
excludente de atenção à loucura – a Reforma Psiquiátrica, e às mudanças
mais gerais no sistema de saúde brasileiro, principalmente a transferência
para os municípios da gestão e organização de seus sistemas locais de saúde,
o estudo enfoca a construção de um serviço, o Centro Comunitário de Saúde
Mental de São Lourenço do Sul – RS (CCSM). As técnicas de investigação
foram entrevistas com atores de diferentes instâncias (governantes, agentes
e usuários). O estudo desta prática singular aponta para a importância do
compromisso dos gestores locais com a implantação de um Sistema Local
de Saúde e do envolvimento de outros atores sociais como única forma de
garantir que o processo se torne construtor de sujeitos de transformação e
não de dominação.
PALAVRAS-CHAVE: atenção em saúde mental, organização de serviços, saúde mental.
ABSTRACT
Due to the changes on mental health policies and a movement that
questions the hospital centered and excluding model of attention to madness
– the Psychiatric Reform, and more general changes in the Brazilian health
care system, mainly the transfer of the management and organization of
Local Health Systems to municipalities, the work describes the construction
of a service construction, the São Lourenço do Sul Community Center of Mental
Health – RS. The research techniques used were interviews with actors of
different levels (local authority, health agents and users). The study of this
unique practice shows the importance of the commitment by local managers
with the implementation of a local health system and the involvement of
other social actors as the only way to assure that the process becomes the
constructor of transformation and not domination subjects.
KEY WORDS: attention to mental health, services organization, mental health.
WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de
78 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001
INTRODUÇÃO
Experiências significativas em
termos de uma atenção em saúde
mental fundada em um modelo não
manicomial têm sido desenvolvidas
em alguns serviços, instituições e
municípios no Brasil. Dentre estas
encontra-se o Centro Comunitário de
Saúde Mental (CCSM) de São Lou-
renço do Sul, mais conhecido por
Nossa Casa.1 São Lourenço do Sul,
no Rio Grande do Sul, localiza-se no
extremo sul do Brasil, às margens
da Lagoa dos Patos, distante 190
Km da capital, Porto Alegre, e 70 Km
do pólo regional, Pelotas. A popula-
ção total, segundo dados do IBGE
de 1992, era de 50.198 habitantes,
dos quais 26.558 residiam na zona
rural e 23.640 na zona urbana.
A importância dessas experiên-
cias está no sentido de que vêm dar
maior concretude à proposta de re-
formulação da assistência à saúde
mental e, neste momento, frente à
hegemonia do projeto neoliberal no
Brasil e em todo ocidente, a atua-
ção estratégica para contrapor esse
projeto na saúde está situada na
luta pela qualidade e eficácia dos
serviços públicos. A implantação de
serviços como o de São Lourenço
cria, dentro deste campo de tensões
e conflitos, uma dimensão de pos-
sibilidades que se contrapõem a al-
gumas críticas de governantes, do-
nos de hospitais psiquiátricos e pro-
fissionais da saúde mental quando
usam como argumento contra a re-
forma a sua pouca aplicabilidade
prática na realidade da assistência
em saúde mental deste país.
O novo enfoque não busca me-
ramente modernizar as tecnologias
de atenção psiquiátrica e difundi-
las, mas visa “redescrever, recons-
truir as relações entre a sociedade e
seus loucos. Não se trata de secun-
darizar a questão técnica, assisten-
tativa de apreender (representar te-
oricamente) a estrutura do serviço
para além do entendimento do seu
funcionamento interno e formal. Luz
(1981) refere que estrutura, enten-
dida como um conjunto de regras
mais ou menos rigidamente hierar-
quizadas, só existe na medida em
que ela é a organização das relações
sociais de poder, sendo que estas re-
lações de poder são a prática de cer-
tas regras do jogo, práticas estas que
a autora denomina “prática institu-
cional”. Esta prática institucional,
vista sob esse prisma, tende a ser
conflituosa (vista do ângulo das re-
lações sociais) e contraditória (vista
do ângulo da estrutura).
Neste estudo, equipe, usuários,
poder público e comunidade em ge-
ral são instâncias que se cruzam em
vários sentidos e, como sujeitos des-
sa prática, estabelecem o movimen-
to, determinando-a, sendo porém
determinados por uma disposição
da estrutura do Poder (político, eco-
nômico, ideológico) em um momen-
to historicamente situado de uma
formação social dada. Esta disposi-
ção é aqui entendida como “distri-
buição do poder entre classes e gru-
pos sociais em um espaço histórico
determinado” (Luz, 1981).
O entendimento de que estas
mudanças não estão ocorrendo con-
cretamente na totalidade da assis-
tência brasileira aponta para a diver-
cial, mas de redefinir seu lugar
numa estratégia mais ampla de
ação” (Bezerra Júnior, 1994:181).
A matéria deste estudo, a propos-
ta de institucionalização de uma de-
terminada forma de atenção à lou-
cura, através da organização de um
serviço, referido a uma dada estru-
tura social e a uma formação social
concreta, objetiva-se como uma ten-
1 A Nossa casa é uma das modalidades de atendimento que o compõe atualmente.
O NOVO ENFOQUE NÃO
BUSCA MERAMENTE
MODERNIZAR AS TECNOLOGIAS
DE ATENÇÃO PSIQUIÁTRICA
E DIFUNDI-LAS
A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 79
sidade da realidade do país. Nesta
arena, onde diferentes interesses es-
tão em jogo, os resultados destes
conflitos na implementação das
ações na saúde mental exigem uma
compreensão deste movimento nos
espaços concretos. As especificidades
locais e a forma como os sujeitos se
articulam nesse processo levam à
necessidade de que este movimento
seja retomado na sua singularidade.
Uma categoria que merecerá re-
levo neste estudo será o ‘processo de
constituição de sujeitos sociais’2 do-
tados de uma dada vontade política
e de um projeto de reformas. A valo-
rização deste plano implica a hipó-
tese de que é possível ‘revolucionar
o cotidiano’, questionar os mecanis-
mos de dominação/exploração (mi-
cropoderes) mesmo quando não se
tenha alterado o esquema mais ge-
ral de dominação a nível do Estado,
da sociedade política e do mundo da
produção (Campos, 1994).
O que se pretende é “tratar o ins-
tituído como expressão de um dado
processo de institucionalização, a
partir das dinâmicas políticas par-
ticulares, configuradas pelos vári-
os sujeitos sociais em suas dispu-
tas políticas” (Merhy, 1992).
O CCSM de São Lourenço do Sul
englobava, na época da pesquisa, as
seguintes modalidades de atendi-
mento: Nossa Casa, funcionando
nos moldes de um Centro de Aten-
ção Psicossocial; Ambulatório de
Psicologia e Psiquiatria; Oficinas
Integradas; Unidade de Internação
na Santa Casa de Misericórdia lo-
cal; Nosso Lar, casa em um núcleo
habitacional onde residem cinco
usuários sem família.
A coleta de dados empíricos
ocorreu em janeiro de 1995, utili-
zando-se as técnicas de entrevista
semi-estruturada. Foi entrevistado
tas, foi visto como os diversos ato-
res representam a instituição, sua
prática e as dos demais atores. A
importância disto reside no fato de
que as representações não são gra-
tuitas, mas representações ‘da prá-
tica’, porque é nela que tem a sua
origem e suporte.
Albuquerque e Ribeiro (1979: 61-
62) chamam a atenção para o fato
de que não se trata de uma causali-
dade ‘interacional’ do tipo ‘as repre-
sentações são causa e efeito das re-
lações sociais’, ou vice-versa. As
relações materiais só têm efeitos na
ordem das próprias relações mate-
riais e as representações ideológi-
cas só têm efeitos na ordem das re-
presentações. Sendo assim, as re-
presentações não são causa nem
efeito das relações sociais, mas es-
tas duas ordens de relação se arti-
culam uma a outra.
A POUCA RESOLUTIVIDADE DOS MANICÔMIOS,A RACIONALIZAÇÃO DOS GASTOS MUNICIPAIS
E A AÇÃO DOS SUJEITOS SOCIAIS
As primeiras ações na área da
saúde mental em São Lourenço do
Sul tiveram início em 1984 e não se
conformavam como um serviço,
mas eram condutas isoladas de cu-
nho preventivo e educativo, tais
2 Cecílio (1994) afirma que a categoria de sujeito e ator tem sofrido múltiplas abordagens por diferentes autores em contextos diversos, tendo
como resultado uma heterodoxia na utilização do tema que, embora rica, traz riscos. No presente trabalho não existe um rigor na utilização
destes termos; ator refere-se a todos os indivíduos ou grupos sociais que aparecem na análise e a utilização do termo sujeito já é mais presente
quando a análise se relaciona com as suas possibilidades/impossibilidades de gerar mudanças.
o grupo que participou diretamen-
te na criação do serviço: prefeito,
secretária da saúde e do bem estar
social, psicóloga, enfermeira e psi-
quiatra e dois usuários do serviço
que tinham tido a experiência an-
terior de internação em hospitais
psiquiátricos. Através das entrevis-
AS PRIMEIRAS AÇÕES NA ÁREA DA SAÚDE
MENTAL EM SÃO LOURENÇO DO SUL
TIVERAM INÍCIO EM 1984 E NÃO SE
CONFORMAVAM COMO UM SERVIÇO, MAS
ERAM CONDUTAS ISOLADAS DE CUNHO
PREVENTIVO E EDUCATIVO
WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de
80 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001
como palestras proferidas pela psi-
cóloga na comunidade, principal-
mente na zona rural.
O encaminhamento para hospi-
tais psiquiátricos de cidades mais
próximas era a única opção para
os ditos ‘casos graves’, sendo que
para o transporte a família conta-
va muitas vezes com a ajuda do
poder público, através da polícia ou
da ambulância.
(...) diariamente, duas vezes ao dia,
a ambulância ia para Pelotas levar
pacientes em crise. Então, muitas
vezes, quando a Santa Casa precisa-
va da ambulância para transportar
um paciente grave para qualquer
hospital, não tinha, ou porque a
ambulância foi para a zona rural
buscar um paciente doente mental,
ou foi para Pelotas levar esse pacien-
te. (Enfermeira)
Os pacientes crônicos, oriundos
de famílias sem condições de man-
ter um membro improdutivo, reali-
zavam, muitas vezes, uma viagem
sem retorno. Outros estabeleciam o
mecanismo da ‘porta giratória’, per-
manecendo internados durante al-
guns períodos, principalmente na
agudização do quadro, e retornan-
do ao convívio familiar em outros,
com o suporte dos psicotrópicos.
Uma série de mudanças nas po-
líticas de saúde e de saúde mental
no país e no estado pressionam pela
criação de um sistema local de saú-
de. No caso da saúde mental ocorre
uma restrição dos leitos em hospi-
tais psiquiátricos públicos e conve-
niados. Isso desencadeou nos mu-
nicípios uma demanda para a qual
não tinham estrutura. A dificulda-
de em conseguir vagas em hospitais
psiquiátricos e os gastos com trans-
porte aparecem como falta de reso-
lubilidade deste mecanismo. A fal-
ta de resolubilidade também apare-
ce relacionada às reinternações,
como demonstra a seguinte fala:
As constantes reinternações em
hospitais psiquiátricos, não havia re-
solutividade nos hospitais, as pesso-
E aí eu andava pelos corredores
lá do hospital em pânico. E olha, pode
ser o que for na vida, podem me pa-
gar o dinheiro que for, mas eu não
conto o que eu via lá, assim da mi-
nha doença, entende? As coisas pa-
vorosas que eu imaginava que via. É
delírio mesmo, entende? Horror, de fi-
car tremendo assim na cama, de
medo. Acontece que naquele hospital
a surpresa era maior porque passava
lá todo o tempo, acho que um terço do
tempo que ficava acordado, passava
em fila. Era fila para o banheiro, fila
para a água, fila para tomar remédio
de novo, fila para almoçar, fila para o
café, fila para ir para o saguão, fila
para... Era só fila durante o dia intei-
ro, dentro do hospital. E uma enfer-
meira lá perguntou para mim, na pri-
meira vez que ela me dirigiu a palavra
lá, perguntou para mim se eu sabia ler
e escrever. Isso me deixou muito indig-
nado.(...) As pessoas eram muito mal
vestidas, muito maltrapilhas, pessoas
jogadas no chão. Era como se fosse um
depósito de gente, sucata humana. Era
terrível! E eu ali parecia que eu estava
nadando, desesperado para... não sei,
parecia que iam tirar alguma coisa de
mim. Isso era forte mesmo sabe? Me
sentia perdido lá. (...) E os médicos
eram tão frios, tão frios, tão frios, que
eu não confiava neles. Eu até nem dis-
se para ninguém que eu estava ouvin-
do vozes, coisa parecida assim. Não
contei para ninguém porque eu não
confiava. Eu sentia que, quanto mais
eu me queixasse, uma coisinha que
fosse, eu estava enterrado por mais
quinze, vinte dias lá dentro daquele
hospital. Então eu chorava, suplica-
va para ele para mim ir embora, ir
as voltavam, ficavam um tempo, e iam
de volta. (...) E porque a gente enten-
dia que havia um tratamento desu-
mano a essas pessoas, destinado a
essas pessoas onde elas ficavam asi-
ladas. Eram atendidas de uma forma
que na nossa concepção não era a
mais adequada. (Psicóloga)
Mas o tratamento desumano
toma realmente formas dramáti-
cas quando descrito por alguém
que o vivenciou, concretamente,
como paciente.
MAS O TRATAMENTO DESUMANO
TOMA REALMENTE FORMAS
DRAMÁTICAS QUANDO DESCRITO
POR ALGUÉM QUE O VIVENCIOU,CONCRETAMENTE, COMO PACIENTE
A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 81
para casa, e eu estava vendo que não
adiantava. (Usuário)
O alto custo financeiro com o
transporte dos pacientes também é
um fator apontado como um ‘mo-
tivo forte’:
Então, esse foi um motivo forte,
junto com o que a gente sabia da fal-
ta da resolutividade do hospital, dos
gastos que o município tinha com
esse transporte, que era um trans-
porte inútil porque as pessoas iam e
vinham... (Secretária da Saúde)
O conflito da comunidade com os
‘loucos da rua’ aparece como ‘o esto-
pim para todo este processo de dis-
cussão’. O tensionamento oriundo
desse conflito é dirigido à Secretária
da Saúde, gerando o confronto comu-
nidade versus poder público, como
aparece na fala a seguir:
Eu considero até hoje, passados
todos estes anos, que o grande impul-
so que foi dado, pelo menos para mim
enquanto gerente do sistema (...) foi
uma paciente que tem na comunida-
de (...) não havia aceitação da comu-
nidade em relação à ela, porque ela
tinha as crises em público. E um dia
eu estava na minha casa, depois de
muita agitação, uma pessoa da co-
munidade me ligou e exigiu, em nome
dela, da família, dos vizinhos, dos
colegas de trabalho, que a municipa-
lidade resolvesse os problemas dessa
paciente. (Secretária da Saúde)
Na reação da comunidade, que co-
bra do poder público uma solução, a
Secretária da Saúde identifica um im-
pulso fundamental para que desenca-
deie o processo de discussão e cons-
trução do serviço. Com o processo de
municipalização da saúde os gover-
nantes locais passaram a ter respon-
sabilidade, poder de decisão e inter-
venção, que antes cabiam exclusiva-
mente a outras instâncias, ocorrendo
uma aproximação entre a instância go-
vernamental, que passa a ser local, e
a comunidade, o que faz com que os
conflitos ocorram de forma muito mais
próxima e direta e as reivindicações
que vinha se instalando na saúde em
geral e na saúde mental no Brasil:
Com o advento das discussões das
Ações Integradas de Saúde e depois
do SUDS, a gente começou a se dar
conta que havia uma nova proposta
em discussão no país, e que no muni-
cípio nós também precisaríamos dis-
cutir essa descentralização dos servi-
ços, onde os municípios teriam um
papel muito importante na organiza-
ção de seu sistema local de saúde.
Então começamos a evoluir, e a medi-
da que evoluíamos, que íamos crian-
do toda uma rede, não só de serviços
mas como também o desenvolvimen-
to de vários projetos, nos demos con-
ta que o usuário do sistema não teria
um atendimento completo se não se
agregasse também, nesse atendimen-
to, se não se desse ênfase à atenção à
saúde mental. (Secretária da Saúde)
Isso começou com a secretária da
saúde. Ela foi participar, se não me
engano, do I Encontro Estadual de
Saúde Mental em Porto Alegre, (...) e
aí ela foi lá e viu as pessoas coloca-
rem como as coisas poderiam ser fei-
tas a nível de município (...) ela sem-
pre vinha com vontade de fazer algu-
ma coisa. (Enfermeira)
A articulação do poder público
municipal, na pessoa da secretária
de saúde, com os outros níveis do
governo, a sua inserção e militân-
cia na proposta do Sistema Único
de Saúde (SUS) e da municipaliza-
ção podem ser percebidos na fala.
Todo um saber vinha se impon-
do no Brasil em relação às políticas
desta comunidade adquiram um po-
der de pressão muito maior. Nesse jogo
de pressões, barganhas e articulações,
percebe-se um poder mais circulante
entre estas duas instâncias.
AS ARTICULAÇÕES DA PROPOSTA LOCALCOM O MOVIMENTO MAIS AMPLO
A Secretária da Saúde e do Bem
Estar Social estava inserida e com-
prometida com todo o movimento
O CONFLITO DA COMUNIDADE
COM OS ‘LOUCOS DA RUA’APARECE COMO ‘O ESTOPIM
PARA TODO ESTE PROCESSO
DE DISCUSSÃO’
WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de
82 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001
de saúde, através de diversos foruns
e em vários níveis de discussão. Esta
prática mais ampla foi construtora
de sujeitos que, frente à necessida-
de de elaboração de um projeto po-
lítico e sustentação do poder políti-
co no nível local, construíram a ex-
periência no concreto.
A política governamental de um
sistema descentralizado de atenção
leva, em 1982, à criação da Secreta-
ria da Saúde e do Bem Estar Social,
não só possibilitando, como também
exigindo que o município assuma
uma responsabilidade que até então
não vinha tendo. Mas a forma como
os governantes se comprometeram
com isso é muito diversa, estando em
jogo diversos fatores e interesses.
Como visto, a integração destes
governantes às propostas reformis-
tas é fundamental para que eles es-
tabeleçam um vínculo de compro-
metimento com elas, para que se
percebam como sujeitos, e dentro de
determinado grau de liberdade como
decisores, possam operacionalizá-
las no concreto.
Nas entrevistas com os técni-
cos aparece com muita força a
questão da vontade política, do
papel que os governantes da épo-
ca tiveram na implantação do tra-
balho. A unanimidade em relação
a esse aspecto leva a repensar afir-
mações de que mudanças nos ser-
viços de atenção à saúde mental
ocorrem via única e exclusivamen-
te ‘soluções técnicas’, no momen-
to em que questões políticas apa-
recem como fatores que têm uma
grande relevância na possibilidade/
impossibilidade de concretizá-las.
Apesar de perceberem estas ques-
tões mais gerais contribuindo para
a mudança local, as determinações
que aparecem como mais presentes
nas falas a seguir são as que foram
vivenciadas pelas pessoas, em diver-
sos níveis, na sua prática cotidiana.
As mudanças em um nível conjun-
tural nem sempre são percebidas por
elas de forma imediata.
A grande ênfase dada ao fato
de não terem tido ‘um estímulo ex-
terno’ demonstra que, na percep-
ção imediata das pessoas que es-
tavam à frente da proposta, exis-
tia um grande grau de autonomia
e que a criação e a invenção tive-
ram um papel fundamental, sem
modelos pré-fabricados.
As mudanças no contexto eco-
nômico, político e social que geram
toda uma mudança na própria raci-
onalidade vigente, não são percebi-
das como tendo influência sobre o
pensar e fazer. O fato de estas de-
terminações não serem conscientes
geram a ‘surpresa’ quando percebe-
se práticas semelhantes, sem que
houvesse tido alguma espécie de
intercâmbio entre elas.
A SINGULARIDADE CONTRIBUINDO PARAA CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA
Quando nos damos conta de que
a proposta da Reforma Psiquiátri-
ca brasileira não se instalou de for-
ma homogênea nos municípios,
sendo que em alguns nem sequer
chegou a se instalar, torna-se ne-
cessário que nos reportemos às es-
pecificidades locais.
São Lourenço do Sul é um mu-
nicípio pequeno, com grande parte
de sua população residindo na zona
rural. A economia prioriza o setor
agropecuário. Dentro deste contex-
to, a forma como instalou-se a aten-
ção à saúde mental pode ser melhor
Porque aí tu vais criando essa
história, e para tu teres uma idéia,
a gente nunca ouviu falar em Fran-
co Basaglia, eu nunca tinha escu-
tado falar (...) Até aí foi uma fase
desconhecida para nós do processo
evolutivo das políticas de saúde
mental a nível de Brasil e de mun-
do. Não sabíamos nada disso. Isso
aí aconteceu tudo por acaso. Não
foi assim um por acaso ‘ah, estou-
rou aqui’, não, mas não tinha, va-
mos dizer assim, um estímulo ex-
terno. (Psiquiatra)
NAS ENTREVISTAS COM OS TÉCNICOS
APARECE COM MUITA FORÇA A QUESTÃO
DA VONTADE POLÍTICA, DO PAPEL
QUE OS GOVERNANTES DA ÉPOCA
TIVERAM NA IMPLANTAÇÃO
DO TRABALHO
A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 83
entendida. Um serviço pequeno, não
centrado no ato médico, com a atu-
ação de uma equipe com alto nível
de integração com essa comunida-
de, e até mesmo com as relações
dando-se de forma mais informal
entre os trabalhadores de saúde
mental e usuários, uma relação que
se estabelece não só internamente no
serviço, mas também na comunida-
de: todos se conhecem, comparti-
lham de problemas semelhantes, fre-
qüentam os mesmos lugares, fazem
compras no mesmo supermercado.
CRIANDO UMA NOVA MANEIRA DE CONCEBER EATENDER O LOUCO – QUEBRANDO AS QUATRO
PAREDES E CONSTRUINDO A NOSSA CASA
Em 1987, iniciaram as discus-
sões, desencadeadas pela secretária
de saúde, tendo seu início ainda
muito restrito, envolvendo apenas
duas pessoas: uma enfermeira e
uma estagiária de psicologia, que
tinham como tarefa a elaboração de
um projeto de saúde mental. Frente
à exigência da elaboração de um
projeto, o grupo elabora, em 1987,
o que denominaram de Plano de
Saúde Mental do Município.
Paralelamente à elaboração do
Plano, já estava sendo prestado
atendimento ambulatorial pelo psi-
quiatra. Como era um atendimento
que até então inexistia no municí-
pio, foi divulgado nas Assembléias
Comunitárias Rurais, onde a psicó-
loga já vinha atuando.
Eu já trabalhava com promoção
nas Assembléias Comunitárias Rurais,
que eram grupos de pessoas que se reu-
niam em locais distantes da cidade, e
realizava um trabalho em saúde men-
tal desde zero anos até a velhice, e co-
mecei a conversar com as pessoas:
quem eram os doentes que moravam
naquela localidade, onde estavam, o
que faziam, como eram tratados, quem
reinternava, quem era problema para
aquela comunidade... (Psicóloga)
O trabalho nas Assembléias Co-
munitárias Rurais não teve somen-
zado na comunidade através destas
assembléias, e o trabalho da saúde
mental nasce vinculado a uma pro-
posta de participação comunitária
mais ampla.
A falta de resposta deste ambu-
latório na resolução dos problemas
aparece na fala abaixo, principal-
mente em relação aos casos crôni-
cos, e gerou uma crítica interna a
esta forma de atendimento, possi-
bilitando que não se cristalizasse
como forma única de intervenção.
(...)como tinha atendimento e eu não
tinha estrutura aqui para ficar com o
doente em crise, tinha que encami-
nhar. E eu era a porta de entrada do
hospital, porque eu era o médico as-
sistente do hospital da cidade vizinha.
Então era a coisa mais simples, eu
pegava, ligava para o hospital e di-
zia: ‘Olha, está indo uma ambulân-
cia para aí!’ E o paciente no outro dia
já estava internado. Mas aquilo não
me satisfazia (...) porque eu comecei
a ver a história do outro lado: eu es-
tava aqui, via um caso agitadíssimo
na minha frente, no outro dia eu che-
gava no hospital, o caso que eu enca-
minhei aqui já estava bem, estava
calmo, estava tranqüilo. Muita vezes
a gente se dava conta que ele tinha
parado a medicação, tinha tido uma
briga em casa, não precisava ter tido
todo aquele esquema. (Psiquiatra)
A ‘nova solução institucional’ –
o ambulatório –, não alterou em
nada o destino que os doentes men-
tais crônicos até então vinham ten-
do. Frente à ineficácia do ambula-
te o objetivo de divulgar o atendi-
mento psiquiátrico ambulatorial
que começou a ser realizado. Possi-
bilitou também a integração desta
equipe inicial com a comunidade da
zona rural, através da psicóloga que
já tinha vínculo com este segmento
da população. Através disto também
foi possível que a equipe realizasse
um diagnóstico mais concreto da-
quela realidade. Ocorre, deste modo,
a integração dos técnicos a todo um
trabalho que já vinha sendo reali-
UMA RELAÇÃO QUE SE ESTABELECE NÃO SÓ
INTERNAMENTE NO SERVIÇO, MAS TAMBÉM
NA COMUNIDADE: TODOS SE CONHECEM,COMPARTILHAM DE PROBLEMAS
SEMELHANTES, FREQÜENTAM OS MESMOS
LUGARES, FAZEM COMPRAS NO
MESMO SUPERMERCADO
WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de
84 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001
tório, em maio de 1988 começa a se
delinear a idéia de ‘um local’, sen-
do elaborado um projeto de implan-
tação de um centro de reabilitação
do doente mental. Neste processo de
construção pode-se identificar qua-
tro níveis de ação destes sujeitos:
em relação aos usuários, à família,
à comunidade3 e aos governantes.
No primeiro nível – os usuários
– foi realizada uma espécie de loca-
lização destes, conhecendo quem
eram, onde viviam, quais eram os
seus problemas.
Então se fez visitas domiciliares
através dos arquivos que tinham lá
na unidade sanitária (...) E outros
que andavam perambulando aí pe-
las ruas, outras pessoas. Então a
gente procurou ver lá nos arquivos
da unidade sanitária e alguns que
já passaram aqui pelo ambulatório
com atendimento do psiquiatra, e vi-
sitamos essas pessoas, fizemos visi-
tas para todos eles, eu e a assistente
social. (Enfermeira)
A importância desta conduta
está no fato de que muitos serviços
são estruturados para usuários ima-
ginários. Estes não existem concre-
tamente para os agentes. Mais tar-
de, estas pessoas chegam até este
serviço como pacientes, com as nor-
mas e papéis já estabelecidos, onde
recebem um diagnóstico e são sub-
metidos a determinada conduta te-
rapêutica. Como dizem Rotelli et al
(1990), é desmontando estes apara-
tos institucionais em relação à ‘do-
ença’ que será possível retomar o
contato com a existência dos paci-
entes enquanto ‘existência’ doente.
A citação acima tem relação com
a crítica ao conceito psiquiátrico de
doença mental realizada pelo grupo
de Trieste. No novo paradigma o pro-
blema deixa de ser a doença em sua
dimensão técnico-científica, na qual
para a subjetividade louca, ao esta-
belecimento de uma nova relação
com ela e à criação de fissuras na
serialização da psiquiatria (Torre &
Amarante, 2001).
O segundo nível de ação refere-
se à família:
E tanto que fizemos que foi feita
uma reunião com todos estes famili-
ares e foi colocado, dada a idéia, de
se fazer esse tipo de serviço aqui,
para que as pessoas pudessem ficar
aqui na comunidade. (Enfermeira)
Se fez vários grupos com famili-
ares, onde se colocou essa proposta.
(Psicóloga)
Na medida em que a proposta
visava superar uma prática que não
respondia às necessidades, a adesão
da família era fundamental. As ins-
tituições que até então vinham aten-
dendo os pacientes não exigiam uma
participação efetiva dos familiares,
sendo que, muitas vezes, até a proi-
bia. Ao mesmo tempo, não davam
nenhuma espécie de suporte quan-
do o paciente não estava ‘entre os
seus muros’, no caso do hospital psi-
quiátrico, ou ‘no horário da consul-
ta’ no caso do ambulatório. Mas a
participação e inserção do familiar
não se concretiza através de meca-
nismos coercitivos ou normativos,
sendo necessário que se estabeleça
3 Neste estudo comunidade refere-se ao contexto local, cabendo ressaltar porém que a comunidade não é percebida como um espaço homogêneo
e harmônico: conflitos, diferentes atores com interesses diversos, enfim, tanto o que tem de homogêneo, como o que tem de heterogêneo estão
presentes, e, neste tensionamento e na dinâmica que se estabelece neste espaço, surge a possibilidade de transformação.
desaparece o sujeito doente, mas re-
fere-se a sujeitos concretos, em sua
existência-sofrimento. No lugar do
objeto doença mental, o objeto exis-
tência-sofrimento do sujeito em sua
relação com o corpo social.
Uma proposta de mudança deve
levar à produção de um novo lugar
NO NOVO PARADIGMA O PROBLEMA DEIXA
DE SER A DOENÇA EM SUA DIMENSÃO
TÉCNICO-CIENTÍFICA, NA QUAL DESAPARECE
O SUJEITO DOENTE, MAS REFERE-SE ASUJEITOS CONCRETOS, EM SUA
EXISTÊNCIA-SOFRIMENTO
A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 85
um outro tipo de vínculo entre a equi-
pe e familiares, e isso foi construído
e negociado na própria relação.
O terceiro nível da ação – a co-
munidade – ocorreu muito antes de
ser pensada a possibilidade de um
atendimento em saúde mental no
município e continuou no decorrer
de todo processo. O trabalho de
saúde mental já nasceu no interior
de uma proposta de participação
comunitária mais ampla. A maio-
ria dos profissionais já vinha rea-
lizando algum trabalho junto à co-
munidade, conhecia a sua realida-
de e pôde determinar que segmen-
tos era necessário e estratégico
mobilizar inicialmente.
Mas como começar, como mo-
bilizar, como falar isso para a co-
munidade? Então a secretária pe-
diu para a gente entrar em conta-
to com uma enfermeira, que era
uma pessoa que trabalhava com
isso aí, que tinha uma boa vivên-
cia nisso aí. Entramos em contato
com ela e fizemos uma reunião
onde foram mobilizadas as pesso-
as, as associações de bairro, o hos-
pital, o hospital da Reserva, a Bri-
gada Militar, médicos, muitas pes-
soas ligadas na área da saúde, e
foi colocado o problema para as
pessoas. Ela colocou a experiência
dela, o que ela achava que poderia
ser feito. Isso também foi um iní-
cio, toda essa discussão partiu
desta reunião. (Enfermeira)
A participação da comunidade
não era uma ‘concessão’ feita por
governantes democráticos, que
viam por bem transferir um poder
que era seu para a população. As
próprias mudanças que ocorreram
nas políticas de um modo geral e
nas políticas de saúde em particu-
lar exigem que, para que os gover-
nantes possam viabilizar as suas
propostas, tenham o apoio da co-
munidade. Então, não é um poder
concedido e sim um poder constru-
ído no decorrer de anos de luta pela
democratização, em todas as instân-
Então foi feito um acerto assim; a
prefeitura tinha um prédio alugado
aqui no outro lado, onde ficava uma
espécie de rouparia e o pessoal que
trabalhava com os mosquitos, então
eles ficavam todos aqui neste prédio.
Então, na época, o prefeito disse o
seguinte: ‘É uma casa grande, o pre-
ço do aluguel vai ser elevado. A gente
aluga desde que estas coisas que es-
tão nessa casa alugada aqui possam
passar todas para lá!’ Que aí ele ia
encerrar o contrato dessa casa aqui e
ele pagaria o aluguel só de lá. Foi onde
se alugou aquela casa e passou to-
das essas coisas para lá, os mosqui-
tos, a rouparia, tudo ficou lá, tudo jun-
to. (Enfermeira)
Em relação aos vereadores, o
apoio político conquistado neste
período deu inclusive algumas ga-
rantias na forma de lei.
E aquele apoio político que se ti-
nha necessidade junto ao legislativo
também foi possível porque a equipe
também passou a sensibilizar os ve-
readores. Tanto é que se conseguiu
incluir na Lei Orgânica Municipal,
que em 87, 88, eu não me lembro bem
o ano, foi quando se montou na Lei
Orgânica Municipal um capítulo es-
pecífico para a área de saúde men-
tal. (Secretária da Saúde)
Como resultado deste movimen-
to, é inaugurada em 16 de agosto
de 1988 a Nossa Casa. Posterior-
mente, na própria prática dos ato-
res, foram surgindo outras necessi-
dades que levaram à ampliação do
âmbito institucional além da inte-
cias, no Brasil. No caso da saúde
mental, a própria proposta de de-
sospitalização exigia que a comu-
nidade assumisse um papel que até
então não vinha tendo.
Por último, vemos a ação em re-
lação aos governantes. Esta foi di-
recionada para o prefeito e para os
vereadores. No caso do prefeito, foi
necessária uma negociação, porque
a nova proposta exigia um investi-
mento que até então não tinha sido
necessário: o aluguel de uma casa.
AS PRÓPRIAS MUDANÇAS QUE OCORRERAM
NAS POLÍTICAS DE UM MODO GERAL E NAS
POLÍTICAS DE SAÚDE EM PARTICULAR EXIGEM
QUE, PARA QUE OS GOVERNANTES POSSAM
VIABILIZAR AS SUAS PROPOSTAS,TENHAM O APOIO DA COMUNIDADE
WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de
86 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001
gração dos diferentes trabalhos que
vinham sendo desenvolvidos no
município na área da saúde men-
tal, surgindo o Centro Comunitário
de Saúde Mental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo dessa experiência sin-
gular aponta para alguns fatores
que foram decisivos para a cons-
trução da mudança na saúde men-
tal. As políticas de saúde mental
mais amplas trouxeram repercus-
sões em todos os espaços sociais
onde a internação em manicômios
era o mecanismo utilizado para
atender e controlar a loucura. Os
óbices para sua utilização, os gas-
tos que envolvia e a repercussão
disso, obrigando a uma convivên-
cia com a loucura, que não tem
mais no seu tradicional mecanis-
mo de exclusão a resolubilidade
anterior, geraram uma crise nos
municípios que leva à necessidade
de criação de outras formas, outros
caminhos para o atendimento do
doente mental. A Reforma Sanitá-
ria e a transferência aos municípi-
os da responsabilidade de implan-
tação de sistemas locais de saúde
também fez com que os governan-
tes locais tivessem que assumir
questões que, até então, cabiam a
outros níveis de gerência.
Apesar da participação dos go-
vernantes ter sido fundamental, a
convergência do poder estratégico
entre equipe de trabalho, institui-
ções, instâncias governamentais e
grupos organizados da comunida-
de foram fundamentais para que
a mudança fosse construída no ca-
minho da democracia. A possibili-
dade de convivência com a diferen-
ça precisa ser construída em to-
dos os espaços da comunidade,
através da sua própria possibili-
dade de participação, negada du-
rante tantos anos neste país, re-
vendo conceitos e preconceitos
cristalizados que têm como resul-
tado a discriminação, a exclusão
e a violência.
O enfrentamento destas questões
exige a retomada de alguns aspec-
tos aparentemente simples mas mui-
tas vezes esquecidos, tais como a
solidariedade, o acolhimento e, por
que não, em alguns momentos, a
conciliação. Mas exige também a re-
tomada da responsabilização por
parte de todos atores envolvidos:
governantes, trabalhadores de saú-
de, usuários, família e comunidade,
na construção de sistema público de
atenção à saúde com um atendimen-
to de qualidade, voltado às necessi-
dades dos seus usuários.
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88 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
Qualidade de vida de pessoas egressas de instituiçõespsiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA1
Quality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, case
Rozemere Cardoso de Souza2
Maria Cecília Morais Scatena3
RESUMO
Esta pesquisa objetivou investigar a qualidade de vida de egressos de
instituições psiquiátricas, através de instrumento de avaliação da qualidade
de vida (WHOQOL) elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em
sua versão abreviada. Evidenciaram-se as carências e os aspectos que merecem
a atenção dos profissionais de saúde, quando do planejamento, implementação
e avaliação de ações com vistas à melhoria da qualidade de vida dos sujeitos,
no contexto estudado, constituindo-se num valioso diagnóstico.
PALAVRAS-CHAVE: saúde mental; qualidade de vida; programa saúde da família.
ABSTRACT
This research aimed at investigating the quality of life of patients discharged
from psychiatric institutions, through an instrument of life quality assessment
(WHOQOL) developed by the World Health Organization (WHO), in its
abbreviated version. The lacks and the aspects which deserve the health
professionals' attention were shown considering the planning, implementation
and evaluation of actions which relate to the improvement of the subjects' life
quality, in the studied context, being a valuable diagnosis.
KEY WORDS: mental health; quality of life; family health program.
1 Parte da dissertação de mestrado,
defendida em 13/12/2000 na Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto/USP.
2 Professora assistente da Universidade
Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/ BA.
Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica
da Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo.
e-mail: [email protected]
3 Professora associada junto ao
Departamento de Enfermagem Psiquiátrica
e Ciências Humanas da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo.
e-mail: [email protected]
Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 89
INTRODUÇÃO
A vida do doente mental é mar-
cada por sofrimentos que são, fre-
qüentemente, ligados à própria do-
ença e/ou à evolução do seu cuida-
do, caracterizados por relações de
poder e de subordinação de tal modo
que o sujeito é “transformado em
doente-objeto, não gente, não ho-
mem” (Ornellas, 1997:196).
Embora a tendência atual con-
temple a mudança dessa situação e
o exercício pleno da cidadania dos
doentes mentais, percebemos, em
nosso cotidiano profissional, uma
insuficiência de práticas capazes de
promover tal socialização, já que
não propiciam a criação de espaços
positivos dos quais possam emer-
gir relações capazes de transformar
suas experiências de vida.
A expectativa de um olhar mais
positivo à vida de um portador de
distúrbio mental, mesmo em nossos
dias, tem-se dado de forma muito
lenta, sendo notória a carência de
políticas que promovam o bem-es-
tar dessas pessoas e da comunida-
de em geral.
Motivados para contribuir com
a melhoria do cuidado prestado a
esses sujeitos e a seus familiares,
interessamo-nos por conhecer o dia-
a-dia especialmente daqueles que
vivem em suas comunidades e que
ainda não contam com apoio para
enfrentamento dos obstáculos de-
correntes dessa convivência ou de
outros fatores.
Assim pensando, com o auxílio da
literatura, chegamos à conclusão de
que um estudo sobre qualidade de
vida desses sujeitos nos possibilita-
ria conhecer, de modo mais abrangen-
te, como eles vivem. Este fator de fun-
damental importância seria o ponto
de partida para as mudanças que es-
tudávamos implementar.
Qualidade de vida, compreendi-
do como um termo de caráter sub-
jetivo e multidimensional. Galera
(1994) o define como o resultado do
vas, padrões e preocupações”
(WHOQOL GROUP, 1994:28).
Motivações para o estudo dessa
temática, em saúde mental, têm sido
atribuídas à necessidade de melhor
entender as limitações e o sofrimen-
to ligado às doenças mentais. Tam-
bém há o entendimento de que me-
lhorias neste campo conduzirão à re-
dução das taxas de internações psi-
quiátricas, da sobrecarga familiar e
do sistema de saúde, com conseqüen-
te economia de recursos, pois as do-
enças mentais estão entre as que mais
oneram a sociedade (Marcolin, 1998).
O tema é importante por nortear
intervenções que possam causar
impacto positivo na vida dos sujei-
tos, uma vez que as avaliações po-
dem ocorrer a partir de suas percep-
ções, possibilitando que sejam ou-
vidos não-somente quanto aos as-
pectos que se referem à doença.
Exposto isto, o presente trabalho
objetivou investigar a qualidade de
vida de pessoas egressas de unida-
des de atendimento psiquiátrico,
buscando conhecer suas percepções
quanto aos aspectos biológicos, psi-
cológicos, sociais e ambientais.
METODOLOGIA
Local da pesquisa
Desenvolvemos este estudo na
área de abrangência do Programa
Saúde da Família (PSF), no bairro
Nossa Senhora da Vitória, localiza-
do no município de Ilhéus/ BA. Den-
processo de interações do homem
com seu meio ambiente, valendo
este como um atributo que classifi-
ca como boa ou ruim tal interação.
Já a Organização Mundial de Saúde
(OMS) engloba em seu conceito a
interação do indivíduo com o seu
ambiente interno e externo: “Quali-
dade de vida é a percepção de uma
pessoa de sua posição na vida no
contexto da cultura e sistema de
valores nos quais ele vive e em re-
lação aos seus objetivos, expectati-
MOTIVAÇÕES PARA O ESTUDO DESSA
TEMÁTICA, EM SAÚDE MENTAL, TÊM SIDO
ATRIBUÍDAS À NECESSIDADE DE MELHOR
ENTENDER AS LIMITAÇÕES E O SOFRIMENTO
LIGADO ÀS DOENÇAS MENTAIS
SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.
90 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001
tre as razões para a escolha desta
área, destacamos: a identificação,
através dos registros do PSF, como
uma das áreas que possuíam maior
incidência de distúrbio mental e o
apoio dos profissionais desse progra-
ma para a identificação dos sujeitos,
bem como para intervenções futuras.
Sujeitos do estudo
Incluímos no estudo 26 sujeitos
adultos, de ambos os sexos, todos
vinculados ao PSF, que atenderam
aos seguintes critérios: ser egresso
de instituição psiquiátrica, ou seja,
em algum momento de sua vida foi
submetido a tratamento psiquiátri-
co em instituições para esse fim, seja
ambulatorial ou hospitalar, não nos
importando sua região de origem,
nem a freqüência de atendimentos
ou seu diagnóstico; ser capaz de com-
preender perguntas e responder a um
questionário e concordar em partici-
par da pesquisa. Dentre os partici-
pantes, excluímos apenas os egres-
sos por abuso de substâncias psico-
ativas, dadas às peculiaridades des-
se sofrimento e da assistência.
Procedimentos para coleta eanálise dos dados
Coletamos os dados entre os dias
24 de abril e 02 de junho de 2000,
utilizando instrumento de avaliação
da qualidade de vida, elaborado pela
OMS, em sua versão abreviada
(WHOQOL-BREF), que foi validado
no Brasil pelo Departamento de Psi-
quiatria e Medicina Legal da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do
Sul - Porto Alegre. Trata-se de uma
escala do tipo Likert de 5 pontos,
com medidas de intensidade, capa-
cidade, freqüência e avaliação. Esta
escala abrangeu 24 questões que
avaliaram 4 domínios (físico, psico-
lógico, relações sociais e meio am-
endemos, e os resultados aqui apre-
sentados confirmam, que facetas e
domínios relacionam-se entre si.1
Além da escala, uma parte do questi-
onário destinou-se aos dados socio-
demográficos dos sujeitos e a algu-
mas informações sobre sua saúde.
Um dos pesquisadores aplicou os
questionários em um só encontro,
o qual teve duração média de 45
minutos. Esclareceu aos sujeitos,
inicialmente, que as respostas de-
veriam se referir às duas semanas
anteriores à entrevista.
Para análise dos dados utiliza-
mos o programa Epi Info, da OMS,
de domínio público. Uma vez cate-
gorizados, estes nos permitiram
identificar as características sociode-
mográficas dos sujeitos e os resulta-
dos dos domínios do WHOQOL-BREF.
Para encontrar estes últimos, segui-
mos os passos definidos pela OMS e
descritos por Fleck et al. (1998).
Apresentamos os resultados dos
domínios por meio de gráficos que
mostram as freqüências de respos-
tas em três categorias: satisfação,
insatisfação e posição intermediá-
ria. Descrevemos as médias encon-
tradas para cada domínio numa es-
cala de 4 a 20 pontos, assim como
os resultados mais relevantes das
facetas que compõem os mesmos.
Quanto maior o escore, melhor a
representação da qualidade de vida.
1 Maiores informações acerca da estrutura do instrumento e da nossa experiência em utilizá-lo, ver SOUZA, R.C., 2000. Qualidade de vida das
pessoas egressas de instituições psiquiátricas: o caso de Ilhéus/BA. Ribeirão Preto. 122p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
biente), as quais representam 24
facetas, isto é, subdomínios do ins-
trumento original, e mais 2 que com-
põem um quadro geral da qualidade
de vida, totalizando 26 questões (Fle-
ck et al., 1999). Apesar desta classifi-
cação, que busca representar a mul-
tidimensionalidade do objeto de es-
tudo (a qualidade de vida), compre-
INCLUÍMOS NO ESTUDO
26 SUJEITOS ADULTOS,DE AMBOS OS SEXOS,
TODOS VINCULADOS AO PSF
Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 91
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Características sociodemográficas dos sujeitose condições de saúde
Dos 26 sujeitos entrevistados,
a grande maioria (76,9%) era do
sexo feminino, com idade entre 20
e 70 anos, sendo a média de 43
anos. Constatamos que mais da
metade (53,8%) não possuía com-
panheiro. Quanto à escolaridade,
quase todos (92,3%) eram analfa-
betos ou semi-analfabetos.
Segundo a ocupação e rendimen-
tos, observamos que para cada três
sujeitos, um encontrava-se aposen-
tado, sendo que o rendimento da
maioria (69,2%) procedia de auxílio
previdenciário (aposentadoria ou
pensão), ou de parentes e amigos.
Com relação às moradias, estas
não apresentavam boas condições.
Eram de difícil acesso, muitas ha-
bitadas ainda em construção. Nem
sempre possuíam banheiro no inte-
rior da casa, nem água encanada.
Quando interrogados sobre sua
condição de saúde, a maioria dos
sujeitos (61%) a considerou insatis-
fatória (muito ruim ou fraca), citan-
do como principais problemas de
saúde: problemas nervosos ou emo-
cionais, doenças crônico-degenera-
tivas (hipertensão e diabetes) e do-
res diversas.
Características como analfabe-
tismo, carência parcial ou total de
renda, moradias inadequadas e estado insatisfatório da saúde,2 mostram
que os sujeitos estão à margem da sociedade e distantes da cidadania ple-
na. No entanto, estas se assemelham às características sociodemográficas
das demais famílias vinculadas ao PSF, do contexto estudado (Souza, 2000),
tão comuns às periferias urbanas formadas pelas migrações, mas próprias
de uma região que vem experimentando a maior crise econômica de sua
história (Pimenta, 2000).
Nesse contexto, é importante ressaltarmos que, quando os sujeitos se
deslocam de uma situação para outra, suas expectativas são de melhoria
das condições de vida, o que nos leva a reforçar a idéia da necessidade de
implementação de ações voltadas à saúde mental das comunidades.
Análise das freqüências de respostas do whoqol-bref
Domínio 1 (Domínio Físico)
Em geral, as respostas obtidas para o domínio Físico – 1 (Gráfico 1)
demonstraram que 34% dos sujeitos estavam insatisfeitos, tema que aufe-
riu uma média de 11,91 (posição intermediária).
2 saúde conforme entendimento dos sujeitos.
Gráfico 1 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para odomínio 1. Município de Ilhéus/BA, 2000.
Em relação às facetas que compuseram este domínio, destacamos aque-
las a que os sujeitos se referiram como as mais difíceis e as que lhes davam
maior satisfação. São elas: ‘dor e desconforto’ e ‘dependência de medica-
mentos’; e ainda ‘capacidade para o trabalho’, respectivamente.
Observamos que os sintomas ‘dor e desconforto’ dificultavam o cotidia-
no da grande maioria dos sujeitos, pois 69% mencionaram que eles os impe-
diam de fazer o que precisavam, variando de média a extrema intensidade
tal impedimento.
SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.
92 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001
Quanto à ‘dependência de me-
dicação ou de tratamentos’, qua-
se que a unanimidade (96%) dos
sujeitos respondeu precisar de al-
gum tratamento médico para levar
sua vida diária, ainda que uma mi-
noria (4%) considerasse pequena
tal necessidade.
Percebemos, por esses resulta-
dos, que os sujeitos têm baixa au-
tonomia e dão pouca atenção à
saúde, principalmente a mental, o
que era esperado, uma vez que os
serviços de saúde mental de Ilhéus
ainda estão fortemente influencia-
dos pela cultura manicomial e os
profissionais não parecem se pre-
ocupar com a transformação, nem
tampouco com a continuidade da
assistência. Discutiremos melhor
estas questões após avaliação do
domínio psicológico.
Na avaliação da sua ‘capacida-
de para o trabalho’, metade (50%)
dos sujeitos demonstrou satisfa-
ção e a outra metade (46%) insa-
tisfação. Isto denota que, mesmo
a maioria dos sujeitos estando
aposentada ou desenvolvendo ati-
vidades informais, eles ainda se
sentem úteis e precisam de ajuda
para se inserir no mercado de tra-
balho, de modo a terem seu poten-
cial valorizado.
Iniciativas como o ‘Projeto Tra-
balho’, desenvolvido pelo Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) ‘Luís da
Rocha Cerqueira’, em São Paulo, têm
provado com sucesso a possibilida-
de de inserir o doente mental no
mercado produtivo e afirmado que a relação terapêutica é um ingrediente
imprescindível nesse processo (Motta, 1997).
Assim, observamos que alternativas para o trabalho são necessárias e
que as interações terapêuticas desenvolvidas por profissionais de saúde têm
seu valor, favorecendo os sujeitos a se desenvolverem enquanto pessoas, a
aumentarem seus rendimentos e, conseqüentemente, a satisfazerem melhor
suas necessidades, proporcionando segurança e satisfação às suas vidas.
Domínio 2 (Domínio Psicológico)
As respostas obtidas para o domínio 2 (Gráfico 2) revelaram que 31%
dos entrevistados mostraram-se insatisfeitos, mas a maioria (46%) respon-
deu que não estava satisfeita, nem insatisfeita. A média observada neste
domínio foi de 11,25 (posição intermediária).
GRÁFICO 2 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para odomínio 2. Município de Ilhéus/BA, 2000.
Ainda neste domínio, os sujeitos demonstraram experimentar situações
críticas nas facetas sentimentos positivos e negativos. Na primeira, que
contribui para melhorar sua qualidade de vida, observamos carência e as
freqüências atribuídas a ela revelaram que metade (50%) dos sujeitos não
aproveitava a vida como gostaria, respondendo que não a aproveitava ou
que a aproveitava muito pouco.
No que diz respeito à freqüência com que os sujeitos tinham ‘sentimen-
tos negativos’, tais como mau-humor, desespero, ansiedade e depressão,
quase todos (96,2%) responderam conviver com tais sentimentos, variando
a freqüência de algumas vezes a sempre.
Se pensarmos que esses sujeitos estão vinculados a um programa que
visa à promoção da saúde e que em algum momento de suas vidas mantive-
ram contato com os serviços de assistência psiquiátrica, estes aspectos, ao
lado dos observados no domínio físico, demonstram que tais serviços além
de não atenderem às suas necessidades, não os valorizam assistindo-os de
Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 93
maneira mais humana e holística,
pois percebemos que dentre suas ne-
cessidades principais está a de que
alguém escute as suas queixas.
Para Brasil (1996:21), por trás
das queixas e sintomas esconde-se
um pedido de ordem afetiva e de re-
lacionamento que necessita ser com-
preendido. Este autor afirma que “se
o maior sofrimento é a doença, o
maior sofrimento da doença é a soli-
dão; quando o médico (ou outro pro-
fissional) se recusa a ouvir o que o
paciente tem a lhe dizer, isto tem o
caráter de uma proscrição, uma ex-
comunhão para o paciente”. Menci-
ona, ainda, que com freqüência as
pessoas não têm com quem queixar-
se de seus males. Este fato foi clara-
mente observado por nós, quando
identificávamos os sujeitos e reali-
závamos as entrevistas, tanto que
uma das falas ficou em nossa men-
te: ‘é bom ter com quem se abrir’.
Integrante deste domínio, a fa-
ceta ‘imagem corporal e aparência’
apresentou maior satisfação dos
sujeitos, pois 50% manifestaram
tendência a aceitar a própria apa-
rência. Entretanto, alguns entrevis-
tados demonstraram conformismo
com essa situação, alegando impos-
sibilidade de melhorá-la, o que, pro-
vavelmente, mostra a carência de se
olharem no espelho e de gostarem
do que observam, aspecto muito sig-
nificativo na qualidade de vida, para
não deixarmos de lado os sonhos
que nos conduzem a lutas e conquis-
tas e nos fazem sentir realizados.
Esse é um trabalho de ajuda que o profissional pode empreender junto ao
paciente, em suas relações.
Dessa forma, entendemos que, se os profissionais de saúde atentarem
para uma assistência mais humana, certamente terão atitudes mais res-
ponsáveis e éticas, desenvolvendo habilidades e potencialidades que ajuda-
rão os sujeitos a melhorar a qualidade de suas vidas.
Domínio 3 (Relações Sociais)
Nas respostas referentes ao domínio ‘relações sociais’ (Gráfico 3), a
insatisfação foi pequena, correspondendo a 19% dos sujeitos. A média
observada de 12,98 indicou posição intermediária, sendo este o maior
escore observado.
GRÁFICO 3 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação parao domínio 3. Município de Ilhéus/BA, 2000.
As respostas obtidas para cada uma das facetas ‘relações pessoais’ (ami-
gos, parentes, conhecidos e colegas), ‘suporte (apoio) social’ e ‘atividade
sexual’ indicaram que a maioria dos entrevistados (entre 50 a 57%) encon-
trava-se satisfeita com relação a elas.
A satisfação encontrada neste domínio contraria resultados de outras pes-
quisas (Galera & Teixeira, 1997; Campos & Caetano, 1998) e pode estar rela-
cionada a características geográficas e socioculturais do contexto estudado.
Segundo Alves et al. (1999), no Nordeste os sujeitos estabelecem uma
extensa rede de relações com os que vivem mais próximos, atividade que é
própria das mulheres, responsáveis por sustentar as ligações de parentes-
co. Solidariedade e prontidão ajudam a manter esses laços, que têm grande
peso na vida dos sujeitos.
A esse respeito, Heimstra & Mcfarling (1978:123) afirmam que morado-
res de áreas faveladas “têm um forte sentimento de pertinência. A área
física que circunda suas casas é tida como parte integrante delas e serve
como base para um vasto conjunto de vínculos sociais.”
SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.
94 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001
Com esta pesquisa pudemos perceber que a satisfação dos sujeitos com
relação a esse domínio pode ser atribuída à experiência de compartilha-
rem condições de vida comuns, que lhes permitem falar a mesma lingua-
gem. Mesmo assim, estudos mais qualitativos poderiam oferecer maior
compreensão da forma e das condições satisfatórias dos egressos experi-
mentarem suas relações.
Domínio 4 (Meio Ambiente)
Os resultados relacionados ao meio ambiente (domínio 4), que abrange
seus recursos ‘naturais e sociais’, demonstraram que praticamente não há
sujeitos satisfeitos neste domínio, pois apenas 8% demonstraram satisfa-
ção (Gráfico 4), ficando a média em torno de 11,25 (posição intermediária).
Este foi o menor resultado atribuído aos domínios do WHOQOL-BREF.
Quanto à insegurança, identifi-
cada pela faceta ‘segurança física e
proteção’, 50% dos entrevistados
afirmaram que não se sentem nada
seguros ou muito pouco seguros em
sua vida diária. No que tange aos
‘recursos financeiros’, grande parte
dos sujeitos (69%) disse não possuir
dinheiro ou possuí-lo aquém das
suas necessidades.
Estes aspectos podem estar inter-
relacionados, e a insegurança pode
ser conseqüência do ambiente pre-
cário. Do mesmo modo, a inseguran-
ça pode estar vinculada à renda, pois
sendo insuficiente para as necessi-
dades básicas dos sujeitos, compro-
mete gravemente o seu bem-estar.
No que se refere a ‘oportunida-
des de adquirir novas informações
e habilidades’, 50% dos entrevis-
tados responderam encontrar di-
ficuldades de acesso às informa-
ções necessárias ao seu dia-a-dia.
Isto, provavelmente, está ligado ao
grau de instrução dos sujeitos e se
atentarmos para este mundo cada
vez mais informatizado, onde as
informações é que direcionam
melhor nossas vidas, teremos aí
mais um agravante.
Com relação às ‘oportunidades de
participação em recreação/lazer’, 69%
dos sujeitos responderam ter pouca
ou nenhuma oportunidade para de-
senvolvê-los, resultado que nos sur-
preendeu pelo fato de o local de es-
tudo ter acesso direto ao mar.
Conforme Ferreira (1999:78), “o
lazer é um tempo em que o homem
GRÁFICO 4 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação parao domínio 4. Município de Ilhéus/BA, 2000.
Em relação às freqüências para as facetas deste domínio, constatamos
que os principais obstáculos são a insegurança; carência de recursos finan-
ceiros, de informações necessárias ao dia-a-dia, de oportunidades de lazer,
bem como a precariedade do ambiente físico.
O ‘ambiente físico’ foi considerado saudável para aproximadamente 20%
dos entrevistados. Este número refletiu a realidade do contexto estudado,
no qual observamos a inexistência de infra-estrutura, responsável pela for-
ma desordenada com que o bairro vem sendo construído, assim como a
existência das desigualdades sociais.
Assim sendo, consideramos imprescindível a adoção de políticas ambi-
entais, para melhorar a qualidade de vida desses sujeitos, dentre as quais
citamos: saneamento básico, pavimentação de ruas e morros e o desenvol-
vimento de projetos educativos. No entanto, entendemos que o sucesso des-
sas ações e de outras similares dependerá do desempenho de todos os ato-
res envolvidos, conforme alerta o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA, 2000).
Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 95
se livra de um cotidiano massacrante e descobre que o ócio é fundamental
como princípio criador.”
Compartilhando com esta idéia, percebemos que há necessidade de
motivar os sujeitos a buscarem formas de lazer, as quais contribuirão para
sua maior satisfação e desenvolvimento na comunidade onde vivem.
Quadro da qualidade de vida geral
O quadro da qualidade de vida geral (Gráfico 5) indicou que 54% dos
sujeitos perceberam a qualidade de suas vidas como insatisfatória, ficando
a média em torno de 11,15 (posição intermediária).
GRÁFICO 5 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação parao resultado da qualidade de vida geral. Município de Ilhéus/BA, 2000.
Nas questões que compuseram esse quadro, a insatisfação com a qua-
lidade de vida pareceu estar mais relacionada à saúde. Provavelmente,
essa avaliação tenha sido influenciada pelos problemas de saúde referi-
dos pelos sujeitos, como também pelo impacto negativo do distúrbio men-
tal à vida do portador.
No entanto, a relação entre saúde e qualidade de vida vai muito além
dessa referência à doença, pois a saúde, em seu sentido amplo (de promo-
ção de bem-estar e estilos de vida saudáveis, por exemplo), também tem a
ver com todas as particularidades dos domínios aqui descritos.
Buss (2000) entende que as explicações e respostas para a articulação
da saúde e qualidade de vida se desenvolvem no campo conceitual e na
prática da promoção da saúde, definida na Carta de Ottawa como “processo
que confere às populações os meios de assegurarem um maior controle so-
bre sua própria saúde e de melhorá-la (...) pressupõe os modos de vida
sadios para alcançar o bem estar” (OMS, 1986).
Nesse sentido, a saúde constitui o principal recurso para a qualidade de
vida e a sua promoção deve somar esforços para que todos os sujeitos, sem
distinção, tenham ao seu alcance os mesmos recursos e possibilidades para
o desenvolvimento de seu potenci-
al, num determinado contexto, para
que assumam suas responsabilida-
des no desenrolar desse processo
(OMS, 1986).
Compreendemos, portanto, que
promover saúde implica um conjun-
to de esforços do qual os sujeitos
também devem participar, buscan-
do melhorar suas vidas, exercendo
assim sua cidadania plena.
Diante do exposto, considera-
mos este trabalho relevante por
servir como um indicador que po-
derá, num contexto local, auxiliar
seus atores (sujeitos, líderes comu-
nitários, equipe do PSF, Universi-
dade) a discutirem e definirem suas
responsabilidades, pelo menos em
saúde mental, partindo das carên-
cias aqui identificadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A avaliação da qualidade de
vida através do instrumento WHO-
QOL-BREF trouxe-nos um valioso
diagnóstico, apontando carências e
aspectos que merecem mais aten-
ção dos profissionais de saúde,
quando do planejamento e imple-
mentação de ações para o cuidado.
Dentre esses aspectos, destacamos:
a necessidade de interagir com os
sujeitos, valorizando-os e ajudan-
do-os a darem maior importância
às suas vidas; escutá-los terapeu-
ticamente em suas queixas; cons-
truir um ambiente saudável; pro-
SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.
96 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001
mover atividades de lazer, acesso às
informações e promoção à saúde.
Entendemos que a equipe do
PSF pode desenvolver assistência
holística e humanizada que concor-
ra para o atendimento dessas ne-
cessidades, possibilitando, inclusi-
ve, aos egressos desenvolverem au-
tonomia e obterem alívio do sofri-
mento decorrente da dependência
de medicação/tratamentos e dos
sentimentos negativos experimen-
tados no cotidiano.
Por outro lado, os aspectos con-
siderados satisfatórios precisam ser
valorizados, embora a satisfação
com as relações sociais, contrária a
resultados de outras pesquisas,
mereça um estudo mais qualitativo
esclarecedor da forma e condições
dessa experiência, a fim de serem
mais bem trabalhados.
Vimos que os aspectos não fa-
lam por si só, por que estão interli-
gados com os demais dentro de um
mesmo domínio ou fora dele, o que
nos levou a pontuar algumas ques-
tões relevantes que, certamente,
conduziriam a intermináveis discus-
sões. No entanto, chamou-nos a
atenção de como a saúde, tendo um
sentido positivo e multidimensio-
nal, mantém estreita relação com a
qualidade de vida satisfatória, cons-
tituindo-se num recurso primordial
para sua promoção.
Dessa maneira, contemplamos a
importância tanto da equipe do PSF,
para o início de um processo que
eleve a qualidade de vida dos sujei-
tos existentes no contexto estuda-
do, como deste estudo para nortear
esse processo, que no seu transcor-
rer exigirá novas avaliações dos
itens estudados.
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98 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nosserviços substitutivos de Saúde Mental
Clinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Healthsubstitutive services
Rosana Onocko Campos1
1 Dra. em Saúde Coletiva – Departamento
de Medicina Preventiva e Social da
Faculdade de Ciências Médicas – Unicamp
Rua Américo de Campos 93 – Cidade
universitária – Campinas/ SP
e-mail: [email protected]
RESUMO
Este artigo analisa algumas dificuldades e entraves encontrados no
Movimento sanitário brasileiro, para a discussão sobre modelagens clínicas
nos serviços públicos de saúde. Essa questão é analisada em relação a área
de saúde mental e suas especificidades. Propõem-se alguns eixos temáticos
para subsidiar a reformulação da clínica nos equipamentos substitutivos
do Sistema Único de Saúde (SUS). A ênfase é colocada na interface com a
subjetividade das equipes profissionais que neles trabalham e no papel de
suporte do apoiador (supervisor) institucional.
PALAVRAS-CHAVES: planejamento e gestão em saúde, clínica em saúde mental,
serviços substitutivos, subjetividade nas organizações.
ABSTRACT
This paper analyzes some difficulties and obstacles faced by the Brazilian
Sanitary Movement in the discussion of clinical modeling in public health
care services. The issue is analyzed with focus on the mental health area
and its particularities. Some thematic frameworks are proposed to support
the reformulation of the Clinical practice in substitutive equipment to the
SUS – Unified Health Care System. The proposals focus on the interface
with the subjectivity within the system's professional teams, and on the
role of institutional supporters (supervisors).
KEY WORDS: health-care planning and management, mental health clinical
practice, substitutive service, subjectivity in organizations.
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 99
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, poucos tra-
balhos no campo sanitário brasilei-
ro levantaram a importância da clí-
nica nos serviços públicos de saú-
de. Contudo, poderíamos reconhe-
cer que as questões médicas e sani-
tárias encontram-se interligadas
desde o século XVIII (Snow, Vigilân-
cia Sanitária alemã, Wirchow, etc.).
Segundo Foucault (1989) a es-
truturação da clínica contemporâ-
nea aconteceu no século XIX, e, pelo
menos na França, a clínica moder-
na se constitui sobre bases anáto-
mo-patológicas e morfológicas, ou
seja, desde a sua origem estrutura-
se como um certo “olhar”.
Já no começo do século XX, com
as elaborações de Freud, a escuta
entra em cena: o pai da psicanálise
dirá que as histéricas têm o que di-
zer. O advento da psicanálise é o res-
gate da escuta. Mas essa escuta per-
manecerá até hoje descolada do
olho que examina.
“Freud inventa o espaço psica-
nalítico no movimento de ruptura
com a rotina da consulta médica e
a entrevista terapêutica. Aquilo que,
como é costume sustenta o vínculo
estabelecido no face a face fica ago-
ra suspenso: o olhar, a presença fron-
tal dos corpos, sua semiótica postu-
ral e gestual” (KÄES, 1997: 50). As-
sim, criam-se settings diferentes
para escutar e para ver. O doente é
também, e nesse mesmo movimen-
to, cindido na suas dimensões sub-
jetiva e biológica.
Na América Latina, desde a dé-
cada de sessenta, desenvolveu-se
com grande ênfase a epidemiologia
social, que deriva em uma medici-
na social, a qual não conseguiu de-
senvolver uma proposta clínica.
Neste caso, o escopo do olhar abriu-
se tanto que já não mais enxergava
os indivíduos: os problemas de saú-
de seriam problemas dos grupos e
comunidades. E deve-se reconhecer
que, apesar das críticas empreendi-
das pela medicina social à clínica
A dimensão social continua cin-
dida, pois agora se pode olhar e até
escutar as comunidades, mas elas
não se encarnam em doentes con-
cretos. No Brasil, após a criação do
Sistema Único de Saúde (SUS), apa-
rece a figura do conselheiro: o su-
jeito com voz. Contudo, apesar de
um cidadão comum ter direitos ga-
rantidos no Conselho Local e, ain-
da, poder ser ouvido como conse-
lheiro, terá pouco a nos dizer sobre
a doença de seu filho quando se en-
contrar na fila do Centro de Saúde.
Os cidadãos devem ser escutados;
os doentes, nem tanto.
O Planejamento em Saúde, em
seu processo de constituição disci-
plinar no interior da Saúde Coletiva
Brasileira, manteve-se, em geral,
afastado das questões clínicas, com-
partilhando, assim, características
gerais do campo da Saúde Coletiva
(Onocko, 2001). Contudo, no âmbi-
to dos serviços assistenciais de Saú-
de, quando saímos do aspecto tele-
ológico e chegamos ao operativo,
nos deparamos sempre com uma
escolha clínica.
Estamos chamando, aqui, de clí-
nica às práticas não somente médi-
cas, mas de todas as profissões que
lidam no dia-a-dia com diagnóstico,
tratamento, reabilitação e prevenção
secundária. Isto reforça o argumen-
to sobre a especificidade do Planeja-
mento em Saúde: quem quer contri-
buir para planejar mudanças em ser-
viços de saúde deve dispor de um
certo leque de modelos clínicos, e isto
(pela redução do social com que a
clínica opera), a própria medicina
social, constituída ela mesma sobre
bases epidemiológicas, atribuiu-se
o direito de definir necessidades
sociais, estruturando-se também
como um certo “olhar”. Neste enfo-
que podem ser olhados grupos de
risco e comunidades, que jazem a
nossa frente para que desvendemos
seus segredos e necessidades, mu-
dando de escala: igual à maca de
qualquer consultório médico.
NA AMÉRICA LATINA, DESDE A DÉCADA
DE SESSENTA, DESENVOLVEU-SE COM
GRANDE ÊNFASE A EPIDEMIOLOGIA SOCIAL,QUE DERIVA EM UMA MEDICINA SOCIAL,A QUAL NÃO CONSEGUIU DESENVOLVER
UMA PROPOSTA CLÍNICA
CAMPOS, R. O.
100 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
é uma questão de eficácia. Se o Pla-
nejamento em Saúde quer ser eficaz
promovendo mudanças nos serviços,
ele precisa, necessariamente, de uma
interlocução com a clínica.
Campos (2000) defende que os
serviços de saúde têm uma dupla fi-
nalidade: produzir valores de uso
(práticas produtoras de saúde, cura-
doras, cuidadoras e preventivas) e
sujeitos trabalhadores mais autôno-
mos e prazeirosos. Pensamos o Pla-
nejamento em Saúde como dispositi-
vo (Onocko, 1998). Aquilo que, segun-
do Julliem (1998) propicia, faz advir,
ou, segundo Baremblitt (1994), abre
espaços para a criação do novo parâ-
metro. Assim sendo, ele se constitui
como uma práxis1 que visa à produ-
ção e não somente à ação, e defende-
mos que essa produção pode, muito
bem, ser compromissada com essa
dupla finalidade. Assumir tal postu-
ra trará conseqüências impactantes
sobre nossa prática como planejado-
res. É preciso resgatar para o Plane-
jamento em Saúde uma preocupação
fundamental com os sujeitos que tra-
balham nos serviços de saúde, com a
finalidade de subsidiar um exercício
profissional que estimule novas ma-
neiras de subjetivação, e também,
uma preocupação com o desenvolvi-
mento de uma reflexão sobre as mo-
delagens clínicas que possam se cons-
tituir em suporte para novas práticas.
Essa reflexão sobre a clínica
não pode ser amarrada às visões
reducionistas predominantes no
discurso sanitário. A tradição des-
sa área tem tratado a clínica como
uma prática que não interessa ao
campo dos nossos saberes efetivos
prévios. Mais ainda, às vezes ela
aparece como oposta e estrutural-
mente contraposta à prevenção e à
promoção da saúde.
Contudo, deve-se reconhecer que
uma parte da eficácia da Saúde Co-
serviços de saúde? Como se fossem
estabelecimentos e organizações
passíveis de serem submetidos a
técnicas gerenciais, de maneira se-
melhante às fábricas de sapatos ou
aos serviços de táxi.
Uma evidência disto pode ser en-
contrada na contratação de ‘geren-
tes’ sem nenhuma vinculação pré-
via com a Saúde para dirigir gran-
des estabelecimentos assistenciais.
No melhor dos casos, os planejado-
res têm tratado os serviços de saú-
de como organizações de tipo pro-
fissional, em cujo caso tratar-se-ia
de intervenções a nível da cultura
organizacional, ou comunicativa
(Rivera, 1996). Partindo desse olhar,
tratar-se-ia de “enxertar” novos va-
lores na organização (como se isso
pudesse ser conseguido indepen-
dentemente das formas de subjeti-
vação ali vigentes), e de impor limi-
tes ao reconhecimento do poder di-
ferenciado que os médicos detêm
nas organizações de Saúde (o que
acaba por reforçar o patrimônio ex-
clusivo dos médicos sobre a clínica,
e sustenta a degradação das práti-
cas clínicas sob a forma de procedi-
mentos médicos).
Para a tradição da saúde coleti-
va, a clínica tradicional opera – pre-
dominantemente – no setting indi-
vidual, do encontro singular. Sendo
que a própria área de Saúde Coleti-
letiva depende, em alguma medida,
dos que tratam. Alguns autores pro-
puseram-se a falar em processo de
saúde/ doença/ atenção (Menendez,
1992), e, assim, a nosso ver, recolo-
caram certa ênfase nos serviços as-
sistenciais. Mas, como a área de Pla-
nejamento, mesmo no interior da
Saúde Coletiva, tem se ocupado dos
1 “Chamamos de práxis este fazer no qual os outros são visados como seres autônomos(...) A práxis é por certo uma atividade consciente, só
podendo existir na lucidez; mas ela é diferente da aplicação de um saber preliminar (não podendo justificar-se pela invocação de um tal saber
– o que não significa que ela não possa justificar-se)” (Castoriadis 1986: 95).
A TRADIÇÃO DESSA ÁREA TEM
TRATADO A CLÍNICA COMO UMA
PRÁTICA QUE NÃO INTERESSA
AO CAMPO DOS NOSSOS
SABERES EFETIVOS PRÉVIOS
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 101
va estruturou-se contrapondo as
práticas coletivas às individuais, é
compreensível que o tema da clíni-
ca tenha ficado fora de foco para a
maioria dos sanitaristas.
Pensamos que uma reflexão so-
bre a clínica se faz necessária se
pretendemos avançar na discussão
sobre a eficácia. Campos (1997) pro-
pôs as seguintes categorias para
repensar a clínica:
Clínica degradada: queixa-condu-
ta, não avalia riscos, não trata a
doença, trata sintomas. É a Clíni-
ca mais comum nos Pronto-aten-
dimentos, mas, também é a de
grande parte de nossa atenção à
demanda (encaixes ou programa-
das) em muitos outros serviços. É
esta a clínica da eficiência: produz
muitos procedimentos (consultas),
porém, com muito pouco questio-
namento sobre a eficácia (de fato,
que grau de produção de saúde
acontece nessas consultas?).
Deve-se reconhecer que, após a
crição do SUS, a clínica adquiriu
também um valor ideológico: ter
acesso equivale a possuir cidada-
nia. Mas, quase ninguém se inter-
roga sobre quais tipos de cuida-
dos se tem acesso. Assim, a de-
gradação da clínica tem sido esti-
mulada por essa associação de
valores transcendentes: o acesso
do cidadão e a eficiência. Parado-
xo da extensão de direitos!
Clínica tradicional: trata das do-
enças enquanto ontologia, na sua
serialidade, o que há de comum
nos casos. Nem sempre trabalha
com riscos, ainda que devesse;
está focada no curar, não na pre-
venção, nem na reabilitação. In-
tervir sobre o prognóstico dos ca-
sos é cada vez menos freqüente.
O sujeito é reduzido a uma doen-
ça, no melhor dos casos, ou a um
órgão doente. Contudo, e indepen-
dentemente de sua ênfase no bio-
lógico, podemos reconhecer esta
como a clínica dos especialistas,
entra na vida do sujeito, mas nun-
ca o desloca totalmente. Seu João
está doente e continua a ser tra-
balhador metalúrgico, obsessivo,
pai, etc. Nem na pior das doen-
ças, nem à beira da morte, pode-
ríamos, nunca, ser totalmente re-
duzidos à condição de objeto. O
sujeito é sempre biológico, social,
e subjetivo. O sujeito é também his-
tórico: as demandas mudam no
tempo, pois há valores, desejos que
são construídos socialmente e cri-
am necessidades novas que apare-
cem como demandas. Assim, clíni-
ca ampliada seria aquela que incor-
porasse nos seus saberes e incum-
bências a avaliação de risco, não
somente epidemiológico, mas tam-
bém social e subjetivo, do usuário
ou grupo em questão. Responsabi-
lizando-se não somente pelo que a
epidemiologia tem definido como
necessidades, mas também pelas
demandas concretas dos usuários.
Campos (2000) entende que as de-
mandas são também manifestação
concreta de necessidades sociais
produzidas pelo jogo social e histó-
rico, que foram se constituindo, e
que aparecem na sua singulariza-
ção. É evidente que para desenvol-
ver este tipo de clínica a formação
do super-especialista fica estreita,
pois esta proposta gera tensão nas
barreiras disciplinares, estimulan-
do o trabalho em equipe. Trabalho
este que vem acontecer como uma
nova práxis e não mais como aquele
lugar idealizado, utópico e que nin-
que estritamente protegidos nos
seus corpus profissionais, já não
podem fazer práxis na própria
prática e verificar a eficácia do que
produzem. Toda vez que a clínica
fica fortemente amarrada a pres-
crições técnicas, restringe-se sua
possibilidade de ampliação. Na
Saúde Mental, alguns, em nome
da clínica, efetivam tais práticas.
Clínica ampliada: (clínica do su-
jeito) a doença nunca ocuparia
todo o lugar do sujeito, a doença
PENSAMOS QUE UMA
REFLEXÃO SOBRE A CLÍNICA
SE FAZ NECESSÁRIA SE
PRETENDEMOS AVANÇAR
NA DISCUSSÃO SOBRE A EFICÁCIA
CAMPOS, R. O.
102 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
guém teria visitado jamais, da
equipe transdisciplinar perfeita.
Para o Planejamento em Saúde
vir a ser uma práxis preocupada
com o mundo das finalidades e com
a eficácia, é preciso que nós, plane-
jadores da Saúde Coletiva, não con-
tinuemos surdos às questões rela-
tivas aos modelos clínicos. Deverí-
amos desenvolver reflexões sobre a
clínica nas suas múltiplas especia-
lidades: assim, na Saúde Mental, ou
no combate às drogas, ou na Saúde
da criança, ou da família, ou da
mulher, a clínica deveria ser sem-
pre interrogada à luz da sua produ-
ção, da sua eficácia. O substantivo
clínica seria, assim, sempre plural
e adjetivado (Campos, 1997).
O ESPAÇO DA CLÍNICA NA ORGANIZAÇÃODE SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS DE
SAÚDE MENTAL: UM CONJUNTO VAZIO?
Se a constituição da clínica no
espaço dos serviços públicos de saú-
de relaciona-se com sua produção
social e histórica, nos serviços de
saúde mental encontraremos uma
situação semelhante, ainda que ne-
les possam ser reconhecidas outras
influências, diretamente vinculadas
à sua especificidade e à crítica do
sistema manicomial que marcou
fortemente essa área.
Assim, após a criação do SUS,
fortaleceu-se a crítica ao modelo de
tratamento asilar, com tudo o que
ele acarreta de submissão, isola-
mento e discriminação negativa. O
ímpeto da Luta Antimanicomial
criou focos de cegueira, espaços re-
calcados, nossos próprios pactos
denegatórios.2 Nisso, nossa luta se
assemelha a toda luta.
Como lembra Amarante (1996),
na inspiração basagliana a doença
é colocada entre parênteses, o olhar
das vezes, entendida como a nega-
ção da existência da doença, o que
em momento algum é cogitado (...)”
(Amarante, Idem: 84).
Esta influência, em muitos casos
mal interpretada como abolição da
doença e da clínica, tem contribuído
para um certo esvaziamento da dis-
cussão sobre a clínica nos serviços
substitutivos de saúde mental.
Na nossa experiência, com super-
visão institucional de vários serviços
de saúde mental nos últimos anos,
temos a impressão de que a doença
não foi colocada entre parênteses,
para recolocar o foco no doente, a
doença foi negada, negligenciada,
oculta por trás dos véus de um dis-
curso que, às vezes, e lamentavelmen-
te, transformou-se em ideológico.
Nesta linha, é possível reconhecer no
discurso de alguns membros da co-
munidade antimanicomial certa ide-
alização da loucura, negação das di-
ficuldades concretas e materiais do
que significa viver como portador de
sofrimento psíquico e minimização do
verdadeiro sofrimento que se encar-
na nesses pacientes, por exemplo, no
surto psicótico.
Na contramão, um sendeiro que
se bifurca: em nome da doença e da
clínica os ideólogos da psiquiatria
organicista continuam a sustentar
teses bizarras, como a da origem
puramente genética, o tratamento
condutista que repete o asilo fora
2 “Chamo de pacto denegatório a formação intermediária genérica que, em qualquer vínculo (...) conduz irremediavelmente ao recalque, à recusa,
ou à reprovação (...) o que pudesse questionar a formação e a manutenção desse vínculo e dos investimentos do que é objeto” (Kaës, 1991: 27).
deixa de ser exclusivamente técni-
co, exclusivamente clínico. Então, é
o doente, é a pessoa o objetivo do
trabalho, e não a doença. Desta for-
ma a ênfase é colocada no processo
de ‘invenção da saúde’ e de ‘repro-
dução social do paciente’. Mas, nos
diz também esse autor: “a operação
‘colocar entre parênteses’ é, muitas
SE A CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA
NO ESPAÇO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
DE SAÚDE RELACIONA-SE COM
SUA PRODUÇÃO SOCIAL E HISTÓRICA,NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL
ENCONTRAREMOS UMA
SITUAÇÃO SEMELHANTE
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 103
dele, a continuidade das camisas de
força e, lamentavelmente, até do
eletrochoque.
E, alguns psicanalistas que, ain-
da que bem intencionados, preten-
dem transformar todo serviço de
saúde em uma reprodução do con-
sultório particular, como se o salto
entre público e privado pudesse ser
dado sem conseqüências. Opera-se,
em algumas abordagens, certa ‘neu-
rotização’ do psicótico: nada se
sabe, o sujeito tem que demandar,
tomar decisões e advir. Ora, se um
psicótico pudesse fazer isso não pre-
cisaria de serviços especiais. Sem
dúvida, existem concepções clínicas
embasando essas práticas. O que se
quer ressaltar é a necessidade de se
ampliar o debate sobre a clínica pos-
sível no serviço público de Saúde
Mental. Particulamente sobre uma
clínica das psicoses.
No interregno, continuam sofren-
do milhares de pacientes psicóticos.
Apesar de tudo que temos avança-
do, ainda, em muitos lugares do país,
poucas vezes se oferece a esses usu-
ários, como alternativa terapêutica,
algo mais que remédios, uma inter-
nação de vez em quando, e, no me-
lhor dos casos, uma luta para ele
também se engajar. Diga-se de pas-
sagem que, quando isso acontece, a
consciência da equipe, entendendo
do que se trata, e sem manipular os
usuários, pode vir a ser um magnífi-
co recurso terapêutico.
Lentamente, muito mais lenta-
mente do que gostaríamos, os ser-
viços asilares vão sendo substituí-
dos por outros equipamentos: Cen-
tros de Atenção Psicossocial (CAPS),
Núcleos de Atenção Psicossocial
(NAPS), Hospitais Dia (HD), equipes
de saúde mental no Programa Saú-
de da Família, etc. Desejamos des-
tacar alguns entraves que identifi-
camos neles, pois, pensamos, não
se devem a uma concepção técnica
sobre a organização do trabalho,
mas a uma impossibilidade que se
constitui no intermediário das rela-
o serviço contribui para dissociar
ainda mais. Remédio é com psiquia-
tra. Escuta é com psicólogo. Traba-
lho é com o terapeuta-ocupacional.
Intercorrência clínica, outra: não é
conosco. Surto? Vai ter que internar.
Claro, nem todos os lugares fun-
cionam exatamente assim, estamos
procurando reconhecer alguns en-
traves, e sugerir algumas linhas de
reflexão para serem aprofundadas.
No fundo, é essa uma postura
clínica: crer que fazer consciente
algumas coisas resolve outras.
Como disse Japiassu: “a consciên-
cia não é imediata, porém mediata;
não é uma fonte, mas uma tarefa, a
tarefa de tornar-se consciente, mais
consciente” (Japiassu, 1990:10).
ALGUNS EIXOS PARA PENSAR A CLÍNICA NAORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS
SUBSTITUTIVOS NA REDE PÚBLICA:
Não propomos estes eixos na
pretensão de esgotar a discussão,
nem de ‘fechar’ uma proposta clíni-
ca única para os serviços substitu-
tivos. Estamos chamando-os de ei-
xos precisamente por identificá-los
como núcleos temáticos, em volta
dos quais agrupam-se inúmeras
práticas que ocorrem nos mais va-
riados serviços. Ressaltá-los como
eixos tem a intenção de criticar a
naturalização dessas práticas, res-
gatar seu valor de uso do ponto de
vista do que, de fato, pretende ser
produzido. Destacamos a necessida-
ções entre os sujeitos que ali traba-
lham e seu objeto de trabalho. As-
sim, coloca-se a questão da subjeti-
vidade dos que tratam, de sua in-
serção institucional, às ameaças
narcísicas a que são submetidos
pelo próprio fato de trabalharem
com pessoas com sofrimento psíqui-
co (Marazino, 1989), (Käes, 1996).
Colocar a doença entre parênte-
ses é trazer para o centro do foco o
usuário do serviço. Um usuário que
muitas vezes está dissociado, e que
REMÉDIO É COM PSIQUIATRA.ESCUTA É COM PSICÓLOGO.
TRABALHO É COM OTERAPEUTA-OCUPACIONAL.
INTERCORRÊNCIA CLÍNICA, OUTRA:NÃO É CONOSCO. SURTO?VAI TER QUE INTERNAR
CAMPOS, R. O.
104 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
de de nos interrogarmos sobre o sen-
tido de nosso trabalho, sobre o valor
de nossas práticas, sobre a eficácia.
A crise
Os equipamentos substitutivos: a
que será que se destinam? Ou, per-
guntando a partir de um referencial
do Planejamento: para que servem?
Deixando de lado a grande carên-
cia de serviços destinados à atenção
de pacientes com problemas de dro-
gas e/ou álcool (pois mereceria um
estudo particular), na maioria dos
casos os serviços de atenção à saú-
de mental vem se definindo com uma
vocação especial para o atendimen-
to de psicóticos e neuróticos graves.
Na maioria deles, também, se colo-
cando com maior ou menor ênfase a
necessidade de serem – de fato –
substitutivos à internação psiquiá-
trica integral.
Na nossa experiência pessoal, e na
maioria dos serviços com que tivemos
contato, essa função é cumprida, com
variações, porém nunca com taxa zero
de internações. Quer dizer que, com-
parados os pacientes com eles mes-
mos, a redução da freqüência de in-
ternações é muito importante depois
que se vinculam a algum serviço
substitutivo, e considerados o mon-
tante de pacientes e a quantidade de
encaminhamentos feitos para unida-
des de internação a taxa é relativa-
mente baixa (num serviço da cidade
de Campinas: 1.5 % ao mês). Isso quer
dizer que, de cada 100 pacientes
acompanhados, menos de dois paci-
entes serão encaminhados a interna-
ção cada mês. Ainda que sem fontes
de comparação, parece-nos que é pos-
sível sustentar a tese da freqüência
baixa. (Pois, por exemplo, em um ou-
tro serviço que acompanhamos e que
funciona ainda na lógica do ambu-
latório, a taxa é de 3,5% ao mês). Fica
claro, portanto, que os serviços subs-
titutivos são definitivamente efica-
zes em prevenir internações. Ainda
assim não pudemos constatar taxa
xa. Mas gostaríamos de salientar que
por trás dessa complexidade, locali-
za-se uma questão fortemente entre-
laçada com a concepção clínica que
tenhamos da psicose. Tudo isso per-
meado pelo valor – fortemente ideo-
logizado – de “não internarás”.
Se assumirmos que o momento
do surto constitui-se, para pacien-
tes e técnicos, em um momento de
fundamental importância, podere-
mos escapar da simples reiteração
do valor ideológico e propor outras
saídas. “(...) o surto psicótico, é vi-
vido com enorme angústia, é a fa-
lência dos referencias que susten-
tavam este indivíduo. Esta quebra
joga o sujeito no medo, confusão
mental, perda dos limites corporais,
nem mesmo o tempo como uma di-
mensão tem consistência suficien-
te: deixa de existir como tal” (Car-
rozzo, 1991: 33).
Entendermos este momento colo-
cará para nós a necessidade de quali-
ficar os serviços substitutivos para
intervir na crise. E deveremos reco-
nhecer que, em alguns usuários e em
algumas situações, a necessidade de
resguardo, proteção e contenção se-
rão fortemente colocadas pelo apare-
cimento do surto. Assim, quando o
serviço não dispõe nem mesmo do
espaço físico (às vezes também não
do psíquico, nem do técnico) para aco-
lher a crise, a única saída que pode
ser enxergada pela equipe é encami-
nhar para internação.
No seu momento de maior sofri-
mento e fragilidade, o paciente é
zero de internação, o que talvez se
deva ao fato de nossa experiência
acontecer em serviços sem leitos
(CAPS, HD, ambulatórios).
O que temos visto acontecer com
os usuários que acabam sendo inter-
nados é que muitas vezes, a interna-
ção produz uma quebra de sua vin-
culação com o serviço, o que redun-
da em posterior fragilidade e exposi-
ção ao risco de novas internações.
A relação entre os serviços de um
sistema de saúde mental é comple-
O QUE TEMOS VISTO ACONTECER COM OS
USUÁRIOS QUE ACABAM SENDO INTERNADOS
É QUE MUITAS VEZES, A INTERNAÇÃO
PRODUZ UMA QUEBRA DE SUA VINCULAÇÃO
COM O SERVIÇO, O QUE REDUNDA EM
POSTERIOR FRAGILIDADE E EXPOSIÇÃO AO
RISCO DE NOVAS INTERNAÇÕES
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 105
exposto a uma quebra extra de seus
referenciais e vínculos. Se ele já não
reconhece o espaço, irá parar em um
espaço que, de fato, ele não conhe-
ce, entre pessoas que ele nunca viu,
e ser “tratado” por uma equipe que
não conhece sua história. Desta for-
ma, a possibilidade de se produzir
da crise uma passagem para algu-
ma outra coisa fica prejudicada.
No melhor dos casos, se o usuá-
rio consegue no episódio da inter-
nação se ligar de alguma maneira a
alguém da equipe de internação,
logo ele será submetido a uma nova
perda. O sistema coloca o imperati-
vo (antimanicomial) dessas Unida-
des de Internação trabalharem na
lógica de uma porta giratória: en-
trou, melhorou, saiu. Pouquíssimas
perguntas em relação a essas três
fases: assim, uma experiência do-
lorida e inesquecível transformar-
se-á, por obra do Sistema, em mais
um episódio banalizado.
Estamos fazendo esta análise
pressupondo como exemplo o me-
lhor dos casos, pois em grande par-
te do Brasil, ainda não existindo
suficiente oferta de Serviços subs-
titutivos, grande número de paci-
entes psicóticos, com longas histó-
rias de evolução, só conhecem
como única experiência terapêuti-
ca esse lamentável entra-e-sai em
diversas internações. Há alguns
anos atrás, em um levantamento
realizado numa Unidade de Inter-
nação, analisando prontuários
numa amostra selecionada aleato-
riamente, constatamos que 70 %
dos casos só tiveram essa oferta de
tratamento (ou seja, nunca tiveram
contato com outro tipo de serviço
de saúde mental) e ainda, muitos
deles haviam passado a maior par-
te do último ano internados (lem-
bro de um caso que havia passado
em internação 8 meses), somente
que então, eles não eram mais asi-
lares, pois o Sistema de financia-
mento pretende modular interna-
ções curtas (para sermos politica-
algo que pode ser tratado e acom-
panhado e não somente abafado por
grande quantidade de remédios.
Para isto ser suportável a própria
equipe precisará de cuidados. Sabe-
mos que isto não é sempre fácil no
setor público.
Sustentada nessa posição clíni-
ca, pensamos ser possível uma pri-
meira diretriz para a organização de
um sistema de saúde mental. A da
necessidade de trabalhar com equi-
pamentos não intermediários, senão
verdadeiramente substitutivos: ca-
pazes de preservar o vínculo com
seus usuários nos diversos momen-
tos, e sob as diversas fases em que
se apresenta seu sofrimento. Fugin-
do da lógica do entra-e-sai e substi-
tuindo-a pela da responsabilização.
Para isto acontecer deveria ser pos-
sível contar com um apoio institu-
cional para a própria equipe.
A família
É obvio que existem nas famíli-
as dos psicóticos características,
condições relacionadas à produção
dessa psicose. Como tratá-los fora
do manicômio, senão intervindo
nesses núcleos familiares, propici-
ando o restabelecimento de víncu-
los “desde algum outro lugar”. Sem
esperar que se façam “normóticos”
(Hippólito, dixit, 1997); porém que
sejam capazes de gastar melhor sua
própria vida.
Muitas dessas famílias têm uma
relação culposa com a instituciona-
mente corretos e antimanicomiais).
Essa grande parcela de pacientes
psicóticos no Brasil vive no pior dos
mundos: em nome da desinstituci-
onalização, eles não têm vínculo,
nem história, ou espaço.
A possibilidade de acompanhar
a crise dos usuários está colocada
para grande parte dos serviços. Um
compromisso com esta questão exi-
girá da equipe a possibilidade de
sustentar sua própria crise. Trans-
formar o surto em passagem, em
ESSA GRANDE PARCELA DE
PACIENTES PSICÓTICOS NO BRASIL
VIVE NO PIOR DOS MUNDOS:EM NOME DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO,
ELES NÃO TÊM VÍNCULO,NEM HISTÓRIA, OU ESPAÇO
CAMPOS, R. O.
106 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
lização do parente. E uma sensação
tremendamente doída e contraditó-
ria entre querê-los de volta (para
mitigar a culpa) e o medo e o incô-
modo concreto e terrível de ter um
louco em casa. No caso dos mani-
cômios brasileiros, esta questão é
agravada pelo quadro de pobreza
extrema a que estão submetidas
muitas dessas famílias.
Penso que várias questões da
clínica de crianças de François Dol-
to (1989, 1996 a, 1996 b) merecem
ser exploradas em relação a uma
clínica da psicose. Sobretudo tra-
tando-se de pessoas com muitos
anos de evolução e em propostas
nas quais se pretende recuperar
certo vínculo familiar.
Dolto não rejeitava entrevistar
terapeuticamente famílias, pais.
Outros autores também defendem
esta proposta de ‘aproveitar-se’ da
transferência parental, já que, é ob-
vio, não são as crianças as que de-
mandam análise (Manonni, 1980;
Rosemberg, 1999). Esta questão é
mais ou menos reconhecida no cam-
po da análise de crianças, mas, cre-
mos, não tanto no das psicoses. To-
davia, deve-se reconhecer que, fre-
qüentemente, os psicóticos tampou-
co demandam: a sociedade ou a fa-
mília o fazem em seu nome.
Contudo, no caso de Dolto, o com-
promisso nunca era com o desejo dos
pais (que em geral atuam em nome
do desejo de seus próprios pais, o que
sustenta tese de alguns autores de
que são necessárias várias gerações
para se produzir um psicótico), mas,
sim, com o desejo da criança. Ela
colocava esses pais na genealogia de
sua própria paternidade.
Assim, no caso dos serviços
substitutivos, o objetivo declarado
de evitar as perdas de laços sociais
e familiares coloca o imperativo de
tratar também as famílias.
Na maioria dos serviços que co-
nhecemos existe algum espaço des-
tinado a trabalhar com famílias.
Porém, muitas vezes, esse espaço,
do, exacerbando-se paranóias), pe-
dir informações às famílias sobre os
usuários (aí é o mesmo ao avesso:
a história não é mais do sujeito, se-
não a que sua família conta, e as
famílias são constrangidas a se exi-
birem na frente de outras, nos as-
pectos mais íntimos e doídos – doi-
dos? – de sua relação).
Atribuímos uma parte desta di-
ficuldade à falta de formação; é di-
fícil trabalhar com famílias, e há na
rede pública poucas pessoas com
essa capacitação específica. Mas
outra, e nesse sentido desejamos
inserir esta contribuição, está rela-
cionada com a perda de sentido das
nossas práticas, com o véu produ-
zido nas equipes, que imprime sua
marca acrítica no dia-a-dia dos tra-
balhadores de saúde. Esquecemos
o valor da pergunta “para quê”.
“Sabemos que o lugar que coube
ao psicótico em sua família foi de car-
regar algo que nas gerações preceden-
tes foi ficando impossível ser elabo-
rado (...) Se podemos entender a im-
portância muitas vezes vital para
este núcleo familiar desta ‘função’
que o psicótico corporifica, sabemos
que os pais, a família não devem ser
culpados ou responsabilizados por
esta violência. Não foi uma opção
(...)” (Carrozzo, 1991: 35).
Assumirmos esta posição permi-
te-nos aceder a uma razão para tra-
tar essas famílias. Essa carga de
gerações, que o psicótico encarna é
bem pesada. Trabalhar isso com
cada família pode vir a ser funda-
fundamental para o sucesso da pro-
posta, é alarmantemente esvaziado
de sentido. Fazem-se grupos de fa-
mília para quase qualquer coisa:
informar as famílias da evolução do
paciente (o grupo transforma-se em
uma degradação eficiente do direi-
to à informação, para não falar da
complicada situação na qual é co-
locado o usuário, pois se está den-
tro do grupo vê-se tratado como um
objeto do qual há que se ter infor-
mação, e se está fora vê-se ameaça-
ASSIM, NO CASO DOS SERVIÇOS
SUBSTITUTIVOS, O OBJETIVO DECLARADO
DE EVITAR AS PERDAS DE LAÇOS SOCIAIS
E FAMILIARES COLOCA O IMPERATIVO
DE TRATAR TAMBÉM AS FAMÍLIAS
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 107
mental. Para isso, o espaço tem que
ser apropriado. O que a família nos
transfere deve ser redirecionado, e
isto dificilmente será possível em
reuniões multitudinárias.
Podemos assim sugerir outra di-
retriz para o sistema público: ao se
pensar na população alvo de um
dado serviço, talvez seja necessário
redimensionar a oferta de atendi-
mento incrementando aos usuários
potenciais, reservando uma porcen-
tagem para as famílias. Sabendo
disso, inclusive, avaliar a necessi-
dade de aprimorar a formação dos
profissionais que trabalham na rede
pública de maneira específica.
O grupo
Na maioria dos serviços consta-
tamos também a existência de espa-
ços para grupos. Grupos de verbali-
zação, de terapia ocupacional, de tra-
balho corporal. As variações são inú-
meras, e diversas também as corren-
tes ou abordagens em que os tera-
peutas se inserem. Nada errado: há
riqueza nessa diversidade.
O grupo pode ser um espaço pri-
vilegiado para vivenciar-se de uma
nova maneira as transferências
maciças dos psicóticos, “viver expe-
riências afetivas realmente novas,
fundantes, que permitam um cerzi-
do (não perfeito) na trama desta
subjetividade” (Carrozzo, Idem: 34).
De novo um espaço que possa se
constituir em passagem: um lugar
no qual algumas coisas possam ser
reparadas, as invasões à própria
subjetividade não sejam vividas
como mortíferas, e a dificuldade de
viver possa ser acompanhada.
Contudo, gostaríamos de salien-
tar o peso da estruturação do servi-
ço público sobre esse dispositivo de
tratamento. Se as pessoas que ofe-
recem o grupo não têm clareza de
objetivos, o espaço é banalizado, os
usuários são ‘encaminhados’ para
o grupo e ‘devem ir’, nunca ninguém
se perguntando sobre o que tal es-
fechados. A paródia está no fato de
que na saúde pública, pelo menos,
os programas eram baseados em
critérios de risco, nos serviços de
saúde mental vimos muitas vezes
eles se justificarem simplesmente
pelo gosto de tal ou qual terapeuta
em oferecer isto ou aquilo. Nenhu-
ma interrogação sobre o sentido de
nossas práticas.
Temos visto muitos grupos de
medicação nos quais realiza-se de
fato uma consulta médica coletiva,
mera prescrição de receitas, e não
um espaço para que os usuários,
entre eles, possam, com a ajuda do
terapeuta, construir novas relações
com os remédios.
O trabalho
Outra questão que mereceria ser
resgatada na clínica e explorada
com psicóticos é o uso de mediado-
res diferentes da palavra. Desenhos,
tintas, argila... Há coisas de que os
loucos não falam. Não podem falar.
Todavia, as desenham, as amassam,
as vomitam.
Uma paciente pintou durante
anos barcos. Metros de tela e quilos
de pintura em mares azuis e barcos
coloridos. Havia chegado de outra
instituição, com anos de internação
e sem nenhum dado pessoal nem
familiar. Chamavam-na de Rita e
resultou ser Maria Aparecida, quan-
do conseguiu recuperar sua cartei-
ra de identidade pelas marcas digi-
tais. Anos passou des-Aparecida,
paço significa para esse usuário em
particular. O grupo transforma-se,
assim, em véu sobre o mandato de
fazer eficiente o serviço: atende-se
a 8 ou 10 pessoas em uma hora (ga-
rantindo produtividade), mas se
degrada a singularidade dos casos.
Em muitos serviços, os grupos
oferecidos modulam, inclusive,
quem pode ou não pode ter acesso
ao serviço. Parodiando os progra-
mas clássicos da saúde pública, ofe-
recem-se unicamente ‘cardápios’
NA MAIORIA DOS SERVIÇOS
CONSTATAMOS TAMBÉM A EXISTÊNCIA
DE ESPAÇOS PARA GRUPOS. GRUPOS
DE VERBALIZAÇÃO, DE TERAPIA
OCUPACIONAL, DE TRABALHO CORPORAL
CAMPOS, R. O.
108 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
pintando barcos, antes de conseguir
contar que havia nascido em uma
cidade portuária. Hoje vive com sua
família e enviou uma estrela de mar
de presente ao serviço. Foram vári-
os litros de tinta que a ajudaram a
voltar para casa.
Outro paciente, jovem, delirante
e não conseguia falar de nada no
setor de casos agudos. Um dia, no
trabalho de colagge, viu em uma
revista a foto de um cachorro. E dis-
parou a falar de uma vez em que
houve um cachorro, e uma casa, e
uma mãe... e saiu da crise.
Com esses exemplos desejamos
mostrar uma diferença básica entre
o fazer alguma coisa (ou qualquer
coisa), e fazer coisas que possam vir
a ter sentido para cada usuário. Te-
mos visto numerosas oficinas que
– chamando-se de terapêuticas –
estruturam-se somente em base do
produzido (em termos de produto
para a cooperativa vender, por exem-
plo) e não do que produzem concre-
tamente sobre a singularidade de
cada usuário que se encontra inse-
rido na ‘linha’ de produção.
Claro que, na direção de colocar a
doença entre parênteses, o fato de
estar inserido em uma produção que
lhe traz algum pagamento produz
efeitos: o usuário deixa de ser uma
carga para a família e pode vir a de-
sempenhar outros papéis, que não
somente o de enlouquecido da casa.
Essa é a parte da intervenção psicos-
social que pode e deve ser preserva-
da; o que gostaríamos de ressaltar é
que o espaço da produção, com toda
a sua potencialidade, é freqüente e
lamentavelmente banalizado. Quais
as conseqüências para um psicótico
de trabalhar numa linha de produção
na qual ele só enxerga um pedaço do
produto? Por que muitas das oficinas
que ‘dão certo’ trabalham com técni-
cas que partem do fragmento (papel
reciclado, vitraux, mosaico) para pro-
duzir um objeto? O que está sendo
cerzido nessa criação, quando ela
pode ser encarada como processo pro-
trabalho também como produção
do sujeito em si, não somente como
reprodução material. Procurando
sempre que possível a construção
de sentido dessa reprodução soci-
al, para ela não vir a ser simples
adaptação social.
A equipe e o projeto como processointermediário
Inseridos no campo do planeja-
mento de serviços de saúde, defende-
mos que um projeto em um serviço
de saúde deve incluir uma propos-
ta clínica. E também que todo proje-
to só será possível se explorado a
partir da subjetividade da própria
equipe em questão (Onocko, 2001).
Se pensamos o Planejamento em
Saúde como dispositivo, ele torna-se
mais uma exploração do dado do que
uma aplicação de receitas tecnológi-
cas prontas. Esta forma de encarar o
planejamento ressalta o espaço do
Projeto e faz relativo o do Plano.
Enfatizamos que o subjetivo é
próprio do projeto, como o técnico o
é do plano. O momento que indaga o
sentido, o ‘para quê’ das práticas, o
momento em que posso desejar
projetar(me) com os outros para
transformar o real, é o projeto. “O
projeto visa sua realização como mo-
mento essencial” (Castoriadis, 1986:
97). E este é o momento mais com-
plexo do ponto de vista da constitui-
ção da grupalidade, momento no
qual consensos e representações di-
versas virão à tona, assim como con-
dutivo de si e do mundo? Pensamos
que essas questões não podem desa-
parecer para a equipe que trata nem
para o paciente, sob o risco, já denun-
ciado por outros autores, de a ação
social prevalecer sobre a interlocução
(Figueiredo, 1997).
Mais uma consideração sobre as
conseqüências que poderíamos ex-
trair disto para a estruturação dos
serviços públicos: pensarmos espa-
ços nos quais possam, além de di-
zer, fazer algo. E pensarmos no
UM DIA, NO TRABALHO DE COLAGGE,VIU EM UMA REVISTA A FOTO DE UM
CACHORRO. E DISPAROU A FALAR DE
UMA VEZ EM QUE HOUVE UM CACHORRO,E UMA CASA, E UMA MÃE...
E SAIU DA CRISE
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 109
flitos e desencontros. O projeto tem
permanência, o plano é uma figura
fragmentária e provisória. Se tenho
um projeto, passar dele ao plano re-
sulta, aí sim, de uma aplicação téc-
nica, depende de um saber prévio e é
relativamente fácil de se conseguir.
Como trabalhar em planejamen-
to, ajudando a formular projetos, fa-
zendo de nossa prática uma práxis,
a não ser admitindo e estimulando
os sujeitos que formulam esses
projetos a fazerem práxis na sua
própria prática? Na práxis, o sujei-
to faz a experiência na qual está
inserto e a experiência o faz.
Defendemos que a possibilidade de
sair da eterna repetição, ousando e
reorganizando o trabalho, dependerá:
“(...) de criar um dispositivo de tra-
balho e de jogo, que restabeleça,
numa árárárárárea transicional comumea transicional comumea transicional comumea transicional comumea transicional comum, a
coexistência das conjunções e das
disjunções, da continuidade e das
rupturas, dos ajustamentos regula-
dores e das irrupções criadoras, de
um espaço suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-
zado e rzado e rzado e rzado e rzado e relativamente operatórioelativamente operatórioelativamente operatórioelativamente operatórioelativamente operatório”
(KAËS, 1991: 39; grifo nosso).
Para Käes, a instauração do es-
paço psíquico do ser-conjunto se
sustenta na possibilidade de se re-
criar a ilusão institucional, ofere-
cendo referencias para a aderência
narcísica de seus membros, pois:
“a falha de ilusão institucional pri-
va os sujeitos de uma satisfação im-
portante e debilita o espaço psíquico
comum dos investimentos imaginá-
rios que vão sustentar a realização
do prprprprprojetoojetoojetoojetoojeto da instituição” (Kaës,
Idem: 34, grifo do autor).
E essa não é uma tarefa fácil nos
serviços públicos, muitos dos quais
encontram-se burocratizados ou
submetidos ao gerenciamento auto-
ritário. A compreensão dos aspec-
tos subjetivos envolvidos pode con-
tribuir para repensar nosso papel
como apoiadores das equipes.
Parece irrisório pedir a grupos
que se encontram espremidos nas
pensar. O paradoxo, que qualquer
estrategista enxergaria é que essa
impossibilidade de autocrítica
constitui-se em nossa fraqueza.
Nunca ficamos tão vulneráveis aos
outros como quando não consegui-
mos nos enxergar. “A distância en-
tre a cultura da instituição e o fun-
cionamento psíquico induzido pela
tarefa está na base da dificuldade
para instaurar ou manter um es-
paço psíquico de contenção, de li-
gação e de transformação” (Kaës,
1991: 36, grifos do autor).
E não é também disso que preci-
sa uma clínica da psicose? Não bas-
ta manter a ética da psicanálise na
sua lógica privada, oferecendo con-
sultórios ainda que tornados públi-
cos (Figueiredo, 1999: 11). Tratar
psicóticos, colocando a doença en-
tre parênteses, fazendo advir uma
clínica do sujeito, nos desafia a ser-
mos capazes de mudar nosso setting.
Nada contra o divã, mas temos cer-
teza de que a clínica que almejamos
para o serviço público não será cons-
truída somente em volta dele.
Deveríamos criar uma rede de
sustentação, de suporte, na qual os
pacientes possam experimentar, de
novo, suas transferências maciças,
com resultados diferentes. Mas des-
tacamos que, para isso, a própria
equipe deve ter suporte, holding
(Winnicott, 1999). Assim, essa fun-
ção faz parte do novo papel do apoi-
ador institucional. Nos serviços de
saúde mental a análise da situação
institucional estará sempre fortemen-
suas próprias dores institucionais,
que consigam criar um espaço su-
ficientemente trófico para os usu-
ários. Freqüentemente, umas das
saídas institucionais a esse sofri-
mento é o apelo exagerado ao ide-
ológico. Ideologia que funciona aí
como falsa consciência, véu obtu-
rando a possibilidade de se inter-
rogar sobre o sentido das própri-
as práticas.
Sobre esse sofrimento o movi-
mento ‘da luta’ não tem tempo para
NADA CONTRA O DIVÃ, MAS TEMOS
CERTEZA DE QUE A CLÍNICA QUE
ALMEJAMOS PARA O SERVIÇO PÚBLICO
NÃO SERÁ CONSTRUÍDA SOMENTE
EM VOLTA DELE
CAMPOS, R. O.
110 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
te entrelaçada com a discussão clíni-
ca. Não é possível discutir casos sem
colocar em análise o funcionamento
da equipe. A natureza do que ali é tra-
tado faz essa separação indesejável.
Qualquer profissional da saúde
precisará de ousadia para sair dos
compartimentos estanques dos sa-
beres prévios. A equipe só consegue
recriar seus contratos de trabalho
se tiver desenvolvido um espaço in-
termediário suficientemente trófico,
de suporte. Assim, o projeto insti-
tucional será possível. Pensamos
que o projeto, como o brincar, faz
parte desses processos intermediá-
rios (Onocko, 2001). Como diz Win-
nicott (1999), referindo-se ao brin-
car, isso exige um lugar e um tem-
po. E não se resolve somente refle-
tindo, ou desejando, mas no fazer.
Projetar é fazer.
E nós, planejadores, deveremos
estudar, compreender e aprimorar
nosso entendimento em relação às
modelagens clínicas: tomar posição,
não sermos mais “neutros”, em re-
lação às propostas clínicas. Nisso
consiste nosso handing: manejo, e
já não mais apenas no domínio de
técnicas para preencher planilhas de
um plano, que talvez nunca venha
a ser executado.
Precisamos assumir declarada-
mente a necessidade de ampliação
da clínica nos serviços públicos de
saúde, se não o fizermos, ainda que
involuntariamente ou por omissão,
continuaremos trabalhando a favor
da proposta hegemônica: a degra-
dação da clínica, a criação de servi-
ços pobres para pobres, e a inviabi-
lidade do Sistema Único de Saúde
em termos dos custos crescentes
derivados do alto consumo de téc-
nicas diagnósticas e terapêuticas
que acabam sendo caras, ineficazes,
e, às vezes, até iatrogênicas.
Sustentamos que o Planejamen-
to em Saúde estará sempre ligado
às questões advindas das modela-
gens clínicas e da subjetividade dos
grupos que estão em ação.
Tarefa complexa, distinta das
que nos foram colocadas na nos-
sa formação como planejadores,
difícil e que só pode ser pensada
como possível se abrirmos o cam-
po do planejamento a outras dis-
ciplinas e saberes, e se, assim fei-
to, continuarmos a refletir sobre
a nossa própria práxis como pla-
nejadores. “Se acaso devemos, eu
e os outros, encontrar o fracasso
nesse caminho, prefiro o fracasso
numa tentativa que tem um senti-
do a um estado que permanece
aquém do fracasso e do não fra-
casso, que permanece irrisório”
(Castoriadis, 1986: 113).
AGRADECIMENTOS
A autora agradece as valiosas
críticas e sugestões recebidas para
o presente artigo de Fernando Cem-
branelli, Gastão W. de Sousa Cam-
pos, e Stella Maris Chebli.
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