MARCUS MAIA(ORGANIZADOR)
PSICOLINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
PsicolinguÍstica e educação / Marcus Maia, (organizador). –
Campinas, SP : Mercado de Letras, 2018.
Vários autores.
ISBN 978-85-7591-520-2
1. Aprendizagem 2. Educação 3. Leitura 4. Psicolinguística
I. Maia, Marcus.
18-15880 CDD-401.9
Índices para catálogo sistemático:
. Psicolinguística 401.9
: Vande Rotta Gomide
: Editora Mercado de Letras
dos autores
: Cibele Maria Dias – CRB-8/9427
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1a edição
JUNHO / 2018
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PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 81
Capítulo IIIO PRObleMA dO AnAlfAbetISMO fUncIOnAl nO bRASIl SOb UMA AnÁlISe PSIcOlIngUíStIcA
Eduardo Kenedy
Introdução
O principal desafio contemporâneo das políticas
educacionais brasileiras é conseguir promover o alfabetismo
funcional pleno da população em idade escolar, conforme
preveem os Parâmetros Curriculares Nacionais (confira Brasil
1997). Esse desígnio, infelizmente, permanece ainda muito
distante da realidade atual da grande massa de estudantes
brasileiros. Diversos instrumentos de avaliação da Educação
nacional – tais como o IDEB (Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica), o ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização),
o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a Prova Brasil,
além de instrumentos específicos dos estados da União, como
o SAERJ (Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio
de Janeiro) e o IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação
Paulista) – vêm indicando que as habilidades de leitura e de
produção textuais são ainda muito precariamente desenvolvidas
82 edItORA MeRcAdO de letRAS
entre crianças, jovens e adultos deste país, sejam eles alunos
de escolas públicas ou privadas, oriundos dos centros urbanos
ou do interior. Instrumentos avaliativos internacionais, como o
PISA (sigla em inglês de Programme for International Student
Assessment – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes),
desenvolvido e coordenado pela Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), têm confirmado essa
situação de subletramento dos estudantes brasileiros, que, ao
longo de muitos anos, vêm ocupando as últimas posições nos
rankings internacionais de mensuração da capacidade de leitura.
As razões para o fracasso escolar brasileiro são, segundo os
estudiosos do tema, múltiplas e complexas (confira dentre outros,
Maluf e Bardelli 2011; Zago 2011; Costa 2013; Angelucci et al.
2014). A insuficiência de investimentos públicos na Educação,
pelo menos quando se considera a média de investimentos
anuais por aluno, é certamente uma das mais notórias causas
do atraso da Educação no país. Não obstante, apesar da ênfase
conferida à variável econômica por parte de muitos educadores e
de consideráveis propostas políticas educacionais, investimentos
financeiros são apenas uma parte do problema. Como indicam
Roitman e Ramos (2011), as mazelas da Educação brasileira são
multifacetadas: desprestígio social da carreira do magistério,
falta de incentivos a professores e a estudantes de licenciatura
(bons salários, plano de carreira), degradação afetiva e social do
ambiente escolar (violência física e simbólica), obscurecimento da
função da escola numa cultura eminentemente oral e subletrada,
dentre outros fatores. O presente capítulo deste livro pretende
apresentar um fenômeno psicolinguístico que, provavelmente, se
encontra entre as diversas variáveis responsáveis pelo fracasso da
Educação popular no Brasil: o status cognitivo da diglossia entre o
vernáculo trazido à escola pelos alunos de origem social popular
e o sistema linguístico subjacente ao chamado português escrito
em padrão culto e formal.
É provável que uma entre as diversas razões para o fracasso
escolar dos brasileiros oriundos da classe trabalhadora decorra
da falta de domínio efetivo sobre os mecanismos linguísticos
necessários ao uso fluente para leitura e produção em escrita
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 83
culta – a qual, logo após o período elementar da alfabetização,
se apresenta ao aluno simultaneamente como objeto de estudo e
como instrumento intelectual de acesso à cultura letrada. Conforme
se vem indicando na literatura especializada, as diferenças
lexicais, gramaticais e discursivas que separam, de um lado, o
vernáculo brasileiro – em todas as suas variedades regionais e
socioculturais – e, de outro, a escrita culta em seus diferentes
gêneros são tais que o aprendizado dessa última assume, para
maioria da população escolar, o status cognitivo de uma segunda
língua (confira Kato 2005). Nessa linha de argumentação, Kenedy
(2016) sustentou que as oposições linguísticas e sociointeracionais
entre as variedades vernaculares do português no Brasil e a escrita
padrão da língua caracterizam uma situação de diglossia. Segundo
o autor, as múltiplas variedades do português falado e escrito
no Brasil exemplificam perfeitamente a hipótese do Bilinguismo
Universal (Roeper 1999) e a Teoria das Múltiplas Gramáticas
(Amaral e Roeper 2014), já que os brasileiros letrados possuiriam
diferentes competências linguísticas em sua cognição que os
tornariam capazes de navegar pelas diversas situações de interação
sociocomunicativa por meio da fala e da escrita mais ou menos
formais e letradas. Considerando que, de acordo com pesquisas
recentes sobre capacidade de leitura (Brasil 2014; INAF 2016),
um grande contingente de estudantes brasileiros encontra-se na
situação do analfabetismo funcional, Kenedy (2016) asseverou que
esses cidadãos não teriam adquirido as representações linguísticas
necessárias para proficiência com o input escrito culto, uma vez
que o léxico, a gramática e os gêneros dessa modalidade da língua
são muito diferentes das características linguísticas e discursivas
adquiridas espontaneamente pelos brasileiros durante a fase de
aquisição da linguagem (formação mental do vernáculo).
Neste capítulo, lançaremos mão de noções psicolinguísticas
a fim de defender a hipótese de que a falta de pedagogias
adequadas ao status de língua estrangeira da escrita culta –
como ocorre quando, por exemplo, ela é considerada, ainda que
tacitamente, apenas a representação gráfica da língua nativa do
aluno – e o desconhecimento da situação diglóssica da maioria
das salas de aula e de programas didáticos no Brasil podem
84 edItORA MeRcAdO de letRAS
fazer com que a chamada escrita culta permaneça um objeto
estranho aos estudantes durante toda a sua vida escolar após a
alfabetização, prejudicando sobremaneira a sua inserção efetiva
na cultura letrada.
Educação popular no Brasil
Desde a independência e da abolição da escravatura, o
Brasil vem avançando em seu projeto de educar os estratos mais
pobres da população, que são historicamente a grande maioria
dos brasileiros. Ao longo dos últimos 120 anos, o número de
analfabetos absolutos no país foi reduzido de maneira expressiva
– de 83% da população, em 1890, para 8,5%, em 2014 (confira
Brasil 2014a) – e o acesso à Educação básica tornou-se pleno,
ao ponto de hoje mais 99% das crianças e adolescentes em idade
escolar encontrarem-se matriculadas em alguma instituição de
ensino brasileira (confira Brasil 2009). Não obstante, se, nos dias
atuais, alfabetização e universalização da escola básica deixaram
de ser os grandes problemas da Educação brasileira, a oferta de
ensino de boa qualidade ainda permanece o nosso maior fracasso.
Com efeito, tal como se estabelece no Plano Nacional de Educação
para o decênio em curso (PNE 2014-2024), o principal desafio das
políticas educacionais contemporâneas é transcender os limites
da alfabetização e da universalização do ensino obrigatório, de
modo a promover o efetivo letramento1 da população, tornando-a
preparada ao pleno exercício da cidadania em uma cultura letrada.
1. “Letramento” é aqui empregado para fazer referência ao conceito
psicolinguístico de “literacy” (em inglês) e “literacia” (em português
europeu). Tal termo foi consagrado pelo uso no Brasil e, embora
seja utilizado por diferentes correntes teóricas para denotar um enga-
jamento político e social durante o aprendizado escolar de maneira
global (confira Soares 1986), usamo-lo como referência à capacidade
específica de criar representações linguísticas a partir de textos escritos
de modo a desencadear outras representações cognitivas (inferência,
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 85
Infelizmente, índices internacionais de desempenho na Educação
têm reiterado o fato de que o Brasil está muito longe de alcançar
esse objetivo.
No ranking internacional mais recente sobre desempenho
de estudantes, divulgado em 2016 pela OCDE, o Brasil ocupou
a 59ª posição num conjunto de 70 países. Nessa lista, diversos
fatores concorriam para a melhor ou pior colocação de uma dada
nação, tais como, entre outros itens, a performance de estudantes
em exames de leitura e de matemática (como o PISA) e as taxas de
evasão e de repetência registradas anualmente no respectivo país.
O Brasil obteve resultados muito ruins em todos esses quesitos. Na
verdade, o desempenho brasileiro só foi ligeiramente superior ao
de países mais pobres e menos evoluídos em termos econômicos e
de índice de desenvolvimento. Mesmo países com uma economia
menos complexa do que a brasileira e com menos investimentos
proporcionais em Educação obtiveram melhor desempenho no
ranking da OCDE.
Na tentativa de explicar a razão do fracasso educacional do
Brasil, a variável econômica é a mais apontada por estudiosos da
Educação e a mais explorada em programas políticos educacionais
diversos (confira Programas como Pátria Educadora, Rio Mais
Educação, entre outros). De acordo com esse ponto de vista, a
principal razão para o mau desempenho dos estudantes brasileiros
seria o baixo nível de investimento de recursos públicos em nosso
país. Os gastos com Educação no Brasil seriam, portanto, muito
inferiores ao que investem nessa área os países desenvolvidos
(Europa ocidental, EUA, Canadá e Japão), de cujo desempenho
em rankings internacionais desejamos nos aproximar. No entanto,
interpretações de natureza puramente econômicas parecem não
explicar com perfeição o que se passa com a Educação brasileira.
Senão, vejamos.
tomada de decisão, detecção de (in)congruência etc.) que orientam o
comportamento do indivíduo no mundo físico e social.
86 edItORA MeRcAdO de letRAS
Investimentos na Educação brasileira
A OCDE realizou, no ano de 2013, um estudo sobre os
investimentos com Educação em 44 países – 34 nações ricas e
10 em desenvolvimento, dentre essas últimas, figurava o Brasil.
No período estudado, o Brasil investiu 19% de seus recursos
públicos em Educação, ao passo que, no mesmo período, a média
dos investimentos entre as demais nações da OCDE foi de 13%.
Isso significa que, em média, o Brasil investiu quase 50% a mais
em Educação do que os demais países analisados pela OCDE,
incluindo as nações mais ricas do mundo. Mesmo se pusermos
esse percentual sob perspectiva, considerando uma medida
relativa como o Produto Interno Bruto (PIB) desses países, os
investimentos brasileiros permanecerão acima da medida mundial.
De fato, o Brasil investiu em Educação, no ano de 2013, 6,1%
de seu PIB, índice superior à média de investimento dos demais
países da OCDE, que foi de 5,6% do PIB médio. Em suma, entre
os 44 países estudados pela OCDE, o Brasil destacou-se como
o 4º que mais investe em Educação, considerando-se o total de
despesas públicas e o percentual do PIB investidos na área.
Com efeito, o estudo comparativo feito pela OCDE não
deixou de considerar uma variável fundamental para entendermos
que, no que pesem o total de gastos público e o percentual do
PIB acima da média mundial, os recursos brasileiros destinados
à Educação são ainda insuficientes: o nível de investimento per
capita. No Brasil, havia, em 2013, mais de 62 milhões de alunos
distribuídos entre Educação infantil, ensino fundamental e ensino
médio. No ensino superior, esse número é de cerca de 8 milhões.
Quando consideramos que o PIB brasileiro foi estimado, em 2013
(ano de referência), em U$ 2,3 trilhões, veremos que a distribuição
de 6,1% desse montante entre cerca de 70 milhões de estudantes
redundará numa proporção muito baixa de investimento por
aluno: apenas U$ 3 mil anuais. Para que se faça uma comparação,
devemos considerar que, no mesmo período, a média de
investimento per capita entre os demais países da OCDE foi de U$
9 mil, atingindo mais de U$ 20 mil entre as nações mais ricas. Ou
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 87
seja, apesar de o Brasil ser o 4º colocado no ranking de volume
total do PIB destinado a investimentos em Educação, ocupamos
a 43ª posição na lista de investimentos anuais por aluno – isto
é, somos o segundo país com o pior índice de investimento per
capita em Educação entre as nações da OCDE.2
A desproporção entre, de um lado, os 19% de investimentos
públicos e os 6,1% do PIB destinados à Educação, e, de outro, o baixo
nível de investimento educacional per capita é desconcertante, uma
verdadeira charada para os economistas: o Brasil precisará triplicar
ou quadriplicar o seu PIB a ponto de assegurar investimentos em
Educação (per capita) proporcionais aos países mais desenvolvidos
da OCDE ou, alternativamente, terá de aumentar de maneira
dramática a fatia de seu PIB a ser destinada a investimentos
educacionais – imaginando-se que o PIB não decresça de um
ano para o outro. De qualquer forma, a explicação economicista
parece estar apenas parcialmente correta. Não existem evidências,
a partir dos dados de que dispomos hoje, de que a destinação
de, digamos, 15% do PIB brasileiro à Educação possa assegurar
uma melhoria significativa na qualidade de nosso ensino em médio
prazo. Afinal, conforme argumentamos, os investimentos públicos
são uma dentre diversas outras variáveis que concorrem para o
fracasso educacional de nosso país. As demais variáveis demandam,
da mesma forma, de especial atenção.
Analfabetismo funcional no Brasil
No ano de 2001, a Unesco (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura) estabeleceu um conjunto
2. Além do baixo investimento per capita, a possibilidade de eventuais
desvios de recursos destinados à Educação, no quadro da corrupção
endêmica na administração pública brasileira, não deve ser desconsi-
derada. Não se sabe ao certo quanto a Educação brasileira perde em
função do fator corrupção, de modo que, na realidade, é difícil estimar
se os recursos que chegaram a ser efetivamente liquidados com inves-
timentos em Educação atingem 6,1% de nosso PIB.
88 edItORA MeRcAdO de letRAS
de critérios comportamentais afim de mensurar, em 3 níveis, o
grau de alfabetização funcional de um indivíduo. Tal proposta
vem se revelando um instrumento útil na tarefa de identificar a
efetividade dos processos de letramento entre estudantes, seja em
países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A medição inicia-
se quando uma pessoa já é considerada alfabetizada e, assim,
se habilita a fazer uso funcional relevante de diferentes gêneros
de língua escrita. Os exames de aferição do letramento simulam
situações da vida cotidiana em uma sociedade letrada, nas quais
a interpretação adequada de input escrito é uma condição
fundamental para que o cidadão seja capaz de correlacionar
informações socioculturais e, dessa forma, tome decisões
inteligentes no mundo concreto. De acordo com a Unesco,
sociedade e dirigentes políticos poderão, de posse do diagnóstico
de letramento de sua população, discutir eventuais estratégias de
intervenção e modificação de sua realidade educacional.
TABELA 1 – níveis de alfabetização funcional (confira Unesco 2001).
Nível 1Compreensão apenas de títulos de textos e de frases curtas; dificul-
dades em realizar operações aritméticas básicas.
Nível 2
Compreensão de textos curtos, limitada capacidade de extração de
informações e inabilidade de criar conclusões a respeito do que se
lê; realização de operações aritméticas básicas, mas persistentes
dificuldades com operações matemáticas mais complexas.
Nível 3Pleno domínio da leitura, da escrita, dos números e das operações
matemáticas (das mais básicas às mais complexas).
Nessa escala de alfabetização funcional, o nível 3 é o mais
avançado. Nele encontram-se os indivíduos plenamente letrados,
que são capazes de compreender o texto escrito a ponto de gerar
conclusões e inferências coerentes sobre o conteúdo do que leem.
Em termos psicolinguísticos, o que a Unesco estabelece é que
devem ser consideradas pessoas inteiramente letradas aquelas que
possuem a competência de construir representações linguísticas
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 89
a partir do input escrito e utilizam tais representações para
derivar outras computações mentais não estritamente linguísticas
– como interpretação, ilação, busca de coerência, detecção de
(in)congruência, tomada de decisão, entre outras (confira Traxler
2012).
No nível 2, inicia-se a identificação de indivíduos
funcionalmente analfabetos, isto é, pessoas que, apesar de terem
aprendido a (de)codificar letras e, assim, conseguirem estabelecer
a relação grafema/fonema, são incapazes de fazer uso funcional
pleno dessa habilidade. Trata-se de indivíduos que compreendem
superficialmente textos curtos e estruturalmente simples –
podendo, por exemplo, parafraseá-los linguisticamente –, porém
apresentam limitada capacidade de extração de informações a
respeito do que leem, além de inabilidade em tirar conclusões
e fazer inferências a partir do lido. Diante de input escrito,
analfabetos funcionais do nível 2 se limitam à mera construção de
uma representação linguística, não sendo capazes de relacionar
tal representação com outros conteúdos mentais não linguísticos
(por exemplo, o conhecimento de mundo geral ou específico),
tampouco conseguindo produzir computações cognitivas para
além do conteúdo linguisticamente explícito no texto lido (por
exemplo, ativando pressuposições e acarretamentos, deduzindo
informações ou criando expectativas).
Na escala da Unesco, o nível 1 é o mais extremo do
analfabetismo funcional. Nessa categoria, encontram-se os
indivíduos que compreendem, ainda que com dificuldades,
apenas títulos de textos, como manchetes ou pequenas frases,
mas não conseguem produzir sentido a partir do que leem.
Em termos cognitivos, analfabetos funcionais de nível 1 sequer
conseguem construir representações linguísticas complexas,
como, por exemplo, parágrafos compostos por mais de um
período ou mesmo uma única sentença estruturada em termos
complexos, como orações subordinadas, intercalações e itens
lexicais não cotidianos. Em decorrência dessa severa limitação, um
analfabeto funcional extremo é incapaz de produzir computações
mentais complexas (por exemplo, correlação entre informações,
90 edItORA MeRcAdO de letRAS
identificação de premissas, argumentos e conclusões) a partir de
input escrito.3
Como já mencionado, pesquisas recentes estimam em
cerca 13 milhões o número de analfabetos absolutos no Brasil, o
que significa que 8,3% da população acima de 15 anos de idade
não é capaz de reconhecer as relações elementares entre grafemas
e fonemas (confira Brasil 2014a; INAF 2016). Qual seria, por sua
vez, a extensão do analfabetismo funcional entre os brasileiros?
O IBOPE identificou, em pesquisa de 2003, 68% de
analfabetismo funcional na população brasileira acima de 15
anos de idade – 30% no nível 1 e 38% no nível 2. Nese quadro,
possuiríamos hoje mais de 130 milhões de analfabetos funcionais.
Entretanto, outras pesquisas vêm revelando índices menores
de analfabetismo funcional, tanto no nível 1 quanto no nível 2.
Por exemplo, o IBGE identificou, em 2014, 27% de analfabetos
funcionais na população jovem e adulta. Tamanha disparidade
estatística certamente decorre de diferenças metodológicas na
condução da pesquisa e não de um súbito aumento extraordinário
do letramento da população em apenas uma década.
Diante de dados tão díspares e confusos, torna-se difícil
estimar o real tamanho do analfabetismo funcional no Brasil,
o que não nos impede, no entanto, de supor que a pesquisa
feita pelo IBOPE em 2003 seja a que mais corretamente tenha
se aproximado desse percentual real. Essa suposição é motivada
por pesquisas independentes, que revelam altíssimos níveis de
analfabetismo funcional mesmo entre a população universitária
3. As habilidades cognitivas aferidas nesses 3 níveis dizem respeito exclu-
sivamente ao processamento do input escrito, mas é possível que as
limitações dos analfabetos funcionais também se estendam a estímulos
orais derivados de gêneros da escrita formalizada, como telejornais,
discursos acadêmicos, entre outros. Pesquisas sobre letramento com
estímulos orais cultos formais ou semiformais são ainda uma lacuna
na literatura especializada. Além disso, os dados aqui apresentados se
referem somente à habilidade de compreensão textual. Consideramos
que a demanda cognitiva para a produção de textos imponha ainda
mais limitações aos analfabetos funcionais.
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 91
brasileira. Por exemplo, a Universidade Católica de Brasília,
em pesquisa de desempenho em leitura realizada em 2014,
identificou a existência de 50% de analfabetos funcionais entre
os universitários daquela instituição de ensino (confira PUC-DF
2014). No mesmo ano, o IBGE estimou em 38% de analfabetos
funcionais entre os universitários de todo o território nacional.
Os dados de 2016 do Indicador de Alfabetismo Funcional (NAF)
apontaram que apenas 22% dos universitários brasileiros podem
ser considerados proficientes em habilidades de leitura textual –
o percentual global de proficiência leitora, considerando-se os
ensinos fundamental e médio, atinge apenas 8% da população
escolar.
Um caso de diglossia?
Se o pior cenário dessas estatísticas for a realidade, o
analfabetismo de qualquer grau (total, funcional de nível 1 e 2)
atingirá, no Brasil de hoje, 75% da população. Teríamos, portanto,
150 milhões de brasileiros incapazes de fazer uso social produtivo
de textos escritos. Ou seja, apenas um em cada quatro adolescentes
ou adultos deste país seria capaz de ler e compreender textos de
básica ou média complexidade. Para essa multidão em alguma
medida analfabeta, a escrita do padrão culto formal (ou mesmo a
oralidade culta do mundo letrado) provavelmente assume o caráter
cognitivo de segunda língua, uma verdadeira “língua estrangeira”
em termos lexicais e gramaticais, que precisa ser ensinada (e
aprendida), com uma metodologia adequada, na escola ou em
outras instituições sociais capazes de promover o letramento em
escrita formal padrão.
Conforme sustentaremos a seguir, as diferenças lexicais,
gramaticais e discursivas entre, de um lado, a escrita formal
padrão, em qualquer um de seus diversos gêneros, e, de outro
lado, o vernáculo brasileiro em suas diversas manifestações
socioculturais, fazem com que aprender a ler e a escrever seja
92 edItORA MeRcAdO de letRAS
muito mais do que apenas (de)codificar sua língua materna
usando o alfabeto. Trata-se, na verdade, de uma incursão num
mundo psicolinguístico completamente diferente, cujo domínio é
uma condição necessária ao pleno acesso à cultura letrada e, por
isso mesmo, ao pleno exercício da cidadania.
Uma mente, múltiplas gramáticas
A situação diglóssica entre as diversas modalidades do
vernáculo do PB e a escrita formal padrão da língua podem ser
perfeitamente analisadas a partir da hipótese do Bilinguismo
Universal e da Teoria das Múltiplas Gramáticas. Com efeito,
desde o final dos anos 90, Roeper (1999) vem chamando a
atenção de linguistas para o fato de que todos os falantes de uma
língua natural são, em alguma medida, bilíngues. Essa hipótese,
denominada pelo autor como Bilinguismo Universal, pretende
capturar a realidade de haver, em qualquer língua, conjuntos
de regras gramaticais que se aplicam, de maneira exclusiva,
em diferentes gêneros discursivos e em diferentes modalidades
socioculturais da língua (dialetos, socioletos e registros). Essas
regras, específicas de cada contexto de uso, são, muitas vezes,
excludentes, isto é, são computacionalmente incompatíveis entre
si. Como regras gramaticais incompatíveis não permitiriam a
aquisição de uma língua (imagine-se, por exemplo, como seria
formatado o parâmetro do sujeito nulo numa língua, caso uma
criança recebesse, simultaneamente, input em favor de [+ pro-
drop] e de [– pro-drop]), Roeper assume que a criança, durante
o período crítico em que constrói sua capacidade linguística,
desenvolverá conhecimento relativo a múltiplas gramáticas
paralelas e independentes, de acordo com as diferentes informações
gramaticais que se lhe apresentarem no input linguístico de seu
ambiente sociocultural.
A hipótese das Múltiplas Gramáticas (Roeper 1999; Amaral
e Roeper 2014) também se aplica ao caso do aprendizado de
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 93
novos gêneros discursivos e de novas modalidades da língua
que são apresentados ao falante já no final da infância, durante a
adolescência ou ao longo de sua vida adulta. De acordo com os
autores, em grande medida, essas novas habilidades linguísticas
não são meramente uma ampliação dos contextos de uso do
vernáculo adquirido pelo indivíduo durante o período crítico.
Antes, trata-se de novos itens lexicais, novas regras gramaticais e
novos gêneros do discurso que devem ser aprendidos pelo falante
e adicionados, em paralelo, ao seu conhecimento linguístico
natural (vernáculo). O falante de uma língua específica, para ser
proficiente nas diversas modalidades socioculturais de seu idioma,
precisará, portanto, desenvolver, em sua competência linguística,
distintas minigramáticas (com regras computacionais exclusivas e
incompatíveis entre si), que serão necessárias para o desempenho
apropriado nos diferentes tipos de estruturas demandadas pelas
variadas modalidades da língua, tanto para a produção quanto
para a compreensão linguística.
As distintas modalidades do vernáculo do PB, em contraste
com os gêneros mais formais da escrita padrão, fazem do falante
letrado brasileiro um caso exemplar de bilinguismo universal
e de múltiplas gramáticas. Além da evidente densidade lexical
que separa falantes letrados de não letrados,4 o português escrito
padrão manifesta propriedades gramaticais incompatíveis e
opostas aos valores paramétricos e computacionais do vernáculo
brasileiro. Por exemplo, (i) o PB vernacular é uma língua orientada
para o discurso, com prominência de tópicos, ao passo que o
padrão escrito se caracteriza como um sistema orientado para
a sentença, com proeminência de sujeitos (confira Pontes 1987;
Negrão 1990.); (ii) o PB vernacular é uma língua pro-drop parcial,
em provável mudança em curso à direção de uma língua não pro-
drop, enquanto o padrão escrito da língua encerra uma língua pro-
drop plena (confira Duarte 1995; Kato 2005); (bi) o PB vernacular
4. De acordo com Gibson (1991), um falante plenamente letrado numa
das línguas europeias modernas pode chegar a dominar 50 mil itens
lexicais, por contraste a típicos 10 mil itens dominados por falantes de
culturas ágrafas e por indivíduos analfabetos.
94 edItORA MeRcAdO de letRAS
é uma língua de fraca concordância verbo-nominal, oposto ao
sistema de concordância forte presente na escrita padrão (confira
Scherre 1993, 1994); (ir) o PB vernacular utiliza pronomes tônicos
ou nulos em função acusativa de terceira pessoa, por contraste à
escrita mais formal, que lança mão de um sistema de clíticos para
tal função (confira Cyrino 1997); (v) o PB vernacular estrutura
o período por meio de relações sintáticas predominantemente
hipotáticas, diferentemente do sistema típico da escrita padrão
formal, que estrutura o período com orações subordinadas de
diversos tipos – substantivas, relativas e adverbiais, essas últimas
com um farto repertório de conectivos com diferentes funções
semânticas, (Oliveira 1998); (vi) o PB vernacular possui um
conjunto de gêneros informais eminentemente orais, enquanto
a escrita padrão é utilizada em diversos gêneros semiformais,
formais, orais ou escritos (confira Kenedy, 2009). Ora, tomadas
fora de contexto sócio-histórico, tais oposições gramaticais (ao
lado de outras não citadas acima) poderiam diferenciar duas
línguas independentes. Nesse caso, o falante que possuísse
competência linguística em ambas as línguas seria caracterizado,
conforme Amaral e Roeper (2014), como um caso de bilinguismo
stricto-sensu, ou bilinguismo clássico.
Se utilizássemos os termos de Chomsky (1986), diríamos
que um falante bilíngue desenvolveu, em sua mente, duas
Línguas-I independentes. Ao caracterizar uma Língua-I, Chomsky
(1986, 1998) assume a existência de um núcleo forte, em que se
encontram os parâmetros formatados, o conjunto de princípios
universais, o léxico e os traços fonológicos, formais e semânticos
que caracterizam a natureza de uma língua específica. Além
disso, Chomsky argumenta que uma Língua-I possui também
uma periferia marcada, em que certos resquícios linguísticos,
vestígios de mudança, variações não resolvidas, regras estilísticas
específicas, itens lexicais marcados, dentre outros fatores, são
armazenados. Nos casos de bilinguismo stricto-sensu, Amaral e
Roeper (2014) assumem que cada Língua-I preservará essa tensão
entre seu núcleo forte e sua periferia marcada.
No caso de indivíduos que se encontram na situação de
bilinguismo universal, ou seja, fora do caso stricto-sensu – que
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 95
Amaral e Roeper (2014) denominam alternativamente como
Bilinguismo Teórico e Bilinguismo Latente –, isto é, no caso de
indivíduos que precisam lidar com diferentes gramáticas nos
limites do que se convenciona considerar uma mesma língua, o
que se considera é que essas pessoas possuiriam, em sua Língua-I,
uma periferia ampliada, dentro da qual um novo núcleo, na forma
de uma minigramática, seria desenvolvido (confira Kato 2005).
O núcleo desenvolvido dentro da periferia é criado para
dar conta de parâmetros e traços formais que são independentes
e incompatíveis com os valores marcados no núcleo forte. É a esse
núcleo expandido que Roeper (1999) e Amaral e Roeper (2014)
se referem ao usar o termo minigramática. É inclusive possível, de
acordo a proposta dos autores, que mais de uma minigramática
seja cultivada no interior da periferia de uma língua-I, o que
caracterizaria casos de mutilinguismo, em que diversas demandas
linguísticas socioculturais dariam à luz, cada qual, uma gramática
específica.
A partir da teoria das Múltiplas Gramáticas e de sua
articulação com o conceito chomskiano de Língua-I, assumimos
que o processo de letramento no Brasil deverá ser capaz de
ampliar grandemente a competência de um falante nativo de
uma das modalidades vernaculares brasileiras. Isso acontecerá
quando, no interior da periferia marcada em sua competência
linguística, milhares de novos itens lexicais e seus respectivos
traços fonológicos, formais e semânticos forem cultivados a tal
ponto que desencadeiem computações gramaticais e discursivas
inexistentes na gramática nuclear – como concordância, inversões,
sujeitos nulos, estruturação de períodos eminentemente por
subordinação, mecanismos de coesão textuais diversos etc.
Enfrentando o problema: uma proposta com base no modelo D.A.I.
No Grupo de Estudos e Laboratório de Psicolinguística
Experimental da Universidade Federal Fluminense (GEPEX),
96 edItORA MeRcAdO de letRAS
estamos desenvolvendo atualmente um projeto de pesquisa que
pretende investigar a diglossia entre os vernáculos do PB e a
escrita formal padrão em três etapas. Em primeiro lugar, fazemos,
no estágio atual do projeto, uma revisão da literatura acerca das
variedades vernaculares do PB em cotejo com a escrita culta
formal da língua. Nesse primeiro momento, procuramos identificar
os principais fenômenos lexicais, gramaticais e discursivos que
conferem à escrita culta o caráter psicolinguístico de segunda
língua na cognição dos estudantes brasileiros de origem popular.
Até o presente momento, nossos resultados parciais sugerem
que a estruturação do período parece ser a principal diferença
sintático-discursiva que opõe a produção de textos orais e escritos
no vernáculo de estudantes de origem popular e na escrita formal
do padrão culto. Com base na análise de redações do ENEM e
em entrevistas orais com alunos de escolas públicas de periferia
nas cidades de Niterói e São Gonçalo (RJ), nossos achados
preliminares vão ao encontro do que indica Maia (2018, neste
volume). Na produção linguística vernacular, estamos identificando
uma preferência pela parataxe na estruturação do período, com
informações dispostas em sequência linear temporal ou lógica,
conforme o conteúdo dos textos específicos produzidos, na forma
de orações independentes, com poucos casos de subordinação
entre orações. Maia (2018, neste volume) confirmou os achados
de Ribeiro (2017) e verificou que, durante a compreensão de
períodos, estudantes de nível fundamental tendem a realizar
uma leitura não hierárquica da sentença, indicando maior fixação
ocular na primeira oração do período, independente de seu
status informacional, demonstrando assim, em contraste com os
resultados de leitores universitários, dificuldades de identificar,
organizar e interpretar informações estruturadas na forma de
subordinação sintática.
Na segunda etapa do projeto, em parceria institucional com
o Laboratório de Psicolinguística Experimental da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (LAPEX), coordenado pelo prof. Marcus
Maia, pretendemos desenvolver um instrumento avaliativo capaz
de aferir objetivamente o nível de letramento dos estudantes
brasileiros. Isto é, objetivamos, nessa fase, a criação de um conjunto
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 97
de tarefas de leitura e de produção textuais que serão executadas
em situação laboratorial controlada a fim de avaliar em que
medida o comportamento manifestado pelos estudantes (grupo
experimental) nessas atividades se assemelha ao que se espera
de um indivíduo plenamente letrado (grupo controle), de acordo
com os traços gramaticais e discursivos a serem estabelecidos
na primeira etapa da pesquisa. Com base nos dados a serem
obtidos nas primeira e segunda fases do projeto, será possível
desenvolver a terceira e última etapa da pesquisa: a formulação de
uma gramática pedagógica, cujo objetivo será orientar programas
de ensino de “língua materna”, professores e estudantes quanto ao
aprendizado dos traços linguísticos da língua alvo (escrita culta)
ausentes na língua de origem (vernáculo). Essa última etapa será
desenvolvida em parceria com o prof. Luiz Amaral, da University
of Massachussetts Amherst, que possui grande experiência na
elaboração de gramáticas pedagógicas e no estudo de bilinguismo
em situações diglóssicas.
No decurso de tal pesquisa, diferentes metodologias serão
empregadas. Ao longo das três etapas do trabalho, nosso projeto
será orientado pelo modelo D.A.I. (Description, Assessement and
Itervention – Descrição, Avaliação e Intervenção), que relaciona
descobertas da linguística descritiva e da pesquisa experimental
a programas de letramento para alunos em contextos diglóssicos
(confira Amaral 2016). De acordo com esse modelo, projetos de
ensino de língua estrangeira, inclusive nos casos de diglossia
sob uma mesma língua oficial, devem ser inseridos em uma
ou mais áreas de atuação (descrição, avaliação ou intervenção)
de modo que pesquisadores possam promover a integração de
dados gerados por diferentes abordagens metodológicas. No caso
de nossa pesquisa corrente, os métodos descritivo-etnográfico e
experimental são articulados da seguinte maneira, conforme as
etapas do modelo D.A.I.
1. Descrição (Description). Momento presente, em
que estão sendo elencadas as principais oposições
lexicais, gramaticais e discursivas entre as variedades
98 edItORA MeRcAdO de letRAS
vernaculares do PB e escrita culta da língua
(sobretudo a escrita formal e a acadêmica, principal
objeto de estudo escolar). Essa etapa assume uma
natureza eminentemente bibliográfica, com consulta
às principais obras de referência sobre a situação de
diglossia brasileira.
2. Avaliação (Assessement). Segundo momento da
pesquisa, em que utilizaremos a técnica experimental
on-line do rastreamento ocular e diferentes paradigmas
de experimentos off-line, como preenchimento
de formulário e índice de acertos em atividades
de leitura (por exemplo, tese de Cloze, testes de
spam de memória a estímulos escritos). Com esta
metodologia experimental, será possível caracterizar o
comportamento do leitor plenamente letrado diante de
estímulos linguísticos escritos previamente controlados
(grupo controle), de tal forma que os dados extraídos
desses leitores possam servir de medida para a aferição
do progresso do letramento de estudantes (grupo
experimental). Uma evidência da utilidade desse tipo
de recurso experimental em projetos dedicadas à
psicolinguística translacional para a Educação pode ser
verificada em Maia (2018, neste volume).
3. Intervenção (Itervention). Terceira e última fase
da pesquisa, na qual formularemos uma gramática
pedagógica que se pretende funcionará como
referência a programas de ensino de língua materna
e seus agentes (escola, professores e estudantes)
a respeito dos aspectos lexicais, gramaticais e
discursivos da língua alvo (português escrito
culto) que assumiremos como fundamentais para
o desenvolvimento de um núcleo expandido na
periferia da Língua-I dos estudantes oriundos da
classe trabalhadora.
Considerando os interesses do presente capítulo e deste
livro em geral, a terceira etapa de desenvolvimento deste projeto
PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 99
se mostra particularmente relevante. Naturalmente, uma gramática
pedagógica não se confunde com uma gramática escolar,
tampouco como uma gramática descritiva. Com efeito, gramáticas
pedagógicas contêm diretrizes para a formulação de materiais
didáticos e para a prática docente em sala de aula, com o objetivo
de promover o aprendizado de certos traços linguísticos da língua
alvo (confira Mesquita e Martos 2009). Elas pautam-se, por um
lado, na correlação entre funções e formas linguísticas, partindo-se
daquelas para chegar-se a estas, e, por outro lado, fundamentam-
se no aprendizado de língua por meio da imersão, conforme
proposta de VanPatten (2007a, 2007b). São precisamente esses
traços fundamentais que tornam tais gramaticais um instrumento
fundamental para o desenvolvimento do bilinguismo latente
necessário para ampliar a competência linguística dos estudantes
brasileiros afluentes das classes populares.
Considerações finais
Num país de proporções tão grandes como o Brasil, a
Educação é atualmente um fracasso apenas relativo, pois, para
50 milhões de brasileiros, o letramento pleno e o sucesso escolar,
seguidos de boas oportunidades na vida social, são garantidos.
Trata-se de um grande contingente de pessoas afortunadas –
número cinco vezes maior do que a população de Portugal e mil
vezes superior ao total populacional de Singapura, país em primeiro
lugar nos rankings mundiais de Educação. O grande desafio para as
políticas públicas e para os profissionais da Educação, no entanto, é
encontrar meios de promover o letramento do demais 150 milhões
de brasileiros. Como dissemos ao longo deste capítulo, são muitas
as causas do fracasso da Educação para a maioria da população
brasileira. Acreditamos que uma das variáveis desse problema tenha
a ver com o tratamento inadequado que é dispensado ao ensino
de língua portuguesa (escrita culta em padrão formal) nas escolas e
nos materiais didáticos nelas mais utilizados.
A elaboração de propostas pedagógicas detalhadas, que
apresentem atividades para a criação dos ambientes de imersão
100 edItORA MeRcAdO de letRAS
necessários ao desenvolvimento do bilinguismo latente em nosso
país é um grande desafio de trabalho que vem sendo enfrentado
por pesquisadores-educadores do presente. Acreditamos que
essas propostas virão a caracterizar contribuições importantes que
a Psicolinguística tem a oferecer, na prática, à Educação brasileira.
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