PRISÃO ARBITRÁRIA NA CPI OU “AS FABULOSAS AVENTURAS DE AZIZ,
RANDOLFE E CIA. NA CASA VERDE”
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia aposentado, Mestre em
Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de
Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e
Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro
do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado
do Unisal.
1 – INTRODUÇÃO
Em meio às diversas perplexidades a que nos conduz a denominada “CPI do
Covid”, um episódio recente chama a atenção. Trata-se da “Prisão em Flagrante” do
investigado Roberto Ferreira Dias, ex – diretor do Departamento de Logística do
Ministério da Saúde, por suposto crime de “Perjúrio” (sic), conforme determinação do
Presidente da CPI, Senador Omar Aziz. Dias era inquirido a respeito de imputação de
“pedido de propina” para concretização de contrato de compra de vacinas, o que, em
tese, configuraria a prática por ele do crime de “Corrupção Passiva”, conforme previsto
no artigo 317, CP. 1
O preso foi conduzido à Polícia Legislativa do Senado, com um “Auto de
Prisão em Flagrante” (sic) assinado pelo Senador Omar Aziz, sendo formalizados os
demais trâmites da prisão no que tange aos trabalhos de Polícia Judiciária, inclusive
arbitrando-se fiança, que, após pagamento, ensejou a soltura do implicado. 2
Neste trabalho se pretende expor os erros jurídicos cometidos nessa ordem de
prisão, bem como em sua formalização.
Ao final os tópicos serão retomados, apresentando-se um encerramento
conclusivo.
1 PRESIDENTE da CPI, Omar Aziz prende Roberto Dias por Perjúrio. Disponível em https://www.otempo.com.br/politica/presidente-da-cpi-omar-aziz-prende-roberto-dias-por-perjurio-1.2509714 , acesso em 12.07.2021. 2 MAIA, Gustavo. Leia a íntegra do mandado de prisão da CPI contra Roberto Dias. Disponível em https://veja.abril.com.br/blog/radar/leia-o-mandado-de-prisao-de-aziz-contra-roberto-dias/ , acesso em 12.07.2021. Vide também: PRESO ao depor à CPI, Roberto Dias é solto após pagar fiança. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2021/07/preso-ao-depor-a-cpi-roberto-dias-e-solto-apos-pagar-fianca , acesso em 12.07.2021.
2 – A PRISÃO POR “PERJÚRIO”!
Tanto o Senador Omar Aziz como o Senador Randolfe Rodrigues, em atuação
performática, bradam no recinto da CPI que Dias estava preso por suposto crime de
“Perjúrio”.
Nas palavras do Senador Omar Aziz transcritas em reportagem veiculada
nacionalmente:
Ele está preso por mentir, por perjúrio (sic). E se eu tiver tendo (sic) abuso
de autoridade, que advogada dele (sic) ou qualquer outro senador me
processo (sic), mas ele vai estar detido (sic) agora pelo Brasil, porque nós
estamos aqui agora pelo Brasil, pelos que morreram (grifo nosso). 3
A suposta prisão por “Perjúrio” é confirmada pelo Vice – Presidente da CPI,
Senador Randolfe Rodrigues, que empresta seu total apoio a Aziz. Em suas palavras:
Se concordamos ou não, isso é irrelevante. O grupo que coordena a CPI
continua unido e apoiando o presidente. Eu espero que tenha esse efeito
didático. É uma decisão do presidente e está no uso de suas atribuições.
Entre as atribuições do presidente está, na ocorrência do crime de perjúrio
(sic), decretar a prisão. Tem a nossa solidariedade (grifo nosso). 4
Logo num primeiro olhar, ainda antes de comentar acerca do suposto
“Perjúrio”, há que fazer a constatação da transparência da perversão de uma medida
cautelar ou pré – cautelar de Prisão em Flagrante em pretensa penalização antecipada de
suspeito, bem como em sua utilização como efeito midiático de espetáculo público, o
que não se coaduna, nem de longe, com as finalidades das cautelares processuais penais.
São os próprios Senadores Aziz e Randolfe que afirmam que o preso está detido “pelo
Brasil” (sic), “pelos que morreram” (sic), como uma espécie de punição antecipada num
emprego apelativo da linguagem; e que a famigerada prisão deveria ter um “efeito
didático” (sic), que somente seria plausível se se tratasse de “prisão – pena”, jamais
“prisão cautelar”.
Digna de transcrição a cristalina lição do saudoso Luiz Flávio Gomes sobre o
tema:
As medidas cautelares não possuem fim em si mesmas. Não são penas.
Elas existem para assegurar a aplicação da lei penal ou a eficácia do processo
penal ou da investigação ou para evitar novas infrações penais. O processo
3 ROBERTO Dias é preso por perjúrio e falso testemunho durante depoimento na CPI da Covid. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2021/07/07/roberto-dias-e-preso-por-perjurio-e-falso-testemunho-durante-depoimento-na-cpi-da-covid , acesso em 12.07.2021. 4 FUZEIRA, Victor, LIMA, Luciana, MONTANINI, Marcelo. CPI: G7 nega racha e se diz “solidário” com decisão de prisão de Dias. Disponível em https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/cpi-g7-nega-racha-e-se-diz-solidario-com-decisao-de-prisao-de-dias , acesso em 12.07.2021.
penal serve para a tutela da liberdade assim como para a efetivação do direito
de punir do Estado.
O velho conflito entre liberdade e castigo também está presente nas medidas
cautelares. As medidas cautelares constituem um meio para que a jurisdição
alcance suas finalidades. Nenhuma cautelar pode cumprir o papel de pena
(grifo nosso). 5
Mas, se o equívoco ficasse somente nessa perversão das cautelares e
espetacularização midiática do sistema penal e processual penal, seria possível dizer que
estar-se-ia diante de um “mal menor” ou ao menos de um mal corriqueiro dentre atores
políticos e mesmo jurídicos. É claro que nada estaria justificado ou seria sequer
compreensível, mas ao menos seria possível dizer que seria um abuso e um erro
ordinários.
Acontece que Senadores da República, sendo um deles Bacharel em Direito e
ostentando até mesmo pós – graduação na área (Ranfolfe Rodrigues, já que Omar Aziz
é engenheiro civil), 6 fazem menção, repetidamente, à prisão por suposto crime de
“Perjúrio” (sic), o qual é simplesmente inexistente na legislação brasileira!
Tal como nos ensina Julián Marías, evocando Kant, seria preciso clamar a
esses parlamentares com a expressão latina “sapere aude” (“ousa saber”), como o
mínimo a “ser dito aos que tentam conduzir um povo”. 7 Randolfe com sua formação
jurídica não tem a menor desculpa para essa espécie de gafe. Aziz é engenheiro civil,
mas milita há muitos anos na política, no legislativo e no executivo, ocupando cargos de
alta relevância, sendo o mínimo exigível que tenha conhecimentos rudimentares do
Direito.
Mas, parece que nossos parlamentares pouco ou nada se importam com a
forma pela qual vão adentrar à História. Parece que sequer cogitam sobre o conteúdo da
frase emblemática dita no filme “O Gladiador”: “O que fazemos na vida ecoa por toda a
eternidade”! 8 Em seus casos, o que ecoará? Uma comédia triste de bufões furiosos e
5 GOMES, Luiz Flávio, MARQUES, Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 33. 6 Confira-se os dados dos Senadores envolvidos no Portal do Senado, acessando a aba “Biografia e Histórico Acadêmico”: Randolfe Rodrigues – AP. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/senadores/senador/-/perfil/5012 , acesso em 12.07.2021. Omar Aziz – AM. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/senadores/senador/-/perfil/5525 , acesso em 12.07.2021. Aziz ao menos é apenas “engenheiro civil”, mas com anos e anos de política no legislativo e executivo, ocupando cargos de alta envergadura, teria por obrigação ter uma noção mínima de Direito, já que produz leis que nos obrigam a todos! 7 MARÍAS, Julián. Tratado sobre a Convivência. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 182. 8 O GLADIADOR. Filme (drama histórico, ação e aventura). Dream Works SKG/ Universal Pictures, 2000.
ignaros? Isso é extremamente deprimente não só para eles, mas, especialmente, para o
povo brasileiro.
Fato é que no Brasil não existe crime de “Perjúrio”, mas tão somente o crime
de “Falso Testemunho ou Falsa Perícia”, conforme consta do artigo 342, CP e, no caso
de uma CPI, tratar-se-ia do crime remetido do artigo 4º., inciso II, da Lei 1.579/52,
aplicando-se o Princípio da Especialidade no conflito aparente de normas. 9
O crime de “Perjúrio” existe em legislações estrangeiras que, mesmo prevendo
o direito ao silêncio e a não autoincriminação ao acusado ou investigado, estabelecem
que, acaso este abra mão de permanecer calado, ao manifestar-se faz juramento de dizer
a verdade, sob pena de “perjúrio”. Em resumo, o investigado ou réu pode ficar em
silêncio, mas se quiser falar terá o dever de dizer a verdade, inclusive sob o risco de
imputação de outro crime, qual seja, o de “Perjúrio”, além daquele pelo qual já é
investigado ou acusado.
É muito esclarecedor sobre a questão o “Dicionário Direito”:
O perjúrio trata-se da conduta atípica cometida por aquele que acusado ou investigado faz afirmações falsas durante procedimento de investigação. Em
séries policiais estrangeiras, é muito comum ouvirmos falar em “perjúrio”. O
perjúrio consiste no ato de mentir ou inventar informações durante o ato
do interrogatório, e pode ser cometido por aquele que está sendo acusado ou
investigado acerca de determinado fato. No Brasil, o perjúrio não é
considerado crime, sendo, portanto, conduta atípica e não passível de
punição. Por outro lado, há o crime o falso testemunho. Como se percebe,
somente será autor do crime de falso testemunho, a própria testemunha, não
havendo que se estender a aplicação da punição para aqueles que estão sendo
investigados e não são verdadeiros quanto ao seu depoimento (grifos no
original). 10
Não é admissível que a fonte de informação jurídico – penal de Senadores da
República sejam reminiscências de séries policiais ou filmes de julgamento
estrangeiros!
Deveriam saber que diversamente do nosso ordenamento, no Direito Criminal
Norte – Americano, o silêncio ou a não – autoincriminação são conceituados como
“privilégios” e não “direitos”. Lá, diferentemente daqui, o Princípio do “nemo tenetur
se detegere” (ou “Nemo tenetur se ipsun procedere” ou “Nemo tenetur se ipsum
9 O crime é denominado “remetido”, porque prevê a conduta do falso testemunho e não prevê a pena na Lei 1.579/52, remetendo o intérprete e aplicador às penas previstas no Código Penal para o crime de Falso Testemunho (artigo 342, CP). O crime remetido “ocorre quando a sua definição se reporta a outros delitos que passam a integrá-lo”. Cf. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 183. 10 DICIONÁRIO Direito. Perjúrio. Disponível em https://dicionariodireito.com.br/perjurio , acesso em 12.07.2021.
accusare”) é conhecido como “o privilégio contra a auto – incriminação (privilegie
against compelled self – incrimination)”. 11 Por isso se diz naquelas bandas (não aqui)
que o investigado ou réu fica muitas vezes diante de um “trilema cruel” (“cruel
trilema”): “permanecer em silêncio e encarar a prisão; falar a verdade e encarar a prisão;
ou mentir e encarar a prisão, dessa vez por perjúrio”. 12 Nada disso corresponde à
realidade brasileira. Aqui o investigado ou réu tem direito ao silêncio e, se resolver
prestar interrogatório, poderá falsear em sua narrativa com amparo na ampla defesa e no
direito a não – autoincriminação, sem sofrer qualquer consequência criminal por isso,
eis que se trata de fato atípico no Brasil.
Como esclarece Carneiro, expondo o escólio de Amorim:
“Na legislação brasileira, o perjúrio cometido por um acusado não é crime”,
explica o advogado Fábio Amorim, porque no Brasil ninguém é obrigado a
produzir prova contra si mesmo. “Uma pessoa na condição de réu não é
obrigada a falar a verdade.” Nos EUA, perjúrio é crime até para o réu. Lá,
além de testemunhas e peritos, os acusados também são obrigados a jurar
que vão dizer “a verdade e apenas a verdade” ao longo do processo. 13
Para Ferreira, a explicação para a ausência do crime de “Perjúrio” no
ordenamento brasileiro pode ter como uma das explicações mais plausíveis, as raízes
inquisitórias do nosso sistema processual penal, sendo o investigado ou réu
presumivelmente alguém que faltaria naturalmente com a verdade, cabendo ao
inquisidor ou juiz a busca da chamada “verdade real” com todos os meios à sua
disposição. 14
Tanto é fato que o “Perjúrio” inexiste na legislação penal brasileira, que foi
objeto de Projeto de Lei n. 4.192/15 de autoria do Deputado Federal Miro Teixeira,
projeto este que se encontra atualmente arquivado.15 O intento era sua inclusão no
11 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal Norte – Americano. São Paulo: RT, 2006, p. 135. 12 Op. Cit., p. 138. 13 CARNEIRO, Marcus Vinícius. Existe o Crime de Perjúrio no Brasil? Disponível em https://marcusvinciuscarneiro.jusbrasil.com.br/artigos/682229412/existe-o-crime-de-perjurio-no-brasil , acesso em 12.07.2021. 14 FERREIRA, Marco Aurélio Gonçalves. A Ausência do Crime de Perjúrio no Sistema Jurídico Brasileiro. Revista da Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro. n. 29, dez., 2010, p. 143 – 150. 15PL4192/2015. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2076004 , acesso em 12.07.2021.
Código Penal como artigo 343 – A, CP, o que nunca se concretizou. A redação seria a
seguinte:
Art. 343-A. Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação
conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo:
Pena – prisão, de um a três anos.
§1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço se o crime é cometido em
investigação criminal ou em processo penal.
§2º O fato deixa de ser punível se, antes do julgamento no processo em que
ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. 16
Porém, como já dito, esse crime jamais foi aprovado pelo Congresso Nacional,
sendo fato atípico, razão pela qual, por força do Princípio da Legalidade, ninguém pode
receber voz de prisão ou ser perseguido criminalmente por ele. De fato, as falas dos
Senadores Aziz e Randolfe são expressão de desconhecimento e/ou arbitrariedade, um
ato falho talvez, porque sabiam que Dias não era uma testemunha e sim um investigado
e só poderia ser preso, se estivesse em outro país (talvez nos EUA), pelo crime de
“Perjúrio”, se fosse o caso de que realmente estivesse mentindo sob juramento.
Na verdade, o próprio termo “Perjúrio”, ainda que se aprovasse tal crime em
nosso ordenamento, seria uma espécie de arcaísmo anacrônico que remontaria às
origens remotas desse ilícito, encontráveis na Idade Média como a “quebra do
juramento anterior à colheita das declarações” 17 (“perjurium” – “juramento falso, de
‘per’ – falsamente, mais ‘jurare’ – prometer, jurar”). 18 Chegou a existir no Brasil sob
esse nome nas Ordenações do Reino e depois no Código Criminal do Império (1830) e
no Código Penal de 1890, sempre com a característica de exigência de quebra um
juramento como “pressuposto do crime”. 19 A denominação tem claro caráter
moralizante e de índole religiosa em sua origem. Tal como nos ensina Magalhães
Noronha:
16 Excelente análise sobre o projeto e a respeito da questão da ausência de previsão legal do crime de “Perjúrio” no Brasil encontra-se no trabalho de Nogueira e Gama: NOGUEIRA, Carla Mariana Ferraz, GAMA, Júlio Cesar Boa Sorte Leão. O Perjúrio no Ordenamento Jurídico Brasileiro Enquanto Extensão do Direito de Defesa do Réu. Disponível em https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/o-perjurio-no-ordenamento-juridico-brasileiro-enquanto-extensao-do-direito-de-defesa-do-reu/#_ftn19 , a cesso em 12.07.2021. 17 ESTEFAM, André. Direito Penal. Volume 4. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 363. 18 ORIGEM da palavra. Perjúrio. Disponível em https://origemdapalavra.com.br/palavras/perjurio/ , acesso em 12.07.2021. 19 ESTEFAM, André, Op. Cit., p. 363.
“Na Idade Média castigou-se igualmente o fato, porém, era considerado crime
contra a religião, por ser antes ofensa ao juramento prestado no testemunho”. 20
Acontece que Aziz, ao dar voz de prisão por “Perjúrio” a Dias, não cometeu
somente um lapso de linguagem, agiu de forma ilegal, depois recebendo o amparo
também ilegal de seu Vice Randolfe Rodrigues. Isso porque realmente prendeu uma
pessoa por aquilo que seria, em tese, efetivamente um crime de “Perjúrio”, acaso este
existisse em nosso ordenamento. Não se adentrará na questão de haver ou não realmente
mentido o Senhor Dias, vez que isso é irrelevante diante do quadro de que mesmo
mentindo não há previsão criminal para tanto, ao contrário, há uma principiologia,
inclusive positivada constitucional e ordinariamente, que garante o direito a não –
autoincriminação de réus e investigados em geral, a qual foi flagrantemente violada
pelos Senadores coatores.
O suposto autor do crime em apuração “não está obrigado a dizer a verdade ou
manifestar-se – art. 186, parágrafo único, e art. 198 do Código de Processo Penal”. A
autoincriminação “configura inexigibilidade de conduta diversa”, mesmo em se tratando
de autêntica testemunha e não de investigado travestido de testemunha por obra dos
encarregados da investigação. 21
Por isso Nucci chama a atenção para o fato de que mesmo a testemunha tem o
direito de calar ou faltar com a verdade sempre que faça isso para evitar “comprometer-
se”, usando o “princípio constitucional do direito ao silêncio e de não ser obrigada a se
autoacusar”. Afirma o autor que
é indispensável que o interrogante tenha cautela na avaliação do depoimento, para não se precipitar, crendo estar diante de testemunha mentirosa, quando,
na realidade, está ouvindo um “futuro acusado”, que busca esquivar-se,
validamente, da imputação. 22
É muito importante ter em mente que a condição de testemunha ou investigado
não é algo que se configure apenas formalmente, ou seja, por um voluntarismo
20 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 4. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 363. 21 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 786 – 787. 22 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 672 – 673. Essa orientação de todo coerente e razoável é esposada também por Mirabete, que ilustra sua obra com diversas decisões, inclusive do STF, afastando o crime de falso testemunho (nem mesmo de perjúrio) no caso do depoente que pode se autoincriminar e então passa a ter o direito ao silêncio e a não – autoincriminação, podendo até mesmo faltar com a verdade. Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 2560.
nominativo de alguém. A pessoa não é testemunha ou investigado porque a autoridade
tal ou qual o quer ou assim diz. A condição de testemunha é material e precisa ser
aferida no caso concreto de acordo com o tema do interrogatório e as consequências que
este pode ter ou não com relação ao depoente. No caso de Dias, por exemplo, há a
imputação de crime de corrupção passiva evidenciada nos autos contra ele e o tema de
sua inquirição era exatamente sobre isso, além do fato da quebra de seus sigilos pela
própria CPI. Ora, desde o início era patente que não se tratava sequer de uma
testemunha, inobstante o artifício pueril de nominá-lo dessa forma na audiência e colher
seu suposto “compromisso de dizer a verdade”. Portando, não era possível jamais
imputar-lhe falso testemunho, que é crime existente em nosso Direito, mas não
aplicável ao caso; muito menos seria possível prendê-lo por crime inexistente, fato
atípico no Brasil, de “Perjúrio”! O que ocorreu naquela sessão da CPI seria cômico se
não fosse trágico. A defensora de Dias também pecou, pois que deveria, desde o início,
haver contrastado a natureza das declarações e a inadequação de compromissar seu
cliente, isso sem falar no fato de que deveria ter ido àquela sessão já com um “Habeas
Corpus”, pois que se sabe ser costumeira em CPIs essa espécie de perversão de papéis e
abuso em prisões de investigados que são maquiados por comissões como se fossem
testemunhas. A grande mentira contada naquela sessão foi a de que Dias era testemunha
e não investigado.
A testemunha jamais pode ser confundida com as partes, com qualquer um que
tenha interesse no feito ou no procedimento. Trata-se de pessoa “estranha ao feito e
equidistante das partes”, chamada “para falar sobre fatos perceptíveis a seus sentidos e
relativos ao objeto do litígio”. 23 Aliás, tem sido corrente o entendimento doutrinário e
jurisprudencial de que nem mesmo o ofendido ou a vítima de um ilícito comete falso
testemunho quando inquirida, exatamente por seus interesses e sua condição peculiar de
envolvimento pessoal no caso. 24
Dignas de nota são as observações de Bitencourt, que caem como uma luva no
caso concreto em estudo, apontando “a paradoxal condição de imputado travestida na de
23 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 3. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 672. 24 Ver por todos, com várias decisões jurisprudenciais ilustrativas: DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 997.
‘testemunha’” e a deletéria e extremamente censurável “falsidade da conduta da
autoridade” que usa desse subterfúgio. Vale a pena a transcrição:
O acusado não apenas tem direito ao silêncio, como, inclusive, o de faltar
com a verdade, em sua própria defesa. A condição de acusado exclui, ipso
facto, a de testemunha. Nesse sentido, é incensurável o magistério de Regis
Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 861), quando afirma: “...a
condição de imputado exclui a de testemunha. Além de ser parte no processo
penal, não tem a obrigação de dizer a verdade – limite da punibilidade de uma declaração falsa. No delito em foco a condição de testemunha – em
sentido material - é elemento do tipo penal. E tal condição não possui o
imputado, ainda que declare como testemunha”.
Quem é investigado tem assegurado pela Constituição não apenas o direito ao
silêncio, mas fundamentalmente o direito de não produzir prova contra si
mesmo. Por isso, quem é investigado, ainda que dissimuladamente pela
autoridade investigante/processante, como sói acontecer nas Comissões
Parlamentares de Inquérito (e, por vezes, nas Investigações procedidas
pelo Ministério Público), que fraudam a relação processual, procurando
impor ao investigado o compromisso dizer a verdade a quem é
potencialmente investigado, pretendendo “extorquir” declarações sob a
ameaça de crime de falso testemunho, eventual declaração que não
corresponda à realidade (fazendo afirmação falsa, negando ou calando a
verdade) não tipifica o crime de falso testemunho, pois o compromisso prestado é materialmente inválido por contrapor-se ao texto constitucional. O investigado, além de ser parte no processo, não tem a obrigação de dizer a
verdade, pois poderá estar produzindo prova contra si mesmo. No crime de
falso testemunho a condição de testemunha – no seu aspecto material – é
elementar do tipo, e o investigado/processado, certamente, não possui
essa condição. Consequentemente, se o “investigado/testemunha” falsear a
verdade em suas declarações, sua conduta será absolutamente atípica. (...).
Falso, na verdade, nessas condições, não são as declarações do
investigado por não corresponder à realidade dos fatos, mas é a conduta
da autoridade processante, que além de antiética e imoral é também
antijurídica, tendo sido objeto, invariavelmente, de concessões de ordem
de habeas corpus por nossa Corte Suprema, para assegurar o direito que
nossos parlamentares deveriam não apenas conhecer e respeitar, mas,
principalmente, defender. A única forma de coibir essa odiosa praxe que se
instalou no parlamento nacional é criminalizar essa conduta fraudulenta de
autoridades que forçam os investigados a prestar compromisso, quando sabidamente, ou dissimuladamente, são objeto da investigação (grifos
nossos). 25
25 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1154. Também chamam a atenção para essa manobra ilegal Hoffmann e Moraes: “Grife-se: a artimanha de intimar o investigado como testemunha e submetê-lo a compromisso de dizer a verdade não tem o condão de afastar seu direito ao silêncio quanto a perguntas cujas respostas possam incriminá-lo. Além disso, no Brasil, como sabemos, inexiste o crime de perjúrio, não constituindo crime a mentira ou o silêncio do suspeito”. HOFFMANN, Henrique, MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. É ilegal prisão de suspeito por falso testemunho feita pela CPI. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-09/opiniao-ilegal-prisao-falso-testemunho-feita-cpi , acesso em 12.07.2021. No mesmo sentido Aith: “Não se pode esquecer que, embora Roberto Dias estivesse na condição de testemunha, é investigado pela CPI, na medida em que teve seus sigilos telefônicos e telemáticos quebrados por determinação da referida comissão. Uma questão importante, subjacente a essa condição, deve ser destacada: a comissão deveria ter informado ao depoente a condição de investigado? Sem sombra de dúvida que
É incrível como a descrição feita acima por Bitencourt se subsume
perfeitamente ao caso concreto em estudo. Isso porque há que ser justo; essa conduta
imoral e ilícita de simular não saber que uma pessoa não é testemunha e sim investigada
em CPI, submetendo-a a compromisso e coagindo-a com a ameaça de prisão por falso
testemunho, não é originalidade de Aziz, Randolfe e outros componentes dessa
comissão; já foi utilizada por diversos outros atores políticos em casos similares, razão
pela qual o STF sempre concede “Habeas Corpus” em situações semelhantes. Isso, é
claro, não apaga a imoralidade e a desonestidade, inclusive intelectual, de todos os
envolvidos ao fingirem que sabem o que não sabem e que não sabem o que sabem
muito bem.
Diante desses fatos parece que se pode dizer que Aziz agiu com dolo direto de
Abuso de Autoridade. Como visto, a manobra ilícita usada pela CPI é por demais
conhecida e, inclusive nessa mesma comissão, já foi objeto de “Habeas Corpus” para
evitar sua utilização, fato este de que estão cientes todos os Senadores, mormente o
Presidente da comissão. Parece, aliás, que estavam esperando o primeiro incauto para
ser pego em sua armadilha ardilosa. O elemento subjetivo (dolo específico) exigido para
todos os tipos penais previstos na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19, artigo
1º.,, § 1º.) está perfeitamente configurado, não havendo dúvida de que foram
perpetradas as condutas ilícitas com a finalidade específica de prejudicar o investigado
Roberto Ferreira Dias. É impossível acreditar que Aziz e em seguida seu apoiador
Randolfe não soubessem o que estavam fazendo de irregular, isso fica muito evidente
em suas próprias falas. Aziz assume a prática de abuso e diz que será um problema da
defesa desvencilhar-se de sua atitude! Isso é confissão direta do dolo específico! Por seu
turno, Randolfe Rodrigues corrobora toda sua atuação, sendo que ambos deixam bem
claro que estão procedendo a uma prisão com o intuito direto de constranger o
investigado em pretenso justiçamento midiático e exemplar. Tudo isso está exposto em
matérias jornalísticas, nas atas da sessão e em vídeos por todo o país. Não é comum que
sim. A CPI não pode utilizar o estratagema de convocar um investigado na condição de testemunha com escopo de extrair dele informações que poderiam incriminá-lo, sob pena de determinar a sua prisão em flagrante por falso testemunho. Fazendo isso, afrontará direta e visceralmente o direito de defesa, do qual a ‘não autoincriminação’ é um princípio caro e não pode ser sobrepujado por artimanhas jurídico – políticas”. AITH, Marcelo. Equívocos e ilegalidades na prisão de Roberto Dias. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-13/marcelo-aith-equivocos-ilegalidades-prisao-roberto-dias , acesso em 14.07.2021.
um crime e até seu elemento subjetivo mais profundo sejam escancarados nas mídias
sem o menor pudor, mas isso aconteceu certamente no caso enfocado.
Aziz foi o responsável pelo decreto de uma prisão manifestamente
desconforme com as hipóteses legais, aderindo “a posteriori” a essa conduta Randolfe
Rodrigues e os demais integrantes do grupo coordenador da CPI, infringindo todos ao
disposto no artigo 9º., da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19). Ainda que tenha
Dias pago fiança e sido liberado, a prisão deve ser imediatamente “relaxada” pelo Juiz
que receber sua comunicação, sob pena de também ele incidir na figura de abuso
prevista no mesmo artigo 9º., agora em seu Parágrafo Único, I, da Lei 13.869/19, tendo
em mira a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de relaxar a prisão
manifestamente ilegal. Ainda incide também no artigo 9º., “caput” da Lei de Abuso de
Autoridade, o Policial Legislativo do Senado responsável pela lavratura do auto de
prisão em flagrante e arbitramento da respectiva fiança. Nem mesmo o cumprimento de
ordem superior não manifestamente ilegal tem o condão de liberar tal Policial
Legislativo de sua culpabilidade (inteligência negativa do artigo 22, CP), pois que os
Senadores não têm hierarquia sobre os atos da Polícia Legislativa, bem como cabe ao
Policial o exame jurídico – fático e formação de convicção acerca da subsistência da
prisão.
Mas, não foi somente um tipo penal de abuso de autoridade o cometido pelos
envolvidos no episódio. Mesmo antes da prisão quando Dias era compelido
(constrangido ou coagido), mediante compromisso ilegal e ameaça de prisão ilícita por
falso testemunho ou pior, por “Perjúrio”, durante todo o seu
“depoimento/interrogatório", era ele compelido com “redução de sua capacidade de
resistência” psicológica, a “produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”, nos
exatos termos do artigo 13, III da Lei 13.869/19. Frise-se que embora não estivesse
preso, pode-se dizer que notificado a comparecer e permanecer na CPI sob ameaça de
prisão por falso testemunho, estava claramente detido e submetido a intenso
constrangimento ilegal. Em minha obra sobre o tema específico do abuso de autoridade,
nos comentários sobre o artigo 13 da Lei 13.869/19, exponho meu entendimento no
sentido de que a detenção pode ser algo menos intenso, configurando-se em “quaisquer
situações em que um suspeito esteja sob o poder das autoridades para execução de
diligências apurativas”, ocasião em que induvidosamente existirá uma inevitável
“redução de sua capacidade de resistência”, tendo em vista sua condição hipossuficiente
nas circunstâncias. 26 Assim sendo, todos aqueles Senadores que em algum momento
acenaram para Dias com a prisão por falso testemunho durante seu
“depoimento/interrogatório” agiram nos moldes do disposto no artigo 13, III, da Lei
13.869/19. Novamente, é impossível, conforme já exposto, que não tivessem dolo direto
em prejudicar o investigado e não soubessem o que faziam (inteligência do artigo 1º., §
1º., da Lei de Abuso de Autoridade).
Finalmente, a todo momento em que Dias pretendeu calar-se a respeito de
algum tema e foi constrangido com ameaças de prisão por suposto falso testemunho,
houve infração ao artigo 15, Parágrafo Único, inciso I, da Lei 13.869/19, pois que
arbitrariamente se prosseguiu com o interrogatório de investigado que optou pelo uso de
seu direito ao silêncio, ao menos naquele ponto em particular. Quanto ao elemento
subjetivo específico valem as mesmas observações já expendidas.
Como bem assinala Aith, “não há como fugir da abusividade,
desproporcionalidade e ilegalidade da prisão” enfocada, devendo tudo isso ser
combatido “com máxima veemência pelo Poder Judiciário para que não haja
banalização dessas medidas restritivas da liberdade pela Presidência da CPI do Covid –
19” 27 ou mesmo por quaisquer outras CPIs ou durante o andamento de quaisquer feitos
investigatórios ou processuais por todo o país. 28
Impõe-se, portanto, o relaxamento urgente da prisão e o trancamento do
inquérito respectivo contra Dias, assim como a consequente devolução “in integrum” do
valor pago como fiança, pois que estará perdido seu objeto ou finalidade de garantia.29
26 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade. Leme: Mizuno, 2020, p. 103. 27 AITH, Marcelo, Op. Cit. 28 Em matéria veiculada pelo site “Consultor Jurídico” se verifica que a comunidade jurídica brasileira se opôs francamente à prisão enfocada, considerando-a ilegal e configuradora de Abuso de Autoridade. Ali são arroladas opiniões de diversos juristas de escol. Em contrário, manifestam-se no texto apenas alguns poucos como, por exemplo, o Presidente da OAB, que se sabe ser movido não por critérios técnicos, mas ideológicos. Cf. COMUNIDADE jurídica critica punitivismo da CPI após ordem de prisão de investigado. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-08/comunidade-juridica-critica-punitivismo-cpi-ordem-prisao , acesso em 14.07.2021. 29 Mirabete chama a atenção para o fato de que embora o artigo 337, CPP, que trata da restituição sem desconto da fiança, não mencione casos de arquivamento do IP, deve o proceder ser aplicado por analogia, já que não há razão para reter a fiança. Em suas palavras: “Evidentemente, ainda que não haja dispositivo expresso a respeito, o valor da fiança deve ser devolvido quando é arquivado o inquérito
No seguimento, a instauração de procedimento para a apuração dos crimes de abuso de
autoridade no STF quanto aos Senadores implicados e na Justiça Federal de primeira
instância com relação ao Policial Legislativo envolvido.
Como se vê, temos diante de nós uma situação bastante peculiar que somente o
gênio literário de Machado de Assis poderia vaticinar em um conto (“O Alienista”),
descrevendo o médico Simão Bacamarte e sua Casa Verde, manicômio em que internou
toda uma cidade de Itaguaí e depois acabou sendo seu local de internação, pois que o
verdadeiro louco era ele mesmo. 30 A inversão que se impõe ao ocorrido nessa prisão
ilegal é algo muito similar àquilo que se vê na literatura machadiana em destaque.
Também não deixa de haver alguma similaridade na literatura estrangeira com o
esplêndido conto de Tchekhov, intitulado “Enfermaria número seis”, no qual o Médico
Diretor do Hospital, Andrei Kfimich Raguin, acaba também internado na ala
psiquiátrica onde mantinha outrora vários alienados em péssimas condições. 31 São as
bruscas guinadas que a vida nos impõe de tempos em tempos, especialmente se
andamos por caminhos tortos ou equivocados.
3 – O PROCEDIMENTO DUVIDOSO
O leitor deve ter percebido que a sequência deste trabalho não segue os padrões
comuns aos debates jurídicos, inclusive em peças técnicas. Geralmente as questões
formais são preliminarmente abordadas para só depois adentrar ao mérito ou ao direito
material. Neste texto já se começou diretamente no tema do direito material, isso porque
era ele inexistente, fato atípico e não cabia, ao sentir deste autor, fazer o leitor passar
por linhas e linhas da temática procedimental também equivocada, mas sobre a qual
ainda existe alguma celeuma em alguns pontos, para só depois chegar ao básico que na
verdade inviabilizaria a prisão, ainda que com os procedimentos escorreitos.
A partir de agora serão discutidos os procedimentos adotados na prisão, os
erros praticados e os pontos duvidosos que ensejam debate.
policial: perdeu ela seu objeto”. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 428. 30 ASSIS, Machado de. Os Melhores Contos. 10ª. ed. São Paulo: Global, 1996, p. 93 – 133. 31 TCHEKHOV, Anton. Enfermaria n. 6 e Outros Contos. Ebook sem tradutor indicado. Rio de Janeiro: LeBooks, 2021, p. 12 – 92.
3.1 – O SIMULACRO DE “AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE”
Após a voz de prisão o Senador Omar Aziz lavrou e assinou um documento ao
qual intitulou de “Auto de Prisão em Flagrante” (sic). 32 Em seguida encaminhou o
preso à Polícia Legislativa do Senado para atos de Polícia Judiciária.
A peça elaborada por Aziz, não se sabe se por deliberação própria ou sob a
orientação de alguém, nunca foi e nunca será verdadeiramente um “Auto de Prisão em
Flagrante”. Trata-se apenas de um documento, na verdade inominado e sem previsão
legal, que consiste em um resumo da captura do preso e sua apresentação à Polícia
Legislativa. Em suma, trata-se do que se chamaria na doutrina de uma simples “notitia
criminis”, no caso, uma “notitia criminis” de cognição coercitiva, já que se trata de uma
prisão. 33 Também não se pretenda dizer que o citado documento poderia ser um
“Mandado de Prisão em Flagrante”, pois que isso não existe, aliás a Prisão em Flagrante
é exatamente a exceção dentre as prisões que não exige mandado ou ordem judicial
prévia. Mandado de Prisão somente emite um juiz ou tribunal e mesmo assim não em
caso de flagrante (inteligência do artigo 5º., LXI, CF). 34
Assim sendo, tal peça é inútil e mais, a conduta correta seria que o Senador que
deu voz de prisão apresentasse pessoalmente o preso, na qualidade de condutor, à
Autoridade Policial para as formalidades. Não existe prisão “por bilhete” ou por
“recado”. Um verdadeiro “Auto de Prisão em Flagrante” é lavrado pela Autoridade
Policial de acordo com o procedimento delineado no artigo 304, CPP, com oitiva do
condutor e testemunhas, bem como interrogatório do conduzido e, somente ao final, é
elaborada a peça a que se denomina de “Auto de Prisão em Flagrante”.
32 AUTO de prisão em flagrante. Disponível em https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/07/AUTO-DE-PRISAO-EM-FLAGRANTE.pdf , acesso em 12.07.2021. 33 REIS, Alexandre Cebrian Araújo, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Processual Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 57. 34 Se alguém se lembrar do episódio do suposto “Mandado de Prisão em Flagrante” expedido pelo Ministro do STF, Alexandre de Moraes com relação a um Deputado Federal, saiba que se tratou de uma teratologia jurídica, imediatamente submetida à critica contundente da grande maioria da doutrina. Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. STF e a nova “dogmática” (sic) do Crime Permanente. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/1170481904/stf-e-a-nova-dogmatica-sic-do-crime-permanente , acesso em 13.07.2021.
Além disso, um Senador da República não tem atribuição legal para lavrar
qualquer “Auto de Prisão em flagrante”. Ele pode prender, no sentido de capturar, como
pode qualquer do povo (inteligência do artigo 301, CPP). Mas, a formalização da prisão
somente pode ser feita pela Autoridade de Polícia Judiciária (Delegado de Polícia, no
caso Federal). Como se verá, é extremamente discutível se mesmo a Polícia Legislativa
tem atribuição para formalizar a prisão ou se apenas tem o poder comum de captura.
O fato de que a CPI tem poderes de investigação próprios das autoridades
judiciais não estende a seu Presidente ou a qualquer Senador a atribuição de formalizar
prisão em flagrante. Os Magistrados podem, nos termos do artigo 307, CPP, prender em
flagrante (no sentido de formalizar a prisão e não somente de capturar), excepcionando
a regra da exclusividade do Delegado de Polícia. Entretanto, mesmo esse dispositivo do
CPP tem sido afastado em sua aplicação pela grande maioria dos juízes, que presam
pelo sistema acusatório e são cônscios de seu dever de autocontenção.
Vale citar o ensinamento de Hoffmann e Moraes:
Ademais, a prisão em flagrante consiste em espécie de prisão cautelar cuja atribuição para decretação é da autoridade de Polícia Judiciária (artigo 304, §
1º., do CPP), tendo a legislação autorizado a qualquer do povo não a
formalização do auto de prisão em flagrante, mas a mera captura do suspeito
em estado flagrancial (artigo 301 do CPP).
Não se olvida que o artigo 307 do CPP admite excepcionalmente que o juiz
formalize o auto de prisão em flagrante (APF) quando o fato for praticado em
sua presença ou contra ele no exercício de suas funções. Todavia, trata-se de
dispositivo ultrapassado (e por isso mesmo de rara utilização prática), que
colide frontalmente com o sistema acusatório consagrado no nosso sistema
processual penal, que veda a iniciativa do juiz na fase de investigação (artigo
3º. – A do CPP). Ora, se a Constituição concebeu um sistema de persecução
criminal em que há uma instituição exclusivamente destinada à investigação
criminal, em vez de concentrar tal atribuição em outro órgão (como se dá em
modelos de outros países), também por esse motivo não faz sentido que o
magistrado confeccione uma das peças que inaugura o inquérito policial.
Nesse sentido, o fato de a CPI possuir poderes de investigação próprios das
autoridades judiciais (artigo 58, § 3º., da CF) não se qualifica como
permissivo para autorizar que o relator da CPI (ou qualquer outro
parlamentar) lavre um auto de prisão em flagrante, mesmo em relação a
delito praticado nas dependências da casa legislativa. 35
35 HOFFMANN, Henrique, MORAES, Rafael Francisco Marcondes de, Op. Cit.
Na verdade já foi decidido pelo STF há tempos que nem o Senador Presidente
de CPI nem o Chefe de Polícia Legislativa são “autoridades” nos termos referidos pelo
artigo 307, CPP, de modo que não lhes cabe a formalização de prisão em flagrante.
Senão vejamos:
É nulo o auto de prisão em flagrante lavrado por determinação de Presidente
de CPI e presidido pelo Diretor – Substituto da Coordenação de Segurança
Legislativa da Câmara dos Deputados, por não revestir este a qualidade de
“autoridade de que fala o artigo 307 do CPP” (STF, HC 73.035-3, Pleno, j.
13.11.96, in RBCCr 18/222-3). 36
Em suma, ainda que se abstraísse o fato de que a prisão de Dias foi
completamente ilegal por motivos materiais já expostos, o documento elaborado pelo
Senador Omar Aziz nunca passou de uma folha de papel também sob o prisma formal.
Isso sem falar do fato de que no suposto “Auto de Prisão em Flagrante” não são
cumpridas as formalidades mínimas que consistem na cientificação do preso acerca de
seus direitos constitucionais, tais como assistência da família, advogado, direito de
permanecer calado, direito à integridade física etc. Acaso o “auto” elaborado por Aziz
pudesse ser assim realmente chamado e não fosse, na verdade, uma peça inquinada pela
“inexistência jurídica”, seria então absolutamente nulo por ausência de formalidades
fundamentais. Entretanto, não chega sequer à qualidade da nulidade, já que, como já
dito, se alberga anteriormente na “inexistência”, tendo em vista tratar-se de ato de tal
forma desnaturado “extrínseca e intrinsecamente” que não chega sequer a ser
reconhecido no mundo jurídico para ser declarado como nulo. Ocorre, neste caso, uma
“intensa desconformidade entre o ato e seu modelo legal”. Na realidade, “a atipicidade
do ato processual é tão contundente e abrangente que ele é considerado um não – ato”.
37
36 Cf. DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida, Op. Cit., p. 996. 37 MOSSIN, Heráclito Antônio. Nulidades no Direito Processual Penal. 3ª. ed. Barueri: Manole, 2005, p. 50 – 51.
3.2 – A FORMALIZAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE PELA POLÍCIA
LEGISLATIVA
É fato que a Constituição em seus artigos 51, IV e 52, XIII assegura a
existência de Polícias Legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Entretanto, não arrola suas funções, muito menos lhes atribui atividades de Polícia
Judiciária ou de Investigação Criminal. Desse vácuo é de se concluir que se tratam
simplesmente de corpos de segurança administrativos e preventivo – ostensivos.
Também não há lei ordinária que regule a atuação das Polícias Legislativas na seara de
investigação ou de Polícia Judiciária e se houvesse seria inconstitucional, já que não há
qualquer abertura da Constituição para essa regulamentação por lei ordinária. Dessa
forma, não parece haver dúvida de que é absolutamente ilegal a elaboração de inquéritos
policiais, aí inclusos autos de prisão em flagrante, por Polícias Legislativas. Novamente
não é o caso sequer de falar em “nulidade” desses eventuais atos praticados por Polícias
Legislativas, mas, mais do que isso, em verdadeira “inexistência”. Na lição de
Grinover, Fernandes e Gomes Filho, a “desconformidade com o modelo legal” é por
demais intensa, de modo que em tal situação os atos processuais são “inexistentes”, pois
lhes falta,
“de forma absoluta, algum dos elementos exigidos pela lei; neles, o vício é de
tal gravidade que sequer seria possível considerá-los como atos processuais;
são, na verdade, não – atos, em relação aos quais não se cogita de
invalidação, pois a inexistência constitui um problema que antecede a
qualquer consideração sobre a validade”. 38
Inobstante não nos pareça poder haver argumentação plausível em contrário à
conclusão acima exposta, é preciso notar que o Senador Omar Aziz, fundamenta a
remessa do caso à Polícia Legislativa no artigo 226 do Regimento Administrativo do
Senado Federal em combinação com o artigo 52, XIII, CF.
Nesse passo é preciso reconhecer e enfrentar, com honestidade intelectual, o
fato de que existe entendimento de que a autorização constitucional da criação de
Polícias Legislativas e sua regulação pelas respectivas Casas, poderia legitimar a
atribuição de atividades investigativas e de Polícia Judiciária a tais órgãos.
38 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 20.
É exatamente com fulcro nessa posição que Aziz fundamenta seu ato
administrativo. E nesse ponto não se pode dizer, como em outros casos já examinados,
que tenha agido de maneira tresloucada. Fato é que a questão comporta discussão.
Com base nessa ideia de que havendo a previsão constitucional de Polícias
Legislativas e que poderiam ser regulamentadas pelas Casas respectivas, realmente, por
meio de Resoluções, tanto a Câmara dos Deputados, como o Senado atribuem funções
de investigação e Polícia Judiciária a seus corpos policiais. No caso do Senado, que é o
que nos interessa no momento, essas funções são expressas no artigo 226 “caput”, § 1º.,
IX (que trata da “Coordenação de Polícia de Investigação”) e § 3º., IX, “a” e no artigo
263 (este especificamente sobre a Prisão em Flagrante) do Regimento Administrativo
do Senado Federal (Resolução do Senado n. 13/2018).
Ainda antes da Resolução 13/18, já estabelecia esses poderes de investigação e
de Polícia Judiciária à Polícia Legislativa do Senado, a Resolução do Senado n. 59/02.
Desde então se discute sobre a validade dessas normativas administrativas e é
encontrável trabalho aprofundado da lavra de Éder Maurício Pezzi López, procurando
justificar as ditas atribuições na questão da separação dos poderes e num conceito amplo
de “polícia”. 39
Ocorre que essa regulamentação do Senado foi questionada no STF pela
Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ANDPF), que pleiteou a
declaração de sua inconstitucionalidade. 40
Esse pleito deveria ser acatado, pois conforme ensina Brandão:
39 LÓPEZ, Eder Maurício Pezzi. Polícia Legislativa do Senado Federal – Atribuições Investigativas e de Polícia Judiciária em face da Constituição de 1988. Revista de Informação Legislativa. n. 188, out./dez., 2010, p. 333 – 356. Também encontrável em formato PDF na internet: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/47/188/ril_v47_n188_p333.pdf , acesso em 13.07.2021. Em sentido similar: RAMOS, José Joaquim de Oliveira. Não há dúvidas da existência e legitimidade da Polícia Legislativa Federal. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-nov-14/jose-oliveira-ramos-policia-legislativa-federal-legitima , acesso em 13.07.2021. SANTOS, José Gilmar Araújo. Conhecendo a Polícia Legislativa Federal. Disponível em https://jus.com.br/artigos/9752/conhecendo-a-policia-legislativa-federal , acesso em 13.07.2021. 40 CARNEIRO, Luiz Orlando. PF vai ao STF contra poderes da Polícia do Senado. Disponível em https://www.jota.info/justica/pf-vai-ao-stf-contra-poderes-da-policia-senado-30012017 , acesso em 13.07.2021. O problema do estabelecimento de limites para as Polícias Legislativas já se arrasta há tempos, inclusive com indesejáveis conflitos de atribuição entre estas e a Polícia Federal: Cf. MILITÃO, Eduardo. Supremo vai colocar limites entre PF e polícias legislativas. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2015/07/27/interna_politica,672468/supremo-vai-colocar-limites-entre-pf-e-policias-legislativas.shtml , acesso em 13.07.2021.
De mais a mais, defendemos que tanto as funções típicas e atípicas de
Polícia Judiciária demandam lei processual (Artigo 22 inciso I da CF) e
finalidade estabelecida constitucionalmente, uma vez que o exercício de
tais atribuições, em última análise, decorre de uma faceta do exercício da
soberania estatal, com potencial para limitar o status libertatis do cidadão.
Neste ponto merece críticas a regulamentação para o exercício da função de
Polícia Judiciária com esteio apenas em resolução ou regulamentação
extralegal; defendemos que o exercício atípico da função de Polícia Judiciária, levado a cabo, em certas ocasiões, por outros órgãos, devem
encontrar limites e amparo em normatização legal, fazendo-se necessário,
também, que tal órgão tenha implicitamente dentro de suas atribuições
constitucionais, finalidade fiscalizatória e investigativa; de tal forma que
lhe sendo imputado poder/dever de investigação, o seu exercício deve ser
limitado em sua finalidade institucional, evitando que sejam criados
verdadeiros órgãos ad hoc de persecução ou de exceção. 41
O STF não se manifestou de forma definitiva sobre o tema, mas há algumas
decisões que afastam o poder de investigação e função de Polícia Judiciária das Polícias
Legislativas. Exemplo disso é o que consta da manifestação do Ministro Edson Fachin
no bojo do Inquérito 4112 STF, 2ª. Turma, julgamento de 22.08.2017, publicação em
10.11.2017:
“Ordens emanadas do Poder Judiciário são de cumprimento exclusivo da
polícia judiciária, em cujo rol não se inserem as polícias legislativas” (grifo nosso). 42
No mesmo diapasão se manifesta o Ministro Celso de Mello (STF,Pet. 8261/
DF, Rel. Ministro Celso de Mello, j. 11.10.2019, pub. 25.10.2019), afastando em prol
da Polícia Federal supostas funções de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas. E
mais, se refere o Ministro Celso de Mello a precedente do saudoso Ministro Teori
Zavascki (STF, AC 4.005 – AgR/DF, Plenário, Decisão Unânime) que sobre o tema
enfocado se manifestou nos seguintes termos:
“Desse contexto, verifica-se que a função da polícia legislativa é preventiva
ou repressiva (...). Não se estendem a ela, então, as atribuições de polícia judiciária,
que é típica da atividade jurisdicional” (grifo nosso).
O STJ também já enfrentou o tema em decisão de relatoria do Ministro Ribeiro
Dantas (RMS 53.796 – RR (2017/0077923-7), pub. 24.03.2020), na qual afastou a
41 BRANDÃO, Arilson. Conceito de Polícia Judiciária e a vedação às “investigações” ad hoc ou de exceção. Disponível em https://arilsonpvh.jusbrasil.com.br/artigos/1244598937/conceito-de-policia-judiciaria-e-a-vedacao-as-investigacoes-ad-hoc-ou-de-excecao , acesso em 14.07.2021. 42 A respeito da controversa Súmula 397 STF se falará mais adiante.
necessidade de que diligência de busca e apreensão fosse realizada pela Polícia
Legislativa, aduzindo que esta não tem atribuição investigatória ou de Polícia Judiciária.
Em suas palavras:
“Da mesma forma, revela-se insubsistente a alegação de que o cumprimento da
medida de busca e apreensão deveria ter sido efetivado pela política legislativa. Isso
porque, como se sabe, a investigação criminal é tarefa atribuída à polícia judiciária
(federal e civil), nos termos do artigo 144, §§ 1º. e 4º. da Constituição Federal”
(grifo nosso).
Por outro lado há menções também em decisões do STF, dando guarida ao
poder investigatório das Polícias Legislativas. Exemplo disso encontra-se na
Manifestação do Ministro Relator Ricardo Lewandowski, na Reclamação 43007/DF,
julgamento em 04.03.2021, publicação em 05.03.2021. O Ministro Lewandowski deixa
claro seu entendimento sobre a possibilidade de “diversos órgãos realizarem
investigações criminais”. E mais adiante, após expor vários exemplos desses órgãos
(v.g. Receita Federal, CPIs, Banco Central etc.), nomeia explicitamente “as
investigações feitas pela Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, no caso de crimes cometidos em suas dependências”.
Uma grande oportunidade de dar uma solução definitiva a essa questão foi
esvaziada por aquilo que pareceu uma manobra jurídico - administrativa insidiosa. A
própria Mesa do Senado Federal ingressou com uma “Ação Declaratória de
Constitucionalidade” da então Resolução do Senado n. 59/02 que conferia poderes
investigatórios e de Polícia Judiciária à Polícia Legislativa do Senado Federal (ADC
24/DF, Rel. Ministra Cármen Lúcia, j. em 04.10.2016, pub. 05.10.2016), isso tendo em
vista decisões dos TRFs contrárias à constitucionalidade do ato administrativo e,
principalmente, da legitimidade das Polícias Legislativas na atuação de investigação de
Polícia Judiciária. Porém, enquanto ainda tramitava a ação, o Senado, no bojo de uma
Resolução que tratava de matéria completamente apartada do tema (Criação do Grupo
Parlamentar Brasil – Marrocos – Resolução do Senado 14/2015), em seu penúltimo
artigo (artigo 7º., da Resolução do Senado 14/2015), simplesmente revogou expressa e
totalmente a Resolução do Senado 59/02. Com isso requereu a extinção da ação por
perda superveniente de seu objeto, o que foi acatado pela Ministra Cármen Lúcia com
base em precedentes da corte. Ou seja, quando a questão poderia ser discutida, por meio
de uma manobra jurídico – administrativa, o Senado contornou o debate para depois
ressuscitar os poderes investigatórios e de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas,
tal como se vê atualmente na Resolução do Senado n. 13/2018 e ainda nas nunca
discutidas judicialmente Resolução 17/1989 e Resolução 18/2003, ambas da Câmara
dos Deputados. Isso nos faz lembrar Lampedusa ao referir-se em seu romance a “uma
daquelas batalhas que se travam para que tudo fique na mesma”. 43
Certamente para quem pretende ter uma polícia investigativa própria e diante
dos questionamentos acerca da constitucionalidade dessa pretensão, é muito mais
cômodo contornar a discussão e deixar que a polêmica se eternize, contando ainda com
uma vetusta Súmula 397 do STF, redigida nos idos de 1964, nos seguintes termos:
“O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso
de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão
em flagrante do acusado e a realização do inquérito”.
Ocorre que é visível o fato de que tal Súmula foi elaborada num contexto
histórico de exceção, em que as Casas Legislativas pretendiam assegurar-se contra
investidas do Executivo por sua força policial, sendo dada guarida a essa compreensível
pretensão naquela época e circunstâncias pelo STF. Hoje e desde a redemocratização,
não subsistem motivos reais para a manutenção desse entendimento, o que vale dizer
que essa Súmula 397 STF se encontra superada historicamente. Também se acha
superada juridicamente com o advento da Constituição Federal de 1988 que regula as
atividades de investigação e Polícia Judiciária, não atribuindo essas funções às Polícias
Legislativas. Nesse passo, o mais correto seria o cancelamento expresso da Súmula em
estudo, mas enquanto isso não ocorre, é forçoso reconhecer sua invalidade. E mais,
ainda que fosse possível a tais polícias o exercício de investigações e atividades de
Polícia Judiciária, isso teria de decorrer de lei ordinária e não de meras resoluções das
Casas Legislativas. Mas, nem mesmo isso seria viável, tendo em vista a atual ordem
constitucional, já que a simples “autorização do Legislativo para dispor sobre sua
polícia não autoriza afastar ou suprimir a atribuição investigativa da polícia federal
expressa na Carta Magna”. 44 Por isso, inobstante a polêmica em torno do tema, a qual
43 LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi de. O Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Fronteira, 2002, p. 42. 44 HOFFMANN, Henrique, MORAES, Rafael Francisco Marcondes de, Op. Cit.
não poderia ser ocultada por questão de honestidade intelectual, é inviável reconhecer
que a Polícia Legislativa do Senado poderia ter formalizado a prisão em flagrante de
Dias no caso em estudo. No máximo tal entidade policial poderia capturar o suspeito e
conduzi-lo perante a Polícia Federal para eventual lavratura de Auto de Prisão em
Flagrante. Isso sempre deixando de lado a absoluta atipicidade da conduta e apenas “ad
argumentandum tantum”.
Neste sentido merece transcrição o escólio de Hoffmann e Moraes:
Tampouco deve o APF ser lavrado pela Polícia Legislativa, seja a Policia do
Senado ou a Polícia da Câmara dos Deputados. Tais polícias possuem
previsão constitucional (artigo 52, XIII, e artigo 51, IV, da CF,
respectivamente) peculiar. Isso porque, além de não terem sido inseridas nos
órgãos de segurança pública (artigo 144 da CF), não tiveram suas atribuições
expressamente indicadas pelo texto constitucional, que se limitou a dizer que
compete ao Senado e Câmara dispor sobre suas polícias. Por força do
princípio da legalidade, o agente público só está autorizado a desempenhar a
atribuição expressamente autorizada pela legislação. Por isso, a interpretação
sistemática da Constituição leva à conclusão que, tendo a apuração de
infrações penais sido destinada às polícias judiciárias (artigo 144, §§ 1º. e 4º.,
da CF), as Polícias Legislativas não podem realizar investigação criminal,
sendo polícias administrativas com dever apenas de evitar infrações.
Não se desconhece que a Súmula 397 do STF afirma que o poder de polícia
da Câmara e do Senado, em caso de crime cometido nas suas dependências,
compreende a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito. Contudo, cuida-se de enunciado editado em 1964 sob outra ordem
constitucional, incompatível com a atual Constituição de 1988, que
expressamente reservou a investigação criminal para as polícias judiciárias.
Sendo, no âmbito federal, conforme expressa dicção do texto constitucional,
a Polícia Federal aquela que deve “exercer, com exclusividade, as funções de
polícia judiciária da União” (artigo 144, § 1º., da CF). 45
Pesquisando diretamente no texto original da Constituição de 1967 se verifica
que a ordem constitucional era totalmente diversa. A menção à Polícia Federal somente
se dá no artigo 8º., estabelecendo ser competência da União sua organização e
manutenção com estabelecimento, em vários incisos, de suas funções. Não há qualquer
referência à sua atuação com exclusividade como Polícia Judiciária da União, e nem
mesmo se mencionam as Polícia Civis, conforme hoje ocorre. As Polícias Legislativas
também eram previstas da mesma forma precária no artigo 32, mas considerando
precariedade por precariedade, até seria possível a manutenção da hipótese da Súmula
397 STF naqueles tempos, o que hoje é impensável e absolutamente incoerente.
45 Op. Cit.
Mas, é preciso ter em mente que a Súmula 397 STF não surge nem mesmo sob
a égide da Constituição de 1967. Sendo datada do ano de 1964, vigorava a Constituição
de 1946. Em consulta ao texto original dessa Constituição, a situação é ainda mais
gritante. Em seu artigo 5º., inciso VII, estabelece a Constituição de 1946 ser
competência da União a organização e manutenção da “polícia marítima, aérea e de
fronteiras”. Não há sequer menção à Polícia Federal e muito menos às Polícias Civis.
Por outro lado já estavam previstas as Polícias Legislativas de forma semelhante à atual
no artigo 40. Ora, nesse quadro é óbvio que poderia se construir a Súmula 397 STF,
mormente devido ao momento histórico por que se passava. Mas pretender comparar o
sistema constitucional de 1946 ou de 1967 com a atual conjuntura jurídico –
constitucional é um rematado absurdo.
Importante destacar os ensinamentos de Lessa e Moraes em obra especializada,
quando comentam acerca das atribuições da Polícia Federal (Lei 10.446/02) e dos
limites das Polícias Legislativas:
No que tange às chamadas polícias legislativas, é certo que a Constituição
não as previu expressamente com tal nomenclatura, mas apenas as citou, de
maneira genérica, no contexto de competências das duas Casas Legislativas,
nos termos dos art. 51, IV e 52, XIII da Carta Magna. Não são propriamente
órgãos de segurança pública (isto é, “polícias”), pois estão fora do rol
especificado no art. 144 e do Capítulo III do Título V da Lei Maior (“Da
Segurança Pública”), tendo as suas atribuições apenas descritas em
resoluções administrativas internas, cuja constitucionalidade, ao menos quanto à titularidade de funções de polícia judiciária (diante da reserva legal
legalmente emprestada à Polícia Federal), é bastante questionável. Desse
modo, em razão das Casas Legislativas encontrarem-se vinculadas à União,
pela exegese constitucional, reputa-se que as “polícias legislativas’
funcionam apenas como um órgão de segurança orgânica (e dos seus
membros), não possuindo quaisquer atribuições de polícia judiciária, cujas
providências, privativamente, devem ser levadas a efeito pela polícia
judiciária da União (Polícia Federal), para onde devem ser encaminhadas
pessoas capturadas em flagrante ou as notícias de infração penal perpetrada
nas dependências do Congresso Nacional. 46
No cenário da doutrina do Direito Constitucional, valiosa é a lição de
Bernardes e Ferreira, apontando para o fato de que “as polícias legislativas não contam
46 LESSA, Marcelo de Lima, MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Atribuições da Polícia Federal – Lei 10.446/2002. In: JORGE, Higor Vinícius Nogueira, LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, GARCEZ, William (orgs.). Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1077 – 1078. Os autores também entendem, em consonância com nossa posição, que a Súmula 397 STF, publicada em 03.04.1964, não se coaduna com os “novos princípios trazidos pela Constituição Federal de 1988”, de modo que não é mais “compatível com o atual cenário legal brasileiro”. Op. Cit., p. 1077.
com nenhuma autorização constitucional para realizar funções de polícia judiciária”. 47
Ademais, os autores em questão apresentam uma fundamentação impecável para
sustentar sua tese, rechaçando o conteúdo da problemática Súmula 397 STF. Não
poderia deixar de transcrever esse conteúdo no corpo deste trabalho:
Em razão da Súmula 397 do STF, editada ao tempo da Constituição de 1946,
ainda hoje se discute a possibilidade do exercício das funções de polícia
judiciária por parte dos órgãos de polícia legislativa presentes em ambas as
Casas do Congresso Nacional (artigos 51, IV, e 52, XIII). Não se desconhece
que o Legislativo possui poder próprio de polícia administrativa e que
tampouco, no âmbito de suas dependências físicas, deve ficar à mercê do
Executivo, em matéria de policiamento ostensivo. Contudo, ao contrário das
Constituições passadas, o constituinte foi peremptório ao atribuir à Polícia
Federal, com “exclusividade”, o papel de polícia judiciária da União (inciso
IV do § 1º. do art. 144 da Constituição).
De modo que as polícias legislativas no Congresso Nacional podem exercer
atividades policiais tanto administrativas quanto ostensivas, mas não estão
constitucionalmente autorizadas a cumprir funções de polícia judiciária. Daí a
aparente inconstitucionalidade da Resolução 14/2015 que substituiu a
Resolução 59/2002, ambas do Presidente do Senado Federal, bem como da Resolução 18/2003, do Presidente da Câmara dos Deputados, na parte em
que reconhecem aos órgãos da polícia legislativa funções de polícia
judiciária, com competência para apuração de infrações penais cometidas nas
dependências de cada Casa Legislativa.
Bem por isso, a 2ª. Turma do STF já decidiu que ordens “emanadas do Poder
Judiciário são de cumprimento exclusivo da polícia judiciária, em cujo rol
não se inserem as polícias legislativas” (Inq. 4.112/DF).
Contudo, no âmbito do TRF/1ª. Região, a questão segue controversa. No MS2008.01.00.040753-0/DF, a 2ª. Seção reconheceu às polícias legislativas
“a faculdade para apuração das infrações penais” (j. em 18.03.2009). Já no
MS 0066814-38.2014.4.01.0000/DF (j. em 24.04.2015, a mesma 2ª. Seção da
Corte negou poder investigatório às polícias legislativas, por entender que “a
investigação criminal só pode ocorrer pelos seguintes órgãos: Polícia
Judiciária, Ministério Público, Comissão Parlamentar de Inquérito, Judiciário
e Polícia Militar (esta, nos crimes militares)”. Posteriormente, no MS
005585-43.2015.4.01.0000/DF (j. em 3.9.2015), a Corte Especial do TRF 1
reputou que os “atos de investigação para apuração de supostos delitos
cometidos no âmbito do Senado Federal não constituem exclusividade da
Polícia daquela casa legislativa”. Ou seja, embora reconhecida a atribuição da Polícia Federal para conduzir as investigações penais, o acórdão não excluiu
o poder investigatório atribuído às polícias legislativas. Pelo contrário, o TRF
1 deu interpretação conforme a (hoje revogada) Resolução 59/2002, do
Senado Federal, “no sentido de que a pretensa exclusividade da atuação da
Polícia Legislativa daquela Casa para a apuração de supostas infrações penais
nas suas dependências se restrinja às infrações que tenham relação direta com
a atividade típica do Senado, como, a título exemplificativo, na hipótese de
cometimento de algum delito que obstaculize o desenvolvimento de alguma
das suas sessões, em detrimento da função legislativa”. 48
47 BERNARDES, Juliano Taveira, FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional. Tomo II. 10ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1000. 48 Op. Cit., p. 1001.
Malgrado a demonstração de certa hesitação do TRF 1 quanto à atribuição
possível de atividades investigatórias e de Polícia Judiciária às Polícias Legislativas de
forma excepcional no último julgado citado por Bernardes e Ferreira, é bom destacar,
conforme faz Leal, que no mesmo “decisum” consta item da ementa em que é feita a
afirmação de que a atribuição de Polícia Judiciária Federal é exclusiva da Polícia
Federal, de modo que eventual exceção somente seria válida se proviesse da própria
Constituição, o que obviamente não ocorre quando se trata de mera Resolução do
Senado ou da Câmara dos Deputados. 49 Para que não reste dúvida, segue a transcrição
do trecho citado do julgado em destaque:
O inc. IV do § 1º do mencionado artigo dispõe expressamente que compete à
Polícia Federal, com exclusividade, o exercício das funções de polícia judiciária da União, pelo que inafastável a conclusão no sentido de que
eventual exceção a essa norma apenas pode ser admitida se prevista também
na própria Constituição, situação inocorrente na hipótese em tela.
Portanto, pode-se afirmar, com boa segurança, que a pretensa “interpretação
conforme a Constituição” da Resolução do Senado que atribui poderes investigatórios e
de Polícia Judiciária à Polícia Legislativa de forma excepcional, constante do voto do
Desembargador Federal Relator, Marcos Augusto de Sousa, acaba em contradição com
a elaboração final da própria ementa de sua lavra, pois que, de acordo com ela, a única
interpretação conforme a Constituição seria a de que não havendo previsão
constitucional, não seria possível a nenhuma outra Polícia o exercício de funções de
Polícia Judiciária da União. Efetivamente, não há previsão constitucional alguma, nem
mesmo sequer previsão em lei ordinária, mas apenas o dispositivo de uma mera
Resolução.
Embora seja em um trecho por demais tímido e curto, o constitucionalista José
Afonso da Silva atribui expressamente às Polícias Legislativas a condição de um “corpo
de guarda” com destinação limitada ao “policiamento interno”. 50
49 LEAL, Davidson Daniel. O Princípio da Separação dos Poderes e a Súmula 397 STF. Disponível em https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54989/o-princpio-da-separao-dos-poderes-e-a-smula-397-do-stf#:~:text=Nessa%20toada%2C%20consoante%20os%20defensores,Pol%C3%ADcias%20Judici%C3%A1rias)%20sobre%20o%20Legislativo , acesso em 14.07.2021. 50 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 518.
Percebe-se que inobstante sejam robustos os argumentos para o afastamento
das funções investigativas e de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas, bem como
para a invalidade atual da vetusta Súmula 397, STF, o tema comporta ainda muita
polêmica e já merecia um olhar definitivo por parte do Supremo Tribunal Federal,
inclusive com a revogação expressa da Súmula 397 e expedição de uma nova Súmula
deixando clara a limitação constitucional das Polícias Legislativas.
Como bem demonstra Leal a subsistência dessa Súmula claramente superada
gera intenso debate sobre o tema, de forma que na doutrina chega a predominar a tese
dos poderes investigatórios e de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas. 51
Não obstante, em pesquisa realizada em várias obras que versam sobre
Processo Penal e Direito Constitucional, percebe-se que há algumas manifestações
muito superficiais e acríticas, apontando a Súmula 397 STF como um exemplo de caso
em que a investigação criminal pode ser feita por autoridades diversas das previstas no
artigo 4º., “caput”, CPP, conforme o disposto no Parágrafo Único desse mesmo
dispositivo. Até mesmo nas anotações de Códigos de Processo Penal há a indicação,
logo após o artigo 4º., Parágrafo Único, CPP, da Súmula 397 STF. Doutra banda, há um
sem número de obras que simplesmente omitem totalmente esse tema. Aliás, na
verdade a omissão é que é prevalente. Tudo isso indica que falta na doutrina uma maior
dedicação ao estudo da questão, a qual é apresentada de forma simplista ou até mesmo
desprezada, quando, claramente, não se trata de tema desimportante e sim de algo que
comporta análise aprofundada constitucional, ordinária e até mesmo histórica. É preciso
que o tema seja realmente estudado com afinco e que se indique um norte seguro, sendo
incompreensível especialmente a ausência de comentários acerca dele em várias obras,
bem como a inação do Supremo Tribunal Federal no que tange a colocar um ponto final
nessa discussão. Afinal ninguém pode desejar a desdita reservada aos omissos ou
indiferentes, conforme poeticamente nos descreve o Inferno de Dante:
Essa sorte miseranda têm as almas tristíssimas daqueles que vivem sem
infâmia, mas sem méritos. Estão misturados àquela hoste vil dos anjos que
não se rebelaram e nem foram fiéis a Deus, mas que pensaram apenas em si
51 LEAL, Davidson Daniel, Op. Cit.
mesmos. Foram expulsos do céu onde não cabem, e as profundezas do
inferno os não recebem, já que alguma glória lhes trariam. 52
Não há como deixar de concluir com Leal nos seguintes termos:
Percebida a celeuma jurídica em relação à superação ou não da súmula 397
do Supremo Tribunal Federal, e isto ocorre, sobretudo, em face do momento
histórico em que ela foi elaborada e do tempo que já transcorreu de sua
elaboração, faz-se oportuno que a Corte Suprema se manifeste sobre o tema.
Nesta linha, é importante que o STF, no intuito de por fim ao tratado debate
jurídico, manifeste-se, de forma vinculada, acerca da validade ou não do
apontado enunciado sumular, através, por exemplo, de enunciado de súmula
vinculante (art. 103-A da CFRB/88). 53
Releva mencionar o entendimento de Moreira, trazendo à baila o escólio de
“alentado estudo” de Paulo Queiroz, segundo o qual nos casos de flagrante em área
legislativa, caberia, no máximo, à Polícia Legislativa efetuar a captura, como pode fazer
qualquer do povo e apresentar o detido à Polícia Federal para que esta e somente esta
lavre o Auto de Prisão em Flagrante. Para o autor a Súmula 397 STF sofre de
obsolescência histórico – temporal. Afirma Moreira com todas as letras que “não cabe à
Polícia Legislativa, (...), a realização de investigação de natureza criminal”. 54
Não é preciso, porém, diante dos argumentos expostos e de várias decisões já
proferidas pelos Tribunais, inclusive o STF, aguardar essa medida a ser tomada pelo
Supremo Tribunal Federal para perceber que a razão assiste àqueles que entendem que
as Polícias Legislativas não têm poderes de Polícia Judiciária ou de Investigação,
tratando-se de mero corpo de segurança ostensivo – preventivo. Dessa forma, forçoso
reconhecer que não cabia a lavratura de Auto de Prisão em Flagrante contra Roberto
Ferreira Dias por integrantes de tal órgão de polícia, sendo o ato jurídico inexistente,
conforme já demonstrado.
52 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Trad. Cordélia Dias D'Aguiar. Rio de Janeiro: Ediouro, 1989, p. 12. 53 Op. Cit. 54 MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Súmula 397 do STF e a Polícia Legislativa. Disponível em https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/229740144/a-sumula-397-do-stf-e-a-policia-legislativa , acesso em 14.07.2021.
3.3 – A FRAGILIDADE DA PRISÃO POR FALSO TESTEMUNHO
Assinale-se introdutoriamente que neste tópico, mais uma vez os comentários
são feitos com a abstração do fato de que Roberto Ferreira Dias era, na verdade,
investigado e não testemunha. Novamente a questão é explorada em seus aspectos
formais, já que materialmente a conduta do implicado sempre foi atípica.
Embora seja fato conhecido que a CPI onde se deu a prisão em estudo seja
marcada por nítido viés político de prejulgamento descarado ao ponto de se ver e ouvir
Senadores da República se retirando do recinto sob a alegação de que não lhes interessa
ouvir versões de certas testemunhas e convidados; manifestarem expressamente que não
lhes interessa esclarecimentos acerca de muitos pontos levados à baila por depoentes,
dentre outras demonstrações de parcialidade visível; há que abordar o tema da prisão em
flagrante por falso testemunho, a qual é por muitos indicada como inoportuna, tendo
exatamente em vista que pode transparecer como uma espécie de prejulgamento,
considerando que a apuração ou processo ainda não terminou. Ou seja, desqualificar
uma versão qualquer ao ponto de prender alguém por falso testemunho em meio ao
andamento de um feito, significa, subliminarmente, assumir que a versão contrária seria
válida, isso num momento ainda apuratório ou instrutório e não decisório. Significa, em
todo caso, ao fim e ao cabo, empregar atitude exauriente de certo tema em uma fase que
ainda é provisória ou precária. Nessas circunstâncias seria ao que parece virtualmente
impossível obter aquilo com que o Desembargador Rafael Magalhães definiu o
flagrante, ou seja, “a certeza visual do crime”. 55
No caso da CPI do Covid – 19 a prisão em flagrante por suposto falso
testemunho foi apenas mais uma mancha em quem já chafurdava na lama da
parcialidade, mas nem por isso, sob o prisma jurídico em que se move este trabalho, se
poderia deixar de abordar o tema.
Na realidade, consumando-se o falso no momento em que se encerra o
depoimento, tecnicamente falando, nada obsta a Prisão em Flagrante. Entretanto, como
leciona Greco:
55 Apud, CASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 16.
Quando a testemunha, por algum motivo, na presença do juiz, se recusa a
prestar suas declarações, não vemos óbice à prisão em flagrante, pois ela tem
a obrigação de responder sobre aquilo que lhe perguntarem.
No entanto, se o julgador, durante a inquirição de uma testemunha, vier a se
convencer de que suas declarações são falsas ou de que nega a verdade, é
sinal de que, antecipando o seu julgamento, entendeu que as demais provas,
que até aquele momento foram trazidas para os autos eram verdadeiras.
Trata-se, portanto, de uma valoração perigosa, principalmente se ainda
existirem outras provas a produzir.
Por isso entendemos que a prisão em flagrante de alguém pela prática do
delito de falso testemunho poderá, em algumas situações, conduzir até
mesmo à suspeição do julgador, pelo fato de que, com ela, já terá
manifestado a sua valoração, entendendo como verdadeira a prova que serviu
de parâmetro a fim de concluir pela falsidade testemunhal. 56
Acaso Roberto Ferreira Dias não fosse investigado (que tem direito ao
silêncio), mas realmente uma testemunha, ao pretender silenciar certamente cometeria o
falso testemunho omissivo e a prisão nesse caso não é tão problemática, isso porque não
há alegação alguma a qual se acoime de mentirosa, dando prevalência a outras possíveis
versões, de modo a inquinar de parcialidade a atuação do inquiridor. Mas, no caso
concreto, ainda que sendo testemunha (o que materialmente não era), o que se
processou foi a pecha de mentirosas para as declarações que prestou, em contraste com
a validade absoluta conferida a outras informações, inclusive áudios que acabavam de
chegar à sessão, não sendo sequer periciados quanto à sua integridade e autenticidade,
afora o fato de que não se tratava de gravação em que o próprio imputado falasse, mas
afirmações de terceiros. Dessa maneira, a situação bem delineada por Greco linhas
acima fica plenamente caracterizada, de tal forma que a prisão em flagrante se torna
absolutamente desaconselhável. É claro que a CPI não equivale a um Juízo, mas há que
lembrar que seus poderes investigatórios são os mesmos dos juízes (artigo 58, § 3º.,
CF). Além disso, qualquer atividade de investigação deve contar com a necessária
imparcialidade e abertura, sendo altamente prejudicial o que Cordero chamou de
“primado das hipóteses sobre os fatos”, ou seja, a eleição de uma hipótese prévia e a
saída obsessiva à cata de argumentos ou “provas” que a sustentem, com o desprezo de
tudo o mais que se apresente. 57 Esse tipo de postura não somente é parcial,
prejulgadora, mas também não é nada inteligente, ao menos se a finalidade é a de buscar
56 GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 1238. 57 CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986, p. 51.
a verdade. Essa espécie de investigador, se não for corrompido, é extremamente
incompetente (no sentido lato).
Outro aspecto que desaconselha a Prisão em Flagrante por falso testemunho é o
fato de que existe a admissão de retratação com a consequência jurídica da extinção de
punibilidade do agente. Como ensina Andreucci:
“Prisão em flagrante pode ocorrer tão logo se consume o delito. Entretanto,
considerando a possibilidade de retratação prevista no § 2º., é prudente que se aguarde a
sentença no processo em que ocorreu o ilícito”. 58
Seria no mínimo incoerente privar a liberdade de alguém, ainda que
momentaneamente, quando se sabe que paira legalmente a possibilidade de que o
suposto ilícito pelo qual se prende venha a se desvanecer por força de disposição legal.
É sabido que essa possibilidade de retratação até antes da sentença que julgue o
caso enfocado é prevista no artigo 342, § 2º., CP e não no dispositivo especial aplicável
aos casos de falso testemunho em CPIs (artigo 4º., inciso II, da Lei 1.579/52). Contudo,
já foi exposto neste trabalho que o crime especial por último mencionado é um caso de
“crime remetido”. Não prevê o preceito secundário da norma, mas remete o intérprete e
aplicador ao artigo 342, CP. Dessa forma, há que concluir que toda a normatização
referente à pena aplicável é aquela constante do dispositivo comum do Código Penal,
inclusive a causa extintiva prevista no § 2º., do artigo 342, CP. Por essa razão, em nada
se altera o raciocínio que sustenta o presente argumento sobre a inconveniência, em
geral, de uma Prisão em Flagrante por Falso Testemunho, ainda que seja durante uma
CPI.
Neste sentido também se manifesta Silva, com relação ao tratamento a ser dado
ao artigo 4º., II, da Lei 1.579/52:
Ao fazer referência ao Código Penal no que tange à pena e por ser benéfico
ao réu, aplicam-se ao dispositivo normas que de algum modo o favoreçam,
como a possibilidade de retratação até a prolação da sentença, conforme
disposto no § 2º. do artigo 342 do estatuto repressivo. Reza o dispositivo: “O
fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o
ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade”.
58 ANDREUCCI, Ricardo Antonio, Op. Cit., p. 789.
E conclui com acerto o autor:
Com efeito, por tudo que foi exposto, sendo possível a retratação até a
prolação da sentença, não se faz possível a prisão em flagrante delito. Muito
embora o crime se configure e consume quando do fim do depoimento,
havendo a possibilidade de retratação a qualquer hora antes da sentença, não
é razoável que a pessoa seja presa em flagrante, muito embora a ação penal
possa ser promovida, mas o julgamento ficará na dependência da prolação da
sentença no processo em que o falso testemunho foi cometido, posto que, até
lá, pode haver retratação, que importará na extinção da punibilidade da
testemunha. 59
Observe-se que nem mesmo o futuro eventual processo criminal por falso
testemunho pode ter seu deslinde antes que seja prolatada a sentença no processo
respectivo onde supostamente o falso se operou. Isso porque, a uma, a maior segurança
quanto à falsidade somente estará presente quando do término daquele primeiro
processo; a duas, porque existe a possibilidade de retratação até antes da sentença, o que
geraria a extinção da punibilidade e prejudicaria a justa causa para o processo que versa
sobre o suposto falso testemunho. Como demonstra Greco, essa é a posição firmada,
inclusive nos Tribunais Superiores:
Pode ocorrer a hipótese de alguém ser denunciado pelo delito de falso
testemunho, enquanto tramita a ação penal na qual o delito foi, em tese,
praticado. Nesse caso, os Tribunais Superiores já firmaram entendimento no
seguinte sentido: É possível a propositura da ação penal para se apurar o
crime de falso testemunho antes de ocorrer a sentença no processo em que o
crime tenha ocorrido, desde que fique sobrestado seu julgamento até a outra
sentença ou decisão (STJ, Resp. 596500/DF, Resp. 2003/0171653-8, Rel.
Min. José Arnaldo Fonseca, 5ª. T., j. 21.10.2004, DJ 22.11.2004, p. 377)
(grifos no original). 60
Vale indicar um ponto de discordância com o autor Cesar Dario Mariano da
Silva. Em seu trabalho defende que a possibilidade de retratação nos casos de falso
testemunho em CPI se estenderia somente até o relatório final da Comissão, em
analogia ao disposto no artigo 342, § 2º., CP, que se refere à sentença no Processo
Judicial. 61
59 SILVA, César Dario Mariano da. Prisão em flagrante delito por falso testemunho na CPI não faz sentido. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-12/opiniao-prisao-flagrante-delito-falso-testemunho-cpi , acesso em 14.07.2021. 60 GRECO, Rogério, Op. Cit., p. 1238. 61 SILVA, César Dario Mariano da, Op. Cit.
Entende-se que razão assiste a Silva apenas nos casos em que o teor do
depoimento se refira somente a questões que não resultarão em possível processo
criminal, administrativo ou judicial em geral ulterior ou em que, mesmo podendo, não
se convolem efetivamente em futuro processo por algum motivo. Em havendo algum
processo, mesmo tendo sido o falso perpetrado em investigação preliminar (CPI,
Inquérito Policial etc.), poderá o suposto autor do crime se retratar até a sentença e não
apenas até o relatório do feito preliminar. No caso de Dias isso é irrelevante, eis que
nem mesmo testemunha era e terá sempre, inclusive em juízo criminal eventual, o
direito ao silêncio e não – autoincriminação. Mas, a observação é pertinente seja porque
de interesse dogmático, seja a título de argumentação, acaso Dias fosse realmente uma
testemunha, o que demonstra que nem mesmo assim sua prisão em flagrante teria sido
aconselhável.
Ainda que tendo em vista o fato já repisado de que no caso de Dias não houve
tipicidade criminal, é de se destacar que as alegações de Aziz no sentido de que teria
ofertado várias “chances” para que o suposto “depoente” (investigado na verdade) se
retratasse, 62 não têm, por obviedade, o condão de obstar o direito do envolvido de
retratar-se até a eventual sentença criminal ou, no mínimo, acaso não haja processo
posterior, até o relatório da CPI, isso acaso fosse realmente uma testemunha suspeita de
mendacidade e não um investigado. Desse modo, sua prisão, ainda que fosse
testemunha, seria da mesma forma inoportuna, não sendo qualquer favor de quem quer
que seja, mas direito posto, a possibilidade de retratação e extinção de punibilidade.
3.4 – NULIDADE REGIMENTAL DO ATO DE PRISÃO EM FLAGRANTE?
Finalmente é preciso analisar uma questão que foi posta em discussão acerca
da nulidade dos atos da CPI, tendo em vista que já haviam se iniciado os trabalhos da
“ordem do dia do plenário” quando da voz de prisão, sendo fato que, por regra interna,
os trabalhos das comissões devem ser suspensos quando começa a “ordem do dia do
plenário”. Alguns Senadores que compõem a CPI levaram essa notícia ao Presidente do
62 MARETTI, Eduardo. Omar Aziz manda prender ex – diretor de logística do Ministério da Saúde por mentir na CPI. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/07/omar-aziz-manda-prender-ex-diretor-da-saude-mentir-cpi/ , acesso em 14.07.2021. Confira-se a transcrição jornalística das palavras expressas por Aziz: “Ele vai ser recolhido agora pela polícia do Senado. Ele está mentindo desde a manhã, dei chance para ele o tempo todo. Pedi por favor, pedi várias vezes”.
Senado, Rodrigo Pacheco, o qual a princípio confirmou que as comissões não podem
funcionar enquanto houver ordem do dia, chegando a apelar para que Aziz suspendesse
os trabalhos da CPI devido ao funcionamento do plenário, sob pena de nulidade de suas
decisões (de Aziz). O Senador Rodrigo Pacheco afirmou que iria confirmar se a ordem
de prisão teria sido dada em concomitância com as atividades do plenário, reiterando
que não seria possível o funcionamento simultâneo da CPI, o que geraria nulidade de
todos os atos praticados pela comissão, sendo dever de todos os Senadores conhecerem
e cumprirem o regimento interno. 63
Contudo, posteriormente, o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, deliberou
por não reconhecer a nulidade da prisão de Roberto Ferreira Dias. Afirmou que a CPI e
seus membros condutores têm autonomia e não lhe caberia se imiscuir em suas
decisões. 64
Não tem relevância eventual discussão acerca da atribuição ou não do
Presidente do Senado para anular atos de comissões no que se refere a chegar a uma
conclusão fundamentada sobre o acerto ou erro de Pacheco.
Na verdade parece que a alegação de suposta nulidade da Prisão em Flagrante
devido à normativa do regimento interno relativa ao funcionamento do plenário e de
comissões não tem cabimento. Isso porque, em se considerando, ainda que a título de
mera argumentação, que teria, em tese, ocorrido um crime no âmbito do Senado
Federal, a Prisão em Flagrante é regida pelo Processo Penal Brasileiro e demais normas
penais e não por qualquer regimento legislativo. A Prisão em Flagrante, admitindo-se,
“ad argumentandum tantum”, que tivesse ocorrido um crime, se impõe nos termos dos
artigos 301 e 302, CPP, não estando condicionada a questões administrativas de
funcionamento das pautas legislativas. O fato de a prisão dar-se no contexto de uma CPI
ou no ambiente do Senado Federal é meramente circunstancial, em nada alterando o
regramento processual penal da matéria. Não se trata propriamente de ato específico da
CPI, mas da voz de prisão dada a alguém pelo cometimento, em tese, de um crime em
63 FERNANDES, Daniel, WARTH, Anne, VARGAS, Rachel. Senadores dizem que ordem de prisão de Dias na CPI da pandemia é nula. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/07/07/senadores-dizem-que-ordem-de-prisao-de-dias-na-cpi-da-pandemia-e-nula , acesso em 14.07.2021. 64 PACHECO decide não anular prisão de Roberto Dias determinada pela CPI da Covid. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/pacheco-nao-anula-prisao-de-roberto-dias-cpi-da-covid/ , acesso em 14.07.2021.
estado flagrancial. No caso concreto, o importante é que não houve crime algum e
depois foram praticadas formalidades processuais penais eivadas de irregularidades e
até mesmo de inexistência, conforme aqui já exposto. No entanto, a questão regimental
parece ser algo totalmente irrelevante para a conclusão acerca da validade e legalidade
ou não da prisão em estudo.
Exatamente por isso entende-se que o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco,
ao contrário dos demais envolvidos na prisão, não cometeu crime de Abuso de
Autoridade, seja por atuação própria, seja em concurso de agentes. Realmente, o pleito
que lhe foi feito quanto à anulação da Prisão em Flagrante devido a eventual violação
do regimento interno não era de ser acatado. Cabe sim, como já aqui exposto, ao
Judiciário, proceder ao urgente relaxamento dessa prisão ilegal.
4 – CONCLUSÃO
Foi objeto de estudo deste trabalho a Prisão em Flagrante de Roberto Ferreira
Dias por suposto crime de Falso Testemunho durante audiência da CPI do Covid – 19,
sob a presidência do Senador Omar Aziz.
A primeira constatação foi o vergonhoso emprego de terminologia totalmente
inadequada por Senadores da República que teriam por obrigação o conhecimento das
leis brasileiras, afirmando que Dias seria preso por suposto crime de “Perjúrio” (sic),
simplesmente inexistente em nossa legislação.
Confrontou-se o conceito de “Perjúrio” com o crime de “Falso Testemunho”,
demonstrando que, para além da impropriedade terminológica, o uso da expressão
indicou uma espécie de “ato falho” dos Senadores que efetivamente prendiam alguém
que não era testemunha e sim investigado. Portanto, praticavam uma prisão ilegal por
“Perjúrio”, fato absolutamente atípico no Brasil, violando de quebra a ampla defesa, o
direito ao silêncio e a não – autoincriminação.
No seguimento foram analisados os procedimentos adotados para a
formalização da prisão, os quais são eivados de irregularidades tremendas, chegando
mesmo a se poder reconhecer, mais que nulidades, verdadeiros atos jurídicos
“inexistentes”, porque praticados por “autoridades” sem atribuição e com violação de
formalidades essenciais.
Vislumbrou-se, assim, a prática de crimes de Abuso de Autoridade e o
necessário relaxamento da prisão ilegal pelo Judiciário.
Não se constatou relevância na alegação de nulidade da prisão por violação do
regimento interno, tendo em vista o funcionamento concomitante da CPI com a ordem
do dia do plenário. Isso porque a matéria da prisão é de natureza penal e processual
penal, não tendo relação, a não ser circunstancial, com o local e a situação de
funcionamento do Congresso Nacional. Os equívocos formais da prisão são relevantes e
apontam para sua “inexistência” jurídica. Mas, como visto, em alguns pontos, podem
ser discutidos. Diferente é a conclusão pela ilegalidade e abusividade da prisão de
alguém, seja quem for, por suposto “Perjúrio”, ou seja, de um investigado ou acusado
que presta interrogatório e apenas é denominado formalmente como “testemunha” como
uma artimanha para violar seus direitos e garantias. Essa é a questão fulcral que aponta
para a plena ilegalidade da prisão e a configuração inequívoca de Abuso de Autoridade
pelos seus responsáveis, eis que claramente agiram de forma ardilosa e consciente,
satisfazendo, inclusive, o dolo específico exigido pela Lei 13.869/19 (artigo 1º., § 1º.).
Em arremate toma-se a liberdade de citar novamente Julián Marias:
Os países que gozam de uma democracia efetiva têm o dever de cuidar dela,
de mantê-la fiel a suas funções próprias, sem transbordar nem degenerar em
opressão. E, diante do resto do mundo, devem compreender que não se trata
de proclamar nominalmente a democracia, mas de estabelecer, se possível, as
condições para sua existência. 65
Infelizmente, não parece que nesse episódio se possa notar algum trabalho no
nosso Congresso Nacional para que a democracia brasileira seja efetiva e não apenas
nominal. Ao reverso, parece que houve uma prática pervertida de autoritarismo e abuso.
Esperemos que no seguimento o Poder Judiciário possa tomar decisões corretas e justas,
dando concreção aos fundamentos do que se pretende ser um chamado Estado
Democrático de Direito.
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