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PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (TAXATIVIDADE DA LEI) COMO
GARANTIA DA DIGNIDADE HUMANA
DORIVAL DE FREITAS JUNIOR
Doutorando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC.
Mestre em Filosofia do Direito. Professor Titular de Direito Penal e Direito Processual Penal
no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), na Universidade Paulista (UNIP),
em Cursos Preparatórios para o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil e Concursos
Públicos, e em Pós-Graduações de Direito Penal e Processo Penal. Supervisor do Núcleo de
Prática Jurídica do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), campus
Americana - SP.
2
RESUMO
Os princípios constitucionais penais e processuais penais, implícitos ou explícitos, são
partes integrantes da base de um Estado Democrático de Direito considerados verdadeiras
ferramentas na busca de se preservar e garantir a liberdade humana frente a qualquer
ingerência ou abuso do poder estatal. O Princípio da Legalidade, do qual se inclui seu
subprincípio da Taxatividade da Lei, juntamente com demais princípios traçam diretrizes
genéricas que servem para estipular e definir os limites de elaboração, fixar paradigmas, bem
como o alcance das leis. Além de servir para auxiliar na sua interpretação e aplicação, tendo
sempre como objetivo principal a defesa da Dignidade da Pessoa Humana.
Palavras chave: Princípio da Legalidade – Princípio da Taxatividade da Lei – Princípio da
Dignidade Humana.
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PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (TAXATIVIDADE DA LEI) COMO GARANTIA DA
DIGNIDADE HUMANA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 4
1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA ........................................................................... 6
2. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ........................................................................................... 9
2.1 Histórico do Princípio da Legalidade ................................................................................... 9
2.2 Princípio da Legalidade nas Constituições brasileiras ....................................................... 11
2.3 Previsões do Princípio da Legalidade no Ordenamento Jurídico ....................................... 13
2.4 Princípio da Legalidade nos Tratados Internacionais ......................................................... 14
2.5 Definições do Princípio da Legalidade ............................................................................... 16
3. PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE DA LEI ....................................................................... 19
3.1 Tipicidade penal ................................................................................................................. 24
3.2 Conceito de tipo penal ........................................................................................................ 25
3.3 Estrutura do tipo penal incriminador .................................................................................. 26
3.4 Elementos do tipo penal incriminador ................................................................................ 27
3.5 Tipo penal aberto e tipo penal fechado ............................................................................... 28
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 31
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 32
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INTRODUÇÃO
A palavra princípio denota um significado de “início”, origem de algo a partir do qual
surgiriam ou derivariam outros elementos, dando-lhes legitimidade ou diretriz, considerado
inclusive “universal”1. Nas palavras de José Afonso da Silva, os princípios “são ordenações
que se irradiam e imantam os sistemas de normas. São – como observam Gomes Canotilho e
Vital Moreira – ‘núcleos de condensações’ em que confluem valores e bens constitucionais”.2
Seu significado dentro de um sentido jurídico não seria diferente: o princípio deve ser
considerado um instrumento em que os julgadores balizariam suas decisões, bem como servir
para limitar e orientar o poder legislativo na elaboração das leis, devendo reger a todos os
ramos do direito, sendo parte integrante da base de um Estado Democrático de Direito.3 Nesse
aspecto, tratariam de diretrizes genéricas que serviriam para estipular e definir os limites, fixar
paradigmas, assim como o alcance das leis e para auxiliar em sua interpretação e aplicação.
Utilizando um exemplo hipotético, poderia ser dito que a lei seria o motor e o princípio, a
direção que orienta sua aplicação.
A principal meta do princípio seria assegurar uma coerência quando da aplicação das
normas jurídicas independentemente do ramo do Direito, servindo também para se dirimir e
resolver possíveis problemas com relação à aplicação das normas que tenham alcance
limitado ou estreito.4
Aplicar a norma posta a um caso concreto não se limita a sua mera interpretação pelo
operador do Direito, mas também deve ele utilizar-se dos princípios para dar a verdadeira
consistência ao ordenamento jurídico. O suporte aos princípios se faz necessário
principalmente quando o direito positivado é contrário à própria essência da justiça. E ainda
que se prefira deixar de aplicá-la, fundamentando sua decisão por meio da Fórmula de
Radbruch5 recentemente defendida por Robert Alexy, por exemplo; o princípio deve fazer-se
1 NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. 2ª
ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 8 2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 85 3 NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: em busca da Constituição
Federal das Crianças e dos Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 11 4 Id. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 27 5 “Fórmula de Radbruch” é a denominação dada a um pensamento jurídico construído por Gustav Radbruch e
trata do conflito que se estabelece entre o direito positivo e a justiça. Essa “fórmula” foi amplamente discutida
em duas situações concretas: uma primeira, ao considerar válidas as leis nazistas pelos Tribunais após o período
de pós-guerra (1945); e, num segundo momento, quando da análise das leis da República Federal da Alemanha e
da Alemanha Oriental após sua unificação em 1989, que também foram alvos de análises pelos tribunais alemães
pela incompatibilidade que se gerou entre algumas normas positivadas. O presente pensamento foi formulado
pelo autor em 1946 no primeiro volume de Süddeutschen Juristen-Zeitung, e preceituava que o conflito entre a
5
presente na ocasião da análise, pois uma norma pode não conter nenhum vício em sua
formalidade, porém deve ser declarada injusta e não ser aplicada por ferir princípios que
buscam justamente preservar os direitos das pessoas contra ilegalidades ou abuso cometidos
pelo direito positivado.
Como bem salienta Guilherme de Souza Nucci, os princípios penais e processuais
penais acabam lidando diretamente com os direitos e garantias humanas fundamentais. Em
determinadas situações os princípios devem prevalecer sobre uma dada norma específica, e
devem ser “considerados como autênticas linhas de diretrizes para a interpretação das normas
infraconstitucionais. Em caso de conflito, a prevalência deve ser implantada em favor dos
princípios constitucionais”.6
Compartilhando desta linha de pensamento, Rizzatto Nunes afirma que os princípios
devem nortear a aplicação das leis:
os princípios são, dentre as formulações deônticas de todo o sistema ético-
jurídico, os mais importantes a serem considerados, não só pelo aplicador do
Direito mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se
dirijam. Assim, estudantes, professores, cientistas, operadores do Direito –
advogado, juízes, promotores públicos etc. -, todos tem de, em primeiro
lugar, levar em consideração os princípios norteadores de todas as demais
normas jurídicas existentes.7
justiça e a certeza jurídica poderia ser solucionado no sentido de que o Direito positivo, assegurado por um
estatuto, no caso uma legislação; e pelo poder, teria prioridade mesmo quando o seu conteúdo fosse injusto e
inadequado, ao menos que a contradição entre a lei positivada e justiça atingisse um grau de intolerância tão
insuportável que a lei devesse ser entendida como um Direito injusto, como uma lei defeituosa, frente à justiça,
devendo então esta prevalecer. Segundo Robert Alexy, isto pode ser designado como “Fórmula da Intolerância”.
Entendia ainda Radbruch que seria impossível traçar uma linha nítida entre os casos de ilegalidade positivada e
leis válidas apesar de seu conteúdo injusto, mas que poderia estabelecer outra linha divisória com precisão, a de
que as normas promulgadas conforme o ordenamento e socialmente eficazes, perderiam seu caráter jurídico bem
como sua validez jurídica quando fossem extremamente injustas. Ou seja, lei patentemente injusta não seria lei.
Alexy denominou esse pensamento de “Fórmula da Negação”. Assim, para Alexy, a Fórmula de Intolerância
teria um caráter objetivo, enquanto a Fórmula da Negação trataria de algo subjetivo: A equidade constituiria o
núcleo central da justiça, e se ela vem a ser negada conscientemente pelo Direito Positivo, aí esse Direito não
seria somente considerado injusto, mas também carecedor de natureza jurídica, ou seja, perderia completamente
a sua real natureza de direito. A “Fórmula de Radbruch” foi defendida por Robert Alexy em seu artigo Eine
Verteidigung der Radbruchschen Formel (Uma defesa da Fórmula de Radbruch), apresentado na Conferência
Gustav Radbruch and Contemporary Jurisprudence, ocorrida na Universidade de Bristol, no qual propôs mais
argumentos que o original. ALEXY, Robert. Una defensa de la Fórmula de Radbruch. Tradução de José
Antonio Seoane; BIX, Brian. Robert Alexy, A Fórmula Radbruchiana e a Natureza da Teoria do Direito.
Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. 6 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 529 7 NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. 2ª
ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 21
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1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
Dentre os diversos princípios que norteiam a formação de todo o ordenamento jurídico
brasileiro, e tendo uma definição nítida do que venha a ser esse princípio, mas não um padrão
unificado dele, o Princípio da Dignidade Humana, além de ser considerado como fundamento
da República Federativa do Brasil, está disciplinado expressamente na Constituição Federal
de 1988, em seu inciso III, artigo 1º.
Dentro de uma perspectiva Dirigente, ele acaba por delimitar qual o fim a ser buscado
pelos Estados, ou seja, trazer dignidade à vida das pessoas, constituindo-se de um princípio
“pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional”.8
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana não seria uma simples
criação doutrinária, mas sim uma imposição constitucional9, que deveria ser buscada e
respeitada pelos governos e suas instituições.
Nessa esteira, Celso Bastos e Ives Gandra Martins entendem que o que ele indicaria
seria que um dos fins da atuação do Estado é o de propiciar as condições para que as pessoas
se tornem dignas10. Dignidade Humana seria um valor supremo que atrairia “o conteúdo de
todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.11
Ocorre que o próprio Estado faz surgir duas realidades distintas, uma amparada
através de textos legais prevendo essa dignidade, estipulando direitos e princípios; porém, na
realidade prática, o que se vê é um cenário totalmente diferente, no qual os fins acabariam
justificando os meios, e aquilo que estava previsto para ser a linha mestra a ser seguida, acaba
sendo colocado num segundo plano quando se busca manter o interesse da sociedade.
Nesse sentido, já em 1957 ensinava Francesco Carnelutti:
O Estado? O Estado é um ser racional também ele. “Quando se trata de
proclamar os princípios, especialmente no regime da democracia, o Estado é
o primeiro a dar o exemplo: o acusado não é considerado culpado até que
não seja condenado com sentença definitiva”; (...); “a república tutela o
trabalho em todas as suas formas”. Mas quando se trata de tutelar os seus
interesses, também o Estado enruga a fronte. Um funcionário público, sendo
apanhado como suspeito de haver se apropriado dos fundos do erário, é
8 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 32 9 Id. Disponível em: < http://www.guilhermenucci.com.br/artigos/guilherme-nucci/penal/dignidade-da-pessoa-
humana-vista-como-um-superpoder-e-como-uma-letra-esquecida-na-constituicao-federal-seus-extremos-
hermeuticos>. Acesso em 2 de março 2016. 10 BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988,
p. 425, vol. I. 11 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 96
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submetido a um processo penal; pode não ser verdade: pode ser também
pouca coisa; pode ser também que ele tenha se encontrado atrapalhado com
os encargos familiares, aos tempos que correm, em uma situação
desesperada. Pode ser; mas a lei é lei: entretanto, é suspenso do emprego e
do estipêndio até a sentença definitiva; a Constituição o considera ainda
inocente, mas um inocente que não tem mais o direito de ganhar o pão.
Faz se o processo e lhe inflige três anos de reclusão; se este é o seu castigo,
transcorridos que sejam, deveria voltar a ser o que era antes; ao invés, não: o
emprego está definitivamente perdido; para ele a saída do cárcere é o
princípio em vez do fim de um calvário. Um professor atingido por uma
condenação não pode voltar a ensinar depois de tê-la cumprido. Um capitão
marítimo, saído da reclusão, não pode exercer nunca mais a sua profissão.
Não são exemplos inventados; eu os tirei, todos os três, da minha
experiência mais recente.12
O princípio constitucional aqui tratado poderia ser analisado sob dois prismas
distintos, um objetivo e outro subjetivo. O primeiro visaria assegurar a própria existência
humana com recursos considerados indispensáveis para a sua sobrevivência e atendimento as
suas necessidades básicas, estando ele, por exemplo, assegurado pela própria Constituição
Federal de 1988 ao tratar dos Direitos Sociais:
Objetivamente, representa o lado material da existência humana, que precisa
ser assegurado pelo Estado Democrático de Direito, consistente no mínimo
indispensável para a sobrevivência apropriada de um ser humano. É o direito
prometido pelo art. 7o., IV, da CF, consistente na percepção de um salário
mínimo para atender às necessidades humanas “vitais básicas e às de sua
família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social”. Abaixo dessa linha do mínimo
indispensável, configura-se lesão à dignidade humana, sob o aspecto
objetivo.13
E dentro de um aspecto Subjetivo, entende-se que seria algo mais abrangente a
respeitabilidade do Estado em considerar, desde seu nascimento, a pessoa humana como
merecedora de direitos mínimos para o desenvolvimento de sua personalidade. É considerado,
dentro de uma perspectiva jusnaturalista, um direito inerente ao ser humano:
Envolve a autoestima, o amor próprio ou o culto à própria imagem, que todo
ser humano tem o direito de ver assegurado pelo Estado. Vilipendiar,
maltratar, humilhar, menosprezar a pessoa humana, quando por órgãos
12 CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Tradução de José Antonio Cardinalli. Campinas:
Servanda, 2010, p. 36 13 NUCCI, Guilherme de Souza. Disponível em: < http://www.guilhermenucci.com.br/artigos/guilherme-
nucci/penal/dignidade-da-pessoa-humana-vista-como-um-superpoder-e-como-uma-letra-esquecida-na-
constituicao-federal-seus-extremos-hermeuticos>. Acesso em 2 de março 2016
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estatais, é ruptura nítida com o fundamento da dignidade previsto para o
Estado Democrático de Direito.14
No entendimento de José Afonso da Silva, o Princípio da Dignidade Humana, bem
como todos os princípios fundamentais descritos nos artigos 1º ao 4º do Título I da
Constituição Federal, é considerado nos Princípios políticos-constitucionais, que se diferem
dos chamados Princípios jurídicos-constitucionais, estabelecendo assim tal distinção.15
Princípios político-constitucionais – Constituem-se daquelas decisões
políticas fundamentais concretizadas em normas conformadoras do sistema
constitucional positivo, e são, segundo Crisafulli, normas-princípio, isto é,
normas fundamentais de que derivam logicamente (e em que, portanto, já se
manifestam implicitamente) as normas particulares regulando imediatamente
relações específicas da vida social. Manifestam-se como princípios
constitucionais fundamentais, positivados em normas-princípios que
traduzem as opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição.
(...) ou, de outro quadrante, são decisões políticas fundamentais sobre a
particular forma de existência política da nação, na concepção de Carl
Schmitt.16
Ainda que não exista uma hierarquização entre os princípios constitucionais e os
penais, explícitos ou implícitos, devendo porém os princípios constitucionais explícitos e
implícitos terem primazia sobre os princípios infraconstitucionais17, o que se percebe é que o
princípio da dignidade humana seria o cerne, o início; o primeiro de todos os demais
princípios de que esses derivariam ou teriam que de alguma forma respeitar, sob pena de
serem declarados inconstitucionais. Dentro dessa perspectiva constitucional hierárquica, José
Afondo da Silva denomina essa categoria de Princípios jurídicos-constitucionais:
Princípios jurídico-constitucionais – São princípios constitucionais gerais
informadores da ordem jurídica nacional. Decorrem de certas normas
constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos (ou princípios
derivados) dos fundamentos, como o princípio da supremacia da constituição
e o consequente princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o
princípio da isonomia, o princípio da autonomia individual, decorrente da
declaração de direitos, (...), e os chamados princípios-garantias (o do nullum
crimen sine lege e da nulla poena sine lege, o do devido processo legal, o do
juiz natural, o do contraditório entre outros, que figuram nos incs. XXXVIII
a LX do art. 5º).18
14 NUCCI, Guilherme de Souza. Disponível em: < http://www.guilhermenucci.com.br/artigos/guilherme-
nucci/penal/dignidade-da-pessoa-humana-vista-como-um-superpoder-e-como-uma-letra-esquecida-na-
constituicao-federal-seus-extremos-hermeuticos>. Acesso em 2 de março 2016. 15 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 85 16 Ibid. p. 85-86 17 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 30 18 SILVA, op. cit, p. 86
9
2. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O Princípio da Legalidade também faria parte do rol de princípios garantidores do
princípio da dignidade humana e estabelece as bases da ordem jurídica nacional. É utilizado
principalmente para limitar a atuação estatal, ainda que não se trate de um princípio penal e
sim somente constitucional, como bem salienta Guilherme Nucci, que considera uma violação
a um bem jurídico fundamental ofendedora da dignidade da pessoa humana, violando assim
um preceito constitucional.19
2.1 Histórico do Princípio da Legalidade
Originariamente, o início histórico do princípio da legalidade se deu no início do
século XIII, precisamente no ano de 1215, com a Magna Charta Libertatum que foi um
documento imposto pelos barões ingleses ao Rei João Sem Terra, de cunho libertário, em seu
artigo 39 ela previa que “Nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a
não ser pelo julgamento de seus pares ou pela lei da terra”.20
A própria história dos direitos fundamentais ressalta a importância das cartas de
franquias medievais que eram dadas pelos reis aos vassalos, dentre as quais a Magna Charta é
considerada a mais célebre delas, pois não se tratava de uma simples manifestação da ideia de
direitos fundamentais inatos à pessoa humana, mas sim da afirmação de direitos corporativos
da aristocracia feudal em face do seu soberano.
A finalidade da Magna Charta era, pois, o estabelecimento de um modus
vivendi entre o rei e os barões, que consistia fundamentalmente no
reconhecimento de certos direitos de supremacia ao rei, em troca de certos
direitos de liberdade estamentais consagrados nas cartas de franquia. Mas a
Magna Charta, embora contivesse fundamentalmente direitos estamentais,
fornecia já aberturas para a transformação dos direitos corporativos em
direitos do homem. A Magna Carta procurou também alicerçar os interesses
locais em face das prerrogativas reais. Neste sentido, era um documento de
garantia e franquia dos cidadãos, semelhante aos que foram concedidos em
Espanha, Portugal, Hungria, Polônia, Suécia, na altura da transição do estado
feudal pessoal da alta Idade Média para o estado territorial da baixa Idade
Média.21
19 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 16 20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993, p. 503 21 Ibid. p. 502
10
Esse preceito visava limitar o poder do soberano de prender, confiscar, ou de alguma
forma privar os súditos de seus bens sem passar pelo julgamento de um magistrado, que
deveria aplicar as leis consuetudinárias à época consagradas pela comunidade. A expressão
original – by the Law of the land (lei da terra) – teria sido modificada em edição posterior da
Magna Carta para due process of Law (devido processo legal)”.22
Com relação a esse princípio, Guilherme Nucci estabelece dois de seus aspectos como
de suma importância, um de cunho material e outro, processual:
o lado substantivo (material), de Direito Penal, e o lado procedimental
(processual), de processo penal. No primeiro, (...), encaixa-se o princípio da
legalidade, basicamente, além dos demais princípios penais. Quanto ao
prisma processual, cria-se um espectro de garantias fundamentais para que o
Estado apure e constate a culpa de alguém, em relação à prática de crime,
passível de aplicação de sanção.23
Em 1532, também esteve presente na Constituição Carolina germânica, porém,
somente no final do século XVIII, e sob a influência do Iluminismo, que esse princípio
ganhou relevância e efetividade, visando combater o arbítrio déspota muito presente naquele
período. Essa legalidade fez com que o Estado Absoluto cedesse, passando seus atos a serem
pautados pela vontade do povo, por meio de seus representantes, para a elaboração de tipos
penais e suas respectivas penas.24
No ano de 1762, fez-se presente na obra Teoria do Contrato Social de Jean-Jacques
Rousseau, e ganhou força dois anos mais tarde, em 1764, na obra “Dos Delitos e das Penas”,
de Beccaria, sendo entendido por esse autor como:
(...) só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de
fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que
representa toda a sociedade unida por um contrato social.
Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com
justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja
estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a
lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está
determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o
22 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 18; Id.
Manual de Direito Penal. 10ª ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 42; Id. Princípios
Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 61 23 Id. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 62 24 Ibid. p. 90
11
pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime
de um cidadão.25
Com a Revolução Francesa, sob a influência dos Iluministas, foi consagrado
primeiramente na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789,
em seu artigo 8º, e depois na Constituição daquele país em 1791. Assim dispunha o artigo:
A Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e
ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e
promulgada antes do delito e legalmente aplicada.
Além dos documentos já mencionados, fulcrado no ideal de igualdade entre os
homens, e com o fortalecimento gradativo do Estado, já sob uma perspectiva de um Estado
moderno com a separação dos poderes idealizado por Montesquieu; o princípio da legalidade
veio a ser consagrado em outros diversos diplomas legais, tais como o Bill of Rights, firmado
na Filadélfia em 1774, a Declaração de Direitos da Virgínia e a Constituição dos Estados
Unidos da América, ambas de 1776; o primeiro Código Penal, que foi austríaco, de 1787;
além de vários instrumentos de proteção dos direitos humanos (Declaração Universal dos
Direitos Humanos, 1948); Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1950; Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966 (Pacto de São José da Costa Rica) bem
como nas Constituições de diversos países democráticos.
2.2 Princípio da Legalidade nas Constituições brasileiras
No Brasil, o princípio da legalidade sempre esteve presente em todas as Cartas
Constitucionais. Na Constituição de 1824, constava no art. 179, § XI que dizia:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança
individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio,
pela maneira seguinte.
XI. Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por
virtude de Lei anterior, e na forma por ella prescripta.
25 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos Delitos e das Penas. Tradução Nélson Jahr Garcia. São Paulo: Ridendo
Castigat Mores, 2001, p. 10-11
12
Na Constituição Republicana de 24 de fevereiro de 1891, esteve presente no art. 72, §
15, que dispunha:
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á
liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos
seguintes: (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de
setembro de 1926)
§ 15. Ninguem sera sentenciado, senão pela autoridade competente,
em virtude de lei anterior e na fórma por ella regulada. (Redação dada
pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
Na Constituição de 16 de julho de 1934, no art. 113, § 26:
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos
termos seguintes:
26) Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade
competente, em virtude de lei anterior ao fato, e na forma por ela
prescrita.
Na Constituição de 1937, no art. 122, § 13:
Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no
País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
13) Não haverá penas corpóreas perpétuas. (Redação da pela Lei
Constitucional nº 1, de 1938)
As penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos
anteriores. Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de
guerra, a pena de morte será aplicada nos seguintes crimes: (Redação da pela
Lei Constitucional nº 1, de 1938)
Na Constituição de 1946, no seu art. 141, § 27:
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
§ 27 - Ninguém será processado nem sentenciado senão pela
autoridade competente e na forma de lei anterior.
Na Constituição de 1967, estava previsto no art. 150, § 16:
13
Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 16 - A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior
quanto ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu.
Na Constituição de 1967, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17
de outubro de 1969), no art. 153, § 16:
Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:
§ 16. A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior,
no relativo ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu.
Na Constituição de 1988, está previsto no art. 5º, XXXIX:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal.
2.3 Previsões do Princípio da Legalidade no Ordenamento Jurídico
Como visto, atualmente o Princípio da Legalidade encontra-se consagrado no art. 5°,
inciso XXXIX da Constituição Federal de 1988 dentre os direitos e garantias fundamentais,
no qual preceitua: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal”, tradução essa da formulação clássica de Paul Johann Anselm von
Feuerbach:“Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege”26; também consagrada dentre os
direitos e garantias fundamentais.
Assim, ele assume função de limitar o poder punitivo estatal que, além de trazer à
baila sua origem política que deve ser respeitada; possui também uma significação, cuja
observação e respeito são deveres do intérprete da norma, que deve recriar em todos os seus
26 CEREZO MIR, José. Curso de derecho penal español – Parte general. 5ª ed. Madrid: Tecnos, 1998, v. 1, p.
163; TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 21
14
níveis os instrumentos que viabilizem a autolimitação imposta pelo Estado ao seu poder
punitivo, visando efetivar esse poder, porém respeitando os direitos dos cidadãos. 27
Além da nossa Carta Magna, e em face de sua importância na defesa dos direitos dos
cidadãos, principalmente concernente a sua liberdade, esteve presente no Código Criminal do
Império de 16 de dezembro de 1830, que dispunha em seu artigo 1º: “Não haverá crime, ou
delicto (palavras synonimas neste Codigo) sem uma Lei anterior, que o qualifique”, bem
como no Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, Decreto nº 847, de 11 de outubro de
1890, em seu artigo 1º que estabelece:
Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido anteriormente
qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente
estabelecidas. A interpretação extensiva por analogia ou paridade não é
admissivel para qualificar crimes, ou applicar-lhes penas.
Mantendo seu grau de importância na defesa da liberdade das pessoas e contra uma
possível violação dessa pelo poder instituído, aparece também no primeiro artigo do atual
Código Penal Brasileiro de 7 de dezembro de 1940, que dispõe: “Art. 1º - Não há crime sem
lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
2.4 Princípio da Legalidade nos Tratados Internacionais
O Brasil é signatário de diversos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos
Humanos. Desses, dois desses tratam de forma expressa do princípio da legalidade em seus
textos, no caso a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
A Declaração Universal dos Direito Humanos foi adotada e proclamada pela
Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948,
e assinada pelo Brasil em mesma data. Em seus artigos XI e XXIV, há prescrição expressa do
princípio da legalidade.
Artigo XI
1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei,
em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as
27 BATISTA, Nilo. Bases Constitucionais do Princípio da Reserva Legal. in Revista de Direito Penal e
Criminologia n.35. Rio de Janeiro: Forense. 1983, p. 55
15
garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no
momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional.
Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da
prática, era aplicável ao ato delituoso.
(...)
Artigo XXIV
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita
apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de
assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de
outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar de uma sociedade democrática.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI
Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Seu diploma
internacional fora aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n° 226,
de 12 de dezembro de 1991, e a Carta de Adesão a ele, depositada em 24 de janeiro de 1992.
Esta entrara em vigor no Brasil em 24 de abril de 1992 na forma de seu art. 49, § 2°, que foi
Promulgado pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, e também prescreve o Princípio da
Legalidade em seus artigos 9º e 15.
ARTIGO 9
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém
poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser
privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em
conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.
ARTIGO 15
1. Ninguém poderá ser condenado por atos omissões que não constituam
delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no momento em
que foram cometidos. Tampouco se poderá impor pena mais grave do que a
aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o
delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá
dela beneficiar-se.
Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica,
foi adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos em São José da Costa Rica em
22 de novembro de 1969, e que entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978 na
forma do segundo parágrafo de seu art. 74; foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de
1992 e promulgada através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Expressamente no
Capítulo II, que trata dos Direitos Civis e Políticos e se encontra inserido na Parte I, sobre os
Deveres dos Estados e Direitos Protegidos, em seu artigo 9º também se verifica a presença do
Princípio da Legalidade, em que preceitua:
16
Art. 9º - Princípio da legalidade e da retroatividade
Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no
momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo
com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que
a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da
perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o
delinquente será por isso beneficiado.
Com isso, para Guilherme de Souza Nucci, o principal objetivo de se cumprir de
forma fiel o princípio da legalidade seria “preservar a sua meta de garantia individual contra
abusos estatais seja na esfera legislativa (redação do tipo penal incriminador) seja na
judiciária (aplicação de tipos penais extremamente abertos ao caso concreto).28
2.5 Definições do Princípio da Legalidade
Dentro de um Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade exerce a
função garantidora do primado da liberdade do homem frente ao poder estatal29, pois, a partir
do momento em que alguém é punido pela prática de um crime previamente descrito pela lei
penal como uma conduta delituosa (como um “modelo legal de conduta”30), os membros da
sociedade passam a ficar protegidos contra toda e qualquer invasão arbitrária do Estado em
seu direito de liberdade.
Dessa maneira, esse princípio assumiria, juntamente com outros demais princípios
constitucionais implícitos ou explícitos, tais como do devido processo legal, da ampla defesa,
do juiz natural etc.; a função de impedir que se instale insegurança jurídica aos membros da
sociedade. Ele evita a utilização da máquina estatal para fins particulares, como a perseguição
de pessoas, a prática de injustiças e rompe, assim, com uma das principais características da
jurisdição que é a imparcialidade do julgador.
Nesse sentido, doutrina Guilherme Nucci o processo penal seria constituído para servir
de base, de alicerce a um “justo procedimento de apuração da existência da infração penal e
28 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 93 29 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 21 30 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal Comentado. 10ª ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 44
17
de quem seja seu autor, legitimando, ao final, garantia à ampla defesa, o contraditório e outros
relevantes princípios, a devida punição”.31
Como visto anteriormente, para Francisco de Assis Toledo, aquela expressão latina já
citada oriunda da formulação clássica de Feuerbach “nullum crimen, nulla poena sine lege”,
que de alguma forma passava a estabelecer a observância obrigatória ao princípio da
legalidade, teria sido objeto de muitas interpretações ao longo da história, em que cada uma
representaria um papel político de realce antes de chegar à definição adotada pela doutrina
majoritária32.
Essa concepção, que teria a função de garantia da lei penal, poderia ser desdobrada em
quatro outros princípios: a) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, que significaria a
proibição de serem elaboradas leis que retroagissem, agravando a punibilidade do agente; b)
nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, na qual ela teria o significado de proibir a
fundamentação ou o agravamento da punibilidade através do direito consuetudinário; c)
nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, na qual estaria proibida a fundamentação e a
punibilidade através da analogia, mais especificamente a in malam partem e, por último, d)
nullum crimen, nulla poena sine lege certa, que proibiria a criação de leis penais
indeterminadas.33
Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, esse Princípio assume a seguinte
definição:
Princípio da legalidade ou da reserva legal: trata-se do fixador do
conteúdo das normas penais incriminadoras, ou seja, os tipos penais,
mormente os incriminadores, somente podem ser criados através de lei
em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, respeitado o
processo previsto na Constituição (...). Encontra-se previsto no art. 5º,
XXXIX, da CF, bem como no art. 1º do Código Penal.34
Na verdade, o conceito como descrito pelo jurista diz respeito a um dos três
significados desse princípio, mais especificamente ao conceito de legalidade jurídica em
sentido estrito ou penal, em que é entendido também como sinônimo de reserva legal. Esse
entendimento é adotado pela maioria dos autores brasileiros, tendo em vista que uma corrente
minoritária entende que o princípio da legalidade seria gênero e o princípio da reserva legal,
uma de suas espécies. Os outros dois sentidos de legalidade seria o político, em que 31 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 33 32 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 22 33 Ibid. p. 22 34 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 11-12.
18
constituiria uma garantia dos indivíduos contra qualquer ilegalidade ou eventuais abusos do
Estado, e o sentido amplo, em que ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei.35
Nessa linha de pensamento majoritário, Alberto Silva Franco considera que “o
princípio da legalidade, em matéria penal (CF, art. 5º, XXXIX,), equivale, antes de mais nada,
à reserva legal”36. Assim sendo, a lei assume um papel de suma importância, pois, somente
através de leis ordinárias emanadas pelo Poder Legislativo é que poderiam ser criadas leis
penais incriminadoras.
Com relação ao aspecto da legalidade jurídica em sentido estrito, essa garantia
constitucional fundamental do homem evitaria qualquer abuso por parte do poder estatal
quando do jus puniendi in concreto, pois os membros da sociedade ficariam protegidos contra
qualquer excesso desse poder, sabendo previamente quais as condutas que não deveriam
praticar para que não fossem responsabilizados, assim como qual seria o procedimento e por
quem seriam processados dentro de um devido processo legal.
Além desse aspecto da legalidade jurídica em sentido estrito ou penal, e como já
mencionado, há ainda outros dois significados com relação ao conceito de legalidade: o
político e o jurídico em sentido lato.
No significado político, ele seria a garantia constitucional dos direitos humanos
fundamentais. Por sua vez, no significado jurídico em sentido lato, ninguém estaria obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme dispõe o artigo 5º, II
da Constituição Federal.37
Com relação a esse último, José Afondo da Silva conclui que esse preceito
constitucional é um dos mais importantes dentro da chamada liberdade de ação38, pois, “além
de conter a previsão da liberdade de ação (liberdade base das demais), confere fundamento
jurídico às liberdades individuais e correlaciona liberdade e legalidade”.39
Segundo doutrina Alberto Silva Franco:
A origem e o predominante sentido do princípio da legalidade foram
fundamentalmente políticos, na medida em que, através da certeza
jurídica própria do Estado de Direito, se cuidou de obter a segurança
jurídica do cidadão. Assim, Sax acentua que o princípio do nullum
crimen nulla poena sine lege é consequência imediata da
35 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2014, p. 41 36 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª ed. São Paulo: RT, 1995, p. 26 37 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 18. 38 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 215 39 Ibid. p. 215
19
inviolabilidade da dignidade humana, e Arthur Kauffmann o considera
como um princípio concreto do Direito Natural, que se impõe em
virtude de sua própria evidência.40
Ainda no que se refere ao aspecto jurídico, ou jurídico em sentido estrito, caberia à lei
definir as condutas consideradas lesivas ao bem jurídico tutelado, e haveria ainda a perfeita
correspondência entre a conduta praticada e o que está descrito na lei.
3. PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE DA LEI
O Princípio da Taxatividade da lei, apareceu de forma mais clara na Constituição de
1988, no art. 5º, XXXIX, ao estabelecer que não haveria crime sem lei anterior que o
definisse.
Assim, ainda que o princípio da legalidade tivesse sido construído ao longo dos
tempos, percebe-se que os inúmeros documentos que faziam referência a ele, somente
estabelecia, ainda que de modo genérico, que as pessoas seriam punidas somente de acordo
com as leis já estabelecidas, mas nunca delegando à lei o caráter de descrever a conduta
delituosa.
Conforme bem observa Guilherme Nucci, a anterioridade e a taxatividade são
essenciais para a construção dos tipos penais incriminadores para que se possa, dentro de um
devido processo legal, dar aplicação da pena ao criminoso, tornando imprescindíveis esses
princípios; uma vez que sem suas observâncias “inexistiria o devido processo penal, caso se
aceitasse a condenação de alguém, com base em tipo penal extremamente aberto,
desrespeitoso ao princípio da taxatividade”.41
Antes de analisarmos o Princípio da Taxatividade, mas ainda dentro da seara do
Princípio da Legalidade, que está ligada diretamente a ele, faz-se necessário estabelecer a
diferença entre os conceitos de mera legalidade e estrita legalidade.
Luigi Ferrajoli coloca que mera legalidade seria a norma dirigida aos magistrados, que
prescrevem sua aplicação tais como são formuladas pelo legislador; enquanto que a estrita
legalidade seria “a reserva absoluta da lei, que é uma norma dirigida ao legislador, a quem
prescreve a taxatividade e a precisão empírica das formulações legais”.42
40 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e Sua Interpretação jurisprudencial. 5ª ed. São Paulo: RT, 1995, p. 21 41 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 33 42 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zommer Sica, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 31
20
Assim, segundo abordagem de Guilherme de Souza Nucci, deve-se buscar sempre a
estrita legalidade da norma ao invés da mera legalidade, já que nem sempre uma norma que
não contém vício algum na sua elaboração pode ser considerada uma norma perfeita. Um
exemplo disso seria na tramitação do seu projeto de lei até virar uma lei ordinária. No caso de
uma norma que não tem a devida taxatividade da conduta descrita em si, ou quando essa fere
direito material, então ela há que ser considerada uma norma imperfeita.
Não se pode, na atualidade, contentar-se com a mera legalidade, pois
nem todo tipo penal construído pelo legislador obedece, como deveria,
ao princípio da taxatividade. O ideal é sustentar a estrita legalidade,
ou seja, um crime deve estar descrito em lei, mas bem detalhado
(taxativo), de modo a não provocar dúvidas e questionamentos
intransponíveis, bem como sendo possível visualizar uma ofensa a
bem jurídico tutelado, agindo o autor com dolo ou culpa.43
Nessa mesma linha de raciocínio, e tendo em conta a ideia de que não se deve
observar somente a legalidade formal da norma para que ela seja considerada suficiente como
norma penal incriminadora, mas também há de se observar seu conteúdo material; Alberto
Silva Franco infere que “no Estado Democrático de Direito, o simples respeito formal ao
princípio da legalidade não é suficiente”.44
Recentemente tivemos um exemplo da incompatibilidade entre uma norma perfeita em
sua formalidade, mas em desacordo com conteúdo material constitucionalmente assegurado,
no caso do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130,
ocorrido em 30 de abril de 2009 pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, cujo
Relator foi o então Ministro Carlos Britto.
A Suprema Corte analisou a eventualidade do choque existente entre a Lei de
Imprensa (Lei nº 5.250/67) e o direito constitucional da liberdade de imprensa, entendida
como forma de expressão artística, científica, intelectual e comunicacional, que seriam formas
de liberdade de expressão, em que há emanação do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana.
Após algumas controvérsias sobre a constitucionalidade de certos pontos da Lei
referida, o STF chegou ao entendimento de que a Lei de Imprensa não teria sido recepcionada
pela Constituição Federal de 1988.
Outro exemplo de mera legalidade da norma, mas que feriria a estrita legalidade dela é
dado por Rizzatto Nunes com relação ao genocídio nazista da Segunda Guerra Mundial, ao
43 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 19 44 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª ed. São Paulo: RT, 1995, p. 24
21
estabelecer que não se deva falar em um sistema jurídico legítimo se ele não se fundar na
garantia da intangibilidade da dignidade da pessoa humana.
O autor entende que na história da humanidade sempre existiram atrocidades, citando
como exemplo a escravidão, as mortes e torturas na época da Inquisição; e que o Direito
positivado sempre legitimava essas condutas, realidade essa que começou a mudar após a
Segunda grande Guerra Mundial:
Contudo, a experiência catastrófica do nazismo na 2ª Guerra Mundial gerou
um “descolamento” universal do Direito. (...)
Não só se elaborou um “documento jurídico”, que é a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, como também o pensamento jurídico mais legítimo
incorporou valores para torná-los princípios universais.45
Se analisarmos o próprio sentido terminológico e literal da palavra, o termo “taxativo”
do princípio da taxatividade, segundo o Dicionário Houaiss, significa aquilo “que taxa, limita
ou regulamenta, com base em lei ou decreto; limitativo, restritivo”, ou ainda, aquilo que é
“limitativo, restrito, apertado ou estreito”.46
Logo, a Taxatividade da Lei seria uma garantia das pessoas em obrigar o legislador a
elaborar tipos penais precisos na descrição da conduta delituosa, de modo a evitar
interpretações extensivas, ampliativas ou ambíguas que busquem amoldar a tipicidade penal –
atitudes que poderiam gerar uma insegurança jurídica dentro de um Estado de Direito – dessa
forma, ela busca garantir a liberdade das pessoas na aplicação da lei penal pelo poder estatal.
O Princípio da Taxatividade dos tipos penais teria a finalidade de tornar claro o
objetivo de cada figura delituosa. Isso permite a exata captação do sentido dos modelos, e
estabelece uma relação de confiança entre o jus puniendi do Estado e a legalidade referente ao
indivíduo, tornando-se segura a relação entre o ilícito penal e o extrapenal.47
Trata-se de princípio corolário da legalidade, exigindo a descrição
detalhada do crime, por meio do tipo penal, sem margem à dúvida,
que possa colocar em risco o seu entendimento. Note-se o preceituado
pelo princípio da legalidade: não há crime sem lei anterior que o
defina. A especificação do delito é fundamental para a segurança
individual.48
45 NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. 2ª
ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 27-28 46 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 258 47 Ibid. p. 258 48 NUCCI, Guilherme de Souza. Dicionário Jurídico: direito penal. São Paulo: RT, 2013, p. 299
22
Nunes dá continuidade a seu pensamento afirmando que esse seria um princípio
constitucional implícito:
Significa que as condutas típicas, merecedoras de punição, devem ser
suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar
dúvida, em relação ao seu cumprimento, por parte do destinatário da
norma. A construção de tipos penais incriminadores dúbios e repletos
de termos valorativos vagos pode dar ensejo ao abuso do Estado na
invasão da intimidade e da esfera de liberdade dos indivíduos. Aliás,
não fossem os tipos taxativos – limitativos, restritivos, precisos – e de
nada adiantaria adotar o princípio da legalidade ou da reserva legal.
Este é um princípio decorrente, nitidamente, da legalidade, logo, é
constitucional implícito. 49
As normas penais incriminadoras devem ser precisas, claras, não deixando
nenhum espaço de dúvidas na sua aplicação sob pena de se tornarem normas que
causam insegurança jurídica. Nesse sentido, Luiz Luisi afirma que:
O postulado em causa expressa a exigência de que as leis penais,
especialmente as de natureza incriminadora, sejam claras e o mais
possível certas e precisas. Trata-se de um postulado dirigido ao
legislador vetando ao mesmo a elaboração de tipos penais com a
utilização de expressões ambíguas, equívocas e vagas de modo a
ensejar diferentes e mesmo contrastantes entendimentos. O princípio
da determinação taxativa preside, portanto, a formulação da lei penal,
a exigir qualificação e competência do legislador, e o uso por este de
técnica correta e de uma linguagem rigorosa e uniforme.50
O Princípio da Taxatividade da Lei impõe que a conduta delitiva descrita seja
detalhada, evitando a utilização na sua construção de expressões vagas ou terminologias
dúbias e/ou que possam trazer um sentido equívoco ao inicialmente pensado pelo legislador.
A garantia, nesses casos, seria meramente formal, já que mesmo amparado pela lei, traria
enorme insegurança jurídica às pessoas devido ao conteúdo da norma não ser preciso,
taxativo.
Como bem observa Hans-Heinrich Jescheck, a função de garantia da lei penal seria
anulada com a criação de tipos penais genéricos: “Porém, com a generalização do texto legal,
ainda que garanta a justiça, pode colocar em perigo a segurança jurídica, pois, com a criação
49 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 15 50 LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 18
23
de tipos penais genéricos se eliminam as diferenças materiais anulando-se a função de
garantia da lei penal”.51
No entendimento de Francisco de Assis Toledo, e dentro daquela subespécie que
denominou Lex certa, o autor doutrina que: “A exigência de lei certa diz com a clareza dos
tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito
gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios”.52
Já na perspectiva de Nilo Batista, o princípio da taxatividade da lei seria uma das
quatro funções do Princípio da Legalidade (ou reserva legal), entre elas configuram a função a
proibição de retroatividade da lei penal, a da proibição da analogia, a de estabelecer ser a lei a
única fonte do direito penal.
A terceira função do princípio da reserva legal estaria em proibir a criação de
figuras penais descritas de forma vaga e indeterminada. Como disse de modo
insuperável SOLER, vale o mesmo admitir o princípio da analogia, como a
Constituição Criminal de Carlos V, ou dissimulá-lo criando tipos que em si
próprios sejam analógicos. A esta pode chamar-se de função de taxatividade.
O texto constitucional não dispensa qualquer observação a tal aspecto, que
deve filiar-se estritamente ao ciclo da expansão lógica do princípio da
reserva legal no quadro político da legalidade democrática e no quadro
técnico do desenvolvimento da teoria do tipo.53
Guilherme Nucci critica a grande falta de julgados na jurisprudência tratando
especificamente da taxatividade da lei, entendendo que essa realidade de que não seria
tradição dos tribunais analisarem com profundidade tal questão deveria ser mudada, não
devendo ser aplicados por ferir diretamente o princípio da legalidade:
Há flagrante carência de julgados, contendo expressa e concreta referência
ao princípio da taxatividade, pois não é da tradição dos tribunais pátrios
analisar esse contexto com a devida minúcia e profundidade. É fundamental
alterar esse posicionamento, sinalizando, quando necessário, a ocorrência de
falhas graves na construção de tipos penais incriminadores, de modo a
provocar alteração de postura do Poder Legislativo. Tipos viciados não
devem ser aplicados, porque inconstitucionais. Ferem o princípio da
taxatividade, decorrência lógica da legalidade (art. 5º, XXXIV, CF).54
51 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Tradução livre pelo autor. 3ª ed. Barcelona: Bosch,
1981, v. 1, p. 174 52 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 29 53 BATISTA, Nilo. Bases Constitucionais do Princípio da Reserva Legal. in Revista de Direito Penal e
Criminologia n.35. Rio de Janeiro: Forense. 1983, p. 57 54 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 281
24
3.1 Tipicidade penal
O Código Penal brasileiro em vigor não contém uma definição do conceito de crime,
estabelecendo somente uma distinção entre este e a contravenção penal com relação às
espécies de penas que poderiam ser aplicadas em cada caso. Essa diferença está prevista no
artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei nº 3.914, de 09 de dezembro de
1941). Porém, se dentro de um conceito analítico de crime, adotarmos a denominada teoria
tripartite, ele seria estruturado como um fato típico, antijurídico e culpável55.
Dentro do seu primeiro elemento, o fato típico, encontram-se quatro subespécies: a
conduta, o resultado, o nexo causal e a tipicidade. Ou seja, quando é praticada uma ação ou
uma omissão, via de regra, e salvo os crimes de mera conduta; gera-se um resultado
naturalístico juridicamente relevante ligado por esse nexo de causalidade, em que essa
conduta humana ou praticada por pessoa jurídica56 deve encontrar igual descrição no tipo
penal previsto em lei, ocorrendo assim o que se denomina tipicidade penal.
A Tipicidade Penal, por sua vez, pode ser definida como a subsunção, a perfeita
amoldagem da conduta praticada perante a figura típica descrita pela lei penal, pelo tipo
penal, em que a correspondência entre ambos é perfeita, ou seja, “é a justaposição do fato ao
55 Essa definição é aceita tanto para os autores adeptos da teoria causalista da ação (naturalista, clássica,
tradicional), bem como pelos adeptos da teoria finalista da ação. 56 A Constituição Federal de 1988 passou a prever duas possibilidades para a responsabilização da pessoa
jurídica como sujeito ativo de crime; uma prevista no art. 225, § 3º, com relação às condutas e atividades
consideradas lesivas ao meio ambiente, regulamentada pela Lei nº 9.605/98; e a outra possibilidade prevista no
art. 173, § 5º, que visa a punição da pessoa jurídica, independentemente da responsabilidade individual dos seus
dirigentes, dos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular, na qual essa
ainda depende da edição de lei a respeito para a sua regulamentação. Existem duas correntes em se aceitar ou
não a pessoa jurídica como sujeito ativo de crime: uma primeira denominada Teoria da Ficção criada por
Savigny, que não admite essa responsabilização, pois a pessoa jurídica nada mais seria que uma abstração, uma
pessoa fictícia que não teria vontade própria. Assim, faltando-lhe vontade e finalidade não se pode falar em
conduta; e na ausência desta, não há fato típico; e finalmente, sem ele não se tem crime. Dessa maneira, as
decisões da pessoa jurídica seriam tomadas pelos seus dirigentes e membros que, dotados de razão e livre-
arbítrio, seriam os responsáveis por essas ações ou omissões. Esse pensamento estaria amparado no brocardo
romano societas delinquere non potest (a pessoa jurídica não pode cometer delitos). Já para a segunda corrente,
denominada de Teoria da Realidade ou da Personalidade Real, que tem como seu principal precursor Otto
Gierke, e como um dos seus adeptos Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de
Direito Penal. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 126), a pessoa jurídica pode e deve ser
responsabilizada por seus atos, pois é um ente real com vontade própria, com capacidade de ação e de praticar
ilícitos penais, independentemente da responsabilidade dos seus dirigentes, não sendo obrigatória a presença do
concurso necessário de agentes para sua responsabilização, pois a pessoa jurídica pode ser punida e seus
membros ou dirigentes não. No Brasil, tanto no Supremo Tribunal Federal como no Superior Tribunal de Justiça,
tem-se firmado jurisprudência na possibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Outros países
também aceitam esse tipo de responsabilidade, como Canadá, Inglaterra, Estados Unidos, China, Japão, Holanda
Portugal e mais alguns outros.
25
tipo penal. Havendo um evento lesivo, busca-se um modelo para promover a sua adequação
auferindo êxito, tem-se a tipicidade”.57
Para a teoria finalista exige-se o dolo ou a culpa da conduta, sendo esta o primeiro
elemento do fato típico, e para a teoria social da ação, além disso, o agente haveria de ter a
vontade de realizar um dano social.
3.2 Conceito de tipo penal
A expressão “tipo” não é usualmente empregada pela lei, porém ela foi introduzida no
Código Penal em vigor (art. 20) com a reforma operada em sua Parte Geral pela Lei nº
7.209/84. O termo constitui-se de uma tradução livre da palavra alemã Tatbestand, e expressa
uma ideia de modelo, esquema.
Tipo penal é onde estão descritas as condutas consideradas lesivas aos bens jurídicos
fundamentais, em que seria um modelo de conduta criado única e exclusivamente por leis,
visando assim garantir o princípio da reserva legal estabelecido pelo artigo 5º, XXXIX, da
Constituição Federal, que preceitua: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena
sem prévia cominação legal”.
Com isso, somente a lei em seu sentido formal pode estabelecer quais as condutas que
devem ser consideradas infrações penais, devendo ser clara quanto à descrição da conduta,
garantindo, portanto, não só a instituição de uma norma penal incriminadora por lei, mas
também a segurança jurídica no meio social. Esse procedimento evita com que um tipo penal
possuidor de uma conduta objetiva genérica acabe gerando certa insegurança em quem deva
cumpri-la por não saber ao certo se pode ou não ser responsabilizado criminalmente.
Nesse sentido, Guilherme Nucci instrui que a função do tipo penal incriminador seria a
de tornar compreensível a norma penal, devendo-se cuidar de seu conteúdo já na elaboração, a
ser formada por vocábulos e sentenças coordenadas bem dispostas, visando assegurar a
perfeita delimitação do que se pretende alcançar, bem como torná-la mais clara possível para
que possa ser utilizada e aplicada a casos concretos.58
Como formula Luiz Vicente Cernicchiaro:
Uma lei genérica, amplamente genérica, seria suficiente para, respeitando o
princípio da legalidade, definir-se como delito qualquer prejuízo ao
57 NUCCI, Guilherme de Souza. Dicionário Jurídico: direito penal. São Paulo: RT, 2013, p. 303 58 Id. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 258
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patrimônio ou a outro bem jurídico. Não estaria, porém, resguardado,
efetivamente, o direito de liberdade. (...) O tipo exerce função de garantia. A
tipicidade (relação entre o tipo e a conduta) resulta do princípio da reserva
legal. Logicamente, o tipo há de ser preciso para que a ação seja bem
identificada.59
Para Guilherme de Souza Nucci:
A existência dos tipos incriminadores (modelos de condutas vedadas pelo
direito penal, sob ameaça de pena), tem a função de delimitar o que é
penalmente ilícito do que é penalmente irrelevante, tem o objetivo de dar
garantia aos destinatários da norma, pois ninguém será punido senão pelo
que o legislador considerou delito, bem como tem a finalidade de conferir
fundamento à ilicitude penal.60
Por conseguinte, a existência de tipos penais incriminadores que buscam punir quem
ofende os bens jurídicos tutelados traz a ideia de que, uma vez praticada uma conduta definida
pela lei como delituosa, esta acaba por ferir, ou ofender, de algum modo, a dignidade
humana.61
3.3 Estrutura do tipo penal incriminador
O Tipo Penal Incriminador seria uma das três espécies de normas penais existentes, ao
lado das Normas Penais Permissivas e das Normas Penais Explicativas.
As Normas Penais Permissivas, também chamadas de Justificadoras, são aquelas que
preveem a licitude ou a impunidade de determinados comportamentos, ainda que esses se
enquadrem perfeitamente na descrição típica. Não descrevem comportamentos criminosos,
mas sim hipóteses em que podem ser praticadas. Como exemplo, é possível citar o aborto
praticado por médico para salvar a vida da gestante (art. 128 do Código Penal); o art. 23 do
Código Penal que descreve as causas excludentes da ilicitude.
As Normas Explicativas (ou Complementares) são aquelas que visam esclarecer o
conteúdo de outras normas ou até mesmo limitando o âmbito de sua aplicação. Como
exemplo, tem-se o art. 327 do Código Penal que define o conceito de funcionário público para
59 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituição. 2º ed. São Paulo, RT, 1991, p. 14 60 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2014, p. 144 61 Id. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 33
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os efeitos penais; o art. 150, também do Código Penal, que esclarece o que é e o que não é
casa, para a caracterização do crime de violação de domicílio.
Finalmente, temos as Normas Penais Incriminadoras, também chamadas de Tipos
Penais Incriminadores. Essa espécie de norma penal, via de regra, é estruturada de três
formas62: Na primeira, denominada de título ou nomen juris, no qual o legislador confere um
nome à determinada conduta e que gera determinado resultado, como exemplo citado por
Nucci, a conduta de “matar alguém”, recebe o nome de homicídio simples.63
Na segunda parte temos o chamado Preceito Primário da norma, em que ela descreve
as condutas consideradas proibidas ou permissivas, dependendo da norma penal. Geralmente,
todo fato enquadrável em algum tipo incriminador é considerado ilícito, salvo se também se
enquadrar em algum tipo permissivo. Como exemplo de preceito primário de uma norma
incriminadora, tem-se a conduta descrita no caput do art. 155 do Código Penal, que descreve
a conduta de “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”; e, como exemplo de
preceito primário de norma penal permissiva ou justificadora, o art. 25 do Código Penal que
trata da legítima defesa, que estabelece como legítima defesa o ato de “repelir injusta
agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro, usando moderadamente os meios
necessários”.
Por fim, temos o Preceito Secundário da norma, que é a parte sancionadora, que
estabelece a aplicação da pena em quem pratica a conduta típica descrita no preceito primário.
Salvo algumas pouquíssimas exceções no ordenamento jurídico, o preceito secundário de
alguns tipos penais somente estabelece o montante máximo previsto. Como por exemplo, o
art. 309 do Código Eleitoral, que pune quem vota ou tentar votar mais de uma vez, ou em
lugar de outrem, cuja pena é a reclusão de até três anos.
3.4 Elementos do tipo penal incriminador
O tipo penal incriminador é composto dos seguintes elementos (ou elementares):
elementos objetivos (descritivos e normativos) e subjetivos.64
Os elementos objetivos seriam os verbos constantes no tipo penal, denominados
núcleos do tipo; que podem ser descritivos, em que a conduta descrita não enseja nenhuma
62 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2014, p. 144 63 Ibid. p.144 64 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2014, p. 145
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valoração para se chegar ao seu significado; como por exemplo, a expressão “coisa móvel” no
crime de furto. Porém, o tipo penal pode possuir um elemento normativo, ou seja, não se
extrai seu significado da mera observação, dependendo de uma valoração do juiz para se
chegar ao seu significado. Como exemplo, o crime de ato obsceno (art. 233, CP), em que o
conceito de obsceno demanda de um juízo de valor na sua aplicação, pois, nos tempos atuais,
o que pode causar certo pudor a uma pessoa, a outras não causaria coisa alguma.
Já os elementos subjetivos dizem respeito à vontade do agente, a sua finalidade em
praticar determinada conduta delituosa, se queria a produção de determinado fim ou assumiu
o risco de seu resultado, ou se deu causa por imprudência, negligência ou imperícia.
Dentro desse elemento subjetivo temos os chamados elementos subjetivos específicos
do tipo, quando o agente quer determinado resultado específico como, por exemplo, no crime
de extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP), quando o agente sequestra determinada
pessoa com o fim de obter para si ou para outrem qualquer vantagem como condição ou preço
do resgate. Nem todos os tipos penais prescindem de qualquer finalidade especial para que se
concretize.
Guilherme Nucci postula que o elemento subjetivo é indispensável para a construção
de certos tipos penais, pois, para alguns tipos penais, determinadas condutas delituosas
somente poderiam ser aplicadas e terem real sentido se houver a análise de “um objetivo
exclusivo da mente do autor”.65
3.5 Tipo penal aberto e tipo penal fechado
Como visto anteriormente, o princípio da taxatividade obriga o legislador, na criação
de tipos penais incriminadores, a descrever de forma mais clara possível a conduta delituosa,
evitando a criação de tipos penais com grande abertura ao poder discricionário do magistrado
na sua interpretação. Ele deve ser preciso na individualização do comportamento delituoso,
em que tipos exageradamente abertos ofendem o princípio da taxatividade da lei e,
consequentemente, o da legalidade.66
Porém, dentre os diversos tipos penais existentes no ordenamento jurídico, devemos
destacar a existência de dois: os chamados Tipos Penais Fechados e os Tipos Penais Abertos.
65 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 259 66 Id. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 21
29
Os Tipos Penais Fechados são aqueles que descrevem a conduta delituosa,
prescindindo de qualquer valoração por parte do juiz na sua aplicação, fazendo com que crie
uma espécie de moldagem da conduta considerada violadora de um bem jurídico fundamental,
em que seria realizada a tipicidade legal da conduta praticada e o que está descrito no
ordenamento jurídico.
Como exemplo, é possível citar o crime de homicídio, descrito no artigo 121 do
Código Penal, que preceitua: “Matar alguém”. Uma vez que alguém dolosamente elimine a
vida de outra pessoa, já está preenchido o preceito primário da norma, não cabendo ao juiz
elemento algum de valoração a ser feito aos que compõem o tipo penal. Essa modalidade
dolosa prevê algumas exceções no ordenamento jurídico, em que, mesmo sendo um tipo
doloso, o tipo é aberto, por exemplo, no ato obsceno, o juiz deve analisar as circunstâncias em
que foi praticada a infração, para verificar se realmente pode ser considerada como uma
conduta que atentou contra o pudor social.
Já os chamados Tipos Penais Abertos descrevem também a conduta, mas carecem de
valoração por parte do juiz para a sua aplicação67, tal como ocorre nos crimes culposos, e,
tendo em vista que o legislador não teria condições de prever todas as condutas humanas
ensejadoras da composição típica, em crimes assim, é necessário ao magistrado analisar a
conduta do autor e se ele não agiu com imprudência, negligência ou imperícia. Via de regra,
nesses crimes o legislador limita-se a dizer: “se o crime é culposo, a pena é de tanto a tanto”.
Outros exemplos são os crimes de aborto (arts. 124 ao 127, CP), de rixa (art. 137, CP),
o artigo 134 do Código Penal que trata do crime de exposição ou abandono de recém-nascido,
que menciona o elemento “desonra” por parte da mãe como fundamento para o abandono,
fazendo-se necessária a interpretação do que esse termo significa, e podendo variar conforme
o lugar e a época.68
Um exemplo desse tipo penal que atentava contra a segurança jurídica e a liberdade
dos cidadãos, era o artigo 6º do Código Penal Soviético de 1926 que estabelecia: “Reputa-se
perigosa toda ação ou omissão dirigida contra a estrutura do Estado soviético, ou que lese a
ordem jurídica criada pelo regime dos trabalhadores e camponeses para a época de transição à
organização social comunista(...)”.
Analisando esse artigo do Código Penal Soviético, Guilherme de Souza Nucci instrui:
67 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal Comentado. 10ª ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 45 68 Id. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 20-21
30
Trata-se de um tipo extremamente aberto, com foco voltado à
periculosidade da conduta, numa avaliação que era, com certeza,
política. Portanto, mesmo que existente a lei, o princípio da legalidade
estaria sendo apenas uma formalidade, pois qualquer ação ou omissão
que o Estado desejasse considerar “perigosa”, diante de um modelo
tão aberto, poderia fazê-lo. A União Soviética, na prática, terminou
negando eficácia ao princípio da reserva legal.69
Tipos penais muito abertos que de alguma forma buscam cobrir eventuais lacunas que
poderiam surgir, ainda que mantida a sua formalidade legal, devem ser considerados como
tipos violadores da legalidade. Mesmo no direito anglo-americano, em que se baseiam no
sistema do direito consuetudinário, já existem julgados declarando inconstitucionais regras do
direito penal que contenham normas penais muito genéricas e imprecisas.70
Ainda segundo Nucci, o legislador precisa ter certa liberdade na criação de um tipo
legal, ficando reservada ao juiz a tarefa de interpretar e complementar o conteúdo do tipo
penal incriminador, justificando assim, a existência de tipos penais abertos, mas com isso:
não significa que se deva privilegiar a criação de tipos muito vagos, pois
quanto mais específicos eles puderem ser, melhor para o Direito Penal e para
o indivíduo. Assim, para assegurar a eficácia do princípio da legalidade é
preciso manter o equilíbrio e o meio-termo: nem analogia, nem tipos
extremamente vagos e genéricos. Em ambos os casos, estar-se-ia preterindo
a aplicação do preceito constitucional da reserva legal.71
Prosseguindo no tratamento de tipos abertos, Nucci doutrina que esses devem ser
passíveis de verificação subjetiva por parte do operador do direito, por meio de seus
elementos normativos e subjetivos. Normativos são os que dependem de uma valoração
cultural ou jurídica, exemplificando, respectivamente, o conceito de ato obsceno e o conceito
de fatura, duplicata ou nota de venda. Há variação na interpretação da lei no que se refere ao
subjetivismo na valoração da norma, já que “cada ser humano irá colocar seus próprios
valores em jogo, sua experiência de vida e seu contexto social, no momento de interpretar o
sentido da terminologia típica”.72
Nessa esteira, o autor faz uma ressalva sobre a necessidade de se manter esses
elementos valorativos pelo operador transformando-o em tipos fechados, sob o risco de, face a
sua inflexão, tornarem-se obsoletos e de difícil aplicação. Entende, porém, que seu uso
69 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 20-21 70 Ibid. p. 21 71 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal Comentado. 10ª ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 46 72 Id. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 92
31
excessivo também poderia colocar em risco a efetividade da norma, relativa à insegurança que
poderia advir na sua aplicação com a excessiva inserção de elementos normativos, em
particular, pode acarretar a incompreensão do tipo incriminador a ponto de gerar total
insegurança quanto a sua aplicação em caso concreto por parte do operador do Direito.
Duas prováveis consequências poderiam ser acarretadas por essa insegurança: a)
impunidade, quando o Judiciário se abstém de aplicar o tipo excessivamente aberto; b)
desrespeito à garantia da legalidade, quando o Judiciário resolve aplicar a toda e qualquer
situação o tipo excessivamente aberto.73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Princípio denota a ideia de origem de algo, o início de onde surgiriam ou derivariam
outros elementos, servindo-lhes de legitimidade ou diretriz. Nesse sentido, os princípios
constitucionais penais e processuais penais, implícitos ou explícitos, partes integrantes da
base de um Estado Democrático de Direito, são considerados verdadeiras ferramentas na
busca de se preservar e garantir a liberdade humana frente a qualquer ingerência ou abuso do
poder estatal.
Dentre os diversos princípios que norteiam a formação de todo o ordenamento jurídico
brasileiro, o Princípio da Dignidade Humana, além de ser considerado como fundamento da
República Federativa do Brasil, serve como parâmetro para os demais princípios e é
considerado o primeiro de todos os demais princípios e do qual eles derivariam, ou teriam de
alguma forma que respeitar, sob pena de serem declarados inconstitucionais.
O Princípio da Legalidade, a que se inclui seu subprincípio da Taxatividade da Lei;
juntamente com demais princípios traçam diretrizes genéricas que servem para estipular e
definir os limites de elaboração, fixar paradigmas e o alcance das leis, além de servir para
auxiliar na sua interpretação e aplicação, tendo sempre como objetivo principal, a defesa da
Dignidade da Pessoa Humana.
73 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 92-93
32
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