JULIANA BELLINI MEIRELES
PRIMAVERA PERIFÉRICA:
Discursos da Periferia na Internet
CAMPINAS,
2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Estudos da Linguagem
Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo
(Labjor)
JULIANA BELLINI MEIRELES
PRIMAVERA PERIFÉRICA:
Discursos da Periferia na Internet
Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto
de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas para a obtenção de título de
Mestre em Divulgação Científica e Cultural na
área de Divulgação Científica e Cultural.
Orientadora: Profa. Dra. Mónica Graciela Zoppi Fontana
CAMPINAS,
2015
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RESUMO
Esta pesquisa visa entender o modo como o poeta Sérgio Vaz se constitui enquanto sujeito e autor
nas redes sociais. Tal abordagem será discutida a partir de textos selecionados de autoria do poeta
e disseminados por ele no Twitter e Facebook. A orientação teórica que guiará os estudos será a
Análise do Discurso de perspectiva francesa e entre os aspectos observados estão os discursos
sobre trajetória de vida, direitos fundamentais ao ser humano, tradições e crenças na literatura, a
memória ressentida e o projeto pedagógico da literatura.
Palavras-chave: Literatura Marginal; Literatura e Internet; Análise do Discurso; Redes Sociais;
Sujeito
ABSTRACT
This research aims to understand how the poet Sergio Vaz is constituted as subject and author on
social networks. Such approach is going to be discussed from selected texts by the poet that he
disseminates on Twitter and Facebook. The theoretical orientation that guides the study is the
Discourse Analysis from the French perspective. In addiction, the observed aspects are the
discourses about life course, fundamental rights to human, traditions and beliefs in the literature,
the resentful memory and the pedagogical project of the literature.
Key Words: Marginal literature; Literature and Internet; Discourse analysis; Social networks;
Subject (Discourse analysis)
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................1
CAPÍTULO 1 – ANÁLISE DO DISCURSO....................................................................5
1.1. Sujeito, História e Linguagem...........................................................................6
1.2. Dispositivo de Análise.......................................................................................9
CAPÍTULO 2 - NOVAS TECNOLOGIAS....................................................................17
2.1. Internet e as Reconfigurações do Espaço........................................................20
2.2. A Internet Como Modificadora das Relações Sociais.....................................22
2.2.1. Twitter...............................................................................................23
2.2.2. Facebook...........................................................................................27
2.3. Internet e Hipertexto........................................................................................31
2.4. Internet e Política.............................................................................................33
2.4.1. Manifestações na Internet.................................................................35
2.5. Internet e Literatura.........................................................................................43
CAPÍTULO 3 - LITERATURA E MARGENS.............................................................49
3.1. Viagem pelas Margens....................................................................................51
3.2. O Aparecimento da Periferia...........................................................................58
3.3. Conexões.........................................................................................................60
3.4. Literatura Marginal: Questões de Terminologia.............................................61
3.5. Alguns Escritores em Cena.............................................................................64
3.5.1. Ferréz...............................................................................................64
3.5.2. Alessandro Buzo..............................................................................68
3.5.3. Sacolinha..........................................................................................71
3.5.4. Allan da Rosa...................................................................................73
3.5.5. Sérgio Vaz........................................................................................74
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3.6. Cooperifa..........................................................................................................76
3.6.1. Ações Comunitárias...........................................................................78
a) Várzea Poética.............................................................................78
b) Cinema na Laje............................................................................79
c) Chuva de livros............................................................................80
d) Ajoelhaço.....................................................................................81
e) Poesia no Ar.................................................................................82
f) Semana de Arte Moderna da Periferia.........................................83
CAPÍTULO 4 - LITERATURA E VIDA........................................................................85
4.1. O Lugar do Artista e o Nome de Autor............................................................86
4.2. O Público, Efeito-Leitor e Circulação de Sentidos..........................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................107
Referências Bibliográficas..............................................................................................111
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Dedicatória
Aos meus pais Sérgio A. C. Meireles e Norma B. Meireles que me passaram valores, me
ensinaram a importância de não parar de estudar e sempre estiveram comigo, ainda que distantes.
À minha avó paterna Wanda C. Meireles pelo importante apoio.
Aos meus tios Caetano de Souza e Edina E. C. M. Souza pelo suporte em momentos tão
difíceis e por serem uma inspiração na minha carreira.
À minha tia Ana M. L. Bellini (in memorian).
Ao Ramon, por sempre acreditar, pelo companheirismo e pela incondicionalidade da
alegria.
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Agradecimentos
Ao Ramon, pela sua paciência e amor no período em que terminava este trabalho, bem
como, pela ajuda nesta dissertação, ideias nos momentos de crise e pela revisão final. Aos meus
pais, Sérgio e Norma, que durante momentos tumultuados de nossa vida, se desdobraram para dar
todo apoio que podiam nos meus estudos. À minha avó Wanda e meus tios Caetano, Edina,
Amaury e Ana (in memorian) pela ajuda sempre pronta e inspiração. Aos amigos Carolina
Teixeira e Paulo César, que sabendo da importância de nunca parar de estudar, flexibilizaram meu
horário de trabalho, fator determinante para que eu pudesse chegar até aqui. Aos professores da
graduação, Gilvan Procópio por me ensinar a gostar de literatura, Alexandre Faria pelas
oportunidades, Terezinha Scher pelos conselhos. À minha orientadora Mónica Zoppi pela
paciência em um momento decisivo de minha vida e pelo suporte. À professora Carolina Magaldi
pela amizade, pelo amparo e pelas importantes contribuições e ajuda nos momentos de dúvida. À
professora Cristiane Dias, pelas importantes considerações na qualificação, ao professor Rafael
Evangelista por aceitar o convite inesperado. A todos do Labjor, representados na figura da
professora Germana Barata, pelas oportunidades em momentos difíceis do primeiro ano de curso.
Aos professores Helio Sôlha e Adilson Ruiz, que abriram as portas do PED para mim. Aos meus
colegas do mestrado André, Graziele, Maysa, Carina e Marcos, pelo companheirismo e
colaboração durante o curso do mestrado e nos momentos difíceis que enfrentei.
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“People think dreams aren't real just because they aren't made of matter, of particles.
Dreams are real. But they are made of viewpoints, of images, of memories and puns and lost
hopes.”
Neil Gaiman
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INTRODUÇÃO
Segundo Deleuze (1997), a literatura é como um empreendimento de saúde num mundo
que se apresenta como um conjunto de sintomas, cuja doença se confunde com o homem. Trata-
se de uma medida de saúde quando invoca para abrir um sulco em si “uma raça bastarda”
(Deleuze, 1997, p.15), oprimida, que não para de agitar-se sob dominações. A literatura é ainda a
arte de criar histórias, provocar reações de amor, ódio, espanto ou curiosidade: há quem se
identifique com uma frase no muro das travessas urbanas e, assim, o ato de ler aproxima o
homem de uma nova realidade, criando um diálogo entre o leitor e o texto, abrindo as portas para
um conhecimento infinito de possibilidades.
Atualmente estamos vivendo um dos períodos literários mais efervescentes das últimas
décadas com o surgimento de vozes vindas das periferias das grandes cidades. Heloísa Buarque
de Hollanda (2011) apresenta essa manifestação cultural como exemplo de resistência e produção
de novos sentidos políticos nos países globalizados em desenvolvimento, porque propõe
mudanças estruturais no sentido de sua criação e divulgação, principalmente via internet.
Pretendemos dissertar acerca do Poeta Sérgio Vaz e da Cooperifa, como exemplos em que a
própria noção de cultura, e por tabela a de literatura, é forçada a repensar seus parâmetros e até
mesmo sua função social, possibilitando a produção de sentidos que fascinam, como afirma
Foucault (2001), pelo que “se propõem a ser” (Foucault, 2001, p.234). Sérgio Vaz foi o poeta
selecionado porque, além de estar a frente da Cooperifa, um projeto que pode ser considerado
pioneiro e bem-sucedido no que se refere a ações de manifestação cultural na periferia de São
Paulo, é também um dos escritores mais ativos nas redes sociais. Sua poesia também se destaca
devido às mensagens de luta e felicidade, que são desenvolvidas de maneira peculiar em relação
aos demais autores estudados.
O objetivo dessa pesquisa então é abordar como o autor escolhido para análise se constitui
como sujeito ao englobar artes e letras, direitos fundamentais ao ser humano, modos de vida,
tradições e crenças na literatura sendo também ator no espaço que retrata nos textos com sua
trajetória de vida, a memória ressentida e o projeto pedagógico da literatura. Tal abordagem será
verificada em textos divulgados nas redes sociais, visando entender as relações do poeta com a
violência urbana, a carência de bens e equipamentos culturais, o cotidiano e as relações pessoais,
1
tendo a internet como ferramenta de apoio à divulgação cultural promovida pelo poeta. A
pesquisa será consituída por quatro capítulos.
No primeiro capítulo será apresentado o dispositivo metodológico a ser utilizado na
dissertação: Análise do Discurso da perspectiva francesa. A escolha de tal teoria se baseia no
objetivo de não somente compreender a mensagem do poeta Sérgio Vaz e da Cooperifa com os
poemas divulgados nas redes sociais, mas reconhecer qual é o seu sentido, ou seja, o seu valor no
contexto da periferia nos dias atuais. Sujeito, história e linguagem serão conceitualizados sob o
embasamento de autores tais como Eni Orlandi (1983, 1995, 1996, 1997, 1998, 2005, 2007 e
2012) e Focault (1973, 1980, 1985, 1987, 1995, 2001), em diferentes obras, dentre outros.
O segundo capítulo pretende apresentar o suporte de divulgação mais popular da literatura
produzida na periferia: a internet. Introduziremos a origem da rede mundial de computadores e
diferenciaremos suas fases (estática, dinâmica e semântica), de modo a relacionar conceitos que
nos fazem entender seu funcionamento nos dias atuais. Os conceitos utilizados se embasam em
obras de autoes como Levy (1997, 1998), McLuhan (1972) e Prigogine (1996). Abordaremos
temas para a discussão, tais como a modificação das noções de espaço por meio da rede e as
reconfigurações das relações sociais, com enfoque nos sistemas que serão utilizados na análise da
divulgação dos poemas escolhidos: as populares redes sociais Twitter e Facebook, além das
relações entre internet e linguagem, permeando os conceitos hipertextuais. Também serão
tratadas questões referentes às relações da internet com a política, a literatura e a periferia.
Em continuidade, no terceiro capítulo abordaremos a Literatura Brasileira. Inicialmente,
traçaremos um breve histórico desde o final da década de 60, explicando as relações do povo com
a literatura e a tomada da palavra poética como instrumento de poder. Passaremos então pelo
Tropicalismo, movimento no qual a resistência se daria pela valorização dos aspectos marginais
das minorias urbanas. Percorreremos o Pós-Tropicalismo, abordando a produção cultural como
um modo de agressão ao sistema, no tenso cenário político repressivo que se seguiu até o final da
década de 80. Enfim, apresentaremos a literatura marginal produzida na periferia, que se
popularizou na década de 90, dando intensa visibilidade e força simbólica às periferias.
Discutiremos os compromissos que alguns de seus autores pretendem na literatura enquanto
agente de transformação social e como se articula no universo online das redes sociais, tomando
como base as atividades do poeta Sérgio Vaz em nome da Cooperativa Cultural da Periferia.
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Finalmente, sucede o quarto capítulo, o qual abrangerá as relações entre literatura e vida,
reunindo os conceitos até então abordados na aplicação da análise de publicações selecionadas
das páginas no Twitter e Facebook da Cooperifa e do Poeta Sérgio Vaz. Esse estudo pretende ser
desenvolvido considerando o alargamento do conceito de cultura, a qual passou a ser concebida
como algo transversal, originando recortes temáticos dentro da própria definição do termo que,
no Brasil, segundo perspectivas da Mondiacult1 e de Canclini (1998), pode ser caracterizada
como conjuntos de rasgos distintivos materiais e espirituais, intelectuais e afetivos, que
caracterizam uma sociedade ou grupo social.
Portanto, esperamos com esta pesquisa concluir como se constituem, no contexto sócio-
histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação social, aspectos como o
lugar de artista, nome de autor, público, efeito-leitor e circulação de sentidos nas obras
produzidas e divulgadas pelo poeta Sérgio Vaz por meio de suas redes sociais e também dos
perfis online da Cooperifa.
1 Conferência Mundial de Políticas Culturais, ocorrida em 1982, onde se discutiu a relação entre cultura e desenvolvimento, esboçando assim, pela primeira vez, o princípio de uma política cultural baseada no respeito à diversidade cultural. Ver: MONDIACULT: A CULTURA COMO DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS in: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/bruno_wanderley_junior.pdf>
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CAPÍTULO 1 - ANÁLISE DO DISCURSO
Para iniciar os estudos, apresentamos neste capítulo a Análise do Discurso da perspectiva
francesa, doravante AD. Trata-se de uma orientação teórica que visa problematizar as maneiras de
ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se questionarem sobre o que produzem e o que lêem nas
diferentes manifestações da linguagem. Estruturada principalmente por Michael Pêcheux, dos
anos 1960 em diante, a AD situa suas reflexões nas relações da linguagem com a exterioridade,
ou seja, como a condição de produção do discurso que intervém na textualidade e
conseqüentemente como a memória afeta o discurso. Neste processo pensamos também o
simbólico, pois seu comprometimento com o político é fundamental para compreender o
movimento dos sentidos. Em suma, o discurso é palavra em movimento, prática de linguagem.
Tal orientação teórica entende o discurso como mediação necessária entre o homem e a
realidade social, tornando sua transformação tão possível quanto a realidade em que vive.
Considera ainda a história, os processos e as condições da produção de linguagem, analisando a
relação estabelecida pela língua com os sujeitos. Por sua vez, o analista do discurso busca
entender como um texto significa, de que maneira a linguagem está materializada na ideologia
através do sujeito discursivo, uma vez que as palavras simples do cotidiano chegam carregadas de
sentidos sem que saibamos como se constituíram e, mesmo assim, significam. Gregolin (2001a)
afirma ao longo de sua pesquisa que os fundamentos teóricos da AD têm como conseqüência a
forma material sócio-histórica do discurso e fazem com que a linguagem seja entendida como
ação e transformação social incluindo, segundo Orlandi, “todas as suas implicações, conflitos,
reconhecimentos, relações de poder, constituições de identidade, etc.” (Orlandi, 1998, p.17).
A linguagem então é vista como um acontecimento do significante num sujeito afetado
pela historia através de complexos processos de produção de sentidos, envolvendo identificação
de sujeito, argumentação, subjetivação, construção de realidade, entre outros. É importante
observar que o sentido da linguagem se inscreve na história, sendo definido em relação a três
regiões de conhecimento, segundo a Análise do Discurso: a primeira delas é a Teoria da Sintaxe e
da Enunciação, noção mediadora que consiste na atividade dos sujeitos com e na língua; a
segunda é a Teoria da Ideologia, formulada como uma representação da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência; e a terceira, a Teoria do Discurso, que consiste
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na determinação histórica dos processos de significação. Tudo isso atravessado pela Teoria do
Sujeito que desperta a noção da leitura e interpretação, problematizando a sua relação com o
sentido – conseqüentemente, da língua com a história.
1.1. Sujeito, História e Linguagem
A leitura não é transparente, por isso a AD teoriza a interpretação, visando compreender
como os objetos simbólicos produzem sentido, analisando assim os gestos de interpretação
considerados como atos que intervêm no real. Ao tentar compreender o modo como um objeto
simbólico produz sentidos, a AD visa explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação,
tentando entender e explicar como se constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula
com a história e a sociedade que o produziu, de tal modo que a enunciação passa a ser um fator
relevante para a interpretação, que na noção de Pêcheux (1997) é um gesto no nível simbólico.
Enquanto a circunstância de enunciação é o contexto imediato, as condições de produção
compreendem o contexto sócio-histórico e ideológico: os sujeitos, a situação, a memória que
nessa perspectiva é tratada como interdiscurso. A memória discursiva segundo Orlandi (2012) é
aquilo que já foi dito antes e transformou-se no saber que sustenta a tomada da palavra,
representando o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva. Quando uma palavra
significa é porque ela deriva de um discurso que a sustenta, e nessa percepção podemos entender
a relação do interdiscurso com os sentidos.
Courtine (1984) estabelece o interdiscurso como o conjunto de formulações já esquecidas
e tem como efeito o esquecimento daquilo que foi dito por um sujeito específico, em um
momento particular, para re-significar nas palavras de um novo sujeito. O esquecimento pode
ocorrer de duas maneiras: a primeira é da ordem da enunciação e refere-se às escolhas dos
dizeres, que estabelecem uma relação entre palavra e coisa; a segunda é da instância do
inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Inferimos dos estudos de
Chauí (1981) que a ideologia é um conjunto de práticas usadas como mecanismo de mediação
que define o que as pessoas pensam e as incorpora na sociedade, numa construção ligada a
sistemas de poder através de discursos que podem ser vistos como regime organizado e
convencionado de verdade. Tal regime, de acordo com Foucault (1980), é constituído por práticas
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discursivas e pressupõe relações com instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos
econômicos que são determinantes no funcionamento da linguagem. Estabelecer essas relações
discursivas pode ser difícil, por isso há no discurso espaço para jogos entre paráfrase e
polissemia, cuja tensão confirma o paralelo entre o simbólico e o político.
Segundo Orlandi (2012), os processos parafrásticos se referem à memória, aquilo que em
todo dizer sempre se mantém. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do
dizer, à origem do sentido, uma vez que conta sempre com a repetição e a sustentação no saber.
Já a polissemia representa o deslocamento, a ruptura dos processos de significação, jogando com
o equívoco. Para a autora, trata-se da fonte de linguagem porque trata da própria condição de
existência dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos. Assim, a polissemia é justamente a
simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico e o Analista de
Discurso propõe compreender como o político e o linguístico se inter-relacionam na constituição
dos sujeitos nesses jogos da linguagem.
Os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam através
de alguns mecanismos imaginários. O primeiro mecanismo é o da antecipação, no qual todo
sujeito tem a capacidade de colocar-se no lugar de seu interlocutor, antecipando-o assim quanto
ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo dirige o processo de argumentação,
regulando o que o sujeito dirá de um modo ou de outro, segundo o efeito que visa produzir em
seu ouvinte por meio de determinadas relações de forças. De acordo com essa noção, podemos
dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. Assim, suas palavras
significam de um modo diferente a depender do lugar de onde fala, pois a sociedade é construída
por relações hierarquizadas, relações de força sustentadas no poder desses diferentes lugares, que
se fazem valer na comunicação.
As condições de produção implicam então o que é material (a língua), institucional (a
formação social e sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse é o segundo mecanismo do qual
falávamos, o que produz imagens dos sujeitos assim como do objeto do discurso associado a uma
conjuntura sócio-histórica. Pensando as relações de forças, de sentidos e a antecipação, são
perceptíveis diferentes possibilidades regidas pela maneira como a formação social está na
história, permitindo que se formem imagens e as associe ao discurso de modo a contribuir para o
processo de significação. Uma imagem se constitui no confronto do simbólico com o político em
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processos que ligam discursos e instituições, logo a análise é importante porque com ela torna-se
possível atravessar o imaginário que condiciona os sujeitos em suas discursividades, explicitando
o modo como os sentidos estão sendo produzidos, e consequentemente, compreendendo melhor o
que está sendo dito.
Assim, é preciso referir o dizer às suas condições de produção, estabelecer as relações que
ele mantém com sua memória e também remetê-lo a uma formação discursiva, onde os sentidos
se encontram. Desse modo, o sentido é pensado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no
processo sócio-histórico no qual as palavras são produzidas, seguindo as posições daqueles que
as empregam, se relacionando com as conjunturas ideológicas nas quais essas posições se
inserem em uma relação sócio-histórica dada, e finalmente sugerindo o que pode e o que deve ser
dito.
O trabalho da ideologia então é produzir evidências, colocando o homem numa relação
imaginária com suas condições materiais de existência. M. Pêcheux (1983) afirma que a
ideologia é a condição responsável para constituição do sujeito e dos sentidos, já que o indivíduo
em sujeito para que produza o dizer. Trata-se da relação necessária entre linguagem e mundo, do
efeito imaginário de um sobre o outro, e dissimula sua existência no interior do seu próprio
funcionamento em conjunto com o inconsciente, deixando visíveis apenas algumas evidências
que funcionam através dos esquecimentos, dando aos sujeitos a realidade como um sistema de
significações experimentadas.
A linguagem, os sentidos e os sujeitos não são transparentes: eles têm sua materialidade e
se constituem em processos nos quais a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente.
É preciso que a história intervenha para que a língua faça sentido, por isso os gestos de
interpretação são regulados em suas possibilidades, em suas condições e a ideologia intercede seu
modo de funcionamento imaginário. O gesto de interpretação do sujeito é garantido pela
memória, segundo Orlandi (2012) sob dois aspectos: o primeiro é a memória institucionalizada (o
arquivo), onde se separam quem tem e quem não tem direito a ela; o segundo é a memória
constitutiva (o interdiscurso), ou seja, o trabalho histórico da constituição do sentido (o saber
discursivo), sujeito à língua e a história, pois para se constituir, para produzir sentidos, o saber
discursivo é afetado por elas.
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O sujeito discursivo é pensado como lugar. Segundo Foucault (1969), trata-se da posição
que deve e pode ocupar todo individuo. Essa posição significa quando está sendo dita, e isso lhe
dá identidade relativa a outras. Acrescentamos ainda a noção do sujeito-de-direito, definida por
Orlandi (2012) como efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista.
Submetendo o sujeito, mas ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o
assujeitamento se realiza quando o discurso aparece como instrumento do pensamento e reflexo
da realidade. A ideologia fornece as evidências que apagam o caráter material do sentido e do
sujeito na transparência da linguagem, sustentando a noção de literariedade.
O sentido literal, na concepção linguística, é aquele que uma palavra tem
independentemente de seu uso em qualquer contexto, seu caráter básico. A ilusão do sentido
literal considera que as estratégias retóricas e as manobras estilísticas fazem o sujeito ter a
impressão de transparência. É tarefa do analista do discurso expor o olhar do leitor à opacidade
do texto, como diz M. Pêcheux (1983), para compreender como essa impressão é produzida e
quais seus efeitos.
1.2. Dispositivo de Análise
Os conceitos apresentados no item anterior agora serão utilizados para a reflexão sobre o
dispositivo da análise do discurso. Primeiramente, sobre o lugar da interpretação, que tem como
proposta procurar o sentido em sua materialidade linguística e histórica. Segundo Pêcheux
(1983), todo enunciado é descritível como uma série de pontos que oferecem lugar à
interpretação, a qual consiste na manifestação do inconsciente e da ideologia na produção de
sentidos e na constituição de sujeitos. A ligação que abre possibilidade à interpretação, também
dá espaço a ligações históricas capazes de se organizar em memórias, e ordenar relações sociais
em redes de significantes. As transferências presentes nos processos de identificação dos sujeitos
constituem uma pluralidade de filiações históricas, uma vez que dependendo da posição do
sujeito e da inscrição daquilo que diz, seus processos de identificação e suas filiações de sentido
descrevem a relação do sujeito com a memória.
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Por definição de E. Orlandi (1998), todo discurso se estabelece na relação com um
discurso anterior e aponta para outro, pois do processo discursivo é possível recortar e analisar
estados diferentes. É importante considerar os fatos da linguagem e sua memória em relação à
análise e à sua temática, por isso a pesquisadora considera que a melhor maneira de atender a
constituição de corpus é construindo montagens discursivas que obedeçam a critérios os quais
decorrem de princípios teóricos da AD para mostrar como o discurso funciona produzindo
sentidos. Isso gera uma discussão acerca da diferença entre texto e discurso.
O texto é definido na obra de Orlandi como “uma unidade que o analista tem diante de si
e da qual ele parte” (Orlandi, 2012, p. 63). O analista visa remeter o texto a um discurso que, por
sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referencia a uma formação discursiva que,
enfim, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante na
dada conjuntura. Todo discurso é parte de um processo discursivo mais amplo que o analista
recorta de modo a determinar como a análise e o dispositivo teórico da interpretação é construído.
Logo, o dispositivo analítico pode ser diferente nas diferentes abordagens que fazemos do corpus:
é tudo uma questão de método.
Para analisarmos um discurso é necessário ir além da superfície do texto: verificamos
quem diz, como diz e em quais circunstâncias isso é feito durante o processo de enunciação, no
qual o sujeito se marca deixando pistas para compreendermos o modo como seu discurso se
textualiza. Com isso procuramos enquanto analistas, dar conta do esquecimento enunciativo,
analisando o que é dito num discurso, pois se em outras condições, são dizeres afetados por
diferentes memórias discursivas. A análise visa justamente entrar no processo discursivo para
deslocar o sujeito dos efeitos linguísticos e discursivos resultantes. Objetiva ainda compreender a
partir dos vestígios como um objeto simbólico produz sentidos, através da observação do modo
de construção e estruturação, o modo de circulação e os diferentes gestos de leitura que
constituem os sentidos do texto submetido à análise.
E. Orlandi (2012) argumenta que “fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se
movem entre o real da língua e o da histórica, entre o acaso e a necessidade (...), produzindo
gestos de interpretação.” (Orlandi, 2012, p. 68) Ora, é esperado do analista que encontre no texto
as pistas dos gestos de interpretação, que se tecem na história, explicitando o modo de
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constituição de sujeitos e de produção de sentidos, o que resulta na revelação do trabalho da
ideologia e das simbolizações de poder presentes no texto.
O texto se define na AD como uma unidade de sentido construído em relação a
determinada situação, pois tem historicidade, a qual consiste no acontecimento do texto como
discurso, incluindo o trabalho dos sentidos nele. O interessante nessa relação entre texto e
discursividade é o modo como o texto organiza a relação da língua com a história no trabalho do
significante do sujeito em sua relação com o mundo. Compreendendo como ele funciona e como
produz sentidos, podemos compreendê-lo enquanto objeto linguístico-histórico.
Todo texto é heterogêneo quanto à natureza dos diferentes materiais simbólicos, das
linguagens e das posições do sujeito, uma vez que o sujeito se subjetiva de maneiras diferentes
em seu decorrer. Orlandi (2012) retoma Maingueneau (1969) para explicar que o discurso é uma
dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir-se como um espaço de
regularidades enunciativas e discursivas, procurando remeter texto ao discurso e esclarecer as
relações deste com as formações discursivas pensando, por sua vez, as relações destas com a
ideologia.
Conforme afirmado, o texto é a unidade de análise afetada pelas condições de produção, o
lugar da relação com a representação da linguagem e também espaço do significante (onde
funciona a discursividade). Um texto é uma peça de linguagem de um processo discursivo bem
mais abrangente e o produto de sua análise consiste na compreensão dos processos de produção
de sentidos e de constituição dos sujeitos em suas posições. O processo discursivo, por sua vez,
dá ao analista as indicações de que ele necessita para compreender a produção de sentidos.
Outra definição importante na explanação dos dispositivos de análise, diz respeito ao
autor e o sujeito. Orlandi (2012) define o sujeito como aquele que “está para o discurso assim
como o autor está para o texto” (Orlandi, 2012, p. 73), e também considera o sujeito como
resultado da interpelação do indivíduo pela ideologia, enquanto o autor é a representação de
unidade e delimita-se na prática social como uma função específica de sujeito. A especialista
recorre a Vignaux (1979) ao afirmar que o discurso tem como função assegurar a permanência de
certa representação, porque o autor é o lugar em que se constrói a unidade do sujeito.
Em termos do real do discurso, temos a descontinuidade, o equivoco, a contradição. Por
outro lado, na instância do imaginário, encontramos a unidade, a coerência. Trata-se de
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considerar a unidade (imaginária) na dispersão (real): “de um lado a dispersão dos textos e do
sujeito; de outro, a unidade do discurso e a identidade do autor” (Orlandi, 2012, p. 74). Assim, o
discurso é regido pela força do imaginário da unidade, estabelecendo uma relação de dominância
de uma formação discursiva com as outras, na sua constituição. Esse é mais um efeito discursivo
regido pelo imaginário, o que lhe dá uma direção ideológica, uma ancoragem política,
especialmente nas questões sobre autoria.
Podemos então dizer que a autoria é uma função do sujeito. A função-autor estabelece-se
ao lado das funções locutor e enunciador. Orlandi (2012) recorre a Ducrot (1984) para explicar o
locutor, como aquele que se representa como o “eu” do discurso, enquanto o enunciador é a
perspectiva que esse “eu” constrói. A função-autor tal como a concebemos foi dada por Foucault
(1973): o autor propõe que há no discurso processos internos de controle que se dão a princípio
de ordenação, e tal controle pode ser observado em noções como a do autor, de modo que este
seja considerado como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas
significações. Orlandi (2012) evidencia que “um texto pode até não ter um autor específico, mas
pela função-autor, sempre se imputa uma autoria a ele”(Orlandi, 2012, p.75). Ao imputar a
função-autor a qualquer texto, a AD trata o conceito como um sinônimo de autor, que é utilizado
como uma identidade autoral alternativa, um outro tipo de assinatura.
O princípio do autor limita o acaso do discurso pela identidade que tem forma na
individualidade do “eu”. Ora, se o locutor se representa como “eu” no discurso e o enunciador é a
perspectiva que esse “eu” assume, a função discursiva do autor é a função dele enquanto produtor
de linguagem, produtor de texto. A dimensão de sujeito está mais determinada pela exterioridade
(contexto sócio-histórico) e pelas exigências de coerência e responsabilidades frente ao texto, já
que sua função é mais afetada pelo social e está submetida às regras das instituições. Essas
exigências têm a finalidade de tornar o sujeito visível enquanto autor com suas intenções
argumentativas e, como autor, o sujeito ao mesmo tempo em que reconhece uma exterioridade à
qual ele deve se referir, também se reconhece em sua interioridade ao construir sua identidade.
Trabalhando a articulação entre esses dois pontos, o sujeito passa a assumir o papel de autor e
suas implicações. A esse processo, Orlandi (1998) deu o nome de assunção da autoria.
Segundo a pesquisadora, “o autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos
discursivos, representa, pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em
12
que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que diz e como diz.” (Orlandi, 2012, p.76). A
assunção da autoria implica então uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no
contexto histórico-social. Orlandi (2012) determina ainda que aprender a se representar como
autor é assumir, diante das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a
linguagem, logo, constituir-se e mostrar-se como autor. Podemos dizer que a função do sujeito
tem seu pólo correspondente: o leitor, de quem se cobra um modo de leitura especificado pois ele
está, como o autor, afetado pela sua inserção no social e na história. O leitor tem sua identidade
configurada enquanto tal pelo lugar social no qual se define sua leitura, trabalhando aí diferentes
formas do confronto do político com o simbólico.
As maneiras de ler quando se considera o discurso, indicam a relação entre o não-dizer e o
dizer. O primeiro refere-se ao que está implícito, ou seja, o que fica subentendido quando o autor
separa aquilo que deriva (o pressuposto) daquilo que se dá em contexto (subentendido). Já o
segundo, traz consigo necessariamente esse pressuposto, que o complementa. Uma formação
discursiva pressupõe outra e significa pela sua diferença e pela relação que se estabelece, ou seja,
o dizer se sustenta na memória discursiva. Mas essa não é a única forma de trabalhar o não-dito
na AD, há ainda o silêncio, pelo qual se entende o lugar de recuo necessário para que se possa
significar. Existem algumas formas do silêncio: o silêncio fundador, por exemplo, indica que o
sentido sempre pode ser outro. A política do silêncio assume duas formas, e são elas o silêncio
constitutivo, que traz o apagamento de outras palavras quando uma é dita, e o silêncio local, que
é a censura – aquilo que é proibido ser dito em certa conjuntura. Orlandi (2012, p.83) afirma que
“as relações de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre a censura, de tal modo
que há sempre silêncio acompanhando as palavras”.
Partimos das condições e relações do dizer com a memória para delinearmos as margens
do não-dito, a fim de encontrar o que é relevante em dada situação, do contrário, não haveria
limites para o processo de significação. As maneiras de estabelecer esses limites estão de certa
forma articuladas e elas são três: a primeira trata das diferentes concepções de línguas enquanto
sistema abstrato; enquanto isso, a segunda se relaciona às diferentes naturezas de exterioridade,
tais como contexto, condição de produção, circunstâncias de enunciação; e enfim, as diferentes
concepções do não-dito, com o silêncio e o implícito. Tudo isso sem que nos esqueçamos de que
13
o discurso é efeito de sentido entre interlocutores, estabelecendo relações e construindo
consequentemente tipologias.
São variados os critérios pelos quais se constituem tipologias na AD. Temos o discurso
político, jurídico, religioso, jornalístico, pedagógico, médico, científico; há também suas
variáveis, como por exemplo, didático ou terapêutico, e ainda as diferenças disciplinares que
podem estar na base da tipologia, tais como o discurso sociológico, biológico; tem também as
diferenças de estilo, gênero, as subdivisões e uma infinita série de ramificações que nos levam a
crer que a tipologia pode até ser útil na análise, mas não é exatamente isso que caracteriza o
discurso, mas resultam de funcionamentos cristalizados que adquiriram uma visibilidade. O foco
está nas propriedades internas ao processo discursivo, dentre elas a remissão de formações
discursivas, o modo de funcionamento, formações discursivas, modo de funcionamento, seu
regime e validade.
Eni Orlandi (Orlandi, 1989, apud Orlandi, 2012, p. 86) procura estabelecer um critério
para distinguir esses diferentes modos de funcionamento do discurso, cuja referência está nos
elementos constitutivos de suas condições de produção e sua relação com o modo de produção de
sentidos, com seus efeitos, como podemos ver a seguir:
a. Discurso autoritário: aquele em que a polissemia está contida [...] o locutor se coloca como agenteexclusivo, apagando também sua relação com o interlocutor.
b. Discurso polêmico: aquele em que a polissemia é controlada, o referente é disputado pelos interlocutores[...], numa disputa tensa pelos sentidos
c. Discurso lúdico: aquele em que a polissemia está aberta [...] sendo que os interlocutores se expõem aosefeitos de sentido [...]
Logo, o que há são misturas do modo que podemos dizer que um discurso está em
funcionamento com certa característica dominante, pois a materialidade discursiva, as pistas do
processo de significação, trabalha com propriedades que referem a língua à história para
ressignificar, reunindo forma e conteúdo, analisando seu funcionamento.
Os discursos a serem analisados neste trabalho circulam nas redes sociais, e para entender
seu funcionamento, começaremos o próximo capítulo destrinchando a internet enquanto
plataforma e explicitando algumas das consequências de seu desenvolvimento e uso na sociedade
contemporânea. Para entender o modo como os processos que envolvem esse suporte afetam a
14
sociedade, buscaremos uma visão crítica dos seus fundamentos e utilizações, desde sua criação
até os dias atuais, por isso decidimos abordar no segundo capítulo um pouco da história da rede
mundial de computadores, assim como a maneira que ela tem afetado sujeitos nas suas aspirações
culturais e sociais.
15
16
CAPÍTULO 2 - NOVAS TECNOLOGIAS
No capítulo anterior, foi feita uma apresentação inicial acerca do dispositivo teórico que
será usado nas análises literárias conseguintes, atentando para a noção de que a linguagem é uma
prática e intervém no real, podendo se situar em relação ao simbólico e o político, de tal maneira
que possibilita a constituição do sujeito e a significação do mundo pela história e pela ideologia, a
qual se materializa na linguagem como um lugar de descoberta. Um território fértil para estudar
tal funcionamento da linguagem é a internet, consequentemente, veremos ao longo deste trabalho
como a literatura, os escritores, a relação entre eles e o leitor está mudando desde a sua
popularização.
O desenvolvimento da linguagem como meio de comunicação foi o primeiro sinal de
mudança significativa na vida do ser humano, pois a linguagem permitiu que o homem
transmitisse conhecimento, melhorando sua compreensão do mundo entre as primeiras
comunidades. Com o passar do tempo, a linguagem teve seus sons codificados em símbolos e
alfabetos, que se desenvolveram na mesma medida em que a civilização tal como conhecemos
hoje originando a escrita e permitindo que o conhecimento fosse transmitido além do tempo e
espaço. Aperfeiçoou ainda a organização do pensamento, desenvolvendo a inteligência, a cultura
e a ciência, criando raízes que contribuíram para a evolução da civilização, tendo um impacto tão
forte que sua invenção determinou a passagem da Pré-história para o início da História da
humanidade.
Por sua vez, a Internet foi criada nos anos 60, durante a Guerra Fria, nos Estados Unidos,
quando o Departamento de Defesa americano precisava criar uma rede de comunicação de
computadores em pontos estratégicos com o objetivo de descentralizar informações valiosas. Em
1962, no MIT, falava-se em termos da criação de uma Rede Intergalática de Computadores2 e o
acesso à rede era restrito a militares e pesquisadores estatais. Apenas em 1991 a comunidade
acadêmica brasileira conseguiu, através do Ministério da Ciência e Tecnologia, acesso a redes de
pesquisas internacionais. Em 1995, a rede foi aberta para fins comerciais, ficando a cargo da
iniciativa privada a exploração dos serviços.
2 Brief History of the Internet; Disponível em: http://www.internetsociety.org/internet/what-internet/history-internet/brief-history-internet#JCRL62 (acessado em: 18/06/2013);
17
Nos anos 2000, a popularização do meio de comunicação provocou uma verdadeira
revolução em nossa história. McLuhan (1969;1972) havia dissertado que as novas tecnologias
eletrônicas encurtariam distâncias e que o progresso tecnológico reduziria todo o planeta à
mesma situação que ocorre numa aldeia: um mundo em que todos estão interligados de alguma
forma. Essa é a “Aldeia Global”, popularizada nas obras “A Galáxia de Gutenberg” (1972) e,
posteriormente, em “Os Meios de Comunicação como Extensão do Homem” (1969). Ele foi o
primeiro filósofo a tratar das transformações sociais provocadas pela revolução tecnológica do
computador e das telecomunicações, e acreditava que os meios eletrônicos reconstituiriam uma
tradição oral, colocando todos os nossos sentidos humanos em jogo – mas este conceito foi muito
além do que o autor previa. Segundo Levy (1998), o global se faz e se refaz o tempo inteiro,
colocando novos atores no cenário.
Em suma, a internet surgiu para informar e trocar informação, mas somente de maneira
estática. A chamada web 1.0 implica apenas leitura, ao passo que na web 2.0, os sites oferecem
interatividade e uma maneira de personalização da página como alterações de design, escolha de
notícias relevantes, inserção e alteração de informação. A divisão entre web 1.0 e 2.0 é mais uma
questão técnica, de interface: enquanto a programação da web 1.0 é estática, usando apenas
HTML, de forma que o usuário somente buscava informações, na web 2.0 a programação é
dinâmica, combinando vários recursos técnicos (tais como PHP, JavaScript, Flash, CSS, etc.) para
possibilitar a interação do usuário com o conteúdo.
Por sua vez, a terceira geração da internet é considerada interativa, pois um site consegue
ler as mensagens e utilizá-las de maneira mais complexa, como exemplo: inserindo publicidade
relevante com o conteúdo divulgado, reunindo resultados em mecanismos de busca apenas com
as palavras chaves ou ``lendo os pensamentos`` do internauta, como o site Akinator faz, conforme
a figura 1:
18
Figura 1 - Akinator3
Também conhecida como Websemântica, a web 3.0 surgiu por volta de 2007 e é
caracterizada pela interatividade entre homem e máquina, melhorando as linguagens de
programação de modo a organizar e utilizar de maneira mais interativa e complexa toda a
informação já disponível na internet, funcionando como um banco de dados gigante e conectado.
Atualmente utilizamos a web 3.0, apesar de ainda conviver com sites gerados na 1.0 e 2.0.
Assim, a internet é formada por vias duplas nas quais podemos construir, dizer, escrever, falar e
ser ouvidos, vistos, lidos, de modo a organizar o pensamento hipertextual sob a forma de
associações complexas, e, consequentemente, tornando-o mais completo. O cyberespaço sugere
uma reconfiguração dos espaços já conhecidos, das relações entre a estrutura de poder e as
pessoas, porque a informação passou a constituir a matéria-prima de nossa sociedade, ganhando
um papel central tanto em termos de instâncias de poder do discurso, quanto em termos de
reconfiguração do espaço e das relações sociais.
3 pt.akinator.com/
19
De acordo com McLuhan (1972), os meios de comunicação trabalham como extensões
das capacidades naturais dos seres humanos: a televisão exibe o que não podemos ver
fisicamente, como uma extensão de nossos olhos; o rádio seria uma extensão dos nossos ouvidos;
o telefone leva a nossa voz para longe; a Internet, através da Comunicação Mediada por
Computador (CMC), proporcionou a extensão de várias capacidades naturais, permitindo que
possamos interagir de diversas formas e por isso foi uma revolução. Logan (1999) utiliza a teoria
do caos, da linguagem e as idéias de McLuhan para definir a evolução da linguagem, afirmando
que todo o desenvolvimento da humanidade ocorreu sobre as tentativas de organização do caos,
assim como do raciocínio e da compreensão de mundo.
Sabendo que uma linguagem surge quando a anterior não era mais suficiente para explicar
os fenômenos do mundo, abriram-se uma infinidade de possibilidades e incertezas. Quando
Prigogine (1996) propõe a nova formulação das leis da natureza em termos de probabilidades e
não de certezas, nos mostra que estamos vivenciando um momento privilegiado da história,
decifrando a "atividade humana, criativa e inovadora [...] como uma amplificação de uma
intensificação de traços já presentes no mundo" (Prigogine, 1996, p.74). Enfim, a internet é um
exemplo de que a humanidade não está mais limitada a situações simplificadoras, idealizadas,
mas enfrentando a complexidade do mundo real que permite a criatividade humana.
2.1. Internet e as Reconfigurações do Espaço
Recuero (2000) afirma que uma das características mais marcantes que influenciam um
meio de comunicação nas sociedades é a reconfiguração dos espaços percebidos pela mesma, já
que a comunicação reduz as distâncias e permite que as pessoas se aproximem numa perspectiva
de percepção. Com a Internet essas distâncias são mínimas, pois é possível conversar com
alguém que esteja há muitos de quilômetros, trocar arquivos, fotos, vídeos, tudo em questão de
segundos ou até mesmo em tempo real, o que modifica a nossa noção de espaço, substituindo a
idéia da aldeia global de McLuhan por uma comunidade global. Além disso, a organização da
informação no ciberespaço faz com que a noção de território conhecida por séculos seja superada,
20
visto que o movimento das informações acontece de modo quase instantâneo, proporcionando
uma reconfiguração da noção de espaço geográfico, com base num novo espaço: o virtual.
A característica fundamental da internet é o fato de ser híbrida. O sujeito vive a
possibilidade entre o local e o global, entre o lugar e o não-lugar, já que a internet é
simultaneamente real e representacional, estruturada pelos laços e valores sociopolíticos,
estéticos e éticos que a tornam um novo espaço, suportando processos cognitivos, sociais e
afetivos, nos quais sujeitos reconfiguram suas identidades e laços sociais num novo contexto
comunicativo, provocando novos valores que, por sua vez, reforçam novas sociabilidades. Por
um lado, o internauta se encontra num lugar físico, a partir do qual produz e compartilha
informações e, simultaneamente, está suspenso na pluralidade de lugares que a navegação na rede
permite.
Ao abordar a geração de novos espaços públicos, a territorialidade entra em questão,
tendo em vista que território é o ponto de ancoragem na construção de identidades, contudo,
pensar a existência de territórios na internet só é possível porque conceitualmente esses resultam
da construção de sistemas compostos por elementos simbólicos representativos. Se por um lado a
internet tem nos conduzido a repensar as fronteiras geográficas e a própria territorialidade por
causa da dimensão global do fluxo de informações e de comunicação, por outro, as interações
sociais presenciais também são afetadas, porque a rede fez com que surgissem novos espaços e
motivos de encontros presenciais, tais como os cibercafés, por exemplo.
O internauta concebe a rede como um espaço de pesquisa de informação, encontro e
compartilhamento, ou seja, a internet gera uma espacialidade reforçadas pelas metáforas de
navegação e site, termo em inglês traduzido como lugar. A proximidade então é representativa e,
em sínteses às afirmações de Lídia Silva (2001), a questão da territorialidade pode ser pensada
em três níveis:
I) A internet como um território abrangente, associado à globalização.
II) A reconfiguração da noção territorial que a internet proporciona.
III) A representação de territórios individuais na internet.
A observação desses três pontos faz com que a constituição de uma rede internacional
global tenha promovido a oportunidade de afirmação de identidades locais por meio da presença
do sujeito que ganha visibilidade global através da internet. Ainda segundo a autora, “as
21
identidades locais afirmam-se pela especificidade simbólica, iconografia, ideologia, língua
(apesar de o inglês ser a língua dominante), etc.” (Silva, 2001, p.6) e cabe a cada sujeito usufruir
dessa nova dinâmica, a partir do modo como explora a informação e as teias que a internet
permite.
2.2. A Internet Como Modificadora das Relações Sociais
Uma das características mais importantes da Internet é a reorganização dos hábitos de
socialização. A rede tem sido um modificador das relações sociais que proporcionou uma
mudança de paradigmas que resultou, inclusive, no surgimento de comunidades virtuais como
conseqüência da interação entre o ser humano e o ciberespaço. Estas comunidades estruturam-se
fundamentalmente sobre o interesse em comum de seus membros e, a partir desse princípio, as
pessoas criam entre si relações sociais e com o tempo essas relações se tornam extremamente
poderosas.
Essas comunidades surgiram através da interação comunicativa entre seus membros.
Rheingold (1996), um dos primeiros a identificar este fenômeno, descreve que através das
comunidades virtuais, a Internet atua como um mecanismo de formação de grupos sociais. Com o
passar dos anos e o desenvolvimento das chamadas Redes Sociais, isso se tornou cada vez mais
forte, porque elas atuam como ponto de encontro para pessoas de todos os tipos, todos os gostos e
as mais diversas intenções. A vida cada vez mais atribulada nas metrópoles e o crescimento da
violência contribuem para o desaparecimento de lugares fundamentais para as sociedades
humanas: os lugares de prazer e lazer, onde surgem as relações sociais, e a internet seria uma
oportunidade do renascimento desses lugares, porém virtuais, como uma reação ao
individualismo. Essa modificação é muito importante, pois derruba a organização geográfica das
comunidades, devido a reconfiguração do espaço gerada pelo ciberespaço.
Para entender como acontece a divulgação da literatura de periferia na internet, traçamos
um panorama do locais na internet onde isso acontece de maneira mais efetiva: as redes sociais.
As redes são conceitualmente dinâmicas, isto é, seus elementos estão sempre em ação, evoluindo,
mudando com o tempo. Os estudos de Watts (2003) explicam um modelo de rede social muito
22
próximo ao que conhecemos nos dias atuais: cada pessoa tem amigos, que por sua vez também
tem amigos, e essas conexões mostram que o grau de separação entre as pessoas é menor do que
imaginado. Barabási (2003) acrescentou que estas ligações seguem padrões, que estruturam
grupos sociais que se conectam a outros grupos em quantidades variáveis. Por sua vez, as redes
sociais na internet são sistemas que funcionam através da interação social, com o objetivo de
conectar pessoas e proporcionar sua comunicação, forjando assim, laços sociais.
2.2.1. Twitter
Figura 2 - Twitter4
A figura 2 mostra a página inicial do Twitter. Criado em 2006 por Jack Dorsey, Evan
Williams, Biz Stone e Noah Glass nos Estados Unidos com o objetivo inicial de desenvolver uma
espécie de SMS (Short Message Service) pela internet. O nome em inglês significa “gorjear” e a
ação de publicar uma mensagem é chamada de tweet (que originou ao verbo “tuitar” no Brasil),
ou seja, “piar” em até 140 caracteres. Constituído como uma rede social e servidor, as
atualizações são feitas e recebidas em tempo real, podendo ser lidas publicamente ou apenas por
4 www.twitter.com
23
um grupo restrito pelo usuário – seus “seguidores”, aqueles que solicitam receber as atualizações
de um usuário em seu próprio feed de notícias. Em 2010 o Twitter publicou em sua própria
página o registro de 175 milhões de usuários, concentrados principalmente nos Estados Unidos,
Japão e Brasil.
A rede conta com uma série de ferramentas:
● Retweet: Replicar uma determinada mensagem de um usuário para a lista de seguidores,
dando crédito a seu autor original. Quando um texto é "retweetado", o termo "RT" aparece
no início da mensagem.● Twitter List: Permite ao usuário criar listas compartilháveis de usuários. O que dinamiza
a leitura dos tweets já que se torna possível ler o conteúdo postado por grupos de
seguidores.● Trending Topics: Chamados de TTs, a lista de assuntos mais populares do momento. São
incluídos nessa lista os marcadores, também conhecidos por hashtags (#) e nomes
próprios, e a classificação pode ser feita segundo a popularidade a nível mundial ou
nacional. ● API: Aplicações para o Twitter que proporcionam aos usuários maneiras e interfaces
alternativas para a utilização do microblog. Voltados para sorteios, promoções, e até
mesmo uma análise mais aprofundada da opinião dos usuários a respeito de uma marca ou
serviço, atraindo muitas empresas preocupadas com feedback e desenvolvimento.
A possibilidade de intercambio de informações entre o twitter e outras redes sociais
também chama a atenção. Há parcerias com o Facebook, de modo que as atualizações são
publicadas em ambas as plataformas simultaneamente. Alguns exemplos são o Formspring (em
que o usuário responde perguntas de outros usuários), Skoob (rede social brasileira colaborativa
para leitores) e o Tumblr (plataforma de blogging), que dá a opção de que o usuário escolha a
mensagem que será enviada para o Twitter. Além disso, com a criação do Twitter também
surgiram diversas redes sociais dependentes dele que permitem o envio de fotos e vídeos, como o
Twitpic e o Twitcam. Outros, como o TwitDraw, permitem que o usuário comece um desenho e
seus seguidores o completem, e o LOLquiz, que hospeda testes cujo resultado é enviado
diretamente para o Twitter. Muitas empresas também utilizam o Twitter para divulgação, devido à
possibilidade de atualizações constantes e a proximidade ao consumidor. A rede tem se mostrado
24
um ótimo instrumento para o fortalecimento das marcas porque as empresas interessadas na
opinião dos clientes podem escutá-los diretamente e oferecer reações imediatas às reclamações.
O Twitter também enfrenta vários problemas. O slogan da empresa, “O que está
acontecendo?”, deve ser respondido em até 140 caracteres, espaço considerado muito curto por
diversas empresas que proibiram sua utilização por considerar uma forma de comunicação que
deixaria a desejar em termos de qualidade de informação. Há também alguns casos de suicidas
que tuitavam sobre seus sentimentos até momentos antes de cometerem tal ato, avisando seus
seguidores; e ainda casos envolvendo preconceito, direitos autorais e invasões de crackers
(hackers que roubam senhas de usuários). Apesar das divergências, a rede ainda é uma das mais
populares do Brasil e do mundo, tendo se destacado com muitos benefícios, inclusive uma
ferramenta produtiva, desde manifestações políticas até na comunicação de sobreviventes de
desastres naturais.
Um termo de uso relativamente recente que tem atraído atenção é a “twitteratura”, que
define as junções dos termos Twitter e literatura, caracterizando a hipótese de um gênero literário.
O título tem sido usado para definir todo e qualquer tipo de manifestação literária dentro da
plataforma em questão. O espaço de 140 caracteres permite a publicação de “microcontos” e
adaptações de narrativas, dentre diversos outros gêneros derivados, sendo alguns deles já
publicadas de forma impressa. Seguem identificadas as características particulares de alguns
exemplos:
- Microcontos: Narrativas sem regras de conteúdo, tendo o limite de 140 caracteres. Um
perfil é capaz de ter vários microcontos, desconectados um ao outro, como é o exemplo da figura
3.
25
Figura 3 - Microconto no Twitter
https://twitter.com/jeniffersantos
- Adaptações: adaptações de obras publicadas em outros meios (como o impresso) através
de vários posts de até 140 caracteres. Com um toque de personalidade, as obras são adaptadas,
não são simplesmente copiados e colados, e costumam ser publicados com uma certa
temporalidade definida.
A Twitteratura é um gênero relativamente fácil, tanto para escrever como para ler, pois é
produzida numa ferramenta de fácil manuseio e acesso. O Twitter possibilita que qualquer
usuário publique sua literatura, sem burocracia. Em adição, proporciona a aproximação entre
escritores e leitores, misturando um pouco os papéis, porque a interação entre perfis literários faz
com que surja cada vez mais Twitteratura.
A periferia também marca presença no Twitter. O poeta Sérgio Vaz, por exemplo, além de
publicar sua agenda e da Cooperifa, tuita comentários do cotidiano, usa a rede para expressar suas
opiniões e produzir literatura, com frases e poemas de sua autoria. Atualmente, as redes sociais
têm a opção de serem interligadas por mecanismos de publicação: o que você publica no seu
perfil do Twitter, também é mostrado na sua página do Facebook, e vice-versa. Por isso, boa parte
do conteúdo da página do poeta é compartilhada em ambos os suportes, como verificamos na
figura 4:
26
Figura 4 - Twitter e Facebook do Poeta Sérgio Vaz5
2.2. Facebook
Figura 5 - Facebook6
5 www.twitter.com/poetasergiovaz e www.facebook.com/poetasergio.vaz2
6 https://www.facebook.com/zuck
27
O Facebook, ilustrado na figura 5, é um site e rede social criado por Mark Zuckenberg e
seus colegas de quarto, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. A princípio a rede
era fechada aos estudantes da Universidade de Harvard, onde os desenvolvedores estudavam,
mas logo a plataforma foi ampliada para Stanford, Ivy League, até que qualquer pessoa com mais
de 13 anos pudesse se cadastrar, embora em 2011 tenha sido registrado mais de 7,5 milhões de
usuários com menos de 13 anos de idade. A rede mais usada no mundo registrou em 2012 mais
de 1 bilhão de usuários ativos e gera receita através de publicidade
Ao cadastrar-se no Facebook, o usuário é guiado a encontrar amigos por meio de
sincronização de contatos com seu e-mail e outras redes sociais, conectando-se e convidando
essas pessoas a compartilharem conteúdo. O perfil do usuário na rede social deve ser o mais
completo o possível para que receba sugestões de acordo com suas preferências e deve ser
preenchido com informações verdadeiras, ao contrário do Orkut, que tolerava fakes (perfis com
informações falsas). Os recursos do site são diversos, entre eles:
● Mural: um espaço na página de perfil do usuário que permite aos amigos postar
mensagens para os outros verem. Ele é visível para qualquer pessoa com permissão para
ver o perfil completo. ● Status: É o conteúdo compartilhado. Podem ser mensagens de texto, fotos, vídeos, além
de marcar o nome de um amigo para que ele veja a publicação, fazer check-in (indicar a
localização onde o evento postado ocorreu ou está ocorrendo), atualizar com informações
que envolvem o humor do usuário, o que está assistindo, lendo, ouvindo ou jogando. ● Mensagens privadas: são enviadas à caixa de entrada do usuário e são visíveis apenas ao
remetente e ao destinatário, bem como num e-mail. Quando ambos os usuários estão
online, funciona como um chat em tempo real. ● Botões: Curtir é um recurso através do qual os usuários demonstram ter gostado do
status. Há ainda as opções Comentar e Compartilhar. ● Cutucar: em inglês Poke, é uma forma de interação entre amigos no Facebook, sem
qualquer finalidade específica. A princípio, é usado para atrair a atenção de outro usuário,
dizer “oi”. ● Eventos: Um recurso para que os membros informem seus amigos sobre os próximos
eventos em sua comunidade, para organizar encontros sociais.
28
● Aplicativos: O Facebook criou uma plataforma com framework para desenvolvedores
criarem aplicações que interajam com os recursos internos do site, e a cada dia o número
de aplicativos cresce, sejam eles jogos ou editores de imagens. ● Facebook Messenger: é uma plataforma independente para Android, IOS e BlackBerry
que permite conversar por mensagens com seus contatos da rede. Também foi lançada
uma versão para Windows.
O Estadão publicou em seu blog que o líder das redes sociais no Brasil, ao final de 2011,
tinha 35,1 milhões de usuários. Um ano depois, o número chegou perto de dobrar e foi para 64,8
milhões. Isso significa que a abrangência do Facebook no Brasil se aproxima a um terço (32,4%)
da população de 201,1 milhões de pessoas. Os dados são da Socialbakers, empresa de estatísticas
sobre mídias sociais. Avaliando somente a população com acesso a internet, o estudo afirma que
o Facebook abrange 82,32%. O maior grupo de brasileiros na rede tem entre 18 e 24 anos (20,8
milhões). Os perfis de mulheres são maioria (54%) do total. O número continua a aumentar, mais
962 mil brasileiros se cadastraram na rede no último mês de 2013.
O Facebook também se tornou um terreno fértil para a produção literária no Brasil.
Existem milhares de páginas dedicadas à paixão pela leitura, onde são publicados trechos de
livros, no formato de texto ou imagem, e compartilhados pelos usuários. Há ainda as páginas
dedicadas a autores e suas obras, que vão desde os clássicos como Clarice Lispector até o poeta
da periferia Sérgio Vaz. A propagação de citações é o modo mais utilizado para disseminar o
texto literário na rede social.
O consumo de literatura nas redes sociais também vem alterando o comportamento dos
escritores. Em seus perfis, os escritores, consagrados ou não, divulgam suas obras, e os mais
populares passaram a revelar bastidores de seu processo de produção, fazendo de sua página uma
espécie de diário, de modo que o público possa consumir não apenas a sua literatura, mas a sua
vida. É uma situação de alta visibilidade em tempo real. A avidez por comunicação que
caracteriza a sociedade atual cria uma geração de autores mais abertos em sua subjetividade
literária, motivados por um público que deseja vislumbrar a produção. Além disso, o público não
29
só busca maior compreensão da obra de seus autores favoritos, como também gosta de observar
sua visão de mundo e suas posições políticas.
Outro aspecto interessante do consumo de literatura no Facebook é a disseminação de
obra cujos autores que já faleceram, tais como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade,
Clarice Lispector, Paulo Leminsky e Caio Fernando Abreu, que alavancam diferentes
apropriações pelos usuários. As citações que têm algo de autoajuda quando tiradas do seu
contexto fazem muito sucesso e em alguns casos, servem como indiretas ao serem
compartilhadas. Paulo Leminski é um exemplo de autor que começou a ser consideravelmente
citado no Facebook, especialmente na época em2013, quando as manifestações tomaram as ruas
do país. Esse movimento nas redes sociais levou a antologia “Toda Poesia” de Leminski a
aparecer diversas semanas na lista de mais vendidos.
As redes sociais têm contribuído consideravelmente para a popularização da poesia
brasileira, e Sérgio Vaz é um exemplo de autores contemporâneos que ganham cada vez maior
visibilidade. O autor da periferia e seus textos serão estudados adiante nesta pesquisa, porém vale
mencionar que eles repercutem com sucesso no Facebook. Veja na Figura 6:
30
Figura 6 – Poesia no Facebook7
No Facebook, o poeta também publica suas opiniões, divulga os trabalhos da Cooperifa,
fotos, videos, entrevistas e uma infinidade de conteúdo curtido e compartilhado por todo tipo de
usuário. Entretanto, o efeito de sentido que mais chama atenção em suas postagens é o discurso
de autoajuda. Além de poeta, Sérgio Vaz passa a ser uma espécie de instância que detém respostas
para a compreensão do mundo e do homem, conselheiro de como viver a vida sem as decepções
do cotidiano.
2.3. Internet e Hipertexto
A linguagem escrita começou a conquistar seu próprio formato, com fontes, no caso dos
sites, aliadas às cores e aos diferentes tipos e tamanhos, que criam diferentes diagramações para
captar a atenção do leitor. Com a era tecnológica, como afirmou Prigogine (1996), não há mais
certezas absolutas. Conceitos são frequentemente desconstruídos de modo a questionar valores,
inclusive os estéticos e o espaço do hipertexto é um ambiente apropriado ao cruzamento destas
manifestações fenomenológicas. A perspectiva teórica de Prigogine (1996) propõe que
7 https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2?fref=ts
31
determinadas ocorrências são acontecimentos complexos, que podem tanto significar o fim como
originar um novo começo. Podem ainda gerar o fenômeno da bifurcação de caminhos, que se
abrem em novas e intrincadas possibilidades. Sendo assim, a estrutura do hipertexto possibilita o
acesso a todo tipo de informação, mas sua transformação em conhecimento e reconfiguração de
repertório é opcional e intencional.
Ted Nelson (1992), citado por Landow (1992), define o termo hipertexto como “...
escritas associadas não-sequenciais, conexões possíveis de se seguir, oportunidades de leituras
em diferentes direções”. Assim, o texto hipertextual, quando se refere a um documento digital,
que apresenta maiores possibilidades e diferentes “planos” – também conhecidos como “blocos”
– que contêm informações as quais interagem por meio de ligações, links, que dialogam
coordenadamente, para compor novas estruturas narrativas conforme a intencionalidade do leitor
ou proposta do autor.
Segundo Landow (1992), o hipertexto desconstrói a rigidez, rompe com a linearidade
em que há uma predefinição do começo e fim, e propõe uma estrutura processual e móvel, de
acordo com as escolhas do leitor. Assim, rompe-se com a noção de unidade e surge o princípio da
interatividade – participação do leitor na elaboração do texto através da escolha de caminhos que
estruturam a narrativa. Os textos ficam disponíveis eletronicamente por meio de escanerização ou
digitação, enquanto os links são palavras destacadas ou ainda ícones.
A reprodutibilidade é especialmente polêmica quando falamos sobre o meio digital, pois
se volta à questão dos direitos autorais. Textos online dão maior abertura para que a lei seja
burlada, pois em diversas circunstâncias não há controle sobre sua reprodução, fazendo com que
o papel do autor muitas vezes seja questionado diante da intervenção de outro sujeito que se
constitui em relações diversas. A sequência de relações estabelecidas pelo leitor é o que vai
determinar o arranjo da narrativa ou poética. Assim, a estrutura da obra não é dada pelo autor, no
entanto são abertas possibilidades que podem completadas pelo leitor e quando o sistema
incorpora elementos das diversas mídias, tais como vídeo, música, fotografia etc, entra no campo
da Hipermídia, no qual a proliferação de sentidos ocorre dentro de princípios discutidos por
Pierre Levy (1997): Princípios de Metamorfose, Heterogeneidade, Multiplicidade e Encaixes de
escala, Exterioridade, Topologia e Mobilidade de centros.
32
O Princípio da Metamorfose é o processo de constante construção e renegociação de
sentidos que se dá nos hipertextos. Segundo o autor, trata-se da própria dinâmica de disseminação
de informação na web, que faz com que os prazos de atualização sejam cada vez menores. Já o
Principio da Heterogeneidade refere-se às informações organizadas numa determinada sessão de
um hipertexto e o modo como as conexões que se estabelecem entre diversas partes dele que têm
caráter extremamente heterogêneo, ou seja, seus padrões apenas são definidos no âmbito do
discurso. Segundo o Princípio da Multiplicidade e Encaixes de Escala, cada conexão pode
revelar toda uma rede de novas conexões, por isso os eventos veiculados pela internet também
têm uma capacidade de mobilização social diferente de outras mídias: a progressão dos eventos e
seus efeitos ocorrem a partir de uma rede sinérgica e sensível da correlação de informações feitas
por usuários em diversos lugares. O Princípio de Exterioridade, por sua vez, afirma que a
construção, definição e manutenção de dados dependem das complexas e múltiplas interações
entre pessoas. Quanto ao Princípio da Topologia, refere-se ao curso dos acontecimentos que é
uma questão de construção de caminhos. Enfim, O Princípio da Mobilidade dos Centros afirma o
caráter rizomático da rede, com múltiplos e móveis centros, que se organizam de acordo com o
fluxo de leitura - logo, o leitor é o centro, seu interesse, seu tempo disponível, sua cognição.
2.4. Internet e Política
Já que muitas pessoas podem interagir através da internet, Pierre Lèvy (1997) conseguiu
ver nesse meio um futuro democrático para a humanidade através da idéia da “democracia
eletrônica”. A internet é um instrumento de transformação política, com o surgimento de uma
forma da democracia na qual a técnica é fundamental. Este novo sistema, segundo Recuero
(2000), seria estabelecido por pessoas que dominassem a técnica, o desenvolvimento das
máquinas, das tecnologias e sua aplicação na chamada Sociedade da Informação.
A Carta Capital publicou uma pesquisa8 em Fevereiro de 2014, após ouvir 2.201 eleitores
em 161 municípios de todas as regiões do país, revelando que a internet é a segunda fonte de
informação que os brasileiros utilizam quando querem saber sobre política, enquanto a televisão
ainda é a primeira. Os resultados da pesquisa Vox Populi indicam que 55% buscam noticiários
8 http://www.cartacapital.com.br/politica/internet-e-a-segunda-principal-fonte-de-informacao-sobre-politica-8912.html
33
televisivos para se informar sobre os acontecimentos políticos, enquanto 12% procuram em sites
especializados na internet notícias e análises sobre os desdobramentos na política. A utilização de
jornais impressos e revistas aparece em terceiro na lista, sendo esta a primeira opção para apenas
7% dos entrevistados. Para 5%, a principal fonte de informação sobre o tema são blogs e redes
sociais, enquanto 4% buscam se informar por meio do rádio e 3% com ajuda de amigos, vizinhos
ou colegas de trabalho.
Por sua vez, as redes sociais são um poderoso instrumento para as manifestações políticas,
porque agilizam e amplificam a comunicação, especialmente o Twitter e o Facebook, que tem
sido chamados de agentes de mobilização nos artigos recentes que se referem ao assunto. Paolo
Gerbaudo (2012) atentou que, de certa forma, a mídia moderna constitui um canal através do qual
os movimentos sociais, não apenas se comunicam, mas também organizam suas ações e
mobilizavam seus partidários. Ao contrário da dispersão das sociedades contemporâneas,
Facebook e Twitter contribuíram para constituir um novo senso de centralidade social, voltado
para a ocupação das ruas e praças, transformadas em locais de referência para reuniões, com um
grande poder de atração emocional, segundo o autor.
Tal motivação emocional mobiliza ainda a construção simbólica de um senso de união entre
os ativistas, por isso o autor afirma que é necessário pensar a rede como um elemento
complementar aos encontros presenciais, bem como um veículo para a criação de novas formas
de interação. Contudo, na relação de forças políticas que concorrem para a vitória ou derrota de
um movimento, é importante estar atento às ilusões de auto-suficiência e ausência de mediação
que a estrutura da internet sugere, pois existem muitas forças em jogo, além da possibilidade do
processo de apropriação de discursos por meio de assessorias de imprensa. Enfim, trata-se de
considerações necessárias para manter em mente que as redes sociais são um instrumento
agregador para as lutas que se travam no enfrentamento cotidiano entre forças políticas, alertando
para os riscos da simplificação e imediatismo dos processos envolvidos.
34
2.4.1 Manifestações na Internet
A internet é descrita por Romão (2006) como uma cadeia globalizada de arquivos
digitalizados, interconectados e dispostos em links organizados e endereços fixos, cuja
permanência online tem duração bastante volátil. A textualidade eletrônica tem a vantagem de
não precisar necessariamente ser aceita para estar num blog ou numa rede social, mas ainda assim
não traz consigo todos os sentidos: é preciso pensar a questão do arquivo em rede como uma
reflexão também sobre poder, que vai desde disponibilizar instrumentos de permanência de certos
sentidos, burocratizando e oficializando informações, até mesmo construir lugares de resistência,
de autorizar que alguns sentidos sejam divulgados e outros não, de servir para que algumas vozes
sejam caladas. Em suma, o poder de selecionar interesses, de emprestar prestígio e de
proporcionar ligações para que redes de conexões se construam ou se dissolvam.
Melo (2004) destaca que não basta os conteúdos estarem depositados na rede, é preciso
que eles circulem, entrem na ordem do discurso e não fiquem apenas à deriva na superfície. De
acordo com a autora,
Qualquer indivíduo, não importando sua origem geográfica e social, pode investir narede por conta própria e difundir nela todo tipo de informação que ache digna deinteresse, desde que para isso lance mão de um mínimo de competências técnicas. Asfacilidades para lançar uma publicação na web são, sem sombra de dúvidas,infinitamente maiores do que na mídia tradicional. (MELO, 2004, p.137)
Foi com a circulação de informações na rede que novas ações coletivas de protesto e
ativismo surgiram no ciberespaço. Até então estas ações, segundo Castells (2003), eram
relativizadas em fronteiras geográficas e extrapolavam o local, se conectando ao global, e, ao
mesmo tempo, retornando ao regional por meio da virtualidade digital. Por isso em 2013
pudemos presenciar o surgimento de diversos movimentos sociais na rede, tais como a Marcha
35
da Maconha9, a Marcha das Vadias10, Movimento Passe Livre11, entre outros. São movimentos
que ganharam no Brasil muita visibilidade através das redes sociais e, posteriormente, nas mídias
tradicionais, recebendo o apoio de milhares de pessoas que saíram às ruas para somar aos mais
diversos movimentos em todo o país. Na medida que os protestos se tornavam maiores, eventos
eram criados nas redes sociais, incitando as pessoas a participar da luta, mas agregavam
particularidades: pautas diversas começaram a surgir e gritos de guerra como “o gigante acordou”
entoaram as manifestações virtuais e físicas, conforme vemos na figura 7:
Figura 7 – Manifestantes vão para as ruas12
Ativistas reforçaram a onda de indignação generalizada com os serviços públicos do país
e colocaram em pauta até mesmo reivindicações contra leis específicas em processo de votação
pelo poder legislativo. As ruas receberam a massa em marcha, porém com propósitos próprios,
que não necessariamente convergiam uns com os outros, e no dia 20 de Junho de 2013
9 Movimento que luta pela legalização da maconha10 A Marcha das Vadias protesta contra a crença de que as mulheres que são vítimas de estupro teriam provocado a violência por seu comportamento. Por isso, marcham contra o machismo, e durante a marcha usam não só roupas cotidianas, mas também roupas consideradas provocantes, como blusinhas transparentes, lingerie, saias, salto alto ou apenas o sutiã.11 O movimento social brasileiro que defende a adoção da tarifa zero para transporte coletivo.12 www.google.com/images
36
totalizaram no país mais de um milhão, noticiados no mundo todo. Alsina (2009), citado por
Ávila (2013), reflete a respeito, afirmando que toda a atividade discursiva pressupõe a produção
de interpretações na construção do que se enuncia. Todas as pessoas constroem a realidade que as
cerca e cada sistema cultural define qual fato ou fenômeno merece ser considerado um
acontecimento. Direcionando estes movimentos sociais online, identificamos uma condição
tecnológica da plataforma de relacionamentos Twitter que passou a ser utilizada em outras redes
tais como o Facebook: a hashtag.
Mais um dos códigos da era virtual, a hashtag passou a ter um papel fundamental nas
comunicações de massa via redes sociais. Seu uso foi iniciado no Twitter e posteriormente se
estendeu ao Facebook (e outras redes), como palavras-chave (relevantes) ou termos associados a
uma determinada informação, possibilitando o acesso a um número infinito de links e
comentários. As tags têm papel importante na difusão de conteúdos e idéias pela rede, espalhando
através de conexões as informações e conteúdos mais relevantes na perspectiva da força de idéias
compartilhadas pela massa de usuário, exemplificado na figura 8:
Figura 8 - Manifestantes no Brasil em Junho de 201313
13 www.google.com/images
37
Conflitos e injustiças fazem parte da nossa história desde o início da humanidade, e
quando passamos a viver em rede, conectados com o que acontece em todo canto do mundo,
experimentamos uma nova forma de existência: o indivíduo se percebe como cidadão global, pois
se estende e integra um todo chamado consciência coletiva. Na medida em que aumenta o acesso
à informação, a tendência é que aumente também o senso de responsabilidade, pois somos cada
vez mais instigados a tomar uma iniciativa acerca dos problemas que permeiam a sociedade. A
internet e as redes sociais aumentaram a sensação de que qualquer pessoa pode fazer a sua parte e
diminuir a angústia da impotência em um click, demonstrando todo apoio (ou repúdio) a
determinada causa. Esse é o chamado slacktivism, também conhecido como ativismo de sofá. O
termo é utilizado para designar o comportamento das pessoas que, ao se depararem com qualquer
causa social, sentem-se participantes, manifestantes ou colaboradores da mesma simplesmente
por passá-la adiante de alguma forma. Porém, acreditamos que apenas compartilhar uma causa
nas redes sociais não necessariamente transforma o sujeito em ativista ou revolucionário.
A divulgação das causas na internet poderia gerar resultados mais efetivos se
funcionassem como uma ferramenta de busca pelo apoio da opinião pública para que seus
objetivos sejam atingidos, não como substituto das ações cotidianas. Compartilhar uma causa no
Facebook ou preencher um abaixo-assinado digital é, de certa forma, manifestar suporte a um
ideal. Lutar por uma causa implica a participação tanto daqueles que fazem quanto daqueles que
falam. Acreditamos que para mudar um país é necessário mais do que apenas passar ideias
adiante: precisamos de ações, desde as menores como não furar a fila do supermercado até o voto
consciente, por exemplo. Ainda assim, isso não diminui o papel de quem promove as causas,
contribuindo para que mais gente tome conhecimento delas ou pressionando o poder público.
Os artistas da periferia de São Paulo também tiveram seu papel nas manifestações. Os
versos de Sérgio Vaz, por exemplo, foram empunhados por professores da rede pública nas
manifestações pela reforma da educação, como podemos ver na figura 9:
38
Figura 9 - Professores manifestam nas ruas14
Além disso, o poeta aproveitou a popularidade das hashtags nas redes sociais e convocou
seus seguidores a se manifestarem, numa campanha contra a falência da escola, clamando pelo
ensino público de qualidade, postando fotos com seus rostos e a mensagem
#NósQueremosEducaçãoPúblicaDeQualidade, ilustrado na figura 10:
14 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
39
Figura 10 - #NósQueremosEducaçãoPúblicaDeQualidade15
Diversos coletivos culturais da periferia paulistana também organizaram na Cooperifa um
debate para discutir a atual situação do Brasil e se mobilizaram para articular ações que
fortalecessem o direito à livre participação democrática no país, e que conscientizassem os menos
politizados a respeito dos perigos que a intolerância, violência e desorganização acarretariam no
dado contexto. Seus discursos defendiam que somente com as pautas próprias das periferias é que
as manifestações poderiam ganhar novamente peso político direcionado e consistente, usando a
cultura, arte e política como elementos aglutinadores.
A cultura de resistência foi ressaltada pelo coordenador da Cooperifa, frisando que a
periferia vivia o momento de colocar em prática tudo o que o rap sempre colocou em ritmo, e
tudo o que tem sido escrito nas poesias periféricas. "O que me parece é que precisamos desse
sangue nos olhos [...]. E a gente sempre escreve sobre isso, fala sobre isso. Sempre cita Zumbi,
Marighella, Che Guevara, mas agora é a hora de colocar em prática tudo isso. Se não for assim,
pode rasgar tudo o que você já escreveu"16, provocou o poeta.
O poeta acredita que uma reforma política é necessária, sendo importante para alcançar esse
objetivo a reivindicação de questões que representem a população brasileira na situação caótica
15 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
16“Diante das mobilizações, coletivos criam frente periférica contra fascistas em SP”, por Sâmia Gabriela Teixeira. In: <http://www.brasildefato.com.br/node/13322>
40
em que se encontra, sem disfarces nem procedimentos manipulatórios. Sérgio Vaz fica feliz que
“O Gigante” tenha acordado, mas lembra que existe uma parte que nunca dormiu, uma parte que
não recebe as balas de borracha, e sim as de verdade. A figura 11 ilustra o discurso e a ela
podemos acrescentar Gullar: “Só é justo cantar quando seu canto arrasta consigo pessoas e coisas
que não tem voz”.
Figura 11 – Poeta Sérgio Vaz frente às manifestações17
As palavras do poeta podem ser aprofundadas na teoria de Bittencourt (2011), ao afirmar
que as estratégias de resistência na contemporaneidade estão sendo vistas mais como lutas contra
as diferentes formas de assujeitamento, do que lutas contra formas de dominação (uma classe
sobre outra, por exemplo). Nessa direção, seguindo Deleuze e Guattari (2008), ele afirma que se
"busca compreender é a produção de subjetividades que derivam de técnicas cada vez mais
sofisticadas de assujeitamento, bem como as estratégias de resistências que fazem frente a esses
processos" (BITTENCOURT, 2011, p.13).
Recorremos a teoria do assujeitamento de Eni Orlandi (2007), a qual nos permite analisar
como se dá o processo de constituição dos sujeitos e como isso pode repercutir na sua relação
com o movimento e na sua relação com as manifestações. A autora explana que a constituição do
"sentido" e da "identificação do sujeito" se dá a partir das formações discursivas às quais o sujeito
está assujeitado, mas não de forma determinista, e sim na relação entre sua história de vida e a
história de suas relações institucionais.
17 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
41
Observamos que haviam dois núcleos articuladores principais dos protestos: um no campo
do sistema político e da respectiva necessidade de reformas, e outro no campo das políticas
sociais e da necessidade de prioridade governamental em relação a elas. Foi essa condição de
identificação de ser sujeito jurídico, sujeito de direitos e deveres – em outras palavras, sujeito
livre para as manifestações de rua e em reação a formas institucionais de contenção ou violação
desses direitos – que permitiu uma primeira articulação discursiva entre sujeitos plurais,
ideologicamente bastantes diferenciados e, às vezes, opostos, a qual justifica seu comparecimento
simultâneo às ruas. Tal unidade entre sujeitos se constituiu também na identificação quanto ao
questionamento e à reprovação das políticas institucionais. Esclarecendo através de Orlandi
(2007):
No caso do capitalismo, tem a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável,que deve assim responder, como sujeito de direito, frente ao Estado e aos outrossujeitos[...] [...] na individualização do sujeito pelo Estado, pode sim ocorrer a resistência. Hápossíveis deslocamentos do sujeito aos modos pelos quais o Estado o individualiza,deslocamentos que afetam os modos como o sujeito, com sua forma histórica, relaciona-se com as instituições e isso pode resultar em rupturas, transformações no processo desua individualização (2007, p. 3).
Além disso, essa ambiguidade também resulta em mais de uma forma de identificação na
política dos sujeitos-atores que compareceram às ruas em 2013: por um lado, os identificados
com movimentos sociais e (ou) partidos políticos; por outro, os participantes individuais,
convocados, sobretudo, pelas mídias digitais. Essas duas formas de ser sujeito político geraram as
contradições e os conflitos políticos presentes no processo mobilizatório. Além disso, o que
articulava a diversidade de atores ao evento era, num primeiro momento, o direito às vozes da
cidadania nos espaços públicos e às respectivas manifestações; num segundo momento, foram os
questionamentos e a reprovação às políticas institucionais de uma forma geral, os quais se
construíram através de uma espécie de articulação discursiva informal e efêmera, pois realizada
basicamente através de redes virtuais, com pouca organicidade, de uma forma geral.
Esse segundo tipo de articulação, pela forma como se deu, sem a existência ou com uma
frágil "identificação na política" (Mignolo, 2008, apud Scherer-Warren, 2014), ou seja, sem o
trabalho de construção de um compartilhamento ou uma articulação discursiva em torno de um
42
projeto de mudança ainda que provisório, foi o que caracterizou a efemeridade do grito das ruas
de 2013 no Brasil, e a descrença sobre sua continuidade, ainda que se mantenha o desejo de
promover modificações no campo institucional da política e buscar caminhos para a ampliação no
campo dos direitos humanos, ouvindo-se as vozes da cidadania.
Em suma, percebemos então que tais manifestações se iniciaram em torno de pautas
semelhantes, relativas à necessidade de mudanças estruturais no sistema de mobilidade urbana e
dos direitos dos cidadãos à cidade e a seus equipamentos públicos. Como no passado, a luta
buscava mudanças no sistema social e no campo dos direitos humanos e da cidadania. Entretanto,
as manifestações foram se transformando numa diversidade de lutas específicas, mesclando
participantes de movimentos organizados, de partidos políticos, membros de grupos semi-
organizados e cidadãos individualizados, simpatizantes com as causas em pauta.
2.5. Internet e Literatura
A popularização de novas tecnologias midiáticas despertou questionamentos sobre a
organização e a circulação do fenômeno literário, assim como diversos meios de comunicação
que afetam e transformam a infra-estrutura tecnológica e sociocultural. Isso porque os processos
de mediação entre indivíduo, sociedade e realidade perpassam os grandes tópicos temáticos da
literatura e também os circuitos de sua produção, transmissão e recepção, articulados com as
demais esferas da mídia.
Atualmente, a realidade da internet representa um grande desafio para a cultura do livro
e para as formas tradicionais de produção e recepção literária. Marshall McLuhan afirma que
propagação e a leitura do texto literário são favorecidas pela tecnologia midiática na medida em
que privilegiam a esfera intelectual, pois conquistam uma dimensão essencial da sensibilidade
que, além de enfatizar certa racionalidade, possibilita o exercício pleno de nossas capacidades de
ver, ouvir, tocar e sentir. Quanto ao desenvolvimento das relações entre a literatura e a
apresentação eletrônica dos textos, ainda é possível afirmar que arte passa a ser parte da vida
cotidiana porque tem uma inserção atuante na sociedade e nos processos que dialogam com ela,
reconfigurando o panorama cultural.
43
Diálogos entre tecnologia, cultura e leitura são também uma questão política, na medida
em que revelam sistemas de interação e polemizam conceitos cristalizados sobre a relação da
literatura com a sociedade, com os meios de produção, os produtores, os receptores e com sua
própria natureza e função, obrigando-nos a um questionamento sobre o livro e seus meios de
veiculação, e a uma mudança de horizontes de expectativas quanto à leitura.
Considerando que a tecnologia funciona como elemento central da contemporaneidade,
é necessário aprofundar as relações desta com as esferas da cultura, a literatura e o livro, por
consequência. Benjamin, citado por Gatto (2000), anunciou a crise do livro impresso, abordando,
por um lado, o valor simbólico-cultural que ele carrega e por outro, a sua configuração como
instituição. Entretanto, a experiência do leitor perpassa não só a relação que este tem com a obra,
logo o texto eletrônico oferece mais sensações e possibilidades interativas, mas não supre as
relações do texto impresso com todas as suas aberturas.
Provavelmente o livro impresso e o eletrônico conviverão juntos ainda por um longo
período, embora as publicações em formato eletrônico cresçam cada vez mais. Os e-readers18 não
eliminam o livro impresso como importante suporte informacional: um não supera o outro, cada
um detém seu espaço e, algumas vezes, se mesclam, como no caso do aplicativo para Ipad
Bridging Book19, por exemplo. Os leitores de livros eletrônicos não chegaram para superar
realmente o livro impresso, mas sim para somar: mais possibilidades, mais cultura, mais
disseminação da informação, mais oportunidades para editoras independentes.
É importante notar que as mudanças textuais promovidas pelo uso das novas tecnologias
promovem rizomas, redes hipertextuais, assim surge um suporte para o texto, um novo leitor e a
necessidade de uma nova linguagem: Gatto (2008) explica como uma estrutura complexa, repleta
de torneios linguísticos, jogos vocabulares, além de contar com a exploração do espaço não
somente da página, mas de um universo de informações possibilitadas pela rede: a estrutura
hipertextual. Descentralizadora, trata-se da abertura do texto a um jogo que, como afirma Derrida
(1973) apud Gatto (2000, p.8), “instala a possibilidade de desautomatização do controle sobre a
18Os “Leitores Eletrônicos” (Tradução da autora) são dispositivos criados para a leitura de livros e textos digitais. Um dos exemplos mais famosos é o Kindle, comercializado pela Amazon.com 19 Bridging Book consiste num aplicativo de Ipad no qual o dispositivo digital e um livro impresso, colocados ladoa lado, compartilham conteúdo sincronizado. Folheando as páginas do livro, o usuário-leitor aciona o dispositivo para exibir o conteúdo digital complementar. Na versão atual , as ilustrações impressas em cada página do livro físico são estendidos na tela do dispositivo.
44
escritura” (Derrida, 1973, apud Gatto, 2000, p.8). Neste sentido, o papel do autor é questionado e
o leitor surge como uma figura que interage na leitura e na produção.
Para melhor apresentação da produção literária nos meios tecnológicos, a noção e
conceito de hipermídia – tecnologia que engloba as noções de hipertexto e multimídia - devem
ser retomados. Nos últimos tempos, a tecnologia consolidou-se no panorama brasileiro,
recebendo muitos incentivos, principalmente da iniciativa privada, pela necessidade de ampliação
das possibilidades de acesso ao conhecimento globalizado e das perspectivas de interação.
Escolas têm transformado seus currículos, ao incluir tecnologias, a fim de possibilitar ao aluno a
ampliação de seu universo, tornando-o cidadão do mundo. Realizam-se teleconferências.
Ampliam-se as salas de bate-papo e fóruns. A web tornou-se o lugar de encontro de milhões de
pessoas que buscam informações, divertimento, comodidade nas compras e pesquisas.
Com o crescimento das novas mídias, a literatura foi estabelecendo um espaço. Jornais
literários, sites pessoais de poetas/escritores, sites institucionais de divulgação de pesquisa,
bibliotecas virtuais com acervo para download, livrarias virtuais, e-books, que se proliferam cada
dia mais. Isto se deve, segundo Gatto (2000), a três fatores:
1. A Web é um campo aberto aos experimentos e vocações.
2. Muitos dos sites de autoria são amadores e respondem a um anseio subjetivo do
criador ser notado pela comunidade.
3. Algumas editoras oportunamente descobriram um nicho no mercado editorial
eletrônico: a possibilidade de publicação de livros com um custo bastante reduzido, possível em
decorrência da não impressão em papel e da distribuição facilitada, fatores que geram uma
elevação do custo.
Essas questões serão discutidas posteriormente, mas por hora elas ilustram a motivação
de uma interessante plataforma no ciberespaço, que se constitui de páginas na web e oferece
acesso facilitado aos usuários, proporcionando um espaço relativamente democrático para novos
escritores.
Beatriz Resende (2010), ao discutir o uso da internet como meio de divulgação da literatura
em seu artigo “A literatura brasileira num mundo de fluxos” destaca os recursos da internet no
papel de modificadores da linguagem literária:
45
Essas novas formas de circulação vêm impondo à produção literária e artística novos formatos, tributários, várias vezes da linguagem própria da internet. Assim como os quadrinhos (HQ), os espaços virtuais deixam marcas na própria estética literária até mesmo quando os escritos migram da internet para o papel. (RESENDE, 2010, P.111)
Ao se pensar em leitores em formação diante dessas modificações contínuas nas formas
de apresentação do texto e na maneira de lê-los, as novas tecnologias parecem se tornar mais
atraentes e capazes de interferir com maior rapidez nas escolhas de leitura das gerações que
crescem em meio a jogos eletrônicos e imagens de alta definição ou 3D. Interessa, neste trabalho,
refletir sobre as possibilidades de divulgação da poesia produzida na periferia, e pensar,
juntamente a Néstor García Canclini (2008, p.30) se os novos espaços para divulgação e seus
suportes avançados servem para diminuir ou ampliar as desigualdades culturais e de leitura,
partindo do questionamento feito por ele em seu livro Leitores, espectadores e internautas:
[...] os novos meios geram desafios para os quais a maioria dos cidadãos não foitreinada: como usar o software livre ou proteger a privacidade no mundo digital, o quefazer para que as brechas no acesso não agravem as desigualdades históricas entrenações ou etnias, campo e cidade, níveis econômicos e educacionais?
Seja pelo livro impresso, seja pelo ciberespaço o interesse do leitor em desvendar
novidades com as quais se identifica é o primeiro impulso para a busca de histórias, e poesias,
utilizando todos os meios de circulação a sua disposição. De acordo com Rubim (2008, p. 23)
apud Porto (2009):
A digitalização da cultura, a veloz expansão das redes e a proliferação viral do mundodigital realizam mutações culturais nada desprezíveis e desafiam, em profundidade, aspolíticas culturais na contemporaneidade. A aceleração do trabalho intelectual; aradicalização da autoria; as potencialidades do trabalho colaborativo; a interferência dodigital em procedimentos tradicionais (copyleat, por exemplo); a inauguração demodalidades de artes; a gestação de manifestações da cultura digital; a configuração decircuitos culturais alternativos; a intensificação dos fluxos culturais, possibilitando maisdiálogos e, também, mais imposições; enfim, os novos horizontes culturais possíveis,com o advento da cultura digital, colocam desafios de grande envergadura para aspolíticas culturais. Acompanhar e propor políticas culturais para este expansivo e velozmundo digital é, sem dúvida, um dos maiores desafios presentes na contemporaneidade.
46
Enfim percebemos a que sociedade contemporânea, com o advento das tecnologias da
informação, assiste a uma transformação, na qual muitos dos conceitos e definições estão em
mutação e, mesmo assim, dialogam entre si. A cultura, de modo geral, redimensiona sua maneira
de se colocar na sociedade e assistimos a uma maneira inovadora de pensar e fazer cultura.
47
48
CAPÍTULO 3 - LITERATURA E MARGENS
Até então percebemos que a análise do discurso se preocupa com o modo como o texto
está sendo usado e com as consequências deste uso, visando entender quem fala, para quem fala,
como fala e para que fala, pois o discurso pode ter inúmeras funções e significados. Além disso, a
AD permite-nos perceber de qual maneira se dá a interação entre emissor e receptor de uma
mensagem, identificando o receptor e interpretando o discurso produzido.
Entendemos que para a Análise do Discurso as entrelinhas são muito importantes, porque
é preciso levar em conta as intenções não verbalizadas, mas inseridas na prática discursiva. Por
isso, os textos analisados devem ser completos, incluindo a situação em que ele foi realizado, os
objetivos para o qual prestou o texto e como foi recebido, logo, neste capítulo pautaremos a
literatura brasileira contemporânea produzida na periferia, através de breve histórico e
conceitualização de seus afluentes.
Desde o seu início, o processo de modernização ocorrido no Brasil revelou uma face
conservadora e excludente, pois as tensões vindas da urbanização e da industrialização no país se
fizeram presentes com toda evidência nas representações literárias que acompanharam essas
grandes mudanças. O modernismo de 1922 já trazia na base de suas propostas a revelação dos
descompassos de uma modernidade que não rompia com o atraso, nem com as desigualdades
sociais e políticas. A partir da década de 50, na medida em que os limites da modernidade
brasileira se evidenciavam, a literatura não deixou de representar impasses.
Segundo Gumbretch (1998), há uma série de conceitos diferentes sobre modernidade que,
como cascatas, seguem um ao outro, e muitas vezes se cruzam, acumulando seus efeitos e
interferindo mútua e simultaneamente. Tal dinâmica aponta inicialmente para um tipo de
subjetividade que, num primeiro instante, se condensa no papel de observador e, posteriormente,
assume a função de produzir conhecimento. Assim, o sujeito moderno, ao invés de ser parte do
mundo, via a si mesmo como um excêntrico. Num segundo momento, chamado de modernidade
epistemológica, a complexidade do papel do sujeito moderno aumenta, dada a emergência do
observador autorreflexivo, consciente de que a observação depende da sua posição20 particular.
20 Considerando a multiplicidade de condições que o termo abrange.
49
Considerando que cada fenômeno pode produzir infinitas percepções, formas de
experiência e representações, uma delas não poderia ser superior à outra, e logo surgiu o que
Foucault (1995) chamou de “Crise de Representabilidade”. Segundo o autor, devido ao fato de
que toda representação nova poderia ser integrada em modelos cada vez mais complexos,
atribuiu-se ao tempo a função de ser um agente absoluto de mudança e inovação, “conectando o
tempo histórico ao papel de sujeito e criando a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’
sua própria história.” (Gumbretch, 1998, p.16).
Durante a segunda metade do século XIX, o crescente número de invenções, inovações e
experimentos despertou sintomas de desequilíbrio na representação entre o material significante e
o espírito do significado. Por isso, o modernismo dominado pelas vanguardas, nas primeiras
décadas do século XX foi o nível mais radical, dado que os poetas pareciam mais do que nunca
convencidos de estar desempenhando sua missão histórica de revolucionar e subverter, rompendo
com a função representacional da arte e da literatura, num período chamado por Gumbretch
(1998) de Alta Modernidade.
Na segunda metade do século XX, a subjetividade foi problematizada no pós-
modernismo, porque o ritmo da mudança desacelerou, fazendo com que o tempo não parecesse
mais um agente de mudança e mostrando que havíamos perdido a ambição de nos afastar das
ações e eventos do passado. Portanto, por mais que nossas observações do mundo continuassem a
produzir uma infinidade de representações, percebemos que elas já não se encontravam
sintetizadas em narrativas de desenvolvimento.
Por sua vez, os textos literários escritos na contemporaneidade apresentam “mundos” a
seus leitores, e acabamos atribuindo funções de representação a eles, mesmo que não as tenham
reivindicado, porque podem ser associados à presença, à intensidade, à percepção, à experiência e
à legibilidade21. Tratam-se de características inerentes à literatura produzida na periferia, que se
evidencia na cena cultural nacional, revelando a voz daqueles para quem os benefícios da vida
moderna ainda não havia chegado. As vozes da periferia, dotadas de forte teor de crítica à
exclusão social e cultural vigente no país, com seus valores, sua poética, sua história e sua ética,
serão o tema deste capítulo, no qual traçaremos um panorama da literatura brasileira
contemporânea, desde seus influentes nas décadas de 60/70 à Cooperifa.
21 Conceito de Luckás. Ver em Teoria do Romance, Lisboa, Presença, 1966.
50
3.1 Viagem pelas Margens
A década de 60 foi um período conturbado na história de muitos países, inclusive no
Brasil, onde a palavra poética era vista como poderosa e instrumento de tomada de poder. Nessa
época a juventude se empenhava com grande entusiasmo no engajamento cultural como forma de
militância política e acreditava na eficácia da arte na propulsão da mudança social. Era difícil
para o Estado brasileiro fomentar os esquemas tradicionais de manipulação populista durante o
governo militar, mantendo o controle das massas, por isso questões como fé no povo,
democratização e nacionalismo entraram no centro das discussões dos artistas de vanguarda,
tanto nos anos que antecederam o golpe militar (durante o governo João Goulart), quanto nos que
o sucederam (antes do AI-5 ser decretado), incitando a produção de discursos radicais em todas
as áreas do saber, e delineando a necessidade de uma arte participante, de modo a forjar o mito do
alcance revolucionário da palavra poética.
No entanto, para revolucionar uma sociedade é preciso passar o poder ao povo. Os
intelectuais então propuseram ao proletariado que os aceitasse como companheiros e
caminhassem lado a lado, compartilhando sofrimentos, exercendo um movimento intencional de
denúncia, comoção e culpa sobre um sistema do qual os próprios escritores de classe média
faziam parte. A arte e a cultura produzidas pelo povo foram se transformando num canal que os
artistas tentavam penetrar e despojar-se do seu caráter burguês, visando conscientizar o
proletariado e denunciar as condições de exploração, tudo isso com base na ideologia
revolucionária presente naquele período.
Os intelectuais que mantinham tais objetivos não enxergavam as diferenças de classe e de
linguagem existentes entre as classes populares e o meio acadêmico. Berlick (1987) explica:
O homem não pode conhecer nada sem entrar em contato com a experiência,isto é, sem viver (praticar) nas circunstâncias do que pretende conhecer. Podematé conhecer a priori a consciência popular e as maneiras de alterá-la, poissendo de outra classe e estando distantes do povo, ainda lhes falta a práticacorrespondente. (Berlick, 1987, p.110)
51
O maior problema é que quando o intelectual reivindica um lugar ao lado do povo, acaba
por dissimular as diferenças de classes, homogeneizando uma multiplicidade de contradições e
interesses. Heloísa Buarque de Hollanda (1981) explana que a “doutrina que se defende exige a
linguagem do intelectual” que “travestida em povo trai-se pelos signos do exagero e pela
regressão estilizada das formas de expressão provinciais ou arcaicas” (Hollanda, 1981, p. 23 –
24), produzindo uma “poesia metaforicamente pobre, codificada e esquemática” (1981, p. 30), o
que significa regressão para os estudos literários. A autora acredita que a função e a técnica
literária fornecem “acesso à análise dos produtos literários em seus contextos e é através dele que
se poderá dizer a função política dessa produção” (1981, p.32). Talvez “funcionamento” seja um
termo melhor para descrever como os discursos dessas manifestações defendem que a arte seria
do povo, quando na verdade trata-se de um discurso de uma elite intelectual.
Sobre essa fase da literatura brasileira, lembramos a trajetória de Ferreira Gullar, poeta
que se tornou figura-chave do Centro Popular de Cultura, doravante CPC22. Numa entrevista
concedida ao projeto Memória do Movimento Estudantil da Fundação Roberto Marinho, Cacá
Diegues explica que o objetivo do CPC era encontrar as raízes da cultura brasileira para que os
brasileiros pudessem superar a influência de culturas estrangeiras e criar uma identidade
nacional:
A idéia da cultura popular era o seguinte: existe um potencial cultural, de identidadenacional muito forte, que está subjugado pela hegemonia da cultura estrangeira que nosdomina há 500 anos, primeiro a portuguesa, depois a européia, sobretudo a francesa, edepois a norte-americana. Então, era preciso se libertar disso, e a forma de se libertarera se voltando para criação popular, para a criação original do povo brasileiro.23
Gullar, comprometido com o rigor formal concretista, procurou trabalhar uma linguagem
diretamente participante. João Boa Morte, por exemplo, é um poema no formato de cordel sobre
a reforma agrária, e foi o primeiro de uma série de obras notáveis nas quais o rigor formal
22 criado em 1961 na cidade do Rio de Janeiro por iniciativa de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman23 Entrevista de Cacá Diegues concedida ao projeto Memória do Movimento Estudantil da FundaçãoRoberto Marinho. Disponível em:<http://www.mme.org.br/main.asp?View=%7BD8F61CAF%2DFA6F%2D480C%2DB5B8%2D2B7E57510000%7D&Team=¶ms=itemID=%7B80252FA7%2D3450%2D480B%2D9F22%2DA9B6ECCD8BAD%7D%3B&UIPartUID=%7BD90F22DB%2D05D4%2D4644%2DA8F2%2DFAD4803C8898%7D>
52
informa de maneira brilhante a participação literária engajada, inclusive na poesia. Em Gadet &
Pêcheux (2004), citado por Salles (2011), a poesia flui, no fio discursivo da língua, como efeitos
de deslizamentos próprios a seus processos de significação: “O poeta seria apenas aquele que
consegue levar essa propriedade da linguagem a seus últimos limites; ele é, segundo a palavra de
Baudrillard, suprimindo a sua acidez, um ‘acelerador de partículas da linguagem’” (Gadet & Pêcheux,
2004, apud Salles, 2011, p.16)
A língua, pensada pela teoria materialista da linguagem, tem sua ordem própria, apesar de
ser sujeita a deslizamentos e rupturas, em sua rede significante por onde incide a metáfora, o
efeito poético. Desse modo, os processos de subjetivação se dão em espaços de incompletude,
assim “[...] nenhuma língua pode ser pensada completamente se aí não se integra a possibilidade
de sua poesia” (PÊCHEUX, 2004, p. 51). Portanto, podemos pensar na língua a partir do
momento em que se abre a possibilidade da poesia, da criação, movimentos de transgressão e de
instauração de um devir. Outros poetas como Moacyr Felix e Paulo Mendes Campos também
começaram nesse momento a criar poemas participantes que, mais tarde, foram reunidos nos três
volumes de Violão de Rua, editados pelo CPC.
Depois da euforia desenvolvimentista, uma geração de jovens artistas começou a
expressar sua inquietação com os impasses do processo cultural brasileiro, desconfiando dos
mitos nacionalistas e discursos militantes, originando um movimento construído de fragmentos: o
Tropicalismo. Os principais traços desse movimento eram a crítica à intelligentsia, o namoro com
canais de massa e a recusa de padrões de bom comportamento. Quanto à construção literária, era
valorizada a técnica, a fragmentação, o alegórico, o moderno e a crítica. Em resumo, trata-se da
expressão de uma crise.
O proletariado recusava a promessa do futuro redentor que regia os movimentos literários
do modernismo até então e a preocupação com a momentaneidade reforçava a necessidade da
revolução pessoal antes de querer transformar qualquer outra coisa, principalmente, uma
sociedade. Isso era incentivado por meio da subversão de valores e comportamentos nos
movimentos de divulgação cultural, atitude essa originária da contracultura, a qual se
manifestava não só através do tropicalismo, como também do rock, hippies, beatniks, punks,
underground, Woodstock, entre outras expressões de valores e concepções de mundo que pudesse
dar sentido às suas vidas.
53
O movimento da contracultura caracterizado pela agitação subversiva cresceu em diversos
países sob inspiração dos Provos, de Amsterdam (Guarnaccia, 2001). Precursor do ativismo
contemporâneo, Provos foi um movimento dos anos 60, no qual jovens agiram no território da
política de modo original: lúdico. Os agitadores se reuniam no "Centro Mágico" de Amsterdam
para celebrar ritos coletivos contra os fetiches da sociedade consumista e logo surgiram as
campanhas como antipublicidade ou antiautomóvel, que desenvolviam a idéia de que a subversão
funcionava melhor quando misturada com humor inesperado.
Esse momento proporcionou a oportunidade para originar os primeiros veículos de
informação alternativos, principalmente na prática jornalística - como, por exemplo, a publicação
dos jornais Pasquim, Flor do Mal, entre outros que, ao invés de buscar a suposta neutralidade
como de praxe, explicitavam a parcialidade e a subjetividade de seus autores, o que pode ser
encarado como um progressivo desinteresse pela política, uma vez que os caminhos para a busca
pela autenticidade haviam sido abertos.
Por outro lado, a realidade dos grandes centros urbanos era valorizada em seus aspectos
marginais, pois a identificação que o movimento tropicalista impulsionou era com as minorias:
negros, homossexuais, marginal do morro. Os textos aparecem com marcas de orgulho racial,
rituais africanos, cozinha sensual, o ócio, entre outros. Eram temáticas que misturavam uma
situação primitiva e ao mesmo tempo moderna, e nesse meio, as produções sobre a Bahia se
destacavam, estabelecendo certa cumplicidade entre a transgressão e a marginalidade.
Os destaques da tropicália se deram na relação da literatura e da música com os cantores-
compositores, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, com obras memoráveis: nos
discos, Tropicália (Caetano) e Geléia Geral (Torquato e Gil); nos festivais de música popular
exibidos pela televisão, entre as músicas que mais chamaram a atenção estavam Alegria, alegria
(Caetano) e Domingo no Parque (Gil).
A valorização da marginalidade urbana nas produções culturais dos anos 70 não era uma
saída alternativa, e sim tinha a intenção de ameaçar o sistema diretamente como uma opção de
violência no sentido da “rebeldia”, em suas possibilidades de agressão e transgressão, permitindo
uma contestação assumida conscientemente. O regime de violência e até a própria censura
atuaram de forma marcante na produção de toda uma geração de escritores e essa influência se
deu não só no campo temático, no qual a obra de ficção incorporou a violência social estabelecida
54
e organizada como sistema, mas também no campo da estética. O escritor passou a procurar por
uma estética que compreendesse, dentro da própria estrutura textual, representativamente o
estado social fragmentado e atacasse, mesmo que indiretamente o Regime imposto, denunciando
e sendo utilizada como instrumento de conscientização crítica e política.
Nesse momento de desilusões com a política e descrença com a esquerda, a crítica pós-
tropicalista visava agredir o sistema por meio da subversão de linguagens e comportamento,
porém o movimento foi derrotado novamente, dessa vez pelo AI-524, que intensificou a repressão
no país. Consequentemente, a reação literária, movida pela esperança de instaurar mudança,
levou suas opções estéticas ao centro das experiências existenciais, e a loucura passou a ser vista
como uma perspectiva capaz de romper com a lógica política, tanto da direita quanto da esquerda,
resultando nas radicalizações do uso de tóxicos, experiências sensoriais e emocionais, que
aumentaram consideravelmente o número de internamentos e suicídios.
Os produtores culturais dessa cena de contradições e fragmentações agiam em cada área
possível de ser acessada, incentivando o trabalho coletivo e múltiplo embasado na inovação,
buscando intervir na cultura popular de massa, recusando assim as formas acadêmicas e
institucionais de racionalidade. A marginalidade era então vivida e definida por conceitos de
ordem institucional que estavam, ao mesmo tempo, fora e dentro do sistema, estabelecendo
tensões e estranhamentos, mais empenhados na produção e circulação de sentidos que nos
resultados os quais essas ações implicariam. O poeta do pós-tropicalismo “é um grande
batalhador: investe contra a ordem do cotidiano, contra os laços de família, a tradição religiosa,
os pais culturais. Recusa a hierarquização do poder literário, a atitude hipócrita” (Hollanda, 1981,
p.76). Assim, a função do saber passa a ser relativizada e a intervenção exige participação, ainda
que nos próprios circuitos do sistema e opondo-se à sua ordem.
O sonho de opor-se ao sistema deu lugar ao processo de abastecimento do mesmo. Os
novos heróis se apresentavam como indivíduos que diziam aquilo que o povo queria dizer e se
via impedido através da ambigüidade, fazendo alusões à situação política do país, o que
24 O Ato Institucional nº 5 foi baixado em 13 de Dezembro de 1968 durante o governo do general Costa e Silva, e representava o ápice da ditadura militar brasileira (que vigorou entre 1964-1985). O ato foi feito valer até dezembro de 1978 e instaurando uma gama de ações arbitrárias, dando o poder de exceção aos governantes para punir aqueles que fossem considerados inimigos do regime, além de impor a censura prévia a jornais, livros, músicas, peças de teatro e quaisquer manifestações culturais.
55
despertava a cumplicidade entre artistas e público, no movimento de burlar a censura e ser
codificado. Esses artistas eram porta-vozes da desgraça do povo e mesmo assim foram
violentamente criticados, tidos como “desbundados”, tornando-se mártires da ditadura. As
linguagens e formas de conhecimento foram rejeitadas, assim como o discurso da esquerda que
passou a ser burocratizado e confundido com o discurso da cultura oficial do próprio sistema.
Os jovens então começaram a atuar no modo de produção cultural em circuitos
alternativos, marginais, enfatizando o caráter coletivo e artesanal de suas experiências. A poesia
entrava em cena com livros que eram vendidos pelos próprios autores nas portas de museus,
cinemas e teatros, posteriormente passados de mão em mão. A Geração do Mimeógrafo
evidenciava não só os valores poéticos, como a novidade da subversão de padrões tradicionais da
produção, edição e distribuição de literatura. Esse acompanhamento colaborativo do autor em
todo o processo pretendia a aproximação com o público, um diálogo, apresentando uma face
afetiva, o que abriu portas para um novo público leitor de poesia, principalmente com o uso da
linguagem que traz marcas da experiência dos poetas, num relato do cotidiano capaz de quase
confundir a literatura com a vida. Essa foi uma das relações que despertaram a atenção à chamada
poesia marginal.25
O termo “marginal” nesse momento justificava-se pela condição alternativa, por estar à
margem da produção e veiculação no mercado, e não a partir apenas dos aspectos literários dos
textos. Esse grupo também não desejava a revolução como os engajados poetas anteriores, nem
mesmo se confrontam diretamente com o sistema, como os tropicalistas e pós-tropicalistas:
intentavam criar uma alternativa e não a oposição. Tratava-se de um descompromisso com a
ordem do sistema através da consolidação das relações entre arte e vida, e a presença de
coloquialismos era um procedimento literário que visava poetizar a experiência do cotidiano –
não se tratava do cotidiano poetizado como costumava ser até então. A poesia tornou-se a arte de
captar situações, valorizando a momentaneidade, proporcionando um deslocamento da crítica
social. A própria experiência artesanal da produção gráfica dos livros junto com a sua posterior
25 Segundo os conceitos de Hollanda, “Os então poetas se definiram marginais por uma poesia com fortes traços anti-literários: uma dicção poética empenhada em “brincar” com os padrões vigentes de qualidade literária, de densidade hermenêutica do texto poético, da exigência de um leitor qualificado para a plena fruição do poema e seus subtextos. Assim, os marginais, com um só gesto, desafiaram não apenas a crítica, mas também a instituição literária oferecendo uma poesia que não parecia importar-se nem com a permanência de sua produção, nem com o reconhecimento da crítica informada pelos padrões canônicos da historiografia literária.” (http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/a-poesia-marginal/, acesso em 04/11/2014)
56
veiculação no mercado perdeu seu caráter técnico, de modo que a marginalidade era vivida e
sentida na ordem do cotidiano, numa proposta vitalista e instantânea, sendo influenciados pela
geração anterior a comparecer com uma avaliação mais crítica da prática poética, suas formas de
produção e circulação, inclusive no sentido da legitimação no campo intelectual. Recursos como
a metonímia, alegoria, ironia e paródia tornaram-se freqüentes visando uma literatura em favor do
distanciamento crítico.
Até o próprio aspecto gráfico entrou na mudança: poemas curtos como um flash de
episódios e sentimentos eram cada vez mais freqüentes. Mais do que um procedimento literário,
os poetas visam à transgressão à ordem do cotidiano, que é agredido pela eficaz subversão na
absorção do coletivo pelo individual. Vejamos o poema de Cacaso, Jogos Florais I:
Minha terra tem palmeirasonde canta o tico-tico.Enquanto isso o sabiávive comendo o meu fubá.Ficou moderno o Brasilficou moderno o milagre:a água já não vira vinho,vira direto vinagre.
A eficiência dos efeitos imediatos da proposta marginal foi identificada como um grito, e
não como uma forma de resistência planejada, ainda que na tentativa de criar uma nova
linguagem essa literatura promovesse uma reflexão sobre as linguagens até então já legitimadas.
É nesse sentido que os autores buscaram saídas do nacionalismo e da arte comprometida através
da recusa dos discursos do saber e do poder: através do humor, da paixão e da surpresa.
O que se seguiu nos anos 80 foi a reanimação do quadro político e das polêmicas e
incertezas do país, caracterizado pela identificação da repressão ideológica da produção cultural
pelo Estado, retomada dos discursos políticos na imprensa, mobilizações sindicais e
manifestações estudantis, e também das manifestações vindas das periferias do país.
57
3.2 O Aparecimento da Periferia
Em 2001 o escritor Ferréz organizou textos para um projeto de literatura, em parceria com
a revista Caros Amigos, denominado “Caros Amigos / Literatura Marginal: A cultura de
periferia”, que vendeu 15.000 cópias e impulsionou a publicação de mais duas edições, reunindo
um total de 48 autores e 80 textos, que incluíam letras de rap, contos, crônicas e poemas de
escritores em sua maioria residentes da periferia de São Paulo. A revista Caros Amigos, mensal e
de circulação nacional, foi criada pela Editora Casa Amarela com o intuito de apresentar opiniões
críticas sobre diversos temas, variando de política a artes, com o objetivo de não só informar
como também formar leitores. Marcos Zibordi (ZIBORDI, 2004, p.82-83 apud NASCIMENTO,
2009, p. 15) analisou edições regulares e afirma:
[...] a literatura presta serviços à causa do homem, preferindo falar dele imerso emproblemas pessoais e sociais – geralmente os sociais incidindo nos pessoais –demonstrando maior preocupação com os motivos do mundo terreno, real e concreto, doque com a inquietação estritamente estetizante.
Nas edições especiais sobre literatura periférica, os textos focavam principalmente as
críticas sociais através de contos que relatam o cotidiano de moradores das favelas que passam
por situações violentas e intimidantes. Nos contos, os personagens que mais sofrem são também
aqueles que contestam a realidade social em que se encontram, seja por tornarem-se mais críticos
através do contato com a literatura ou pela busca da justiça e da vingança. As crônicas e o Rap,
por sua vez, aparecem marcados por uma linguagem muito próxima à oralidade, inclusive com
palavrões e gírias, num tom que parece visar a “conscientização” do leitor. Os poemas, por sua
vez, aparecem em maior número. É válido mencionar que as três edições totalizaram a
participação de quatro mulheres, sendo que apenas uma abordou experiências relacionadas ao
universo feminino em seus poemas.
Na terceira edição da coleção, foi maior a variedade dos textos e recursos literários, de
modo que a violência passou a ser o pano de fundo para histórias pessoais, fossem de superação
ou casos de amor. As publicações da revista pararam por ai, mas em 2005 foi organizado por
Ferréz e lançado pela Editora Agir, o livro Literatura Marginal: talentos da escrita periférica,
58
uma coletânea de vinte e cinco textos dos autores participantes das edições especiais da revista. O
que se seguiu foi um estouro de lançamentos de obras individuais de vários autores da chamada
literatura periférica. Entre eles estão Graduado em Marginalidade (2005), de Sacolinha; Vão
(2005), de Allan da Rosa; O trem: contestando a versão oficial (2005), Alessandro Buzo; A
poesia dos deuses inferiores (2005), Sérgio Vaz.
Esses autores se destacaram por também atuarem nos espaços retratados em seus textos,
através dos quais encontraram uma maneira de se auto-representar com contos e poemas
marcados pelas seguintes características: seus textos eram descritivos ou biográficos,
relacionando problemas sociais à vida e práticas sociais do povo da periferia em temas como o
cotidiano, violência, carência de bens e equipamentos culturais, relações de trabalho e a
precariedade da infra estrutura urbana. As construções das narrativas remetem a memórias dos
escritores, retomando aspectos individuais, da infância, do trabalho, do bairro, entre outros.
A literatura dessa vez passou a ser usada como um ato político que visa dialogar com as
populações das periferias urbanas brasileiras. Refere-se à construção de um discurso que pretende
“ensinar” a capacidade crítica ao público, através de textos com fundo moral. São textos que
polemizaram também questões como o acesso dos membros das classes populares aos bens de
produção cultural e letramento, a aproximação com a linguagem do hip hop, a legitimidade de
“representar” certa realidade social e a valorização de escritores da periferia como produtores da
sua própria representação.
Quanto à crítica acadêmica, pode ser sintetizada pela valorização da produção dos
escritores originários da periferia, em geral conferindo-lhes autenticidade pela mistura da
“vontade documental, força do testemunho e ficcionalização das próprias experiências vividas
pelos autores marginais” (Eslava, 2004, p.36). Sobre os aspectos biográficos, assim como seus
variados envolvimentos profissionais, os autores sempre buscam evidenciar seus respectivos
currículos, não só nos textos publicados como em suas palestras, sinalizando para as
características marginais ou compromissos sociais dos quais fazem parte ou que “agitam”, como
eles e a imprensa andam dizendo. A maioria desses escritores é negra e, segundo a pesquisa de
Érica Nascimento, residentes na periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo e na Zona Leste.
A pesquisadora trouxe ainda em seus resultados informações relativas à trajetória literária
desses autores, que afirmam ter começado a se interessar por literatura ainda durante a infância
59
ou adolescência, e tiveram nos familiares o incentivo para tal. Para começar a escrever, o bom
desempenho nas redações escolares, segundo a pesquisa, foi essencial, mesmo que os primeiros
textos tivessem sido produzidos já na idade adulta. Como dito, os autores da periferia afirmaram
em entrevista para Érica Nascimento que tem preferência por publicarem principalmente poemas,
seguidos por crônicas e contos. Suas inspirações literárias vão de Machado de Assis, Guimarães
Rosa e Mário Quintana até GOG e Mano Brown. Embora as edições especiais da revista Caros
Amigos não tenham sido a primeira veiculação impressa dos textos de todos os escritores,
provavelmente foi a que agregou prestigio social e fomentou reconhecimento público à maioria
deles.
3.3 Conexões
No universo das artes, algumas conexões foram estabelecidas com a literatura e
contribuíram bastante para a construção da imagem dos escritores como porta-vozes dos sujeitos
que vivenciam situações de marginalidade (principalmente moradores da periferia). A primeira (e
talvez mais relevante para esse estudo) foi o hip hop. O movimento surgido nos Estados Unidos
dos anos 80 inspirou o hip hop, que é um modo singular de apropriação do espaço urbano e do
agir coletivo dos moradores das periferias urbanas e está associado às experiências dos jovens.
No final da década de 80, as coreografias do break saíram dos bailes e foram levadas a locais
públicos como praças e estações de metrô das grandes capitais brasileiras. Desse modo, o rap se
tornou a expressão artística mais importante para a divulgação do movimento porque nas letras
deste gênero musical predominam versos engajados sobre temas relacionados às periferias
brasileiras, que motivam e mobilizam seus ouvintes. Esboçou-se então um movimento voltado
para a atuação política.
Associações de rappers e grafiteiros atualmente realizam oficinas culturais para a
divulgação de suas expressões artísticas, organizam shows beneficentes em prol da comunidade e
reuniões para discussões sobre questões raciais e políticas, além de se apresentarem
frequentemente nos saraus e realizarem ações conjuntas com os organizadores dos mesmos.
Sobre a relação entre o rap e a literatura, costumam serem abordadas nas letras as dificuldades
60
dos moradores da periferia ao acesso a bens culturais, além do incentivo à produção de textos que
expressem a linguagem da periferia, visando assim a formação de leitores, entre outros.
A legitimidade desses agitadores culturais se posicionarem como porta-
vozes/representantes dos socialmente marginalizados, passou a ocupar também os canais das
mídias, tanto impressas quanto eletrônicas: Ferréz possui um quadro próprio no programa
Manos e Minas da TV Cultura, chamado "Interferência" onde entrevista pessoas para comentar
sobre rap é um dos debatedores, ao lado de Karina Buhr, Leonardo Sakamoto e PC Siqueira, do
"Programa Piloto", exibido mensalmente via internet pela TV Carta, da revista Carta Capital.
Alessandro Buzo também obteve sucesso na mídia, e desde outubro de 2011 colabora com o
jornal SPTV 1ª Edição, da Rede Globo, onde apresenta, às sextas-feiras, o quadro "SP Cultura",
sobre a cultura da periferia paulistana. A produção dos escritores da periferia começou a ganhar
espaço na ONG Ação Educativa. Dentre suas atividades há formação de educadores e jovens,
pesquisa e assessoria a políticas públicas ou projetos que fomentem a justiça social e o
desenvolvimento sustentável, e ainda a cessão dos seus espaços e equipamentos multimídias para
grupos organizados cujos objetivos se identificam com os da organização.
Em cada oportunidade, escritores como Alessandro Buzo, Sergio Vaz e Sacolinha buscam
apresentar seus produtos literários e projetos culturais: Favela toma Conta, Cooperifa e
Literatura no Brasil – respectivamente, que ajudam a viabilizar a comercialização de seus livros
e desenvolvimento de ações que combatam o acesso restrito dos moradores da periferia à
literatura. Esses e outros autores são os responsáveis pela formação do núcleo de Literatura
Periférica, que teve o seu primeiro encontro na realização de um sarau de poesia e música rap que
aconteceu no dia 20 de maio de 2006, dentro da programação da Virada Cultural de São Paulo. A
partir de então, visam desenvolver atividades com comunidades carentes, tais como oficina de
literatura, de dramaturgia, exposição de fotografias e debates.
3.4. Literatura Marginal: Questões de Terminologia
Para ser vista como literatura marginal, uma obra produzida a partir de 1990, de acordo
com os estudos de Érica Nascimento (2009), se associava de três maneiras: a primeira resultar da
61
produção de escritores oriundos de espaços marginais; a segunda, ser composta por textos que
explorassem temas como violência, pobreza, carências culturais e sociais, cotidiano, entre outros;
a terceira e última, se refere às obras produzidas por contraventores e que narram as vivências de
seus autores no mundo da criminalidade.
Ora, literatura marginal é aquela que se coloca, propositalmente, fora do cânone ou que é
colocada fora dele para ir contra o mesmo. Isso não envolve necessariamente nem a periferia,
nem o marginalizado social. No entanto, tal terminologia pode referir-se também à literatura
daquele que foi excluído socialmente e que ganha voz. Ou pode ainda incorporar o termo
marginal no sentido de contraventor que começa a falar da sua própria voz. A autora identifica
essa voz que surge como aquela que começa a revelar a má consciência da sociedade brasileira,
aquilo que ela mesma tentou varrer pra debaixo do tapete e agora se transformara em tramas do
colapso social brasileiro, que voltam o olhar dos autores, leitores e estudiosos para espaços e
sujeitos marginalizados.
Existe um projeto editorial denominado Literatura marginal: a cultura da periferia, que
sugere a existência de um conjunto de escritores que atribuía ou adotava a “marca” literatura
marginal como parte importante da construção da autoimagem, como um signo sob o qual
gostariam de ser reconhecidos pelo mercado, pela imprensa e público-leitor. Seus textos podem
ser classificados como literatura marginal porque a expressão seria representativa do contexto da
marginalidade cultural e social ao qual estavam submetidos, relacionados não só à sua origem
quanto à temática dos textos, utilizando-se de um tipo de linguagem que destoa do padrão tido
como culto e com tom realista. Os textos são marginais, porém não inferiores.
Allan da Rosa, escritor da periferia do Rio de Janeiro, justifica em uma de suas entrevistas
que os escritores da periferia encontraram na atividade literária uma possibilidade de reverter a
própria condição de marginalidade social que os legitimara. Em entrevista para a pesquisadora
Érica Nascimento (2009), o autor afirma:
A gente é marginal, mas quer ter editora, quer ter doutorado. A margem pra mim é o quedesestabiliza o centro, por isso mesmo. [...] Marginal é pelo tema, é pela forma, é pelafonte, pela raiz, é pelo público que a gente imagina atingir. [...] Eu me identifico com otermo, mas não quero nem pra mim, nem pra você, ficar dormindo embaixo de goteira,passando perrengue.
62
A partir do discurso dos autores em diversas entrevistas disponibilizadas na rede, é
possível apreender que há também algumas variações para o sentido da associação do termo
marginal à literatura, de modo que o uso da expressão literatura marginal por escritores que
moram na periferia é também uma referência ao seu contexto sócio-histórico: em primeiro lugar,
refere-se à origem socioeconômica; em segundo, à temática dos textos que buscam evidenciar as
práticas, o linguajar, o estilo de vida dos moradores das periferias urbanas e membros de classes
populares; em terceiro, à preferência por um tipo de linguagem que se contrapõe aos códigos
escritos tidos como cultos; e, enfim, a uma série de obras que não receberam legitimação por
parte da crítica especializada ou que estão sendo produzidas e divulgadas à margem do grande
corredor editorial. Da parte das editoras, o valor agregado às obras de “autenticidade” ao que está
sendo narrado e da parte dos autores, manifesta-se com o certo desejo de marginalidade na
escolha do tema ou do discurso assumido. É possível identificar na trajetória de alguns escritores
que a carreira literária foi alicerçada nos circuitos alternativos de produção e circulação,
construída com o apoio de sites e periódicos ligados ao movimento hip hop.
Veremos ainda neste capítulo alguns exemplos de escritores que protagonizam o
movimento literário-cultural que se desenvolveu principalmente a partir da mobilização de redes
extra-literárias, tornando-se parte da periferia tal como a autoria da própria imagem. A maior
parte dos escritores que entraram em cena de forma coletiva não encontrou espaço no mercado
editorial oficial e seguiu inventando suas próprias formas de produção, circulação e consumo,
desencadeando uma movimentação cultural que vem crescendo e tomando novas formas nos
últimos 15 anos.
Eles assumiram o papel de porta-vozes dos sujeitos marginais e periféricos no plano
literário, além de desenvolver ações pragmáticas voltadas para a produção e consumo de bens
culturais em bairros da periferia, com elementos que lhes conferiram singularidade o suficiente
para que possamos distingui-los de outros artistas. Devido a isso, buscamos significar a literatura
produzida na periferia.
63
3.5. Alguns Escritores em Cena
3.5.1.Ferréz
Figura 12 - Ferrez26
O homem na figura 12 é Reginaldo Ferreira da Silva prefere ser chamado de Ferréz, numa
homenagem aos heróis brasileiros Virgulino Ferreira – o lampião (Ferre) e Zumbi dos Palmares
(Z). Nascido em São Paulo, no ano de 1975, o romancista, contista e poeta trabalhou em
diferentes ocupações: vendedor ambulante de vassouras, balconista em bares e padarias, auxiliar
geral de construção, arquivista e até mesmo chapeiro em rede de fast food. Em 1997, lançou o
livro de poemas influenciados pela poesia concreta, denominado Fortaleza da Desilusão e dois
anos depois fundou o grupo 1DaSul, interessado em promover eventos e ações culturais na região
do Capão Redondo, periferia da cidade de São Paulo.
Ligado ao movimento hip-hop, além da ação cultural e política que empreende desde
então, escreve letras de rap e canta em grupos locais. O artista estreou na prosa de ficção em 2000
com o romance Capão Pecado, em referência ao bairro paulistano, que tem no dia a dia da
periferia seu tema principal. Em 2003, lançou seu segundo romance, Manual Prático do Ódio.
Organizou e editou a revista Caros Amigos: Literatura Marginal, que deu origem à antologia
Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica, lançada em 2005, ano em que também
publicou o romance infanto-juvenil Amanhecer Esmeralda, seguido em 2006 pelo livro de contos
26 www.google.com/images
64
Ninguém É Inocente em São Paulo, com seis contos transformados em curtas-metragens e uma
animação. De 2001 a 2010, atuou ainda como cronista na revista Caros Amigos e publicou, em
2009, Cronista de um Tempo Ruim. No mesmo ano lançou o documentário “Literatura e
Resistência”, que conta os últimos 11 anos de sua história.
Em seus romances e contos, Ferréz apresenta problemas cotidianos vividos pela
população das regiões periféricas de São Paulo. Suas histórias expõem por meio da ficção os
dilemas relacionados à situação de pobreza desses habitantes. A obra revela a violência
vivenciada por seus personagens à medida que investiga criticamente esses sujeitos, sendo, ao
mesmo tempo, vítimas e agentes do processo social no qual se inserem. A prosa de Ferrez busca
reconstituir a variante linguística da periferia da cidade de São Paulo e constituir um ponto de
vista literário e crítico interno a essa realidade.
Na internet, Ferréz divulgou seu trabalho até 2011 no Twitter através da página
https://twitter.com/escritorferrez, mas ainda é bastante ativo no perfil do Facebook,
https://www.facebook.com/ferrez.escritor, onde divulga para aproximadamente 12 mil pessoas os
próximos eventos dos quais irá participar, fotos de ações culturais e até comentários sobre livros
que leu. O escritor tem ainda um blog, http://ferrez.blogspot.com.br/, também atualizado, onde
também posta alguns textos, crônicas, além das habituais fotos e chamadas de sua agenda.
Ferréz foi um dos primeiros escritores da periferia, tradicionalmente excluídos do sistema
literário, que começou a ganhar visibilidade na esfera editorial e no meio acadêmico,
problematizando em sua prosa questões como a auto-representação, afirmação identitária e
inserção nos circuitos canônicos e mercadológicos. Sua trajetória pode ser relacionada a
fenômenos importantes da segunda metade do século XX, tais como a intensa urbanização e o
crescimento das taxas de alfabetização e escolaridade, atingindo pela primeira vez na história do
Brasil amplos setores das populações pobres e marginalizadas. Um dos aspectos mais relevantes
que impulsionou a produção literária na periferia foi a associação das formas cantadas ao circuito
de leitura e escrita nas comunidades mais pobres, estimulando as condições de produção.
As condições de produção do escritor de periferia estão à margem das políticas oficiais:
dificuldades financeiras, carência de opções de lazer e cultura, falta de perspectiva profissional,
violência, criminalidade, e mais uma série de fatores que desfavorecem os moradores da favela.
Por isso, no caso do autor, a disposição de agir, colocar em prática o que projeta é uma de suas
65
prerrogativas. Como afirma Orlandi (2005), as condições de produção envolvem o contexto
material e institucional, além do imaginário dos interlocutores, compreendem fundamentalmente
os sujeitos e a situação, bem como a memória que faz valer essas condições de produção. Assim
sendo, em uma prática de leitura à luz da Análise do Discurso, é importante considerar as
circunstâncias de enunciação: o contexto micro (imediato) em que o sujeito que assina o texto, o
meio e o suporte em que está sendo veiculado e o contexto macro (sócio, histórico, e ideológico
mais amplo).
Para que o dizer faça sentido, é necessário que este esteja sustentado por um saber
discursivo, um já dito, "aquele que fala antes, em outro lugar independentemente", isto é, o
interdiscurso, a memória discursiva. Tudo o que já foi dito sobre o assunto em questão, sobre a
violência, sobre a diferença entre ricos e pobres, de algum modo significa ali. "O dizer não é
propriedade particular, as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua.
O que é dito em outro lugar também significa em nossas palavras" (ORLANDI, 2012, p.32). Essa
relação do dizer com o já-dito é que torna possível na análise a compreensão do funcionamento
do discurso, a relação com os sujeitos e com a ideologia.
Ao ler, por exemplo, as crônicas publicadas por Ferréz no jornal Folha de São Paulo27 ou
um de seus romances, percebemos que à medida que o autor projeta a imagem de um leitor
(cidadão comum), ele usa o mecanismo da antecipação, ou seja, ele coloca-se no lugar de seu
interlocutor prevendo como seria sua reação diante de determinado discurso, com isso ele prevê
os efeitos de sentidos que podem ser produzidos, regulando seu discurso de acordo com os efeitos
de sentidos que deseja produzir em seu interlocutor. Há, portanto, aí um texto dirigido a um
público imaginário, virtual “aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele
se dirige” (ORLANDI, 1987, apud Salles, 2012, p.9), quando o leitor real lê o texto, ele entra em
contato com o leitor imaginário a quem este texto se destina. Nesse sentido, essa relação é crucial
para o efeito de sentido que será produzido: o de chocar o leitor, sensibilizá-lo frente a um fato
vivenciado pelo artista. É válido contrapor as condições de produção de discursos frequentes de
Ferréz, conforme segue:
27 Em anexo a crônica “Pensamentos de um Correria”, publicada no jornal Folha de São Paulo em resposta ao texto de Luciano Huck, que contou sobre como teve seu relógio roubado no trânsito.
66
a) A imagem que o produtor do texto faz de si: Ferréz se constrói discursivamente
como sujeito que fala de um lugar social relacionado à periferia que segue regras bem diferentes
daquelas da classe média.
b) A imagem que o produtor do texto faz do seu leitor (público-alvo): Ferréz parte da
imagem de um leitor que passe a olhar o problema de outra perspectiva.
c) A imagem a respeito da questão da violência: a violência é tida como efeito de uma
sociedade desigual, excludente e preconceituosa ou ainda como única forma de sobrevivência
daqueles que não têm com quem contar. “NINGUÉM É INOCENTE EM SÃO PAULO. Somos
culpados. Culpados. Culpados também”28.
O importante é frisar que o locutor “antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido
que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito,
neste caso, representado por Ferréz, dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa
produzir em seu ouvinte” (ORLANDI, 2012, p. 39), pois o ouvinte/leitor participa do processo de
produção de sentidos em condições sócio-historicamente determinadas. O modo como o sujeito
irá ler depende de sua posição, seu lugar social e sua relação com ele, esse sujeito interpelado
pela ideologia constituiu-se de diferentes formas em diferentes momentos históricos. Esse
aspecto é chamado relação de força, em que o sujeito que fala exerce uma autoridade para fazê-
lo, o sujeito fala de um lugar social que lhe permite dizer e fazer sentido: o escritor da periferia,
fruto de um aspecto identitário marcado pelo dissabores como as drogas, a violência e a miséria.
Esse lugar social abre um canal comunicativo para o conhecimento de visões e experiências antes
silenciadas e até mesmo ignoradas.
Não é qualquer sujeito que fala, existem as formações imaginárias, é a imagem que se faz
dele e que permite que ele passe da posição empírica para a posição discursiva, significando em
relação ao contexto sócio-histórico e à memória discursiva. Esse imaginário, segundo Orlandi
(2012, p. 42), "assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são
regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder". Na sua mais recente
participação na Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), o autor se definiu sobre essas
28 O plano. Instituto Cultural Itaú. Disponível em www.itaucultural.org.br, acesso em 08 de Julho de 2013.
67
questões com a seguinte declaração29:
“Se a literatura me dá o discurso, tem que me dar também a ação. Tragoo nome do Capão Redondo, com seus 380 mil moradores, do jeito que eu posso,escrevendo, publicando, fazendo palestra, vindo pra Flip. Se a gente reclamapor mudanças, é preciso que a gente tenha o compromisso de mudar as coisas.Trabalho com a informação. E a informação é uma grande arma, informaçãosalva vidas. Cura. Pode fazer pelo outro. Diante do tratamento desleal do ricocom o pobre, se a gente não faz pelo outro, se a gente guarda tudo para si, agente multiplica esse atropelo todo. Porque estamos num momento de atropelo.O que eu faço é manter meu compromisso.”
3.5.2 Alessandro Buzo
Figura 13 - Buzo30
Quem posa na figura 13 é Alessandro Buzo, que nasceu e mora até então no bairro de
Itaim Paulista, periferia de São Paulo. Está casado há mais de dez anos com Marilda Borges, com
quem tem um filho, Evandro Borges. Já fez parte de torcida organizada, foi baloeiro, e trabalhou
em diversas outras funções. Na televisão já apresentou uma série de reportagens do SPTV 1ª
edição, SP Cultura, e o quadro “Buzão – Circular Periférico” na TV Cultura. Também trabalha na
DGT Filmes, tem uma loja de livros, roupas, CDs e DVDs, chamada Suburbano Convicto, e
29 http://www.paraty.com.br/flip/noticias_flip.asp?id=5060 acesso em 03 de Agosto de 201430 www.google.com/images
68
mantém ainda a Suburbano Convicto Produções que promove os eventos “Favela Toma Conta”,
“Suburbano no Centro” e “Encontro com o Autor”. Ele atualiza diariamente os blogs Suburbano
Convicto e Buzo Periferia, suas redes sociais, além de colaborar com outras páginas na Internet
entre eles três sites de hip hop. Entre seus livros independentes estão “O trem: baseado em fatos
reais”, “Guerreira” e “Suburbano Convicto: O cotidiano do Itaim paulista”. É também colunista
da revista Rap Brasil e empresário de grupos de Rap na Zona Leste de São Paulo.
Na internet, Buzo é muito ativo, e está sempre publicando conteúdo diverso. No Twitter,
através da página https://twitter.com/Alessandrobuzo, ele divulga a agenda, fala para mais de 10
mil pessoas sobre o Sarau Suburbano, a vida pessoal, mas principalmente posta comentários e
opiniões acerca de assuntos em pauta na mídia. Também é ativo no perfil do Facebook,
https://www.facebook.com/alessandro.buzo.9, onde divulga para aproximadamente 5 mil pessoas
os eventos dos quais irá participar, fotos de ações culturais e até comentários sobre livros que leu.
O escritor tem ainda um blog, buzo 10.blogspot.com/, também atualizado com alguns textos,
habituais fotos e chamadas de sua agenda.
As obras de Buzo e seus discursos pela internet, assim como Ferréz, também
proporcionam reflexões acerca da existência de um sistema simbólico no qual a cultura, a
ideologia e a linguagem são pensadas a partir de complexas relações de poder e da emergência de
discursos de minorias, sejam elas etnicas, econômicas, sociais, de gênero ou de grupos culturais.
Como a literatura é um sistema simbólico de construção da identidade cultural, no qual tanto a
palavra quanto as idéias revelam um posicionamento do sujeito enunciador, a identidade é
marcada por ser “um conceito estratégico e posicional” (HALL, 2001, p.108). Observemos o que
declara Stuart Hall:
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; queelas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; queelas não não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo dediscursos, práticas e posições que podem se cruzer ou ser antagônicos. Asidentidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantementeem processo de mudança e transformação. (HALL, 2001, p.108)
69
Na modernidade tardia a globalização tem gerado um complexo processo de mudanças
que abalou e continua desestabilizando as identidades anteriormente fixas. E com o
“deslocamento” dos “quadros de referência” (HALL, 2001, p.7) há o surgimento de identidades
cambiantes, alterando a concepção hegemônica que se tinha acerca da cultura. Possibilitando uma
revisão de tais perspectivas a partir da multiplicidade, exemplificada com um dos personagens
literários de Buzo, a protagonista do romance Guerreira: Rose, uma mulher, negra, empregada
doméstica e assaltante, viciada em crack e outras drogas, que vive intensamente muitas histórias.
A situação específica do escritor suburbano faz da criação literária um exercício social e
político por meio do qual ele busca encontrar novos ângulos de aproximação da realidade, sem,
no entanto, promover o estabelecimento de lugares simbólicos e institucionais do discurso
literário, tal como é fixado no cânone, cuja tradição ocidental se pautou no preconceito existente
entre o conceito de literatura e o de classe social. A exclusão cultural da expressão artística da
periferia esteve, então, associada à submissão e à dependência econômica do centro. Se o talento
criador não era exclusividade dos detentores do cânone ocidental, os meios para desenvolvê-los,
com certeza, eram. Hoje, o suburbano tem uma livraria, no bairro do Bexiga, em São Paulo,
produz filmes (e vale mencionar Allan da Rosa, que abriu a própria editora, como veremos à
frente).
Diante disso, a relação entre o rap e a literatura, o acesso dos moradores da periferia aos
bens culturais, a produção de fanzines, o hip hop enquanto expressão cultural e a produção
literária com contornos próprios demonstram bem uma série de transformações, presentes nos
movimentos de contracultura. Buzo tenta abranger todas essas manifestações no Sarau Suburbano
e abre espaço para toda agitação que tenha como objetivo promover um chamamento para o
centro do que estava à margem, incrementando a política da diferença, da valoração das minorias
e das manifestações culturais marginais, sem que fossem percebidas sob o signo do exótico e do
inferior.
70
3.5.3 Sacolinha
Figura 14 - Sacolinha31
Sacolinha é o nome artístico de Ademiro Alves de Sousa, representado na figura 14. Um
rapaz graduado em Letras pela Universidade de Mogi das Cruzes. Autor de dois livros: o
romance “Graduado em Marginalidade” e o livro de contos “85 letras e um disparo”, com
personagens curiosos, inferiorizados pela sociedade, tais como uma prostituta que lê Allan Poe,
um mendigo que faz dissertações, um ladrão mais instruído que qualquer presidente, e assim em
diante. Participou, ainda, de diversas publicações: revista “Caros Amigos”, antologia “No limite
da palavra” da editora Scortecci, antologias “Cadernos Negros”, entre outras. Com contos e
crônicas, foi ganhador de alguns prêmios literários, além de ser também o fundador da
Associação Cultural Literatura no Brasil, uma entidade que, desde 2002, busca incentivar a
leitura e divulgar os escritores independentes. Essa entidade tem hoje vários projetos, inclusive
em parceria com prefeituras, Petrobras e a Fundação Itaú Social. Ele é também o responsável pela
Coordenadoria Literária da Secretaria de Cultura do município de Suzano, em São Paulo, onde
busca desenvolver projetos de incentivo à leitura e de promoção aos escritores. Sacolinha já
publicou nessa função 132 autores, como Ariano Suassuna, Moacir Sclyar, Loyola Brandão, entre
outros. Também promoveu concursos literários, dezenas de oficinas e projetos para incentivar
crianças, jovens e adultos a lerem.
31 www.google.com/images
71
Sacolinha não é tão ativo na internet, pois não possui perfil em redes sociais. Utiliza-se
apenas do blog http://sacolagraduado.blogspot.com.br/, onde fala majoritariamente sobre sua
agenda, acompanhada por cartazes e fotografias. O escritor se concentra em questões
relacionadas à literatura e educação ao longo de seu trabalho. Muitos de seus trabalhos32 se
encaixam no gênero “Romance de formação”, termo que vem da estética alemã como
Bildungsroman. O conceito traduzido para o português como “romance de formação” ou
“romance de aprendizado”: trata-se do tipo de romance em que é exposto o processo de
desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem,
geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade. Entre
exemplos do romance de formação que perpassam a história da literatura, podemos citar Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister (Goethe), Jubiabá (Jorge Amado), Retrato do artista quando
jovem (James Joyce) e Ciranda de pedra (Lygia Fagundes Telles).
A literatura de Sacolinha visa diretamente o social, as populações da periferia econômica
e geograficamente, dialogando com elas. Daí vem os ingredientes do discurso literário que
pretende ensinar, direcionar a construção de um futuro com mais dignidade e ampliar a
capacidade crítica do público. Literatura para educar e influir. Os testemunhos e trajetórias de
vida através dos narradores cumprem a função exemplar do conselho, da lição sentida e
transmitida. Mas a idéia de formação, uma certa pedagogia intríseca, é mais ambiciosa e começa
no fato de que a instrução letrada é algo valioso, um investimento que o sujeito faz para si
mesmo, e que deveria ser priorizado. Educação é a chave para libertação.
32 A análise das obras de Sacolinha resultaram no meu trabalho de conclusão do curso de Especialização em Estudos Literários da UFJF, sob o título “Aspectos do Romance de Formação na Literatura Periférica”
72
3.5.4 Allan da Rosa
Figura 15 – Allan da Rosa33
Na figura 15 encontramos o educador e capoerista Allan da Rosa é um dos
coordenadores da Edições Toró, uma editora que surgiu da necessidade de lançar os textos
de tantos e tantos escritores que participam do Sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo.
Para Allan, existe uma demanda por essa palavra que hoje está ‘fervendo’ na periferia de São
Paulo, e que também se faz sentir em outros pontos do país. No caso da Edições Toró , são
publicados livros de poesia, contos, romances, peça teatral e até livros de artes visuais que
primam por um design muito particular, que dão outra dimensão ao ato de manusear um
livro, utilizando tecidos, lãs, búzios ou que vem dentro de caixas, e proporcionam uma
relação lúdica com o objeto livro. Ele acredita que é muito importante investir num suporte
criativo para atrair o público que muitas vezes lê na internet, mas não é muito fã do papel. O
autor de cada livro participa intensamente do processo editorial e as publicações são lidas
em sua maioria pela população da periferia, mas também envia exemplares ao redor do
mundo.
Allan da Rosa disse em entrevista à Revista Raiz34 que gosta do termo “literatura da
periferia” porque foi atribuído pelos próprios autores, mas que o objetivo desses autores
atualmente não é reforçar o estereótipo de violência e criminalidade, e sim manter um
compromisso com a cultura e a história. Dentre suas obras publicadas estão Vão (2005), Da
Cabula (2006) e Morada (2007), além de diversas participações em antologias, que vão
33 www.google.com/images
34 A Palavra que Está “Fervendo”. Portal Raiz. <http://revistaraiz.uol.com.br/politicas/cooperifa.html> acesso em 05 de Mar. de 2013
73
desde as edições especiais da revista Caros Amigos até “Literatura e afrodescendência no
Brasil: antologia crítica”, publicada por um pesquisador da UFMG.
O escritor e poeta comanda o site da editora que fundou, http://www.edicoestoro.net/,
com conteúdo diversificado. Além disso, uma página contendo uma agenda não tão
atualizada no facebook https://www.facebook.com/edicoestoro, e mantém um perfil pessoal,
https://www.facebook.com/allan.darosa.3, onde quase não faz postagens, mas comenta todas
as publicações enviadas pelos mais de 4 mil amigos.
3.5.5 Sérgio Vaz
Figura 16 – Sérgio Vaz35
O poeta e ativista cultural Sérgio Vaz, visto na figura 16, é autor de livros como Subindo a
Ladeira Mora a Noite (1988), A Margem do Vento (1992), A Poesia dos Deuses
Inferiores (1995), Pensamentos Vadios (1995), Colecionador de Pedras (2004) e Cooperifa:
Antropofagia Periférica (2008). Marido, pai e palmeirense, ele já trabalhou como auxiliar de
escritório, vendedor de vídeogame e assessor parlamentar. Nascido em Minas Gerais, o poeta é
morador de Taboão da Serra, grande São Paulo há mais de 20 anos e iniciou a Cooperifa com
outros artistas em uma fábrica desativada em fevereiro de 2001. Meses depois, o Sarau da
Cooperifa com o poeta Marco Pezão, dando início a um dos grandes movimentos literários de São
Paulo na contemporaneidade. Atualmente o sarau reúne cerca de 300 pessoas toda quarta-feira no
35 www.google.com/images
74
bar do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo e funciona como um movimento dos artistas que até
então não tinham onde se expressar. “Antigamente a gente se mudava da periferia. Agora, a gente
quer mudar a periferia”, afirma o poeta em entrevista ao portal Produção Cultural36.
Sérgio Vaz explica em entrevista para a Revista Raiz37 que o povo brasileiro está
descobrindo a literatura como uma produção viva, através da voz, a linguagem da rua e do
conteúdo, pois a arte que os artistas da periferia produzem vem da angústia e do sofrimento
comum a grande parte da população brasileira. A literatura produzida na periferia tem fome e o
objetivo de seus autores é fazer com que as pessoas se identifiquem: se um escritor do bairro
mostra ao seu vizinho o texto que escreveu, despertando nele o interesse pela literatura, de modo
que essa pessoa busque mais, transformando o sentimento desfavorável que permeia sua vida em
algo favorável, então sua missão está cumprida. O poeta afirma que a arte da periferia é engajada
na medida em que busca representar os sujeitos sem voz, moradores da favela, através do olhar
semelhante, de quem vive o mesmo. Atualmente, quando o assunto é periferia, trata-se do Brasil
inteiro, por isso sua representatividade é muito maior.
Para o poeta, levar literatura para a periferia das grandes cidades era um movimento de
resistência: a busca pela igualdade de voz entre todos os cidadãos brasileiros. Nos últimos tempos
esta ação vem se reconfigurando como uma nova etapa do movimento antropofágico, criado pelo
poeta modernista Oswald de Andrade, como veremos nos próximos capítulos deste trabalho. Vaz
não fala em nome da burguesia como Oswald, mas contra a injusta e praticamente exclusiva
apropriação de capital tanto financeiro quanto cultural brasileiros. De acordo com Marilena Chauí
(1981), em termos nacionais, o que Oswald teria era o discurso competente, o qual:
é o discurso instituído. [...] O discurso competente confunde-se, pois, com alinguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual osinterlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, noqual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar eouvir... (CHAUÍ, 1981, p. 7)
Oswald, foi patrocinado pela burguesia cafeicultora de São Paulo, pois sua origem abria
asportas para um diálogo maior com as instituições de poder legitimadoras do discurso que ele
36 http://www.producaocultural.org.br/no-blog/entrevista-completa-com-sergio-vaz-para-o-producao-cultural-no-brasil/37 revistaraiz.uol.com.br/politicas/cooperifa_vaz.html
75
utilizava, no caso, o discurso literário. A situação de Oswald se difere da tomada de voz por parte
de Vaz, que no Manifesto da Antropofagia Periférica diz que “Dos becos e vielas há de vir a voz
que grita contra o silêncio que nos pune” (Vaz, 2007, p. 2). Voz que se levanta contra uma cultura
dominante e manipuladora, tomada de espaço discursivo quase exclusivamente destinado à
burguesia na tentativa de revelar o subúrbio a partir do subúrbio.
Essa formação de grupos minoritários no chamado pós-moderno esclarece
satisfatoriamente a produção literária brasileira da periferia. Sérgio Vaz participa ativamente desta
formação identitária minoritária e, segundo Stuart Hall (2001), “Esta formação de ‘enclaves’
étnicos minoritários no interior dos estados-nação do Ocidente levou a uma ‘pluralização’ de
culturas nacionais e de identidades nacionais.” (HALL, 2001, p. 83).
Na internet, o poeta leva poesia à população através do perfil do facebook pessoal,
https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2, e da Cooperifa,
https://www.facebook.com/Cooperifa, pelo Twitter, https://twitter.com/poetasergiovaz, e pelo
blog http://colecionadordepedras2.blogspot.com.br/. Seu trabalho com a Cooperifa estimulou a
criação de diversos outros saraus de poesia na capital paulista e no Brasil, até então motivados
pela raiva, como quilombos culturais, mas cujo combustível se transformou em amor pela
cultura, pela periferia e pelas pessoas que lá vivem, com o objetivo de cooperar com a população
brasileira, fazendo com que “revolução" e “evolução” caminhem lado a lado.
3.6 – Cooperifa
“Nasceu da mesma Emergência de Mário Quintana
e antes que todos fossem embora pra Pasárgada,
transformamos o boteco do Zé Batidão num grande centro cultural.”
Sérgio Vaz
Em 2000, uma fábrica abandonada em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, foi
escolhida por Sérgio Vaz e Marco Pezão como um bom espaço para encontros culturais, dando
origem à Cooperativa Cultural da Periferia, doravante Cooperifa, um dos movimentos artísticos
mais ativos de São Paulo. Os primeiros encontros reuniram diversas atividades, mas o ponto forte
76
eram os saraus de poesia, onde moradores da periferia expressavam em forma de arte a sua
indignação. “O poder público não nos deu nada? Então fizemos algo onde não tinha nada”,
explica Sérgio Vaz, “era o MSP- Movimento dos Sem Palco”. Atualmente os saraus ocorrem
semanalmente no bar Zé Batidão, zona sul de São Paulo.
O público é recepcionado pelo poeta Sérgio Vaz com os dizeres “Povo Lindo! Povo
Inteligente!”, exaltando as pessoas que se reunem na periferia em nome da cultura. O microfone
permanece aberto para qualquer um que queira se expressar, seja com poesia, seja com música,
para falar de arte é só chegar. O sarau costuma reunir uma média de 300 pessoas semanalmente,
segundo a organização e nesses 13 anos já foram publicados mais de 40 livros, além de CDs nos
quais poetas declamam sua poesia. A Cooperifa organiza ainda algumas outras ações culturais
significativas, como levar o sarau para escolas e para a Fundação Casa (ex-Febem), trabalho que
rendeu o prêmio Educador Inventor, concedido pela Unesco.
O sarau é de quem chegar: para se apresentar, basta dar o nome e aguardar ser chamado,
desde que o texto não seja muito longo devido ao tempo e a quantidade de poetas. Sérgio Vaz,
coordenador do projeto, acredita que o sucesso está no fato de os artistas se colocarem no mesmo
patamar que seus leitores e praticarem a cidadania, participando das ações da comunidade, além
de o sarau ser uma alternativa ao entretenimento aos canais de massa. A grande maioria dos
poetas que se apresentam são moradores do bairro que, segundo Vaz, aprendem dia após dia a
aproveitar a vida que levam na periferia e sentir prazer nesse meio. A filosofia que rege o projeto
é que “só o conhecimento liberta”: liberta do frio, do medo, da tristeza, da desesperança e da
mediocridade.
O símbolo da Cooperifa é uma criança empinando uma pipa. Este ato de liberdade
caracterísstico da infância é revisitado no pleno da afetividade na memória dos jovens e adultos.
Refere-se a uma atividade de lazer simples e popular, praticada nos espaços das ruas. Mensagens
que envolvem diferentes e singelas expressões afetivas são mobilizadas nas atividades da
Cooperativa: rua, diversão, liberdade, alegria, memória da infância, brincadeira. A ideia de se
eleger essa brincadeira como símbolo do sarau não nos parece aleatória, afinal, liberdade,
afetividade, diversão, alegria, o uso da rua, seriam componentes centrais dos eventos, saraus e das
prática poéticas em seu cerne.
77
A idéia da Cooperifa desde o seu início era convidar pessoas de outras áreas que não
tinham acesso ao entretenimento, como cinema e teatro, por exemplo. O intuito de levar arte à
periferia refere-se não só à produção, mas também ao consumo, mantendo artistas e comunidade
sempre próximos, para que as pessoas tivessem um novo olhar para a arte. As ações da Cooperifa
visam formar leitores sem substituir o trabalho do Estado em relação à cultura, mas se
relacionando com ele ao criar uma ação cultural aberta à comunicação com as políticas públicas.
3.6.1 Ações Comunitárias
a) Várzea Poética
O Várzea Poética é simples: os moradores da comunidade que jogam futebol de várzea
estabelecem o compromisso de freqüentar o Sarau da Cooperifa durante pelo menos um mês, sem
faltas, para ganhar um jogo de camisas dos seus times preferidos. Ou seja, futebol e poesia juntos
na quebrada. A Cooperifa já tem outras parcerias com o Ponte Preta do Jd. leme, Unidos do
Morro (Pirajuçara), Sossêgo (Jd. Maria Rosa), Aliados (Chácara Santana), CDHU (Jd. São Luiz),
entre outros, que devido ao incentivo do projeto se tornaram frequentadores do sarau. Algumas
empresas apoiam o projeto, tais como o Itaú Cultural e a Global, incentivando essa parceria entre
esporte e leitura. Acreditamos que para ser leitor, assim como no caso de um atleta de alta
performance, são necessárias condições de treino e desenvolvimento para que a tarefa se
desenvolva por completo, no entanto, este projeto parece ser direcionado apenas ao público
masculino.
A Cooperifa entende que o futebol de Várzea é uma das maiores culturas da periferia, essa
é a razão para tanto sucesso. A metáfora da poesia e da bola é muito boa porque a palavra está no
ar e viva. Afirma Cacaso (1997):
O craque recebe a bola pelo alto, pula, mata no peito, domina, observa, apara o lance, eno terreno segue compondo a jogada. Uma poesia que requebra, que temespontaneidade e ao mesmo tempo a malícia de um drible de Garrincha: a imagem dopoeta aproxima-se da imagem do jogador, do sujeito que brinca e faz malabarismos,com a bola e com a palavra (...)
78
Figura 17 - Várzea Poética38
Tanto o poeta quanto o jogador de futebol precisam de um toque de ginga e malandragem
para desenvolver sua arte, por isso o primeiro trabalha para dominar a palavra assim como o
segundo pula para dominar a bola. Esse trabalho também exige de ambos disposição e
concentração para elaborar um modo de atuação que acaba sendo ensaiado, treinado, com a
prática, o que pode proporcionar um estilo de brincar com a palavra e com a bola.
b) Cinema na Laje
Com esse projeto a periferia de São Paulo ganhou uma sala de cinema ao ar livre toda
primeira e terceira segunda-feira do mês, na laje do bar do Zé Batidão, e ganhou o nome de
“cinema Paradiso da Zona Sul Paulistana” 39. Trata-se de um espaço alternativo para a exibição de
filmes e documentários produzidos no Brasil e no mundo, especialmente na periferia, com
atenção especial aos jovens da região aproveitando a entrada franca e pipoca gratuita.
38 www.facebook.com/cooperifa
39 http://colecionadordepedras.blogspot.com.br/2009/02/cooperifa-apresenta-cinema-na-laje.html
79
Figura 18 – Cinema na Laje40
Além dos filmes, acontecem também debate e visitas de alunos de escolas próximas.
c) Chuva de livros
Em Agosto de 2013 aconteceu a sexta edição da Chuva de Livros realizada pela
Cooperifa, para incentivar o hábito da leitura na periferia paulistana, , conforme ilustrado na
figura 19:
40 www.facebook.com/cooperifa
80
Figura 19 – Chuva de Livros41
Neste dia todas as pessoas que comparecessem ao sarau, ganhariam um livro de presente e
a previsão era de que 800 livros fossem distribuídos, entre eles romances, contos, poesias, de
clássicos como Drummond até poetas da comunidade, infantis e adultos – para todos os gostos e
idades.
d) Ajoelhaço
A Cooperifa realiza uma vez ao ano uma edição do Ajoelhaço, em virtude da semana do
Dia Internacional da Mulher. Esse é o momento em que os poetas e todos os homens presentes no
sarau vão à frente e pedem perdão às mulheres por todas as injustiças, atrocidades e crimes
cometidos, desde a violência doméstica à história da humanidade, só que, de joelhos. Segue a
figura 20:
41 www.facebook.com/cooperifa
81
Figura 20 - Ajoelhaço42
Embora no microfone, por meio das palavras, os homens declarem seu respeito e
admiração as mães, irmãs, avós, esposas e namoradas pelo dia da mulher, e se ajoelhem em
seguida, a mulher continua passiva, pois sua voz e seus discursos parecem chegar em minoria ao
microfone do sarau, ainda que na data celebrada.
e) Poesia no Ar
Em 2013 aconteceu a sétima edição do Poesia no Ar, evento que enche o céu de São
Paulo numa noite mágica para a periferia. O evento geralmente se inicia por volta das 23h,
quando cada participante precisa escrever num pedaço de papel uma mensagem, poesia, o que
melhor lhes convir e ler, bem como os autores convidados.
42 www.facebook.com/cooperifa
82
Figura 21 - Poesia no ar43
Em seguida, os textos são colocados em balões de gás e soltos ao céu, na esperança de que
sejam enviados para toda a cidade, especialmente recebidos por aqueles que não podem
comparecer ao sarau.
f) Semana de Arte Moderna da Periferia
Inspirada na Semana de Arte Moderna de 22, a Cooperifa propôs uma semana inteira de
artes voltada para a periferia. A idéia é ir além, mostrando não só um novo tipo de linguagem,
como também de um artista que, embora humanizado, seja caracterizado pela sua obra e que esta
não seja prezada pela estética como também pelo conteúdo.
A “apropriação” da Semana de Arte Moderna funciona como uma “atualização” de um
acontecimento pontual e definitivo no campo estético. A Cooperifa, ao produzir esse evento, visa
estimular o interesse da população pela leitura, criação poética, gosto pelo teatro e pelo cinema,
aliando-se a escolas e universidades para que a cultura seja um elemento primordial na formação
de seres humanos melhores e mais conscientes.
O moderno aqui significa ousar para encarar novos desafios, e isso inclui novos suportes
para a produção e divulgação cultural. O poeta Sérgio Vaz, os membros da Cooperifa e diversos
43 www.facebook.com/cooperifa
83
outros escritores utilizam-se cada vez mais da internet para difundir não só seus textos, como
também propagandear as atividades culturais que organizam nas quebradas através de seus blogs,
redes sociais, canais no youtube e uma série de recursos que estudaremos a seguir, na tentativa de
acionar a função social da literatura, aproximando-a de todas as maneiras possíveis da vida
cotidiana. O artifício mais frequente do poeta tem sido a postagem e compartilhamento de
poemas que entoam mensagens de auto-ajuda, como estudaremos no capítulo seguinte.
Abordaremos na quarta parte deste trabalho um recorte das publicações relativamente
recentes de Sérgio Vaz nas redes sociais, a fim de refletir sobre o elemento social que caracteriza
a poesia produzida pelo poeta, principalmente divulgadas durante o período das manifestações
políticas de 2013, ocorridas em nosso país. Verificaremos como o poeta manifesta os ideais de
conquista da felicidade na sociedade e no cotidiano da periferia por meio de uma literatura de
auto-ajuda, visando despertar nos leitores a motivação para o sucesso e para a vitória na vida
através da força e poder da palavra.
84
CAPÍTULO 4 - LITERATURA E VIDA
Inferimos no capítulo anterior que na década de 60, sob a influência dos Provos e outros
movimentos de contracultura, alguns grupos de artistas manifestaram necessidade em responder à
situação política que se configuirava pela articulação da produção cultural caracterizada pelo
inconformismo e desmistificação. Tentavam relacionar a experimentação de linguagem às
possibilidades de uma arte participante, agenciando as ações na ordem do simbólico em relação
ao comportamento, visando a instaurar a vontade de um novo mito (Oiticica, 1986, apud
Favaretto, 2013), uma imagem da arte como atividade em que não se distinguiam estética e
exigências éticas e políticas. O objetivo era transformar a arte em algo além: uma proposta que
implicava mudanças nas referências à vida em projetos diversos de renovação da sensibilidade e
de participação social.
A proposta de participação coletiva, interessada tanto na reformulação do conceito de arte
como no redimensionamento cultural dos protagonistas pela integração do coletivo, era o que
mobilizava os artistas. Enquanto pretendiam liberar suas atividades do ilusionismo, eles
intervinham nas arguições do tempo, fazendo das propostas estéticas uma forma de intervenção
cultural. O simbolismo das atividades se fundamenta na densidade teórica e excede a imaginação
pessoal em prol do imaginativo coletivo, se cumpria na visão crítica da identificação de práticas
culturais com poder de transgressão, não apenas pela figuração das indeterminações e conflitos
sociais, ou pela denúncia da alienação dos discursos sobre a realidade.
Os artistas buscavam então compor um programa coerente que problematizava não apenas
a situação brasileira da criação, como também a internacional, e desenvolviam como versão da
produção contemporânea a exploração do caráter provisório do estético, ressignificando a criação
coletiva e o político da arte. A tendência básica era transformar a arte em exercícios para um
comportamento operado pela participação. Através dessa prática, a transmutação da arte em
comportamento se daria quando o cotidiano fosse fecundado pela imaginação, confrontando os
indivíduos com situações e concentrando-se nos comportamentos, ao recriarem-se como sujeitos.
Revisitando algumas idéias de Foucault, percebemos que tratava-se de conceber a vida
como arte; a constituição de modos de existência, de estilos de vida, que relevassem da estética e
da política. Portanto, ética e estética passaram a caminhar juntas, como queriam aqueles que viam
85
nesse modo da arte a possibilidade de reinvenção da política e da vida. Esse princípio (e
procedimento) moderno consistia na intervenção do próprio ato artístico, já que o novo, o qual
abre o leque da significação, significava a ruptura com a representação.
Em resumo, quando pensamos em literatura, levamos em conta o elemento social como
fator da própria construção artística, estudando no nível explicativo e assimilando a dimensão
social como fator de arte. Se considerarmos os fatores sociais no seu papel de formadores da
estrutura, veremos que são relevantes para a análise literária, pois a arte é social no sentido de
produzir sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de
mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isso decorre da própria natureza da
obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito dos artistas e receptores da
arte. Assim, investigamos as influências exercidas pelos fatores socioculturais, aos valores,
ideologias e às técnicas de comunicação.
Sociologicamente, Antônio Cândido (2006) afirma que a arte é um sistema simbólico de
comunicação humana, logo decorre fenômenos sociais importantes: o primeiro é a integração, um
conjunto de fatores que tendem a acentuar no individuo ou no grupo a participação nos valores
comuns da sociedade. O segundo é a diferenciação, que ao contrário, trata do conjunto que tende
a acentuar as peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processos
complementares, que Cândido afirma depender a socialização do homem.
4.1. O Lugar do Artista e o Nome de Autor
A posição social é definida por Antônio Cândido (2006) como um aspecto da estrutura da
sociedade. No nosso caso, vamos averiguar como esta atribui um papel ao autor, como define a
sua posição na escala social, como se desenvolve a função-autor e o nome de autor em relação ao
poeta Sérgio Vaz. O nome de autor funciona para designar/identificar um indivíduo e como um
princípio de classificação, de agrupamento, pois quando a dispersão dos textos é atribuída a um
nome de autor, passa a ser reconhecida como obra, que circula como fundadora de uma
discursividade. Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as
pessoas correspondem a necessidades coletivas, e estas agem permitindo que os indivíduos
possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo. Frequentemente as noções de escritor,
86
autor e grupo são associados em pauta pelas circunstâncias de circulação e podem ser
esquematizadas dos modos a seguir.
A) A necessidade de um agente individual que tome a si a tarefa de criar e apresentar
a obra.
O nome de autor é explicado por Foucault (2001) como classificatório, permitindo
agrupar textos e relacioná-los entre si. Funciona para caracterizar um modo de ser para um
discurso, significando que deve ser recebido de certa maneira e que deve, em uma dada cultura,
receber certo status. Sérgio Vaz assina tudo como poeta: seu nome no blog, redes sociais,
entrevistas e poesias. Na sua entrevista para a Revista Forum44 explica que decidiu se tornar poeta
baseado numa frase de Ferreira Gullar, presente num disco do Milton Nascimento no qual diz que
“o canto não deve ser uma traição à vida. Só é justo cantar, quando seu canto arrasta consigo
pessoas e coisas que não têm voz”. Assim Sérgio Vaz descobriu que queria ser poeta e escrever
sobre liberdade.
Em seus textos, o poeta fala das pessoas com quem vive, do que observa e do que dói em
seu coração. Aborda temas da vida daqueles que considera seus semelhantes, negros e pobres que
moram na periferia, e também temas recorrentes no cotidiano, tanto da violência, quanto de amor,
alegria, amizade, sonhos possíveis e impossíveis. O poeta afirma45 que sua poesia que nasce das
ruas violentas, da saúde precária, do ensino de má qualidade, do racismo, do preconceito de
classe, do desemprego, das mazelas sociais, e tudo isso que exige denúncia de quem sofre na
pele. Essa expressão da literatura produzida na periferia é capaz de criar uma aproximação entre a
vida do poeta e a vida do leitor, supondo uma construção regulada e legitimada pela comunidade.
Em 2007, Sérgio Vaz escreveu o livro Cooperifa: Antropofagia Periférica, no qual conta
sua trajetória de vida e a história da Cooperifa, tecendo o que, a seu ver, representa a identidade
da literatura por ele produzida, inspirado no conceito de antropofagia da obra de Oswald de
Andrade. O Manifesto da Antropofagia Periférica, que pode ser encontrado em anexo neste
44 http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/05/sergio-vaz-o-poeta-sonhador-da-quebrada-completa-25-anos-de-carreira/45 http://www.panoramamercantil.com.br/a-periferia-e-um-uranio-enriquecido-sergio-vaz-poeta-e-fundador-da-cooperifa/
87
trabalho, é uma boa ilustração para que se entenda a caracterização do poeta Sérgio Vaz quanto
ao seu discurso como autor. Essa relação com a antropofagia desperta o conceito de comer o
inimigo, selecionando o que ele tem de mais forte, nesse caso rejeitar o lado repressivo e
castrador da erudição e do culturalismo comercial sem negar totalmente seus possíveis
procedimentos, “a favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a
diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos” (Vaz, 2007).
A antropofagia periférica transforma o tabu em totem, passando de uma lógica opressiva
ao espírito de libertação. O Manifesto da Antropofagia Periférica distoa dos textos encontrados
nas redes sociais por ser consideravelmente mais combativo, e Sérgio Vaz propõe subverter a
ordem sem cair no discurso da pura negação ou opressão, um discurso semelhante ao do poeta
carioca Allan da Rosa (2011), que numa entrevista46 explicou:
[...] tem pessoas que estão a fim de escrever um texto para levantar a rapaziada elembrar que existiu o cangaço. E que quer que o livro seja uma parabélum mirada natesta do volante. E o outro que já quer perguntar “E se o passarinho não tivesse asas, ese o passarinho tivesse escamas?” Ele não está afim de trazer o cangaço. Ele está afimde trazer o impossível. [...]Acho que a princípio o movimento falava mais da parabélume hoje está percebendo que é importante falar dos passarinhos. Natural. A espiral vaicrescendo e a gente pode desconfiar das parabélum que a gente mesmo confeccionou,sabe?
As semelhanças no discurso de Allan da Rosa e Sérgio Vaz apontam para uma poesia que
massageia o coração, organiza a luta e leva o leitor a abrir a janela e ver a vala. O autor completa:
“Então eu acho que a gente vai desenvolver mais, o passarinho segurando a parabélum, ou a
parabélum soltando o passarinho” (Allan da Rosa, 2011). Nada de cabeçadas, porque fazer poesia
com pitadas de amor se mostrou uma bela arma contra as armadilhas do sistema capitalista, como
podemos ver no poema seguinte, no qual ao invés de trazer a poesia produzida na periferia como
uma poética negativa e “puramente expressiva”, o poeta constrói através de seu fazer poético e de
sua política literária uma ética do conviver, baseada na felicidade como algo capaz de transgredir
a opressão. Há uma semelhança com os discursos de auto-ajuda, de uma forma geral. Veja na
figura 22:
46 www.ufjf.br/darandina/files/2011/07/Entrevista-Allan-da-Rosa.pdf
88
Figura 22 - Transgressão47
A poesia da periferia é literatura das letras descalças, mas de pés firmes e calejados que
não descansam nunca, capaz de criar a aproximação entre literatura e vida através da paixão. O
poeta Sérgio Vaz a define como aquela que apanha na cara, e não dá a outra face, porque apesar
da história e dos dias difíceis, sua poesia reflete a esperança e a luta por uma vida digna e feliz,
tal como prometeram os reacionários ao longo da história do nosso país.
O poder da palavra, segundo Prado, citado por Orlandi (1996, p. 98) é tão forte que é
capaz de modificar o comportamento das pessoas e transformar para o bem ou para o mal suas
vidas. Para expor seu pensamento sobre este poder explica o autor:
Se conhecêsseis o poder de vossas palavras, teríeis grande cuidado nas vossasescritas e conversas. Bastar-vos-á observardes a reação de vossas palavras paraverificardes que elas não voltam vazias. Por meio das palavras que escreveis oupronunciais, estais estabelecendo continuamente leis para vós mesmos. As forçasinvisíveis agem sempre a favor daquele que está continua e corajosamente avançandopara frente, embora não o saiba. Em virtude das forças vibratórias das palavras, quandoo indivíduo escreve ou fala alguma coisa, começa a atraí-la para si.
Toda palavra expressa a definição de um ser humano em relação ao outro, à coletividade,
como uma ponte lançada que passa a ser o território comum do locutor e do interlocutor. O
poema de Sérgio Vaz contitui-se como auto-ajuda por falar uma fórmula de perto ao seu leitor,
47 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
89
procurando convencê-lo a assumir dada postura enquanto invoca inimigos reais e/ou psicológicos
- no caso do poema acima, a rotina da periferia seria o inimigo do seu morador.
No poema que se segue, é perceptível que Sérgio Vaz retoma e atualiza a memória do
movimento da inconfidência, símbolo máximo de resistência da história mineira, e um dos mais
importantes acontecimentos na história do Brasil, o qual se fundamentava nos ideais iluministas
de liberdade. Há no texto referência aos dizeres da bandeira de Minas Gerais – traduzidos do
Latim como “Liberdade, ainda que tardia” idealizada por aqueles que pretendiam eliminar a
dominação de seus colonizadores de elite, como mostra a figura 23:
Figura 23 - Felicidade48
48 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
90
Assim, pratica uma ética cuja lógica é compreendida como um motor contínuo da vida,
abrindo-se para além de uma moral identitária pré-estabelecida, experimentando a vida para além
do espelho reacionário de um eu – ou nós. Essa poesia assume a postura de um discurso
desierarquizante e proporciona o diálogo com o “outro”, com o conhecimento do “outro”, com o
que lhe é estranho, esse discurso propõe uma identidade plural. A poesia produzida por Sérgio
Vaz propõe viver em suas diferenças, e ao mesmo tempo, lutar para criar o encontro dessas
diferenças. É um caso de devir, um movimento, um diálogo com a vontade de potência de
Nietzsche49. Vontade de potência essa, como ensina Deleuze, que não é vontade de poder e nem
vontade de dominar ou cobiça, mas criação, e criar é um gesto de violência: o traço da palavra
rasga o espaço antes em branco.
Para Chagas (2001), textos de auto-ajuda pretendem que o indivíduo que deseja
conseguir seus desejos deve obedecer às determinações das fórmulas apresentadas, pois elas são
impositivas e miraculosas, preceitos que devem ser seguidos para que a pessoa tenha os
resultados positivos almejados – o poeta Sérgio Vaz frequentemente utiliza-se de verbos
conjugados no modo imperativo em suas mensagens positivistas. O crescimento e expansão dos
textos de auto-ajuda como os do poeta pode, nos dias atuais, ser visto como a expressão do
subjetivismo exacerbado, em que cada pessoa procura, por seus próprios artifícios, sobreviver em
meio aos problemas e ansiedades. Na grande maioria, os textos publicados pelo poeta no
Facebook e Twitter destacam-se pelo sentimento e pela intensidade de sujeitos que vivem num
lugar o qual, até há pouco tempo, era ignorado e agora querem mostrar do que se orgulham.
Observe o recado na figura 24:
49 Segundo Nietzsche, a Vontade de Potência é o modo como se comporta aquilo que não poderia ter finalidade ou sentido, e que vive sob sua própria responsabilidade. Advém da própria realidade das coisas e é a essência do impulso que resiste no interior de uma multiplicidade de forças que, em suas gradações, se manifestam em fenômenos políticos, culturais, permeando a natureza e o próprio homem.
91
Figura 24 – Recado50
O suor, o amor e a liberdade são temas recorrentes na grande maioria dos textos,
mostrando como as manifestações culturais e artísticas são fundamentais na periferia, pois
proporcionam a criação de laços afetivos e o desenvolvimento de alternativas de socialização,
participação e construção da cidadania, deixando para trás as experiências tristes de exclusão e da
ignorância para dar lugar a um povo que fala, que assume a autoria da sua própria voz.
Assim, independentemente de quais forem os empecilhos enfrentados pelo leitor, o texto
dde auto-ajuda busca resolver, porque seu papel é fornecer ao sujeito alívio do mal-estar, com a
promessa de ordenar e organizar através do empreendedorismo de si próprio (CHAGAS, 2001).
Sendo assim, o discurso de Sérgio Vaz, assim como o de autoajuda, tem como objetivo fazer com
que o sujeito leitor sinta-se onipotente, capaz de colocar em prática tudo que fora ensinado
através da poesia. Como tais ensinamentos são apresentados de forma sedutora, com imagens
cativantes, muitos leitores podem se sentir confiantes de que conseguirão realizar seus desejos
apenas por acreditar que tudo é possível.
50 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
92
B) O escritor é ou não reconhecido como autor pela sociedade, e o destino da obra
está ligado a esta circunstância.
O poeta Sérgio Vaz acredita exercer a função-autor por meio de um discurso transgressor,
na medida em que é reconhecido por suas obras e atividades relacionadas à periferia
(considerando o ato do discurso entre centro e margem), pois o sentido de uma obra, segundo
Focault (1969), se relaciona com questões históricas, sociais e ideológicas como, por exemplo, de
onde vem o texto, quem o escreveu, em que data, em que circunstancias ou a partir de que
projeto. Também em entrevista à revista Fórum, o poeta Sérgio Vaz declara: “A periferia é a
maioria, mano, sou o poeta da maioria, podem colocar na estante da livraria, ‘poeta da periferia’.
Sou da periferia.” Seu objetivo ao criar a Cooperifa era difundir cultura e sensibilizar pela
qualidade de vida nas favelas e áreas periféricas com os instrumentos que conseguia por si só e
com a ajuda de amigos.
Este poeta faz do pensamento seu trabalho, sua arma, sua presença e com isso abre
esquinas. Cada lugar tem sua lógica, cada cidade tem sua alma, e ser periferia em São Paulo,
antes desses movimentos culturais que temos estudado, era ter uma esperança cansada, mas no
discurso do Poeta Sérgio Vaz percebemos uma esperança muito mais vitalizada, feita a cada dia,
coletivamente, nos potenciais da arte e da história. A história demográfica, geográfica, histórica,
psicológica de São Paulo é de negação e sua identidade talvez não fosse tão contemplada com a
honra e o orgulho que se vê atualmente. A arte e a poesia fazem com que percebamos a
identidade da periferia de São Paulo mais dinâmica, pois tudo parece estar em movimento. Logo,
o discurso do autor Sérgio Vaz transparece fazer parte desse movimento literário que vem
florescendo há mais de dez anos mostra a necessidade de compreender melhor o lugar para que se
possa compreender os sujeitos, de modo que teoria e prática caminhem juntos, longe da
incoerência, como podemos ver na figura 25:
93
Figura 25 - Caminhos51
O espaço em que vivemos nos identifica socialmente, de modo a caracterizar a área da
periferia como “espaço de identidade ideológico-cultural”, trabalhado em função dos interesses
daqueles que a reconhecem como base territorial, como afirma Haesbaert (1988), citado por
Ferreira (2014). Por sua vez, Raffestin (1993), também citado por Ferreira (2014), analisa o
território como espaço de relações de poder, que também é palco das ligações afetivas e de
identidade entre um grupo social e seu espaço. Os símbolos, imagens e aspectos culturais
representados nos poemas sob a autoria de Sérgio Vaz são na verdade valores que a população da
periferia materializa como uma identidade incorporada aos processos cotidianos, dando um
sentido de pertença e de defesa dos valores, do território, da identidade, utilizando-se das
vertentes político-cultural, que na verdade são relações de poder e defesa de uma cultura
adquirida, chamada hoje de “Cultura de Periferia”.
Seus textos contribuem para um tipo de educação “espiritual ” do leitor e auxiliam a sua
“escala evolutiva” na sua constituição enquanto sujeito. O sucesso desse aspecto de auto-ajuda é
atribuído ao desejo e a busca do ser humano pela felicidade, especialmente quando as condições
econômicas, políticas e sociais deixam a desejar. O resultado é a apropriação de um determinado
51 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
94
espaço, que constitui-se a partir do momento em que Sérgio Vaz o representa na sua poesia para
si e para os outros. Enquanto espaço da ação, o território da periferia passa a ser a intervenção
dos atores sociais que, numa relação dialética, figuram o seu próprio movimento.
Figura 25 - Classe C52
Por meio do estudo da constituição das identidades, podemos compreender como o
território pode ser considerado enquanto símbolo ou uma imagem pela qual o autor se orienta,
com base na experiência de representação e ação. Isso define os contornos do processo de criação
de uma identidade, que ocorre ao longo da história, e acaba por ser representada no processo de
criação das obras, nas quais ao escrever, o autor coloca as suas impressões e suas verdades,
autenticando-a, conferindo-lhe um grau de credibilidade e valoração. Apreendemos da obra de
Foucault (2001) que o autor não é simplesmente aquele que escreve e assina os textos, mas sim
quem lhe confere uma espécie de aura, a qual segundo Walter Benjamin seria como a marca do
autor, presente nas entrelinhas. Vemos o poeta Sérgio Vaz como um autor fundador de
discursividade, que ocupa uma posição transdicursiva na ordem do discurso; seus textos
funcionam como possibilidade na formação de outros textos, abrindo espaço num número de
possibilidades, exigindo o retorno à origem, às potencialidades contidas no discurso fundador.
52 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
95
A escrita partida da experiência (seja ou não do próprio autor) é freqüente na literatura
contemporânea, e parte do desejo de ver em ficção, prosa ou poesia, as temporalidades do
presente vividas por algumas subjetividades. Essa presentificação tem sido caracterizada pelo
retorno do trágico, mais marcante no início do movimento literário da periferia, segundo o
conceito de Beatriz Resende (2010), e que agora vem se reajustando com o discurso do mesmo. A
cultura de periferia, no sentido de valor, símbolo, linguagem, arte e identidade é o próprio ar que
os movimentos sociais como a Cooperifa respiram. Chagas (2001, p.98) ressalta a ingenuidade
dos leitores dos textos de auto-ajuda que sem perceberem acabam sendo persuadidos pelas
promessas que os poemas trazem. Ressalta ainda a seguinte idéia:
As promessas contidas nos livros são mencionadas de uma forma aparentementesimples, porém, são enaltecidas em cada livro por intermédio da capacidade depersuasão dos autores. Eles repetem a cada livro, a receita para quem deseja alcançar osucesso e a realização pessoal. Dizem, nas entrelinhas, da possibilidade da perfeiçãohumana, ou daquilo que, como se sabe pela psicanálise, é um desejo impossível de serrealizado, ou seja, o desejo de alcançar a felicidade plena, da reconciliação consigomesmo e com os outros.
Por sua vez, a poesia produzida por Sérgio Vaz é construída por uma linguagem voltada
simultaneamente para o pessoal e para o político, fazendo com que divergência seja a palavra de
ordem, incentivando o exercício da reflexão crítica sobre as práticas de insatisfação militante que
afetam a parte até então marginalizada do Brasil. Segundo Terry Eagleton (2005), a mudança
política tem que ser cultural para ser efetiva, pois assim se entranha nas percepções das pessoas
com o seu consentimento, engajando seus desejos e permeando seu senso de identidade. Como
exemplo, temos a figura 26:
96
Figura 26 – Cinzas53
Observamos que a poesia de Sérgio Vaz também traz à luz questões por muito silenciadas,
com um modo de sentir e formas de representação cruciais no contexto da experiência e
identidade.
C) O autor utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas
aspirações individuais mais profundas.
Enquanto autor, o Sérgio Vaz estabelece uma enorme gama de possibilidades de discursos,
excedendo sua própria obra ao abranger seus ideais aos moradores da periferia através da poesia e
da divulgação de suas criações como principal representação do grupo: ele fundou a Cooperifa. O
poeta se orgulha dos leitores que lá formou, acreditando ser essa sua missão e o paradoxo da
contemporaneidade: desenvolver a cultura da leitura. Afirma o poeta, ainda na mesma entrevista:
“se o opressor leu, o oprimido tem que ler também”. A vontade de se libertar desse círculo
vicioso e obediente da história, que seria a posição de oprimido, não se concretiza pela
ignorância, mas sim pela rearticulação da ordem. Quem ataca precisa saber onde está pisando, até
53 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
97
porque não se pode atacar algo que não se conhece. A Cooperifa, segundo o poeta, não é um
movimento, mas sim um sentimento, que aconteceu para aumentar a autoestima da periferia. Diz
o autor que “a Cooperifa é a nossa Tropicália”.54
As margens podem ser lugares indescritivelmente dolorosos para se estar, e há poucas
tarefas tão honrosas, em termos de cultura, quanto ajudar a criar uma oportunidade na qual o
descartado e ignorado possa encontrar um espaço de fala. Com a Cooperifa, o poeta Sérgio Vaz
viabiliza esse espaço para erguer sua própria voz. O que marca mais o discurso do poeta é o que
Chagas (2001, p.65) descreve como o tom encantador e fascinante, em que não é preciso por
parte dos leitores, exigir explicações e justificativas.
Acreditamos que o que legitima o discurso de Sérgio Vaz nas redes sociais seria, por parte
do leitor, seja o desejo de realização; a busca pela felicidade; o princípio de prazer, que
impulsiona o sujeito na busca dessa felicidade, uma tentativa de evitar o sofrimento inerente a
condição de existência do sujeito. Deduzimos que estes tópicos destacados podem delinear as
condições de produção das práticas discursivas de autoajuda que, inclusive, legitimam seus
dizeres, pois faz com que o discurso de possa adquirir tal sentido para seus sujeitos leitores
Na poesia de Sérgio Vaz há a necessidade de liberdade, mas também de tradição e
pertencimento, pois através de suas poesias se empenha de forma encorajadora a delinear novas
relações entre localidade, diversidade e solidariedade, encontrando na poesia a força necessária
para isso. Veja no trecho a seguir, retirado do facebook:
Perdoem nossos defeitos, respeitem nossas qualidades.Tudo é feito por amor à periferia.Vale a pena sonhar, vale a pena lutar por isso.Tem dias que a vida não dói, ontem foi um deles.A Cooperifa me faz acreditar num mundo melhor.Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa!
Sergio Vaz
Sejam quais forem as utilizações comunitárias ou práticas da arte, ela depende do
exercício do talento individual. Antônio Cândido (2006) afirma que a arte pressupõe um
indivíduo que assume a iniciativa da obra, mas precisa ele ser necessariamente um artista,
54 http://www.youtube.com/watch?v=aBEmwdt5TR4
98
definido e reconhecido como tal? Ou, em termos sociológicos, a produção da arte depende de
posição social e papéis definidos em função dela? A resposta seria: conforme a sociedade, o tipo
de arte e a perspectiva considerada. Para o autor, isto significaria o reconhecimento da sua função
social. Uma função social, que realça certos aspectos da estrutura e reforça o sistema de
dominação, traduzindo-se pelos papéis atribuídos a tais “mensageiros”.
Nas sociedades modernas, a autonomia da arte permite atribuir a qualidade ao artista
mesmo a quem a pratique ao lado de outras atividades. O poeta é identificado socialmente pelo
papel de maior relevo na situação considerada, como eixo central da personalidade bem definida
para o desempenho de outros, mergulhado num sincretismo de funções. À medida que fala das
atividades e objetos impregnados de valor pelo grupo, o poeta assegura a sua posição de
intérprete.
4.2. O Público, Efeito-Leitor e Circulação de Sentidos.
Considerar o ponto do receptor da literatura na internet, que integra o público em seus
diferentes aspectos, é perceber as influências sociais marcadas. Fizemos algumas considerações
sobre a influência do fator sociocultural, a técnica acerca da composição e caracterização dos
públicos. No caso da literatura, as relações entre público, autor e obra tendem a se relacionar de
maneira indireta, de contatos secundários, mas não é o que acontece com o poeta Sérgio Vaz.
Percebemos a influência social, que se manifesta sob várias designações – gosto e valores – e
frequentemente exprimem as expectativas sociais, que tendem a cristalizar-se na rotina, desde os
pequenos atos como responder à violência do dia-a-dia na periferia com atitudes surpreendentes,
como o amor, que une seus moradores na batalha muitas vezes silenciosa de suas vidas duras,
ilustrado na capa do livro, na figura 27:
99
Figura 28 - Literatura, pão e poesia55
A sociedade costuma estabelecer certos padrões, e não seria diferente para o público
amador de arte, pois muito do que julgamos ser reação espontânea da nossa sensibilidade acaba
por ser conformidade automática aos padrões pertencentes a uma massa, cujas reações obedecem
às condicionantes do momento e do meio. Como já vimos, todo discurso é produzido em
determinadas condições de produção que se inscrevem na sua materialidade como imagens, de
modo que as condições de produção intervêm na textualização e na prática de leitura dos textos.
Toda leitura se dá em condições de produção específicas que configuram o modo de ler e de
interpretar. Quando se fala de periferia, uma das primeiras referências que vem em mente é a
violência. O poeta Sérgio Vaz espera isso de seu leitor, e por isso utiliza-se de artifícios que
surpreendem, como no texto abaixo, onde conta a história do menino Bruno, num poema que fala
de morte sobre uma notícia de jornal com a suposta foto do garoto, e um título com um apelido
inusitado, muito comum aos moradores das favelas envolvidos na criminalidade. Em suma, os
entes queridos de Bruno morreram de saudade, porque o garoto conseguiu entrar na faculdade e
55 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
100
dedicava seu tempo a isso. Uma surpresa ao leitor desprevenido dos propósitos do poeta, como
no poema da figura 28:
Figura 28 – Pé-de-pato56
Considerando as condições de produção (periferia) e a divulgação na internet, caberia
perguntar: o que esse novo suporte tecnológico implica em termos de prática de leitura? O leitor
de hipertexto, para Lévy (1998), é mais ativo do que o leitor de impressos, porque a leitura é mais
ágil e sem limites no caso do hipertexto, e em relação ao texto, se deve à infinidade de links
disponíveis. Poderíamos dizer que se trata de uma relação circunstancial: o leitor é capturado por
uma escrita fugaz que convoca uma leitura por lampejos, mas o poeta Sérgio Vaz soube tirar
vantagem dessas características em suas publicações. Colocando trechos de seus livros e poemas
em diferentes imagens, o poeta Sérgio Vaz consegue que essas montagens circulem com mais
facilidade nas redes sociais, tendo em vista que a cada nova imagem com a qual o texto é
apresentado, sua circulação resulta de maneira diferente, pois cada “conjunto” produz um novo
sentido que afeta o leitor.
56 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
101
O mundo é mediado por vários símbolos, sinais, imagens que constituem a linguagem
não-verbal e a imagem exerce uma importante influência na área da comunicação, especialmente
em jornais e televisão, que têm a intenção de seduzir o público com uma enorme variedade de
linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação do
mundo (SANTAELLA, 2001, p.10). Com referência à linguagem verbal e imagem, Faria e
Zantchella Jr. (2002, p.75) afirmam que “títulos escritos com destaque, fotos coloridas, mapas e
gráficos, são conjugados intencionalmente para chamar a atenção do leitor e tudo isso é
''linguagem visual''. É comum o destinatário se interessar primeiramente pela imagem e, em
seguida, partir para o texto escrito ou mesmo falado. Especial nos livros de auto-ajuda, segundo
Benites (1996), há um recurso de transcrição de citações como estratégia para sensibilizar o leitor
com vários tipos de enunciadores: nesse caso, o poeta Sérgio Vaz sendo um deles.
As publicações com imagens do Facebook que o poeta Sérgio Vaz fazia até o ano de 2013
tinham uma circulação relativamente em alto índice: sua página tem 43.676 pessoas curtindo,
enquanto o perfil da Cooperifa tem 4.970 amigos e 6.153 seguidores. No Twitter, 21.800 pessoas
seguem o perfil pessoal do poeta, enquanto apenas 57 seguem a Cooperifa, cujo perfil está
abandonado desde 2010. Os tuítes do poeta Sérgio Vaz atualmente circulam relativamente pouco,
cerca de 20 a 30 retuítes nos melhores dias, mas acreditamos que isso se deva à redução de
número de usuários e sua migração para o Facebook. Os números nesta segunda rede social são
um pouco melhores: apesar de algumas publicações atingirem cerca de 600 curtidas e mais de
300 compartilhamentos até o ano de 2013, esse número se reduziu consideravelmente (150 a 200
compartilhamentos nos posts mais populares). Também acreditamos que isso seja consquencia da
mudança da política de monetização do site, que agora exige o pagamento de valores absurdos
para viabilizar a disseminação dos posts entre todos os usuários que seguem determinada página
(trata-se da nova ferramenta “impulsionar”). Sobre a circulação do poema, Cacaso (1997)
observa:
Muito mais do que apresentar um livro, o poeta apresenta-se atavés dele, vale-se dele como se fosse seu cartão de visitas. (...) o poeta e o eventual leitor já nasce como pretexto para uma conversinha; está quebrada a tradicional distância que costumasepará-los. Fora do convencionalismo que marca a relação entre obra e leitor, torna-seagora possível conversar sobre poesia, livre de esquemas professorais e do obscuropalavreado técnico (...) O efeito de distensão e afrouxamento operado neste movimentocontém, virrtualmente, os germes da atitude revolucionária diante da cultura: esta deixa
102
de ser tratada como fetiche, com oalgo apartado e alheio à vida, para recuperar seuposto e significado na continuidiade da experiência social. (...) modificandofuncionalmente a relação entre obra, autor e público e reaproximando e recuperandonexois qualitativos de convivio. (Cacaso, 1997, p.25)
Considerando tais informações, sabemos que o público dá sentido à realidade e à obra, e
sem ele o autor não se realiza por completo, pois de certo modo trata-se do espelho que reflete
sua imagem enquanto criador. A obra, por sua vez, relaciona o autor ao público, já que seu
interesse é despertado por ela, mas se estende à personalidade que a produziu depois de
estabelecido aquele contato indispensável. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra
que criou e o público a que se dirige, na medida em que cria algo a que pode afetar outro ser
humano, em outro lugar e tempo. Para reforçar essa afirmação, é importante lembrar o que
Mónica Fontana explica sobre esta relação com outros discursos, com outros sentidos
historicamente constituídos: um texto produz sentidos para um sujeito, em um movimento
incessante de retomadas, reformulações, deslocamentos, inversões ou silenciamentos. É, também,
por essa relação constitutiva com o interdiscurso que não há um sentido fixo, intrínseco à palavra,
ao texto, à língua ou à intenção de significar do falante, pois os sentidos são produzidos na sua
relação com outros sentidos no interdiscurso. Por isso, um texto pode significar diferentemente
para diferentes sujeitos em diferentes condições de produção, dependendo de quais discursos são
retomados ou silenciados.
103
Figura 29 - Vingança 57
No exemplo da figura 29, vemos como a literatura deriva da elaboração do simbólico que
transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos adequados, exprimindo
representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no
patrimônio do grupo. Isso ocorre de modo que a grandeza de uma literatura depende da sua
relativa atemporalidade e universalidade, que dependem, por sua vez, da função final que pode
exercer, desligando-se dos aspectos que a prendem a um momento determinado e a um lugar
determinado. Amor e vingança são sentimentos e aspirações conhecidos pela grande maioria,
principalmente no que diz respeito à literatura, pois são temas das mais diversas narrativas e
poesias encontradas ao longo da história, porém sua dialética é desconstruída e reconfigurada
pelo autor na possibilidade de existir vingança com boas conseqüências, sendo ela o amor ao
próximo.
O leitor, na medida que lê, se constitui, se representa, se identifica. Ler não é só questão
de obter informação, mas uma ação que faz entrar num processo de interação relacionado com a
ideologia através de um interlocutor constituído no ato da escrita. Orlandi afirma que na medida
em que o leitor real se encontra com o leitor virtual, começa o jogo de significação do texto, se
pensarmos a escrita como interação. A coincidência entre leitor real e virtual depende da distância
57 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
104
entre ambos, que nos poemas de Sérgio Vaz parece ser pequena, pois a linguagem de fácil
entendimento, interpelada pela ideologia de luta, felicidade e amor, se constitui como um
processo comunicativo que determina a prática dos indivíduos leitores como sujeitos,que
abrangem seus horizontes por meio da leitura. ”. Nesse sentido, vemos emergir um discurso
diante de determinado contexto sócio-histórico que pretende oferecer aos seus leitores um lugar
de identificação idealizado do sujeito bem sucedido. São palavras que produzem efeitos de
sentidos que visam o encorajamento dos leitores, buscando despertar-lhes a esperança e lhes
oferecer, assim, não só o cuidado, mas o caminho para mudanças que os levem a saúde
emocional, a felicidade e ao sucesso nas suas atuações. Segue na figura 30:
Figura 30 – Leitura58
Enfim, percebemos que a função social comporta o papel que a obra executa na definição
das relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou
mudança de certa ordem na sociedade, decorrendo da sua própria natureza, da sua inserção no
complexo de valores culturais e do seu caráter de expressão. No entanto, quase sempre, tanto os
artistas quanto o público estabelecem certas escolhas conscientes, que compõem camadas de
significado da obra. O poeta querendo atingir determinado fim; o leitor desejando que ele lhe
mostre determinado aspecto da realidade. Essa é a função ideológica, exposta pela estrutura
objetiva do que escreveu, referindo-se a um sistema definido de idéias.
58 www.facebook.com/poetasergio.vaz2
105
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo dessa pesquisa era abordar como o autor escolhido para análise se constitui
como sujeito ao englobar artes e letras, modos de vida, direitos fundamentais ao ser humano,
tradições e crenças na literatura sendo também ator no espaço que retrata nos textos com sua
trajetória de vida, a memória ressentida e o projeto pedagógico da literatura. Pretendíamos que tal
abordagem fosse verificada em textos de Sérgio Vaz divulgados nas redes sociais, visando
entender as relações do poeta com o cotidiano, a violência urbana, a carência de bens e
equipamentos culturais, relações pessoais e a precariedade da estrutura urbana, tendo a internet
como ferramenta de apoio à divulgação cultural.
Ao longo da pesquisa, percebemos à luz da Análise do Discurso que Sérgio Vaz exerce a
função autor na posição ideológica de poeta. Isso significa que ele vivencia a poesia e direciona
seus discursos principalmente para os moradores da comunidade e jovens, utilizando-se de
linguagem lúdica e de fácil entendimento que é capaz de tocar um público abrangente. O poeta
faz sua poesia como quem confecciona asas, e as divulga por meio das redes sociais como quem
se dispõe a ensinar cada sujeito, enquanto leitor, a voar também, com mensagens de autoestima,
alegria e esperança. No entanto, assina cada uma dessas mensagens como o poeta Sérgio Vaz,
algumas vezes incluindo sua própria foto na mensagem, constituindo-se como autor e sujeito por
meio da mensagem.
Entendemos que o poeta acredita ter se tornado uma bandeira a favor do inconformismo, e
percebe sua poesia como suporte às ideologias de lutar pela vida com cultura, educação, amor e
um sorriso no rosto, que, segundo o poeta, é a melhor forma de confundir um inimigo durante a
luta do movimento social que não visa tomar o poder, mas dissolvê-lo por meio da transformação
interior. Acreditar: essa é a palavra chave no discurso do poeta. Cremos que o trabalho de Sérgio
Vaz constitui sentido porque ele acredita no que faz e escreve, de modo que a convicção de que a
realidade pode não ser como queremos, mas o nosso mundo é como o fazemos dele, seja a
característica que conecta o poeta ao leitor. Além disso, os projetos sociais e culturais atrelados às
divulgações no facebook indicam um ativismo que vai além do sofá, algo que merece nossa
atenção, principalmente nos dias de hoje.
107
Percebemos que o poeta Sérgio Vaz utiliza consideravelmente as redes sociais, mais
frequentemente o Facebook, tendo tal uso justificado devido à significativa quantidade de acessos
pelos usuários e pela facilidade de desenvolver e divulgar suas ações culturais e educativas na
rede. Em relação ao público-alvo, percebemos que o Facebook do poeta funciona como uma
janela para fora da periferia, porque a minoria dos usuários que curtem e compartilham seus posts
são frequentadores do sarau da Cooperifa, embora um número considerável esteja ligado a
movimentos culturais, além de um número razoável de educadores. Com relação ao conteúdo das
postagens, notamos que está intensamente relacionado com a poesia e a Cooperifa, desde a
agenda cultural até poemas do próprio Sérgio Vaz.
Quanto à frequência da atualização do conteúdo postado, bem como o estabelecimento
prévio de uma linha de publicação, não identificamos um padrão, sendo observada a realização
de postagens diariamente ou várias vezes ao dia. Em ocasiões quando não há nenhuma
publicação, o poeta compensa seu público o quanto antes com diversas postagens. A divulgação
das ações do poeta realizada através das redes sociais Twitter e Facebook foi considerada
relevante nos resultados, pois foi notado, num intervalo de um ano, um aumento de
aproximadamente 30.000 curtidas na página.
Concluímos, por meio das análises, que há muito em comum nos discursos do poeta
Sérgio Vaz com a busca política das reconfigurações do sensível comum, que Jacques Rancière
(2005) entende como contribuição "para a formação de coletivos de enunciação que repõem em
questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens [...] desses sujeitos políticos
que recolocam em causa a partilha já dada do sensível" (Rancière, 2005, p.60). Frequentemente
acreditava-se no valor simbólico das ações, na força do instante e do gesto. Ora, esses atos eram
produzidos para substituir o mito da criação artística pela idéia de que a invenção é trabalho, é
produção. Considerava-se, assim, a arte um trabalho que contribuiria para realizar a
"transformação do pensamento em experiência sensível da comunidade” (Rancière, 2005, p.61), e
conseqüentemente, a literatura como um elemento social.
Notamos que muitos coletivos culturais aconteceram na comunidade nas últimas décadas
na periferia de São Paulo, disse o poeta Sérgio Vaz em entrevista, “eu acho que hoje a gente vive
a nossa primavera periférica, nossa Primavera de Praga. Eu acho que estamos vivendo nossa
108
Tropicália, nossa Bossa Nova, nossa Nouvelle Vague. Todos os movimentos que viveu a classe
média nos anos 60 e 70 estamos vivendo agora. Talvez menos midiáticos, talvez à sombra da
grande mídia, do grande público, mas estamos vivendo”59 Existem atualmente mais de 40 saraus
na periferia de São Paulo, espaços diversos agora são compartilhados com a cultura: bares que
abrigam bibliotecas, lajes que viram cinemas,... se antes a periferia produzia cultura e ia para o
centro mostrar, nos dias de hoje a periferia produz e consome a sua própria cultura.
Inferimos que ações como as que a Cooperifa e o Poeta Sérgio Vaz promovem, mostram
uma mudança de autoestima, tanto pessoal como espiritual, fazendo com que o morador da
periferia tenha orgulho das pessoas com quem convive, enfatizando que o governo deve se
envergonhar da situação social e de infraestrutura da favela, não seus moradores. A ideologia que
rega os discursos do poeta implica que a mudança começa dentro de cada indivíduo. Ele acredita
que é preciso lutar, sonhar com as mãos, numa atitude positiva que tem a educação e a cultura
como guias, por mais difícil que seja.
A literatura de Sérgio Vaz que encontramos atualmente no facebook apresenta uma
mensagem divergente àquela que o poeta propõe no Manifesto da Literatura Periférica (em
anexo), pois é muito menos combativa, entoando mais mensagens de auto-ajuda como um
ingrediente para suprir as necessidades individuais do homem, indivíduo pós-moderno, morador
de periferia, que busca suas realizações e êxito no “ter”, em detrimento do “ser”. A mensagem do
poeta floresce por mostrar ao indivíduo que ele “tem” o poder de buscar seu próprio sucesso, sua
realização pessoal, seu bem estar e riqueza sem precisar daquilo que está ao redor e compartilha
sentimentos semelhantes em momentos de desespero e ansiedade. O poeta propõe um leitor
poderoso e capaz, que embora não consiga chegar a essa felicidade, em contato com a poesia,
pensa que mudará sua condição de existência frágil para uma melhor estruturada e organizada por
isso.
Algumas limitações foram enfrentadas ao longo desta pesquisa, tais como a carência de
fontes teóricas acerca da literatura brasileira contemporânea produzida na periferia,
especialmente sobre a Cooperifa e o poeta Sérgio Vaz. No entanto, esperamos que esse estudo
contribua com outros que futuramente venham a somar ao tema. Ainda há muito o que ser
59 http://www.viomundo.com.br/politica/sergio-vaz-negros-da-periferia-vivem-a-sua-primavera-de-praga.html
109
pensado, e podemos sugerir alguns caminhos como a as configurações de gênero no discurso do
poeta Sérgio Vaz e da Cooperifa.
Enfim foi possível concluir que os discursos da primavera periférica combatem as
diferenças com o crescimento interior e autoestima, deixando de transferir as responsabilidades
para terceiros, para líderes. Cada indivíduo é líder de si mesmo, tem poder e transformar o seu
espaço e espalhar essa proposta de mudança. Enfim, supõe-se que nessa luta, a arte seja pensada
como resistência segundo dois sentidos conceituados por Ranciere: a arte como uma capacidade
de autonomia e, simultaneamente, como uma potência de saída e de transformação de si.
110
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116
ANEXO I
Somos Nós - Sérgio Vaz60
Vocês dizem que não entendemQue barulho é esse que vem das ruas
Que não sabem que voz é essaque caminha com pedras nas mãos
em busca de justiça, porque não dizer, vingança.
Dentro do castelo às custas da miséria humanaAlega não entender a fúria que nasce dos sem causas, dos sem comidas e dos sem casas.
O capitão do mato dispara com seu chicote A pólvora indigna dos tiranos
Que se escondem por trás da cortina do lacrimogêneo,O CHICOTE ESTRALA, MAS ESSE POVO NÃO SE CALA..
Quem grita somos nós,Os sem educação, os sem hospitais e sem segurança.
Somos nós, órfãos de pátriaOs filhos bastardos da nação.
Somos nós, os pretos, os pobres,Os brancos indignados e os índios
Cansados do cachimbo da paz.Essa voz que brada que atordoa seu sono
Vem dos calos da mãos, que vão cerrando os punhosAté que a noite venha
E as canções de ninar vão se tornando hinosNa boca suja dos revoltados.
Tenham medo sim,Somos nós, os famintos,
Os que dormem na calçadas frias,Os escravos dos ônibus negreiros,
Os assalariados esmagados no trem,
60 http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/sergio-vaz-quem-grita-somos-nos/
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Os que na tua opinião,Não deviam ter nascido.
Teu medo faz sentido,Em tua direção
Vai as mães dos filhos mortosO pai dos filhos tortos
Te devolverem todos os crimesCausados pelo descaso da sua consciência.
Quem marcha em tua direção?
Somos nós, os brasileirosQue nunca dormiram
E os que estão acordando agora.
Antes tarde do que nunca.
E para aqueles que acharam que era nunca, agora é tarde.
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ANEXO II
Pensamentos de um correria61 – Ferréz
ELE ME olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o
amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro
pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole
só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto. Se voltar com algo, seu filho,
seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de
onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos. Quando o filho chora de fome, moral não vai
ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com
sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não
consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.
O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36
prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra
entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se
morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.
Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e
sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.
Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que
estão vivos e num país legal.
Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá
homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão
triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado
jogado no chão, atrapalhando o trânsito.
61 http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0810200708.htm
119
Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo
todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a
beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles,
ninguém sofre por beber. Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase
nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que
estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado? Ainda menino, quando assistia às
propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco
como alguém do que morrer velho como ninguém. Leu em algum lugar que São Paulo está
ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de
guerra. Não acreditava em heróis, isso não!
Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia
respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.
Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na
cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora. Era da seguinte opinião: nunca
iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa
tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não
pode ser medido por isso.
Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do
lixo, não fazia parte dele, não era lixo. A hora estava se aproximando, tinha um braço ali
vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas
na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de
meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final,
ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!
Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra
quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está
cercado de mulheres seminuas em seu programa.
Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao
seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.
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No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais
valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação, afinal,
num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.
ANEXO III
Manifesto da Antropofagia Periférica - Sérgio Vaz
A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. dos
becos e vielas há de vir a voz que grita contra o
silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um
povo lindo e inteligente galopando contra o passado.
A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura,
e universidade para a diversidade. Agogôs e
tamborins acompanhados de violinos, só depois da
aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a
liberdade de opção. Contra a arte fabricada para
destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade
que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e
sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na
porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do
cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir
os barracos de madeiras.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais
das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o
artista-cidadão. Aquele que na sua arte não
revoluciona o mundo, mas também não compactua
com a mediocridade que imbeciliza um povo
desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da
comunidade, do país. Que armado da verdade, por si
só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e
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nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas,
cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à
produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril
avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do
exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte
privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e
pela cor. É TUDO NOSSO!
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