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O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE REFERIDO AO LEGISLADOR PENAL
(Salvador: Juspodivm, 2011).
FÁBIO ROQUE ARAÚJO
Juiz Federal/BA. Mestre e Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professor da Faculdade de Direito da UFBA e do CERS Cursos Online
Capítulo II O PODER DE PUNIR E A PROPORCIONALIDADE DA PENA
2.1. Breve histórico: evolução do poder de punir e a proporcionalidade
2.1.1. As vinganças
2.1.2. Manifestações do Direito Penal na antiguidade
2.1.3. Direito Penal: primeiras noções de proporcionalidade
2.1.4. Direito Penal laicizado e a proporcionalidade
2.1.4.1. Direito Penal na Grécia
2.1.4.2. Direito Penal em Roma
2.1.5. Direito Penal medieval e a proporcionalidade
2.1.6. Período humanitário
2.1.6.1. Ideário iluminista e humanização do Direito Penal: a proporcionalidade
2.1.6.2. Os reformadores, a humanização da pena privativa de liberdade e a sociedade
disciplinar
2. 2. A questão da legitimação do Direito Penal
2.2.1. Considerações iniciais
2.2.2. Teorias absolutas
2.2.3. Teorias relativas
2.2.3.1. Considerações iniciais
2.2.3.2. Teoria da prevenção geral negativa
2.2.3.3. Teoria da prevenção geral positiva
2.2.3.4. Teoria da prevenção especial
2.2.4. Teorias unitárias
2.2.4.1. Teoria dialética unificadora
2.2.4.2. O garantismo penal.
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CAPÍTULO II
O PODER DE PUNIR E A PROPORCIONALIDADE DA PENA
2.1. BREVE HISTÓRICO: evolução do poder de punir e a proporcionalidade.
2.1.1. As vinganças
As primeiras notícias históricas acerca do Direito Penal apontam para a sua estreita
relação com as vinganças que se desenvolviam nas comunidades da Idade Antiga ou, até mesmo,
da pré-‐história.
A rigor, as vinganças penais sequer podem ser consideradas manifestações do
Direito Penal, senão como seu embrião, na medida em que coincidem tão-‐somente no que tange à
utilização do poder de punir como forma de resposta aos comportamentos desviantes. No período
caracterizado como hegemônico por parte das vinganças, o comportamento desviante não
constituía afronta à ordem jurídica estatal, e sim uma afronta à divindade ou à tribo.
Convencionou-‐se proceder a uma distinção entre as espécies de vingança, de
acordo com o fundamento da punição a ser imposta. Assim, neste período, podem ser
identificadas, ao menos, três distintas espécies de vingança, a saber: (i) vingança divina; (ii)
vingança privada e (iii) vingança pública. Não há uma divisão histórica precisa que delimite cada
uma destas fases, havendo, isto sim, períodos históricos com maior ou menor influência de cada
um destes tipos de vingança penal.
A primeira espécie de vingança é fruto da forte influência exercida pela religião nos
povos da Antiguidade. Neste período, acreditava-‐se que os fenômenos naturais que traziam algum
revés à população decorriam da insatisfação dos deuses, ofendidos com algum comportamento de
membros do grupo. Estes fenômenos naturais que acarretavam algum prejuízo à comunidade
eram conhecidos como totem1, razão pela qual se fala em infração totêmica2.
1 Não se pode deixar de anotar, todavia, que a expressão fora utilizada em diversos sentidos. Assim, afirma-‐se que a expressão totem foi extraída do idioma dos índios norte-‐americanos, passando, posteriormente, a indicar o fenômeno de transformação de uma coisa em emblema do grupo social. Por seu turno, Durkheim encarou o totem como a expressão da unidade do grupo social. Levi-‐Strauss promoveu a redução do totem a um fenômeno lingüístico formal.
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O comportamento desviante não constituía afronta ao indivíduo ou ao grupo
social, e sim aos próprios deuses que, como retaliação, lançavam sua ira contra a população, em
forma de catástrofes naturais, ou fenômenos naturais mais corriqueiros, como a ausência de
chuvas ou as constantes ventanias, empecilhos à produção agrícola ou à atividade pesqueira,
fonte de renda das comunidades.
Claro está que a forma de aplacar a ira dos deuses era a promoção da reprimenda
em desfavor daquele que havia originado a revolta divina por meio da infração totêmica. Para logo
se vê que não havia proporcionalidade entre a infração praticada e a sanção aplicada. Sendo os
deuses as “vítimas” da infração, pouco importava que a conduta praticada contivesse mínimo grau
de lesividade. A pena obedecia ao critério de veneração da divindade, razão pela qual quanto mais
severa fosse, maior o desagravo aos deuses. Outro fato característico desta época é a aplicação da
sanção, que deveria ser levada a cabo pelo sacerdote.
Em suma, o período da vingança divina caracterizou um “direito penal” teocrático e
sacerdotal, em que as punições possuíam acentuado grau de severidade, desproporcionais à
ofensa praticada, e que tinham na intimidação o seu objetivo maior. A vingança divina marcou
uma série de civilizações, podendo-‐se mencionar, de forma exemplificativa, o Código de Manu,
bem como as legislações do Egito (Cinco Livros), da Pérsia (Avesta), de Israel (Pentateuco) e da
China (Livro das Cinco Penas)3.
Neste período, não há que se falar em critérios de racionalidade ou cientificidade a
orientar o Direito Penal. Em decorrência destas características teocráticas e sacerdotais, as
Por fim, ao discorrer sobre “totem e tabu”, Freud valeu-‐se dos termos para apresentar uma interpretação psicanalítica. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução da 1º. Edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos de Ivone Castilho Benedeti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.1147). 2 De acordo com Cláudio Brandão, in verbis: “A pena primitiva era ligada a violação do tabu. Essa palavra, de origem polinésica, significava, a um só tempo, o sagrado e o proibido. Os tabus, enquanto proibições de caráter mágico ou religioso, eram leis dos deuses que não deveriam ser infringidas para não retirar o poder protetor da divindade.” (BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.23). Procurando estabelecer uma precisa distinção entre totem e tabu, afirma Geder Luiz Rocha Gomes que, in verbis: “O totem simbolizava a origem do clã, o seu espírito guardião, que preserva a existência daquela coletividade e oferece perigo aos estranhos, cabendo aos membros do clã protegê-‐lo. O totem representava um animal ou um fenômeno natural, também poderia representar um vegetal. (...). O tabu traduzia-‐se em uma convenção sagrada, desprovida de racionalidade. Porém fazia parte da própria formação do clã, como um valor transmitido de geração a geração, como um dogma inquestionável.” (GOMES, Geder Luiz Rocha: A substituição da prisão. Alternativas penais: legitimidade e adequação. Salvador: JusPodivm, 2008, p.33). 3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1, 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.36.
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punições desta época estão marcadas por uma postura religiosa, no mais das vezes, fruto de
crenças e superstições locais.
Consectário da pretensão de desagravar os deuses por intermédio da aplicação da
pena, é a sua natureza excessivamente cruel. Sanções como apedrejamento público, penas de
enforcamento, de sepultamento com vida nos pântanos4, ou o suplício da roda5. A despeito da
crueldade e do caráter desproporcional, que marcam as sanções nesta época, às transgressões de
pouca importância reservavam-‐se as sanções de natureza moral ou de repúdio6.
Este período histórico não conheceu a pena de prisão7. Não significa dizer que o
encarceramento dos condenados ou daqueles sujeitos a julgamento não ocorressem com
freqüência. Porém, a isto se restringia a função da privação de liberdade, isto é, acautelamento,
para posterior aplicação das sanções, identificadas, como regra geral, com suplícios e aflições
físicas. A prisão-‐pena surge em momento histórico assaz posterior. .
Ultrapassada a fase das vinganças divinas, houve a consagração das vinganças
privadas, que poderiam ser tanto de cunho individual (a revanche da vítima, ou de seus familiares
contra o ofensor) quanto de cunho coletivo, grupal8. Freqüente, ainda, a exclusão de um membro
do grupo – isto é, o banimento – quando este era o responsável pela infração, no que se
convencionou chamar de “perda da paz”9.
4 BRANDÃO, Cláudio. Ob. cit., p.24. 5 “O suplício da roda consistia em prender o corpo do condenado a um apoio para depois dilacerar seus membros com uma grande roda; após o dilaceramento dos membros, prendia-‐se o corpo ainda vivo na própria roda, para, em seguida, colocá-‐lo no alto em uma posição elevada. Em um estádio posterior da evolução desse suplício, alguns instrumentos eram utilizados para separar os membros do corpo, como, por exemplo, a marreta e o porrete” (BRANDÃO, Cláudio. Ob. cit., p.24). 6 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do direito penal (crime natural e crime de plástico). São Paulo: Malheiros, 2005, p.24. 7 “Os vestígios que nos chegaram dos povos e civilizações mais antigos (Egito, Pérsia, Babilônia, Grécia, etc) coincidem com as finalidades que se atribuíam primitivamente à prisão: lugar de custódia e tortura” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. Saraiva: São Paulo, 2004, p.05). 8 Relevante consignar que há certa divergência em relação à identificação desta reação grupal como manifestação de vingança. Neste sentido, ressalta Franz von LISZT que, in verbis: “Por conseguiente, la opinión, muy extendida, que ve la raiz de la pena en el instinto de venganza, manifestandose a través del institnto de conservación de los individuos, requiere rectificación. La expulsión de la associación de la paz como venganza de sangre, no es reacción del individuo, sino reacción de la associación de tribus, como mandataria del orden de la paz y del Derecho” (In: Tratado de derecho penal. Florida: Valletta Ediciones, 2007, p.14). 9 “Perdida a paz, estava o homem exposto à morte, não só porque, rompidos os vínculos mágicos ou de sangue com o clã, ficava à mercê da violência dos outros, mas ainda porque sozinho, no mundo de então, deserto de homens, dificilmente poderia defender-‐se das forças hostis da natureza, cósmicas ou animais” (BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral, tomo I. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.33).
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De acordo com Franz von Liszt10, a idéia de excomunhão do grupo ressalta, de
forma flagrante, o caráter social desta pena primitiva. Em relação àquele que era expulso da
coletividade, dizia-‐se que seria “abandonado aos lobos”. Com a aplicação da referida pena,
objetiva-‐se, como consequência imediata, o confisco dos bens, o desterro e, também, a perda da
honra11.
Em contrapartida, se a ofensa partisse de um membro de outro grupo, tal atitude
fatalmente ocasionaria a deflagração de uma guerra grupal, a chamada “vingança de sangue”. A
mola propulsora da aplicação desta pena é o forte sentimento de grupo – seja a tribo, o clã ou a
estirpe – vigente nesta época. Durante muito tempo, os membros de uma família estiveram
obrigados a vingar o homicídio praticado em desfavor de um dos seus, com a morte de integrantes
da família do ofensor. Esta obrigação esteve em voga entre os índios e, também, entre os romanos
da cidade antiga12.
Com o passar do tempo, e o consequente abandono da organização tribal e a
acolhida de concepções mais requintadas de organização, o controle social passa a ser exercido
pela vingança pública. Ainda não havia que se falar em proporcionalidade entre delito e pena. As
sanções eram desproporcionais, extremamente severas, orientadas pela ideia de intimidação e
possuíam por característica, sobretudo, a ideia de tutela do soberano.
2.1.2. Manifestações do Direito Penal na Antiguidade
As mais diversas culturas conheceram manifestações díspares de Direito Penal. As
sutilezas, as peculiaridades de cada civilização, marcaram, de forma significativa, a manifestação
do poder de punir, ensejando uma variedade imensa de reprimenda penal.
Para adotar por paradigma as civilizações mais distantes, das quais menos se tem
notícia, salutar destacar que o Direito Penal surge no Japão e na Coréia do Sul embasado em uma
concepção teocrática13. Os primeiros tempos da civilização chinesa assinalam a emergência das
10 In: A idéia do fim no direito penal. Tradução: Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Rideel, 2005, p.24. 11 LISZT, Franz von. A idéia do fim no direito penal. Tradução: Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Rideel, 2005. p.24-‐25. 12 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do direito penal (crime natural e crime de plástico). São Paulo: Malheiros, 2005, p.24. 13 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.177.
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cinco penas. As cinco penas consistiam na morte, para o crime de homicídio, a castração para o
crime de estupro, a amputação de um ou ambos os pés para os crimes de lesões e de furto, a
amputação do nariz para os crimes de fraude e, por fim, e a imposição de uma marca na testa,
para os crimes de menor gravidade14.
As cinco penas mantiveram-‐se vigentes até a República, em 1912, muito embora
tenham sofrido algumas alterações em seu conteúdo. Contudo, elas conviveram com outras
formas de sanções, mais cruéis, inclusive. Como exemplo destas sanções, pode-‐se mencionar:
“abraçar uma coluna de ferro incandescente, esquartejamento, tortura, açoitamento,
espancamento, distintas formas de pena de morte, furar os olhos com ferro candente,
especialmente, a extensão do castigo à família do autor”15.
Por seu turno, a civilização suméria também possuiu peculiaridades que a
distinguiam. Assim, em XXI a.C. o Rei Ur-‐Nammu editou um conjunto de leis que consagrou o
abrandamento da reprimenda penal, prevendo, inclusive, a substituição dos suplícios e mutilações
pelo pagamento de multa em favor do ofendido, em delitos como o de injúria16. No mais, também
foi uma civilização cujo Direito Penal assentou-‐se em uma concepção teocrática, valendo destacar
que havia a hierarquia entre os deuses, razão pela qual a ofensa a determinada divindade deveria
ser castigada de forma mais severa.
Como consabido, a civilização do Egito, na Antiguidade, também possuía natureza
teocrática, marcada pelo politeísmo, tendo o Faraó como representação da divindade na Terra.
Face a esta arraigada postura teocrática, as condutas consideradas atentatórias aos deuses ou ao
próprio Faraó mereciam reprimenda severa, em regra a pena de morte, acompanhada, ou não, de
tortura.
Desde esta época a humanidade já conhecia a famigerada pena de crucificação,
posteriormente acolhida pelo Império Romano. Os egípcios conheceram, também, as penas de
enforcamento, mutilações, desterro, amputação da língua e do nariz, castração, empalação,
escravidão e trabalhos forçados. No que toca à escravidão, representou, para o momento
histórico, abrandamento das punições aplicadas, tamanho era o grau de sua severidade.
14 Idem, p.176. 15 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit. p.176. 16 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Ob. cit. p.27.
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Para os condenados dos grupos sociais mais elevados permitia-‐se o suicídio, como
forma de evitar a execução pública17. Este período histórico admitiu, ainda, a utilização da tortura
como técnica de investigação, para o descobrimento da verdade.
Legislação penal de bastante relevância foi a indiana, conhecida como código de
Manu. A origem do referido código é bastante controversa, não havendo consenso em relação à
data em que adveio. O fato é que exerceu impressionante influência na formação da cultura
jurídica indiana, sendo certo que muitas de suas disposições são observadas até a atualidade.
Originalmente, o código de Manu foi escrito em sânscrito, em versos, e descrevia
condutas consideradas boas e condutas reprováveis, dando conta, inclusive, das consequências
dos atos praticados pelos homens após a sua morte. De acordo com a tradição indiana, o código
foi escrito por Manu, filho do deus Brahma.
A legislação de Manu pressupõe a divisão da sociedade em castas (brâmanes,
ksatriya, vaisya e sudras). Como não poderia deixar de ser, esta divisão em castas, transplantada
para a legislação penal, possuiu o condão de estabelecer distinções entre as condutas18. Assim,
uma conduta delituosa praticada por um brâmane, membro da casta mais alta, em detrimento de
um sudra poderia ser desconsiderada, ao passo que o crime praticado pelo membro de uma casta
inferior em desfavor de um integrante de uma casta superior seria encarado como ofensa
gravíssima, merecedora de uma reprimenda penal efetiva e, no mais das vezes, cruel. Mais que
isto, um brâmane que soubesse o texto sagrado poderia cometer, impunemente, qualquer fato19.
Percebe-‐se, neste particular, que a legislação penal, impregnada, como sói
acontecer, de forte caráter religioso, fora utilizada como instrumento de preservação da estrutura
social, estratificada em castas. Atentados contra a rígida hierarquia das castas eram reprimidos
com o rigor de uma penalidade cruel.
A punição, para a legislação de Manu, possuía uma função de purificação para o
condenado. Assim, uma vez cumprida a pena que lhe fora aplicada, o condenado estaria
17 Idem. p.33. 18 Ao discorrer sobre o sistema de castas e a sua influência na legislação penal, afirma A. L. Machado Neto que, in verbis: “Desse sistema social geralmente decorrente de conquista militar ou algo análogo, envolvendo povos, no comum, de raças diversas e fundado em bases tradicionais, via de regra de caráter religioso (v.g. as castas hindus, o padrão mais típico), resulta, no âmbito normativo do direito, que a lei reconheça as diversidades de condição social estabelecendo diferentes sanções para um mesmo delito, caso seja ele cometido por um membro de uma casta superior ou por um outro de menor status social” (MACHADO NETO, A. L. Sociologia jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p.261). 19 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit. p.177.
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purificado, tal como os homens que praticavam apenas boas ações. Como características desta
legislação, podem ser mencionadas a diferenciação entre dolo e culpa e entre furto e roubo.
Merece destaque, ainda, a questão da sanção penal na América antiga, período
histórico que antecede a chegada dos europeus. Civilizações extremamente desenvolvidas, em
inúmeros aspectos, os maias e os incas também desenvolveram seu sistema penal com uma
acentuada severidade. Os astecas utilizavam-‐se da pena de morte, além de penas como o
desterro, a escravidão, o confisco, a destituição do emprego, e, até mesmo, a prisão20. Por seu
turno, o incas, cujo caráter sacral das sanções era mais presente do que na civilização asteca,
também se valiam destas penas, mas a sua aplicação sempre foi entendida como desagravo aos
deuses21, tal como na época das vinganças divinas22.
2.1.3. Direito Penal: primeiras noções de proporcionalidade
Como visto, os primeiros tempos do Direito Penal23 foram marcados pela
desproporção entre o ato praticado e a sanção respectiva. A primeira concepção de obediência à
proporcionalidade entre delitos e penas surge com o Código de Hamurabi que, ao institucionalizar
a lei do talião (imortalizada na máxima “olho por olho, dente por dente”), preconizou um limite
objetivo à reprimenda penal.
20 CORREA JUNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.28. 21 CORREA JUNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Ob. cit., p.28. 22 Ainda no que tange à questão das penas nestas civilizações indígenas, convém esclarecer que não era raro a utilização da tortura. Todavia, salienta Pierre Clastres que a tortura nem sempre possuía caráter de sanção penal, sendo utilizada, por vezes, como rito de passagem para a idade adulta. O objetivo do ritual é infligir dor ao membro da tribo, para, assim, ensinar-‐lhe algo, sobretudo a idéia de igualdade. Sobre o tema, afirma Clastres: “Os primeiros cronistas diziam, no século XVI, que os índios brasileiros eram pessoas sem fé, sem rei, sem lei. É certo que essas tribos ignoravam a dura lei separada, aquela que, numa sociedade dividida, impõe o poder de alguns sobre todos os demais. Tal lei, lei de rei, lei de Estado, os Mandan, os Guaykuru, os Guayaki e os Abipones a ignoram. A lei que eles aprendem a conhecer na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não é menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei, inscrita sobre os corpos afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão, o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se lembrarão. Substância inerente ao grupo, a lei primitiva faz-‐se substância do indivíduo, vontade pessoal de cumprir a lei.” (CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Tradução: Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.203). 23 Para alguns autores, sequer há que se falar em Direito Penal quando da vigência das vinganças divina e privada. Neste sentido, BITENCOURT, César Roberto. Ob. cit., p.38.
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Assevera Francesco Carnelluti24 que, nesta época, a ideia de proporcionalidade
estava assentada em uma concepção qualitativa, manifestada na semelhança entre a pena e o
delito. A pretensão era submeter o réu a um mal semelhante àquele praticado, ou seja, da mesma
qualidade do mal praticado contra a vítima. Posteriormente, com a incriminação de novas
condutas e a constatação da impossibilidade de fazer valer esta lógica, a proporcionalidade deixa
de ser qualitativa e passa a ser quantitativa, isto é, a pena deve servir a que o réu sofra tanto
quanto a vítima, e não como a vítima25.
Hamurabi reinou na Babilônia em meados do século XXIII a.C. e editou o seu
Código, que continha disposições na seara do Direito Civil, bem como a definição de condutas
delituosas com as suas respectivas sanções. Tendo sido o fundador do Império Babilônico,
Hamurabi foi o primeiro a alterar o Direito Penal, até então dotado de conteúdo privado,
institucionalizando os delitos e as sanções respectivas.
O caráter teocrático do Código é flagrante, na medida em que, em seu preâmbulo,
assevera que o Rei Hamurabi fora convocado pelos deuses (Anu e Bel) para sedimentar a justiça
entre os homens, destruir os maus e criminosos, evitar que os fortes ferissem os fracos, trazer
esclarecimento à Terra e, por fim, assegurar o bem-‐estar da humanidade.
O Código de Hamurabi era composto por 282 artigos, e possuía disposições
extremamente curiosas, tais como as previstas nos artigos 209 e 210. De acordo com o primeiro,
se um homem agredisse uma mulher livre (já que a legislação em comento estabelecia a distinção
entre livres e escravos) e esta perdesse o filho que esperava, o agressor deveria pagar-‐lhe (10
shekels) pela perda. Porém, se a própria agredida morresse, a filha do agressor seria condenada à
morte. Para logo se vê que a referida legislação não primava pela observância do princípio da
intranscendência ou pessoalidade da pena, tampouco pela ideia de culpabilidade, como juízo de
reprovação pessoal.
Muitas outras penas eram utilizadas por esta legislação, como, por exemplo, as
múltiplas modalidades de pena capital (na hipótese de alguém ser flagrado durante um
arrombamento, além de morto seria emparedado; se alguém cometesse um delito de furto
24 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Tradução: Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2004, p.104. Tomo I. 25 Idem, p.104.
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durante um incêndio, deveria ser atirado às chamas; a mulher que cometesse adultério seria
atirada ao rio com as mãos atadas26).
Outros crimes e penas podem ser mencionados: a expulsão da comunidade para o
crime de incesto; a amputação das mãos na hipótese de um filho que agredisse o pai (art. 195) ou
das orelhas, para o escravo que batesse em um homem livre (art. 205), ou do seio para a ama que
aleitasse outra criança sem permissão, dando ensejo à morte da criança que deveria aleitar (art.
194).
Como dito, o Código de Hamurabi consagrou a existência da lei do talião, insculpida
na célebre expressão “olho por olho, dente por dente”. Diz-‐se que o Código de Hamurabi foi a
primeira legislação a consagrar o princípio da proporcionalidade, na medida em que a ideia de
“olho por olho, dente por dente” materializa uma proporção entre o delito praticado e a pena
correlata.
Muito embora a ideia de “olho por olho, dente por dente” possa trazer consigo
uma carga de crueldade e desumanidade na aplicação das sanções, o fato é que, ao preconizar
que a reprimenda deveria ser idêntica à lesão perpetrada, a lei do talião institucionalizou a ideia
de proporcionalidade entre o delito e a pena, constituindo progresso em relação ao quadro
anterior27.
Naturalmente, esta ideia de proporcionalidade é primitiva e limitada para os
padrões de desenvolvimento do conhecimento científico em matéria penal da atualidade. Como
toda notícia histórica, a importância do advento da proporcionalidade com o Código de Hamurabi
deve ser inserida em seu contexto histórico28. Com isto, salutar deixar claro que não é esta
concepção tacanha e rudimentar de proporcionalidade entre delito praticado e pena cominada
que há de servir de baliza para legitimação do poder de punir nos Estados modernos.
26 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit. p.178. 27 “O talião, que atualmente nos povos civilizados é símbolo de ferocidade bárbara, foi na humanidade primitiva um grande progresso moral e jurídico, justamente porque impôs um limite, uma medida à reação pela vindita defensiva (olho por olho, dente por dente)”. (FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução: Luis Lemos D´Oliveira. Campinas: Russell Editores, 2003, p.22). 28 Ao se referir aos estreitos limites desta idéia de proporcionalidade, na lei de talião, assevera Jeremy Bentham que, in verbis: “A lei deve medir a pena pelas circunstâncias agravantes, ou que podem diminuir o crime; o Talião destrói toda a medida. Só os Povos vingativos devem gostar desta pena.” (BENTHAM, Jeremy. Teoria das penas legais. São Paulo: Edijur, 2002, p.50).
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Demais disso, relevante deixar consignado que a lei do talião fora acolhida não
apenas pelo Código de Hamurabi, mas por inúmeras outras legislações da antiguidade, como a Lei
das XII Tábuas dos romanos e o Pentateuco hebreu29, além do, já mencionado, Código de Manu.
Como dito, a legislação penal hebraica também se assentou sobre a ideia de talião.
O divisor de águas na legislação da civilização hebraica, sem dúvidas é o advento dos Dez
Mandamentos, enviados por Javé a Moisés, que deram origem ao chamado Direito Penal mosaico.
A civilização hebraica, em sua maioria, era constituída por pastores com baixo nível
de instrução e dotados de uma forte influência religiosa. Moisés ingressa em uma luta para
consolidar o monoteísmo, expurgando as práticas, adorações e celebrações em homenagem a
divindades. Demais disto, para a concepção em vigor à época, seria necessário impingir um senso
de moral bastante rígido, para que não vicejassem as práticas consideradas viciosas e imorais.
À vista disto, além de seu marcante traço religioso, o Direito Penal mosaico
caracteriza-‐se pela imposição de condutas morais rígidas, com respectivas sanções inflexíveis para
o caso de descumprimento. Com o passar do tempo, esta legislação foi sofrendo pequenas
alterações, mas sempre assentada na ideia de delegação divina.
Desta forma, sustentava-‐se a tese de que, a par da lei escrita, plasmada nos Dez
Mandamentos, Deus haveria conferido a Moisés uma lei oral, que teria se perdido, e cujas
consequências deveriam ser deduzidas a partir da lei escrita. Os responsáveis por estes juízos de
dedução eram os doutores da lei, em Israel, os Rabis, ligados ao sacerdócio. No Direito Penal
hebraico eram aplicadas: a pena capital (para delitos como o adultério e o incesto), a
excomunhão, a privação de sepultura, a pena pecuniária, entre outras. .
Outra notícia histórica que se tem da proporcionalidade entre delitos e penas,
insculpida em um documento, refere-‐se à Magna Carta, de 1215, cujo teor previa que condes e
barões haveriam de ser castigados apenas pelos seus iguais, e na proporção da gravidade das
ofensas praticadas30. A despeito do seu caráter elitista, a Magna Carta representa um
29 Em que pese o cristianismo possuir matriz hebraica, cumpre ressaltar que a lei do talião foi defenestrada por esta corrente de pensamento, na medida em que, para Jesus-‐Cristo, nas palavras do apóstolo Mateus, in verbis: “Ouviste que foi dito: olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas se qualquer te bater na face direita, oferece-‐lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-‐te o vestido, larga-‐lhe também a capa” (Mt, 05: 38-‐40). 30 Tradução livre de: “Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to the gravity of their offence” (item 21).
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importantíssimo documento, no sentido da consolidação de direitos31 – é a partir dela, para
muitos juristas32, que podem ser extraídos os fundamentos da ordem jurídica democrática da
Inglaterra –, dentre os quais se inclui, como visto, a proporcionalidade da sanção penal.
2.1.4. Direito Penal laicizado e a proporcionalidade
2.1.4.1. Direito Penal na Grécia
Muito embora também possuam como característica o surgimento da lei como
parte da religião33, as civilizações grega e romana constituem um marco no processo de laicização
da intervenção penal. Como visto, até então a legislação penal era dotada de uma forte influência
teocrática e sacerdotal. Em síntese, a legitimação do poder de punir era encontrada na divindade.
Como regra geral, a própria divindade, perfeita, impassível de cometer equívocos, delegava o
sagrado poder de punir a determinado grupo de pessoas – os sacerdotes. Aí residia o fundamento
da legitimação da aplicação de penas aos membros do grupo.
A Grécia não conhece este caráter teocrático da legislação penal. Como cediço, a
civilização grega também possui uma forte influência religiosa. Sendo politeístas, os membros das
cidades-‐estado gregas prestavam cultos às mais variadas divindades, tendo Zeus como um deus de
hierarquia superior, sendo identificado como o deus dos deuses. A religião grega legou o que, na
atualidade, convencionou-‐se denominar mitologia grega.
Esta presença da religião politeísta, porém, se por um lado foi muito marcante na
vida social dos gregos, por outro não exerceu maior influência sobre o poder de punir. Em suma,
os gregos não julgavam para desagravar os deuses, nem tampouco consideravam que este poder
de punir encontrava sua legitimação na delegação divina.
31 “Se é certo que a Magna Charta efetivamente deixou a esmagadora maioria da população sem acesso aos direitos nela previstos, não menos é que serviu como um dos marcos para a consolidação de importantes direitos e garantias fundamentais, como o caso do habeas corpus e do direito de propriedade” (SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 42). 32 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.156. 33 “Entre gregos e romanos, assim como entre hindus, desde o princípio a lei surgiu naturalmente como parte da religião. Os antigos códigos da cidade reuniam um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas.” (COULANGES, Fustel. A cidade antiga. 2.ed. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2001, p.206).
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Certamente esta postura da civilização grega decorreu do significativo avanço, por
ela experimentado, no que tange à política. Com efeito, a civilização grega foi dividida em pólis,
cidades-‐estados, com considerável grau de autonomia, sendo que algumas pólis possuíam uma
estrutura política bastante progressista, para os padrões então vigentes. Sem dúvida, o maior
exemplo disto é a cidade-‐estado de Atenas. Todavia, em que pese haver uma notável distinção
entre as formas de organização de cidades-‐estados como Atenas e Esparta (cidade militarizada),
em um ponto havia expressiva coincidência: em ambas, não há que se falar em reflexo da religião
sobre a legislação penal.
Naturalmente, esta laicização do Direito Penal na Grécia decorreu de um processo
histórico, na medida em que, em seus primórdios, também existia a referência à religião. Desta
forma, não se pode olvidar que quando do advento das leis draconianas ainda existiam resquícios
do direito religioso dos eupátridas34.
Dracon fora convocado para redigir a primeira lei escrita de Atenas, tendo em vista
a iminência de um conflito entre as classes sociais de então. As leis draconianas eram
extremamente rígidas, mas, durante algum tempo, gozaram de prestígio entre os gregos,
justamente por possuírem o mérito de extirpar as surpresas na condenação. Em outras palavras,
com a existência da legislação draconiana, os gregos tinham prévia ciência dos fatos taxados como
criminosos.
Porém, a legislação draconiana mantinha privilégios concedidos às classes
dominantes, além de prever sanções excessivamente severas para condutas de menor
importância. Com a crescente insatisfação das classes excluídas das benesses concedidas aos
eupátridas, Sólon elaborou uma nova legislação, consagrando a igualdade perante a lei e a
extinção da escravidão por dívidas35.
2.1.4.2. Direito Penal em Roma
Despiciendo incorrer em maiores digressões acerca da importância do Direito em
Roma e sua influência nas legislações ocidentais da atualidade, mormente aquelas pautadas no
paradigma da civil law. A despeito desta relevância não se pode perder de vista a célebre
34 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Ob. cit. p.34. 35 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Ob. cit., p.35-‐36.
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expressão de Carrara, para quem os romanos foram gigantes em Direito Civil e pigmeus em Direito
Penal.
Esta afirmação, malgrado a envergadura intelectual de seu autor, há de ser aferida
com uma certa dose de temperamento. Isto porque, se por um lado não se pode negar que o
desenvolvimento do civilismo fora de fundamental importância para os avanços das legislações
nesta seara, não se pode afirmar, em absoluto, que os romanos não lograram êxito em contribuir
com o avanço do Direito Penal36.
Como ocorreu nas demais civilizações, em seus primórdios, os romanos se
pautaram por uma legislação penal de teor religioso37. Nesta fase, destaca-‐se a figura do pater
famílias, que possuía uma gama de poderes quase ilimitados sobre os membros do seu grupo
familiar, inclusive o direito de vida e morte38. Até este momento histórico, este poder do chefe da
família não poderia ser alterado por qualquer autoridade, suas decisões eram inapeláveis e não
havia intervenção do poder público constituído sobre os fatos que lhe competiam.
A edição da Lei das XII Tábuas constitui marco na legislação penal romana. Neste
momento histórico, Roma assistia a eclosão de uma revolta social, resultante da luta entre a plebe
e o patriciado. Uma das principais reivindicações dos integrantes da plebe era a edição de uma
legislação penal, para que, desta forma, houvesse um limite ao poder dos magistrados, membros
do patriciado, que se valiam do arbítrio punitivo contra a plebe39.
O tribuno da plebe, Terentílio Arsa, propôs a criação de um grupo destinado à
elaboração de um código destinado à plebe40. Temendo a separação da plebe, em relação a si, o
patriciado decidiu pela criação da magistratura constituída de dez membros, cujo objetivo seria a
elaboração de um código, não apenas para os plebeus, mas para todos os romanos. Este grupo
adotou como paradigma a legislação ateniense, de Sólon41. Assim surge a Lei das XII Tábuas, entre
os anos 451 a.C. e 450 a.C., que, como já referido, também acolheu a lei do talião42.
36 “É inegável, então, que, apesar de não haverem os romanos atingido, no direito penal, as alturas a que se elevaram no civil, se avantajaram a outros povos.” (MAGALHÃES NORONHA, E. Direito penal. Vol I. Atualizado por Adalberto J.Q.T. de Camargo Aranha. 33 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.22). 37 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit. p.182. 38 PRADO, Luis Régis. Curso de direito penal brasileiro. Vol. I: parte geral. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.68-‐69. 39 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. Vol. I. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense. 1998, p.24. 40 Idem, p.24. 41 MOREIRA ALVES, José Carlos. Ob. cit., p.24. 42 Ao discorrer sobre a lei do talião, Montesquieu chama a atenção para a peculiaridade de sua adoção na legislação em Roma, in verbis: “Os Estados Despóticos, que apreciam leis simples, usam frequentemente a lei de talião; os
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O Direito Penal romano consagrou a distinção entre os ilícitos públicos (crimina) e
os privados (delicta), sendo que estes últimos eram considerados ofensa ao próprio indivíduo,
razão pela qual a persecução não ficava confiada ao Estado, mas sim ao particular. Após, na época
do Império, surgiu uma terceira espécie de infração, chamada de extraordinária (crime
majestatis43), e consistia nas condutas que ofendessem o poder público, sobretudo a autoridade
do Imperador.
O Direito Penal Público romano tem início com a edição da Lex Valeria, no ano de
509 a.C., cujo mérito fora submeter à ratificação popular as decisões judiciais que cominassem a
pena de morte prolatada por magistrados em desfavor daqueles que possuíssem cidadania
romana. Desta forma, os cidadãos romanos, em casos que tais, poderiam recorrer à provocatio ad
populum44.
Como característica marcante do Direito Penal romano encontra-‐se o
desenvolvimento de institutos como o da culpabilidade e da imputabilidade. Havia, ainda, a
possibilidade de reconhecimento de excludentes de ilicitude, como a legítima defesa e o estado de
necessidade. Em contrapartida, o Direito Penal romano não preconizou a previsão expressa do
princípio da legalidade, tampouco proibiu ou restringiu a utilização da analogia em matéria penal.
Demais disso, realizou um desenvolvimento parcial do instituto da tentativa.
Deste estudo da manifestação do Direito Criminal em Roma e na Grécia, o que se
percebe é que, a despeito do significativo avanço da intervenção penal em relação às demais
civilizações, ainda se consagrava a afronta à ideia de proporcionalidade entre o desvio de conduta
social e a sanção pertinente. Neste sentido, convém esclarecer que, no que toca à
proporcionalidade penal, o maior avanço na Antiguidade deve-‐se, efetivamente, ao Código de
Hamurabi, na medida em que, as demais legislações, grosso modo, adstringiram-‐se a, no que
concerne à proporcionalidade, reproduzir os dispositivos da Lei de Talião.
Estados moderados adotam-‐na algumas vezes. Entretanto, existe uma diferença: os primeiros a exercem rigorosamente, e os segundos a usam moderadamente. (...). A lei das Doze Tábuas admitia duas modalidades: apenas condenava à pena de talião quando não podia apaziguar o queixoso; era permitido, depois da condenação, pagar as perdas e danos, convertendo a pena corporal em pecuniária” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.105). 43 “O conceito de crime contra o Estado (crime majestatis) chegou a limites tão absurdos no Império, que se considerava como tal desnudar-‐se diante de uma estátua do imperador, vender sua estátua consagrada, levar uma medalha ou moeda com sua imagem a um prostíbulo, fazer vestidos ou tecidos púrpura (consideradas cor imperial), ter relações sexuais com princesa imperial, duvidas do acerto do imperador na escolha de funcionários e, em geral, qualquer classe de crítica” (ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit. p.183). 44 PRADO, Luis Régis. Ob. cit. p.70.
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2.1.5. Direito Penal medieval e a proporcionalidade
Durante a Idade Média, período histórico denominado, por muitos, como idade das
trevas, a repressão penal ainda estava longe de se pautar por critérios de humanização na
aplicação da pena. Com efeito, o excessivo rigor na aplicação das sanções é uma das
características marcantes do período. A utilização irrestrita da tortura como meio de obtenção de
provas para incriminação é outro dado presente na persecução criminal da época.
Outra informação de relevo reside no fato de que o Direito Penal medieval não
primou pela observância do princípio da legalidade. Em consequência, ao julgador, encarregado da
aplicação da pena, facultava-‐se não apenas a cominação de sanções, como, também, a
incriminação de condutas não previstas em lei, escrita e prévia45.
Sabe-‐se que uma das peculiaridades da Idade Média, nas civilizações ocidentais, é a
hegemonia política e econômica da Igreja Católica Apostólica Romana, que, além disto,
monopolizava a divulgação do conhecimento, sendo certo que, muitas obras de fundamental
importância para o pensamento filosófico encontravam-‐se nos mosteiros medievais. À vista deste
contexto, a influência religiosa no Direito fora marcante neste período.
Relata Cláudio Brandão46 que o pensamento da época respaldava a existência de
três tipos de leis, a saber: (i) a lei eterna (lex aeterna), que seria a vontade de Deus, a reger o
universo; (ii) a lei natural (lex naturalis), que seria o reflexo da vontade de Deus, isto é, da lei
eterna, na mente humana; (iii) a lei humana (lex humanae) que seria a lei temporal do Estado.
Assentada na, já mencionada, forte concepção religiosa, eventual conflito entre a lei natural e a lei
humana deveria redundar na prevalência da primeira47, na medida em que o poder divino possui
primazia, eis que superior ao poder humano.
Demais disto, o Direito Penal canônico estabelecia a distinção entre delitos
eclesiásticos, seculares e mistos. Os primeiros, para os quais possuía competência absoluta para o
julgamento, referiam-‐se às práticas heréticas. Muito embora haja entendimento no sentido de
que o Direito Penal canônico, ao estabelecer estas distinções, apartou por completo o delito do
45 BRANDÃO, Cláudio. Ob. cit., p.26. 46 Idem, p.30. 47 Idem, ibidem, p.30.
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pecado, prevalece a ideia de que não houve esta distinção, mantendo-‐se a confusão entre
infrações religiosas e infrações criminais48.
Consectário desta hegemonia da religião católica sobre a vida social foi o advento
da Inquisição, mediante a restauração dos Tribunais do Santo Ofício. A Inquisição objetivou
restaurar a força da Igreja, reprimindo as condutas consideradas heresias, sobretudo aquelas
relacionadas ao que se considerava bruxaria.
Há um certo consenso em relação à influência do movimento de Reforma, levada a
cabo por Martinho Lutero, como uma das razões de instauração da Inquisição. Como cediço, este
movimento (implantação dos Tribunais do Santo Ofício) representou uma atroz repressão de
matriz religiosa, sendo célebres as figuras de alguns dos mais implacáveis inquisidores, como
Torquemada.
No que importa ao Direito Penal, relevante consignar que a Inquisição valia-‐se de
um poder de punir, justificado por questões religiosas, cujo processo caracterizou o que se
convencionou denominar sistema inquisitivo. São características do sistema inquisitivo: a
coincidência nos papéis de acusação e julgamento, realizados pela mesma pessoa, a ausência de
publicidade nos julgamentos, a inexistência do amplo direito à defesa, a legitimação de provas
como a tortura, em que competia à parte provar a sua inocência, e não à acusação provar a
responsabilidade do réu. Por conta disto, não havia que se falar em presunção de inocência. Estas
características, posteriormente, conduzem à adoção do sistema processual inquisitivo por regimes
políticos autoritários49.
Documento que orientou a prática inquisitiva dos Tribunais do Santo Ofício foi o
Manual dos Inquisidores, escrito em 1376 pelo catalão Nicolau Eymerich, revisado e ampliado em
1578 por Francisco de la Pena50.
A Inquisição não se preocupava com o crime, isto é, com a afronta com as leis
terrenas, mas sim com as heresias, isto é, a suposta afronta às leis divinas. A lógica que orientava
esta postura residia no fato de que o crime não comprometia a marcha para a vida eterna,
porquanto o arrependido poderia valer-‐se do perdão de Deus. Em contrapartida, a heresia obsta a
48 Na defesa desta tese, cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit. p.185. 49 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p,141. 50 LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2006, p.169.
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marcha para a eternidade, constituindo um perigo muito maior do que o crime, e por isto merecia
um rigor maior na reprimenda51.
Outro ponto de destaque do sistema inquisitivo refere-‐se à pretensão de se buscar
a verdade real. Este fundamento legitimou a utilização de métodos espúrios na busca desta
famigerada verdade, em descompasso com os direitos do acusado, relegados a plano secundário.
É também a pretensa obtenção da verdade real que serviu de supedâneo à legitimação da junção
das funções de acusar e de julgar, malgrado o flagrante comprometimento da imparcialidade do
julgador52. A ampla aptidão para produção de provas por parte do magistrado, outro elemento
constitutivo do sistema inquisitivo também fora legitimado por esta incessante busca pela verdade
real ou material.
Característica marcante do Direito Penal durante o medievo foi a presença dos
juízos de Deus, isto é, os ordálios, utilizados, por exemplo, no direito germânico, quando não fosse
possível realizar nem as provas por testemunho nem as provas por juramento, ou, ainda, quando
o demandado deixasse de comparecer, injustificadamente, ao Tribunal53.
As mesmas considerações tecidas quando da apreciação do Direito Penal em Roma
e na Grécia podem ser utilizadas aqui. Com efeito, o Direito Penal aplicado no medievo foi
marcado por uma reprimenda penal excessiva, sob o ponto de vista dos suplícios impingidos, em
descompasso à ideia de proporcionalidade entre delito e sanção.
51 LOPES Jr., Aury. Ob. cit. p.169. 52 “Sólo un juez dotado de uma capacidad sobrehumana podría substraerse em su actividad decisoria a los influjos subjetivos de su propia actividad agresiva e investigatoria” (SCHMIDT, Eberhard. Los fundamentos teóricos e constitucionales del derecho procesal penal. Traduccion castellana de José Manuel Nuñez, Buenos Aires: Lerner, 2006, p.193). 53 KEMMERICH, Clóvis Juarez. O direito processual da Idade Média. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2006, p.63. Referido autor fornece alguns exemplos de utilização dos ordálios, in verbis: “Julgamento da cruz: ‘no iudicium crucis (= julgamento da cruz), bastante difundido na época carolíngia, as duas partes deviam ficar de braços estendidos; o primeiro que deixasse cair os braços perdia a questão.’ Prova do cadáver: a ‘prova do cadáver (al. Bahrprobe) consistia para o acusado em tocar o cadáver sem o fazer sangrar; subsistiu na Suíça e na Alemanha até o século XVI’. Julgamento pelo ferro incandescente: o interessado devia carregar um pedaço de ferro incandescente por cerca dos pés. Sua mão era então enfaixada e recebia um selo. No terceiro dia as faixas eram retiradas: se estivessem limpas, ou o ferimento apresentasse um indício de cura, significava que o veredicto de Deus era favorável àquele submetido à prova. Julgamento pela água fervente: o ‘judicium aquae colidae é a versão úmida dessa delicada atenção: deve-‐se mergulhar a mão na água fervente.’ Logo após, seguia-‐se o mesmo procedimento do julgamento pelo ferro incandescente. Julgamento pela água fria: a parte à qual coubesse a prova era amarrada e jogada em um rio ou tina de água fria. ‘[S]e ele afunda, tem razão, se bóia, está errado (...). A água divina rejeitou o seu recurso. Em outras variantes, o fato de não afundar significava exatamente o contrário, ou seja, que aquele submetido ao teste era inocente. Julgamento pelo pão: a parte a quem coubesse a prova deveria comer um pedaço de pão ou de queijo pesando cerca de uma onça. Se não engasgasse, nem ficasse com migalhas na garganta, o veredicto de Deus era tido como favorável.” (KEMMERICH, Clóvis Juarez. Ob. cit. p.64-‐65).
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2.1.6. Período Humanitário.
2.1.6.1. Ideário iluminista e humanização do Direito Penal: a
proporcionalidade
A previsão de relativa proporcionalidade entre os delitos praticados e as sanções
penais a serem impostas não eliminava a crueldade das penas. Com efeito, até o século XVIII os
países da Europa conviviam com execuções bárbaras, transformadas em tenebrosos espetáculos
públicos54. Se é certo que a proporcionalidade já conduzia o poder público a repudiar tais excessos
para os delitos de pouca monta, isto é, de baixa lesividade, é certo também que, quando da
prática de crimes considerados mais graves, a prática destas atrocidades constituía uma
constante.
Até o advento da revolução burguesa, na França, a Europa vivia sob a égide do
Antigo Regime que, na política, caracterizou-‐se pela primazia do absolutismo monárquico. A
célebre expressão do Rei Luís XIV (L´État c´est moi), conhecido como Rei-‐sol, é assaz
paradigmática. Sem embargo, se a figura do Estado e a do monarca coincidem, como afirmara Luis
XIV, a sua vontade é a vontade do Estado, sem necessidade de obediência a regras previamente
estabelecidas.
Este tipo de concentração de poder conduziu a uma série de arbitrariedades
perpetradas pelos representantes do Estado, sobretudo os membros da magistratura, cujas
decisões, no mais das vezes, assentavam-‐se em parâmetros subjetivos. Mais que isto, por vezes
este subjetivismo na apreciação da conduta posta em juízo constituía afronta à idéia de Estado
laico, na medida em que os magistrados, com fundamento em suas considerações pessoais acerca
da identificação entre delito e pecado, decidiam quando, como e porque punir55.
Para logo se vê que o fundamento de legitimação do poder de punir, quando da
vigência do Estado absolutista, centra-‐se na própria autoridade do monarca. Esta a razão pela qual
54 Para uma breve noção do que aqui se afirma, cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 32. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.09-‐10. 55 ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução: Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p.109.
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os atos considerados mais graves, neste período histórico, dizem respeito, justamente, a condutas
contrárias ao poder real, ou à pessoa do Rei. A estas estavam reservadas as sanções mais cruéis,
cujo objetivo, para além de punir, era exemplificar. Punia-‐se com rigor excessivo para que os
demais súditos não ousassem seguir o exemplo56.
O arbítrio até então reinante na esfera política começa a ceder espaço com o
advento das ideias sufragadas pelos pensadores iluministas. Na seara das ciências criminais, as
teses sustentadas pelos pensadores iluministas caminharam no sentido da humanização da
intervenção penal. De início, imperioso destacar que, com fundamento no direito natural, os
iluministas defendiam que toda pessoa possuiria direitos inalienáveis, imanentes a sua própria
natureza57, razão pela qual a intervenção penal há de obedecer a critérios de racionalidade.
Sob outra perspectiva, no campo estritamente político, os pensadores iluministas
insurgiam-‐se contra o poder absoluto do monarca. Ora, sendo o Direito Penal o meio pelo qual o
poder público exerce a violência, legitimamente monopolizada pelo Estado, a limitação do poder
do monarca relaciona-‐se, intimamente, com os freios à persecução criminal.
Nesta senda, sobressai-‐se em importância, além da obra de célebres autores, como
Rousseau e Montesquieu58, o opúsculo “Dos delitos e das penas”, de Cesare de Bonesana, o
56 Ao discorrer, de forma minuciosa sobre o rigor destes suplícios e a simbologia da sua aplicação, Gabriel Ignácio Anitua descreve dois casos paradigmáticos, cuja riqueza de detalhes merece transcrição. A primeira execução descrita refere-‐se à pena aplicada a Juan de Camañas, em 07 de dezembro de 1492, em Barcelona, acusado de haver atentado contra a vida do Rei Fernando, o Católico. Relata Anitua que, in verbis: “‘Ele foi posto em uma carroça e arrastado por toda a cidade; primeiramente teve cortada a mão que atacou o rei e depois, com tenazes de ferro ardendo, lhe tiraram um mamilo, e depois lhe arrancaram um olho, e depois lhe cortaram a outra mão, e logo lhe retiraram o outro olho e em seguida o outro mamilo, e depois as narinas, e todo o seu corpo foi sendo destroçado pelos ferreiros com tenazes ardentes e os pés foram cortados e depois que todos os membros foram cortados, lhe arrancaram o coração pelo peito e o arrastaram para fora da cidade, o apedrejaram e o queimaram em fogo e lançaram as cinzas ao vento” (Ob. cit. p.110). O outro caso relatado por Anitua diz respeito ao homicídio perpetrado por François Ravaillac contra Henrique IV, no início do século XVII. Ao transcrever trecho da sentença que condenou Ravaillac, assinala o autor que constava, in verbis: “‘Declarará que sente remorso por isso e pede perdão ao rei e à justiça. Depois será levado à praça da Grève, onde será erguido o cadafalso, sobre o qual serão arrancados dele, com tenazes, pedaço das carnes dos mamilos, dos braços, das coxas e das nádegas. Sua mão direita, que empunhou a arma assassina, será queimada no fogo de enxofre. E nas partes de seu corpo de onde foram arrancados pedaços de carne com as tenazes será lançado chumbo derretido, azeite fervendo, água de ebulição e enxofre ardendo. Finalmente, seu corpo será despedaçado por meio de quatro cavalos atados a seus membros, os quais, uma vez desprendidos de seu corpo, serão queimados e suas cinzas dispersas ao vento’” (Ob. cit. p.111). 57 Neste sentido, paradigmática a frase de Jean-‐Jacques Rousseau: “O homem nasceu livre, e em todo canto se encontra sob ferros”. Tradução livre de: “L´homme est né libre, et partout il est dans les fers”. (ROUSSEAU, Jean-‐Jacques. Du contrat social. Paris: Éditions Sociales, 1955, p.05). 58 Também Montesquieu defendeu a idéia de proporção entre o delito e a pena, in verbis: “É um grande mal, entre nós, aplicar a mesma pena àquele que rouba em uma estrada e ao que rouba e assassina. É evidente que, para o bem da segurança pública, dever-‐se-‐ia estabelecer alguma diferença entre as penas” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.103).
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Marquês de Beccaria. A par de uma série de limitações ao poder punitivo, preconizada por
Beccaria, destaca-‐se, também, a ideia de proporcionalidade59. As ideias sustentadas por Beccaria
não possuem o mérito da originalidade. Com efeito, boa parte das ideias que defende já havia sido
apresentada por outros pensadores, ligados ao movimento iluminista. O mérito maior de sua obra
reside na sistematização destas ideias e, sobretudo, em divulgá-‐las de forma consistente, acessível
e clara. Em decorrência do êxito que obteve neste intento, a obra de Beccaria, “Dos delitos e das
penas”, tornou-‐se um verdadeiro estandarte deste movimento identificado com a humanização
do Direito Penal.
A vitória do ideal liberal iluminista acarreta a consagração dos valores atinentes à
humanização da intervenção penal, com a consequente proscrição da barbárie estatal, até então
em vigor. Relevante destacar que esta humanização das sanções penais trouxe consigo o reforço à
noção de proporcionalidade (em sua vertente necessidade), plasmada no art. VIII da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “a lei apenas deve cominar penas estrita e
evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida
e promulgada antes do delito, e aplicada em observância à lei”60.
Naturalmente, não se pode olvidar que a revolução burguesa, levada a cabo na
França, não logrou êxito, de imediato, na implantação do rol de direitos cuja existência sustentara.
Relevante salientar, ainda, a flagrante incoerência resultante dos discursos iluministas, centrados
na ideia de fraternidade, e a implementação prática das diretrizes revolucionárias, com a
consequente institucionalização do período histórico conhecido como “terror”.
A despeito disto, não se pode deixar de anotar que os postulados da Revolução
Francesa constituem um marco histórico de suma importância na consolidação de direitos e
garantias até então relegados. A Revolução implementou a ruptura com a ordem vigente no
Antigo Regime, pautado na concepção de poder político absoluto.
Por conta disto, os ideais que orientaram a eclosão da Revolução constituem, ainda
hoje, paradigma observado pelas legislações de todo o mundo ocidental. Como cediço, as
59 Para Beccaria: “Não somente é interesse de todos que não se cometam delitos, como também que estes sejam mais raros proporcionalmente ao mal que causam à sociedade. Portanto, mais fortes devem ser os obstáculos que afastam os homens dos crimes, quando são contrários ao bem público e na medida dos impulsos que os levam a delinqüir. Deve haver, pois, proporção entre os delitos e as penas.” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.37). 60 Tradução livre de: “La Loi ne doit établir que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu’en vertu d’une Loi établie et promulguée antérieurement au délit, et légalement appliquée.”
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concepções revolucionárias estão calcadas em um ideário liberal, próprio do individualismo61
burguês62, hegemônico na fase pós-‐revolução. Como contraponto ao poder absoluto do Estado,
importa, aos expoentes do movimento revolucionário, criar mecanismos de defesa do cidadão – e
não mais o súdito, eis que, agora, titular de direitos – contra o arbítrio estatal. Assim surgem os
chamados direitos de primeira geração – ou dimensão63, como prefere parcela da doutrina –,
direitos civis e políticos. É certo que, posteriormente, surgem novas demandas e, portanto, novas
lutas pela conquista de direitos, tais como os direitos econômicos, sociais e culturais, além dos
direitos às gerações futuras, relativos à paz, informação, etc.
Contudo, no que importa, isto é, temas afetos à legitimação e limitação do poder
de punir do Estado, não se pode perder de vista que este momento histórico, o advento dos
chamados direitos de defesa, constitui a consagração de uma barreira instransponível para a
persecução criminal. Apenas a título ilustrativo, pode-‐se fazer menção à Constituição francesa de
184864, ainda fruto do processo revolucionário iniciado no século anterior, que consagrou dois
61 A rigor, as críticas lançadas aos ideais da Revolução Francesa estão fundadas na concretização do direito de propriedade, na Declaração de 1789, como um direito inalienável e sagrado. À vista disto, os movimentos socialistas do século XIX identificaram a Revolução como uma revolução burguesa. Ressalta Bobbio que Marx acusou a Declaração de estar influenciada por uma concepção individualista da sociedade. Ao apreciar tal assertiva, Bobbio manifesta sua aquiescência, mas não encara o fato sob o mesmo viés negativo. Apreciando o contexto histórico, salienta o pensador italiano que, in verbis: “Decerto, o ponto de vista no qual se situa a Declaração para dar uma solução ao eterno problema das relações entre governantes e governados é o do indivíduo, do indivíduo singular, considerado como o titular do poder soberano, na medida em que, no hipotético estado de natureza pré-‐social, ainda não existe nenhum poder acima dele. O poder político, ou o poder dos indivíduos associados, vem depois” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.113). Mais que isto, Norberto Bobbio defende a concepção individualista, salientando que, in verbis: “É preciso desconfiar de quem defende uma concepção antiindividualista da sociedade. Através do antiindividualismo, passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionárias. Burke dizia: ‘Os indivíduos desaparecem como sombras; só a comunidade é fixa e estável.’ De Maistre dizia: ‘Submeter o governo à discussão individual significa destruí-‐lo.’ Lammenais dizia: ‘O individualismo, destruindo a idéia de obediência e de dever, destrói o poder e a lei.’ Não seria muito difícil encontrar citações análogas na esquerda antidemocrática. Ao contrário não existe nenhuma Constituição democrática, a começar pela Constituição republicana da Itália, que não pressuponha a existência de indivíduos singulares que têm direitos enquanto tais. E como seria possível dizer que eles são ‘invioláveis’ se não houvesse o pressuposto de que, axiologicamente, o indivíduo é superior à sociedade de que faz parte?” (ob. cit. p.115-‐116). 62 Outro ponto relevante que dá a tônica da hegemonia burguesa na diretriz do movimento revolucionário é a consagração do direito à propriedade como inalienável e sagrado, pela Declaração de 1789. Com efeito, em seu último artigo, dispõe a Declaração, in verbis: “A propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém pode dela ser privado, salvo quando a necessidade pública, devidamente constatada, o exigir evidentemente, e sob a condição de uma justa e prévia indenização”. Tradução livre de: “La propriété étant un droit inviolable et sacré, nul ne peut en être privé, si ce n’est lorsque la nécessité publique, légalement constatée, l’exige évidemment, et sous la condition d’une juste et préalable indemnité”. 63 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.43. 64 Sobre esta Constituição, afirma Fábio Konder Comparato: “A Constituição de 1848, por tudo isso, foi composta como uma obra de compromisso. De um lado, entre o liberalismo – claramente afirmado com a declaração preambular de redução gradual das despesas públicas e dos impostos – e o socialismo democrático. Compromisso, de outro lado, entre os valores conservadores – a Família, a Propriedade e a Ordem Pública, invocados com letra
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direitos fundamentais de suma relevância, ao abolir a pena de morte em matéria política65 e a
escravidão de todo o território francês66.
2.1.6.2. Os reformadores, a humanização da pena privativa de liberdade e a
sociedade disciplinar
Ainda na esteira da sedimentação destes postulados relativos à limitação do poder
de punir estatal e humanização da intervenção penal, cumpre consignar que este é momento
histórico da consolidação da privação de liberdade como modalidade de pena67. Como já referido,
até este momento, existia a prisão apenas como cautela, como custódia, mas não como pena. A
prisão era, tão-‐somente, utilizada para instrumentalizar a aplicação da pena definitiva,
comumente materializada em uma sanção consistente em suplícios corporais ou a própria pena
capital, em suas diversas modalidades.
Alguns autores identificam a consolidação da pena de prisão com o advento do
capitalismo e a sua consequente necessidade de regular o mercado de trabalho68. Uma vez
passado em revista um breve histórico das mais variadas formas de aplicação de sanções penais,
resta patente que a pena de privação de liberdade já constitui um significativo avanço no sentido
de humanizar a intervenção do Estado por meio da tutela penal.
Conquanto isto seja um fato inconteste, deve-‐se destacar que as penas de privação
de liberdade, ainda constituíam um flagelo cruel, sobretudo em face da periclitante situação em
que se encontravam os estabelecimentos carcerários de então, ainda resultantes dos calabouços
medievais. À vista desta situação de fato, houve um considerável acréscimo no movimento
maiúscula no inciso IV do preâmbulo – e o progresso e a civilização (preâmbulo, inciso I).” (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.165). 65 Art. 5. “La peine de mort est abolie en matière politique”. 66 Art. 6. “L'esclavage ne peut exister sur aucune terre française”. 67 “O discurso e a prática assumidos, nessa nova realidade política, em favor dos direitos humanos são responsáveis pela alteração do panorama da coação estatal sobre os indivíduos. O reflexo sobre o direito penal é evidente, as formas cruéis de punição são paulatinamente rechaçadas e excluídas dos diplomas legais, iniciando-‐se, segundo Foucault, a ‘época da sobriedade punitiva’, e a pena privativa de liberdade torna-‐se a principal sanção penal. As penas que se caracterizavam por serem corporais passaram a incidir sobre a alma – “o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (PRADO, Alessandra R. Mascarenhas. Regras de Tóquio e as penas restritivas de direitos: histórico e retratos do Brasil. MERCADANTE, Araminta; MAGALHÃES, José Carlos (org.). Reflexões sobre os 60 anos da ONU. Ijuí: Unijuí, 2005. p. 309-‐349). 68 Neste sentido, cf. MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (século XVI-‐XIX). Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2006.
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tendente à humanização das instituições penitenciárias. Sendo certo que o objetivo maior dos
pensadores que sustentavam estas teses era humanizar o cárcere, sem, contudo, aboli-‐lo, eles são
considerados reformadores.
Dentre os reformadores, merecem referência alguns pensadores cujas ideias de
tornaram emblemáticas, tais como John Howard, Jeremy Bentham e o próprio Cesare Beccaria.
Howard conheceu de perto as mazelas do cárcere, porquanto fora preso –
encarcerado, de início no Castelo de Brest e, depois, na prisão de Morlaix – quando retornava de
uma viagem a Portugal, para onde havia se deslocado no afã de ajudar vítimas de um terremoto
que recaíra sobre Lisboa, em 175569. Tendo se dedicado com afinco às questões relativas às
prisões, Howard se notabiliza, tanto por sua produção intelectual, quanto pela sua atuação
prática, na medida em que teve oportunidade de aplicar, na prática, suas ideias, haja vista ter
exercido os cargos de xerife e de alcaide do Condado de Bedford70. Dentre outras coisas, Howard
defendia a adaptação das estruturas físicas das penitenciárias e a influência da religião –
decorrência de sua formação religiosa, pois era calvinista –, como forma de fornecer subsídios
morais aos condenados.
Outro pensador considerado um reformador, sobretudo no que diz respeito a
questões atinentes ao cárcere, foi Jeremy Bentham. Absolutamente refratário à subsistência de
castigos excessivos, marcados pela nota distintiva da crueldade e da desumanidade, Bentham, foi
um grande defensor da teoria preventiva da pena, podendo o seu pensamento ser identificado
com o utilitarismo. Bentham já chamava atenção para o fato de a prisão, para além de não coibir a
reincidência, possuir, ela própria, natureza criminógena.
Bentham estabelecia a distinção entre prisão-‐cautela e prisão-‐pena, denominando
a primeira de simples prisão e a segunda de prisão aflitiva ou penal. No que se refere à simples
prisão, salienta que a severidade existente deve se adstringir àquela imprescindível à consecução
do seu fim, que é a segurança, isto é, assegurar que o acautelado não consiga fugir. Nesta linha de
raciocínio, qualquer rigor que extrapole estes estreitos limites da severidade será considerado um
abuso, e, portanto, deve ser abolido71. No que tange à prisão aflitiva, ou penal, destaca que o seu
69 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. Saraiva: São Paulo, 2004, p.39. 70 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. Ob. cit. p.39. 71 BENTHAM, Jeremy. Ob. cit. p.77.
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grau de severidade deve obedecer a critérios pessoais, além da natureza do crime. Demais disso,
sustenta a prática do trabalho, por parte do preso72.
Célebre contribuição de Bentham à questão da política carcerária diz respeito ao
panótico. A ideia relativa ao panótico consistia, em apertada síntese, na construção de um
monumento localizado no interior do cárcere e que possibilitasse aos administradores da
penitenciária, e seus prepostos, vigiar constantemente os presos, ou, ao menos, passar esta
impressão a eles.
Ao discorrer sobre o panótico, Bentham aponta três ideias fundamentais, a saber:
(i) a construção de um edifício circular ou em forma de polígono “com seus quartos a roda de
muitos andares, que tenha no centro um quarto para o inspetor poder ver todos os presos, ainda
que eles não o vejam, e donde os possa fazer executar as ordens sem deixar o seu posto”73; (ii) a
administração por contrato, ideia de acordo com a qual o particular deveria ficar encarregado de
sustentar o preso, podendo, em contrapartida, auferir os lucros advindos do seu trabalho e, por
fim, (iii) a responsabilidade do administrador, que seria um fiador e abonador da vida de cada um
dos presos74.
Ao se debruçar, em estudo acurado, sobre o instituto do panótico, Michel Foucault
utiliza a expressão panoptismo para designar a influência exercida por esta instituição na
consolidação da “sociedade disciplinar”, que substituiria a fase dos suplícios pela fase do controle,
vigilância e disciplina nas relações de poder que grassam nos grupos sociais. Nas palavras de
Foucault75, “o panoptismo76 é o princípio geral de uma nova ‘anatomia política’ cujo objeto e fim
não são a relação de soberania, mas as relações de disciplina”.
Ainda na linha de pensamento sustentada pelo pensador francês, não se pode
confundir a disciplina com uma instituição, nem com nenhum tipo de aparelho; a disciplina é um
72 Idem, p.77. 73 Idem, ibidem, p.129. 74 BENTHAM, Jeremy. Ob. cit., p.129. 75 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 32. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.172. 76 Sobre a influência do panótico, de Bentham, na construção desta perspectiva do panoptismo, salienta Foucault que aquele deve ser compreendido “como um modelo generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações do poder com a vida cotidiana dos homens. Bentham sem dúvida o apresenta como uma instituição particular, nem fechada em si mesma. Muitas vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito. (...). Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado À sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-‐se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (Idem, p.169-‐170).
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tipo de poder, uma espécie de modalidade para o exercício do poder, que comporta um conjunto
de técnicas, instrumentos, distintos níveis de aplicação e alvos77. Esta concepção de uma
sociedade fundada no controle e na disciplina irradiara seus efeitos pelas mais variadas
instituições existentes no grupo social, tais como as fábricas, as escolas, os quartéis e os
hospitais78, que reproduziriam a lógica vigente nas prisões.
No ponto que mais interessa a este trabalho, cabe trazer a lume a mudança de
perspectiva experimentada pela justiça penal com o advento desta sociedade disciplinaria a que se
refere Foucault. Ainda consoante as lições do pensador francês, esta lógica panóptica,
transplantou o epicentro da justiça penal, até então fundada no corpo do condenado, para a
disciplina infinita79. Este seria o ponto ideal da penalidade80. O suplício seria, tão-‐somente, o
complemento de um processo marcado por uma persecução inquisitiva81, e ainda após a aplicação
da pena, esta observação disciplinar se faria presente.
A importância conferida por Foucault ao estudo desta sociedade disciplinar é
tamanha que chega a contrapor o poder disciplinar ao poder soberano82. De acordo com esta tese,
a soberania permaneceria como discurso de poder, mas a efetivação prática deste poder seria
levada a cabo por meio da disciplina, subjacente às relações sociais. Mais que isto, este poder
disciplinar, aplicado em concreto, seria o efetivo poder, realidade fática que desvelaria a falácia do
discurso formalista da igualdade de direitos perante a legislação. Em suma, enquanto a legislação
alimentaria o discurso da igualdade perante a lei, as relações de poder em vigor na sociedade
fundada na disciplina, estariam encarregadas da missão de negar, em concreto, este discurso.
2.2 A QUESTÃO DA LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL
77 Idem, ibidem, p.177. 78 Idem, ibidem, p.187. 79 “O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-‐la no infinito” (idem, ibidem, p.187). 80 Idem, ibidem, p.187. 81 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Ob. cit. p.187. 82 “Quero dizer, mais precisamente, isto: eu creio que a normalização, as normalizações disciplinares, vêm cada vez mais esbarrar contra o sistema jurídico da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com o outro; cada vez mais é necessária uma espécie de discurso árbitro, uma espécie de poder e de saber que sua sacralização científicas tornaria neutros” (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-‐1976). Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.46).
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2.2.1. Considerações iniciais
Até o presente momento, procurou-‐se analisar a evolução do poder de punir na
história da humanidade, mediante um breve escorço histórico, em paralelo à ideia de
proporcionalidade. O objetivo da apreciação histórica, como ressaltado oportunamente, não se
circunscreveu ao estudo das formas de manifestação do poder de punir, por meio da indicação das
penas aplicadas em um passado que não deixou saudades; ao revés, a pretensão precípua da
incursão histórica referiu-‐se à apreciação das formas de legitimação – e não manifestação,
ressalte-‐se uma vez mais – do poder de punir. Em resumo, o que, no decorrer da história,
legitimou a intervenção penal na esfera de direitos do indivíduo?
É consabido que a história do Direito Penal guarda íntima relação com a ideia de
violência83. De uma forma mais objetiva, podemos afirmar que não existe Direito Penal sem que
exista violência. Ao se fazer referida afirmação, devemos ter em mente a prática do crime. Sim,
pois, como regra geral, a consecução do crime envolve algum tipo de violência, seja na sua
realização, propriamente dita, seja em alguma de suas consequências. Desta forma, mesmo crimes
que são praticados sem a utilização da violência física podem envolver algum tipo de violência à
higidez psíquica da vítima, como ocorre em crimes como a ameaça (art. 147 -‐ CP), por exemplo.
Ademais, não se pode olvidar que até mesmo condutas tipificadas, que não se
perfectibilizam mediante o emprego da violência ou grave ameaça, já constituem, em si, uma
violência à esfera de direitos da vítima. Assim, se for adotado como paradigma o crime de furto
(Art. 155 -‐ CP), é fácil constatar que a subtração da coisa alheia móvel, em si, já constitui uma
violência ao patrimônio da vítima, bem jurídico tutelado, no caso.
Todavia, a despeito dessa constatação, quando se afirma que não há Direito Penal
sem que haja violência, deve-‐se salientar que esta afirmação não se adstringe à violência
perpetrada quando da prática criminosa. Ao contrário, deve-‐se deixar consignado que o Direito
Penal guarda estreita relação tanto com a violência praticada pelo crime quanto com a violência
praticada pelo Estado, quando da aplicação da pena.
Como consabido, e na linha das teorias mais aceitas acerca do poder, nas
sociedades contemporâneas o Estado detém o monopólio da utilização legítima da violência – sem 83 BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.01.
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prejuízo das raras exceções em que se legitima a autotutela, como no caso da legítima defesa. É
justamente esta legitimidade – ou pretensão de legitimidade – que diferencia a atuação estatal da
atuação privada.
A violência praticada pelo Estado ao aplicar a sanção penal constitui a mais drástica
intervenção do Estado na esfera de direitos do cidadão. É com fundamento nesta pretensão de
legitimidade que se permite ao Estado tolher a liberdade física de um indivíduo por inúmeros
anos, ao passo que a momentânea privação da liberdade por parte de um particular já configura
um ilícito penal. De igual sorte, com fundamento nesta pretensão de legitimidade alguns Estados
arvoram-‐se no direito de ceifar vidas, instituindo a pena capital, e, no entanto, a retirada da vida
de um indivíduo por um particular culmina no enquadramento de sua conduta no tipo penal por
excelência, o homicídio.
O fato é que não se encontrou consenso, até então, quanto à legitimação do poder
de punir. A questão remanesce tormentosa, agravada com o advento de inúmeras teorias que não
reconhecem esta legitimação, tais como as mais variadas vertentes do abolicionismo criminal.
Sendo certo que nem mesmo a legitimidade do Estado ao aplicar a pena passou incólume às
críticas, com muito mais razão, discute-‐se os limites desta intervenção.
Pelo que até aqui se procurou descrever, a legitimação do poder de punir variou
conforme o modelo de sociedade adotado. Assim, ora legitimou-‐se a intervenção penal com a
autoridade divina, delegada aos homens, ora com o poder do Estado, devidamente constituído e
representado na figura pessoal do monarca. Outros critérios de legitimação do poder de punir
também foram utilizados, como a manutenção do grupo social (no caso das vinganças tribais, por
exemplo).
Como cediço, no que tange às teorias relativas à origem do Estado, há uma certa
primazia, entre os cientistas políticos, das teses contratualistas. De acordo com esta premissa, os
indivíduos celebram um pacto social, abdicando de uma parcela de sua liberdade, em prol da sua
segurança, dando origem, assim, ao Estado. É certo que o contratualismo possui inúmeras
vertentes, desde o contratualismo absolutista idealizado por Hobbes até o contratualismo de
feição democrática, sustentado por Rousseau e que serviu de base de sustentação à Revolução
Francesa84. Tais vertentes, porém, possuem alguns pontos de contato, e um deles é, justamente, a
possibilidade de se submeter a uma pena aplicada pelo Estado, na medida em que cada indivíduo 84 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 25.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.16.
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acede voluntariamente a este poder de punir, conferido por ele, em caso de afronta às regras de
conduta imanentes ao pacto social celebrado. Dimensionar a quantidade e qualidade desta
intervenção penal é que distingue o contratualismo absolutista do democrático.
Todavia, a tese contratual acerca da origem do Estado não se mostrou suficiente
para apontar a legitimidade deste poder de punir. Certamente a tese contratualista serviu para
responder à questão “porque se pune?” (pune-‐se o indivíduo porque ele, tendo concedido este
poder ao Estado, violou regras do pacto social). Não conseguiu a concepção contratualista,
contudo, responder à questão “para que se pune?”. Ora, para que se possa afirmar que a
intervenção penal detém legitimidade, imperioso registrar as finalidades a serem obtidas com o
emprego de tamanha violência, como ocorre no caso da aplicação da sanção penal. Justamente
para responder esta indagação relativa à finalidade da pena surgiram as modernas teorias da
pena.
2.2.2. Teorias Absolutas
Há uma certa divergência relacionada à origem etimológica da expressão pena.
Afirma-‐se que a expressão possui origem no termo poena, do latim, que significa sofrimento85; há
quem sustente que a origem remonta à expressão grega ponos, cujo significado é dor86; por fim,
afirmam alguns que a expressão decorre do sânscrito punya, que significa purificação de um mal87.
No que tange às teorias da pena, importa trazer à baila a advertência de que estas
representam, em verdade, verdadeiras teorias do Direito Penal, com suas peculiaridades e suas
visões de mundo, pautadas em distintas concepções políticas e filosóficas88. A rigor, referidas
teorias congregam um conjunto de princípios e diretrizes que objetivam encontrar a legitimidade
do exercício do poder de punir. Não se destinam, portanto, a se imiscuir em discussões relativas à
natureza da pena, senão em temas afetos aos fundamentos de legitimação na aplicação da pena89.
85 BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.279. 86 BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Ob. cit. p.279. 87 Idem, p.279. 88 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.116-‐117. 89 Não é outro o entendimento de Enrique Bacigalupo, que, ao discorrer sobre as chamadas teorias da pena destaca que, in verbis:: “en verdad, no se trata de teorias, sino de princípios o axiomas legitimantes, cuya función en la ciencia del derecho penal es la de fundamentarlo em último término. Por tanto, las ‘teorias’ de la pena no responden a la pregunta ¿qué és la pena?, dado que el ser de la pena depende de la naturaleza que se le atribuya, sino a outra
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As primeiras teorias destinadas a identificar a legitimação da pena são conhecidas
como absolutas ou retributivas, porquanto acreditam que a pena constitui um fim em si mesmo.
De acordo com estas teorias, deve-‐se punir o criminoso apenas porque este cometeu o crime (na
expressão imortalizada por Sêneca, punitur quia peccatum est), sem maiores preocupações com a
finalidade. As teorias absolutas legitimam a pena se esta for justa, pouco importando se ela é
útil90. A lógica que orienta esta concepção retribucionista é a de que ao mal praticado pelo crime
deve-‐se contrapor o mal oriundo da pena.
A concepção retributiva de se pagar o mal do crime com o mal da pena encontra
sua raiz, conforme aponta Luigi Ferrajoli, na tradição hebraica, com fundamento religioso, tendo
sido incorporada, posteriormente, na tradição do cristianismo. Ainda de acordo com o jurista
italiano, de São Paulo, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino até Pio XII “tal concepção gira em
torno de três ideias fundamentais de caráter religioso, vale dizer, aquelas da ‘vingança’ (ex parte
agentis), da expiação (ex parte patientis) e do ‘reequilibrio’ entre pena e delito.”91
Ao apreciar as razões que conduziram à sobrevivência da teses retributivas da
sanção penal, Juarez Cirino dos Santos92 aponta: (i) a psicologia popular, orientada pelo talião,
como fundamento antropológico da pena retributiva; (ii) a tradição religiosa judaico-‐cristã
ocidental, que sustenta uma “imagem retributivo-‐vingativa da justiça divina, que talvez constitua a
influência cultural mais poderosa sobre a disposição psíquica retributiva da psicologia popular –
portanto de origem mais social do que biológica”93; (iii) a filosofia idealista ocidental, que possui
conotação retributiva; (iv) a fundamentação legal do discurso retributivo, já que encontra previsão
expressa no artigo 59 do Código Penal brasileiro, cuja existência influi, sobremodo, na
jurisprudência criminal, para qual a pena é a retribuição de um mal.
Dois dos maiores representantes da filosofia idealista alemã são apontados como
partidários destas concepções retributivas: Friedrich Hegel e Immanuel Kant. Como regra geral,
costuma-‐se fazer menção apenas a estes dois filósofos como partidários da teoria retribucionista.
pregunta: ¿bajo qué condiciones és legitima la aplicación de una pena?” (BACIGALUPO, Enrique. Manual de derecho penal. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1996, p.12). 90 BACIGALUPO, Enrique. Manual de derecho penal. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1996, p.12. 91 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.236-‐237. 92 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 3 ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p.462. 93 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Ob. cit., p.462.
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Conquanto sejam os seus maiores expoentes, não se pode olvidar que muitos outros pensadores
acolheram a tese absoluta da pena94.
A concepção de Kant sobre a sanção penal é identificada como uma retribuição de
cunho moral. De acordo com esta perspectiva, a pena atenderia a uma absoluta necessidade de
justiça, oriunda de um imperativo categórico95. Para Kant, a punição jamais pode ser aplicada
como forma de se alcançar um outro bem, seja em favor do criminoso, seja em favor da
sociedade, pois, se assim o fosse, o ser humano deixaria de ser tratado como um fim, para ser
tratado como um meio para o alcance de fins alheios, ou, mesmo, como objeto de direito a
coisas96. Em resumo, a pena se basta, carecendo de uma finalidade útil para que possa ser
considerada legítima. A existência da pena sacia a necessidade de justiça pelo só fato de ser
aplicada àquele que praticou o crime.
A postura de Kant em relação à pena ratifica, de certo modo, os postulados
iluministas de limitação ao poder de punir, calcados, sobretudo, no princípio da
proporcionalidade97. Pode-‐se fazer esta afirmação, pois o ideal de justiça kantiano reconhece o
limite do poder de punir em relação à gravidade do delito cometido. Esta a razão pela qual este
pensador apresenta-‐se como entusiasta da lei do talião, identificando-‐a como manifestação
límpida da justiça. Seguindo esta linha de pensamento, Kant assevera que se uma sociedade
houvesse de se dissolver, ainda assim, o último dos homicidas deveria ser executado98. De acordo
com a tese kantiana, a execução legitima-‐se porque o autor do delito errou, devendo, por isto, por
uma questão de justiça, pagar pelo seu erro. Não há qualquer preocupação com a finalidade
94 “É impossível negar que a concepção retributivista da pena tenha sido expressamente teorizada, não apenas por Hegel e Kant, mas, e antes mesmo, por Campanella, Selden, Leibniz e Genovest, bem como, e posteriormente, de maneira ainda mais tenaz, por uma grande série de filósofos, e, principalmente, de juristas. Basta recordarmos, entre os maiores expoentes, Pellegrino Rossi, Antonio Rosmini, Terenzio Mamiani, Enrico Pessina, Tancredi Canônico, Giuseppe Magiore, Giuseppe Betiole Vittorio Mathieu, na Itália, Ludwig, Heinrinch Jakob, Julius Friedrich Abegg, Albert Friedrich Berner e Karl Binding na Alemanha, o juiz vitoriano James Fitzjames Stephen na Inglaterra, e, mais recentemente, a orientação anticorrecional desenvolvida nestes últimos anos nos Estados Unidos sob o títulos de Justice Model, que agrega as orientações liberais de Morris, Hawkins e Fogel àquelas moralistas de Singer e Dershowitz baseadas na idéia de ‘pena merecida’, bem como e por derradeiro, aquelas alarmistas de van Haag e von Hirsch” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.238). 95 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.84. 96 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. Bauru-‐SP: EDPRO, 2003, p.174-‐175. 97 ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução: Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p.193. 98 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. Bauru-‐SP: EDPRO, 2003, p.176.
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preventiva ou útil da pena capital que lhe será aplicada, ainda que nem sequer exista mais a
sociedade.
Por seu turno, a tese sustentada por Hegel aproxima-‐se da concepção kantiana,
apenas na medida em que também objetiva uma retribuição99 com a aplicação da pena, sem
qualquer pretensão preventiva. Diverge, todavia, em seus fundamentos, porquanto a tese de Kant
é dotada de um caráter retributivo moral, ao passo que a teoria hegeliana está imbuída de um
substancioso conteúdo jurídico-‐retributivo.
Hegel está preocupado com a higidez da ordem jurídica. Para Hegel, o delito
constitui a negação do Direito. A pena, como reprimenda ao delito, constitui a sua negação, ou
seja, a pena é a negação da negação do Direito100. Em resumo, legitima-‐se a existência da pena,
pois ela é a afirmação do Direito. Seguindo este raciocínio, para Hegel o Direito é a manifestação
da vontade racional101 e a pena é a reafirmação desta vontade, sobrepujando a vontade irracional,
manifestada quando do delito102.
De acordo com filósofo alemão, ao aplicar a pena, o Estado honra o indivíduo,
considerando-‐o um ser racional, apto a receber aquilo que lhe é devido, como parte de seu direito
particular103. Seguindo esta linha de pensamento, conclui Hegel que os adeptos das teorias
preventivas, ao sustentar ideias que pretendem fins de intimidação e correção, tratam o indivíduo
como um animal perigoso, objetivando torná-‐lo inofensivo104.
Não se pode deixar de anotar certa identidade entre o pensamento de Günter
Jakobs e a tese sustentada por Hegel, no que concerne à legitimidade e fins da pena. Isso porque
99 Anote-‐se, ainda, que a tese segundo a qual a concepção de Hegel está pautada nesta retribuição, em que pese majoritária, não se encontra imune a críticas. Desta forma, Eugênio Pacelli de Oliveira salienta que, in verbis: “(...) pode-‐se afirmar que Hegel, ao contrário do que afirma a grande maioria dos penalistas brasileiros, não é um retributivista, ainda que se possa reconhecer nele um partidário de uma teoria absoluta da pena, no sentido de que, praticado um delito, deve-‐se-‐lhe seguir uma sanção.” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Processo e hermenêutica na tutela dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.29). 100 “La superación del delito es el castigo, pues según el concepto es la vulneración de la vulneración y según la existencia, el delito tiene una extensión determinada cualitativa y cuantitativa; por lo tanto, su negación, como existencia, tiene otra existencia” (HEGEL, G. W. F. Filosofia del derecho. Tradução: Angélica Mendoza de Montero. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1968, p.109). 101 HEGEL, G. W. F. Filosofia del derecho. Tradução: Angélica Mendoza de Montero. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1968, p.52. 102 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.85. 103 “Como ser racional, el delincuente es honrado con la pena, que es mantenida como continente de su derecho particular” (HEGEL, G. W. F. ob. cit., p.87). 104 “Este honor no llega a él si el concepto y la norma de su pena no se toman de su mismo acto y si es considerado el delincuente como un animal dañino al que habría que hacer inofensivo, o a los fines de la intimidación y de la corrección” (HEGEL, G. W. F. ob. cit., p.87).
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Hegel, como visto, defende a pena como uma forma de reafirmação do Direito, negado pelo
delito; Günther Jakobs, por sua vez, apega-‐se à ideia de afirmação da validade da norma105.
Com efeito, Jakobs advoga a ideia da pena servindo como confirmação da
configuração da sociedade. O jurista alemão reconhece que este resultado possui pontos de
contato com a tese de que a pena possui a missão preventiva de manter a norma como esquema
de orientação, pois aqueles que confiam na norma devem ter sua confiança confirmada106.
Imperioso destacar, porém, que, ao contrário de Hegel, em momento algum Jakobs sufraga um
entendimento retributivo; ao revés, manifesta-‐se de forma expressa em prol de uma concepção
preventiva, sustentando a prevenção geral positiva107, repudiando, ainda, as chamadas teorias
mistas ou teorias da união108.
Não há dúvida de que as teorias da retribuição moral (Kant) e da retribuição jurídica
(Hegel) são as teorias absolutas que gozam de maior prestígio na doutrina. Há, porém, outras
teorias que podem ser enquadradas nesta classificação. Desta forma, pode-‐se fazer menção à
teoria da retribuição divina, sustentada por Stahl. De acordo com esta doutrina, o Estado seria a
exteriorização terrena de uma ordem divina, e a pena, necessária à demonstração da
predominância do Direito, seria o meio pelo qual o Estado vence a vontade que faz nascer o delito
e sobrepôs à lei suprema109.
Há, por fim, ainda no que tange às teorias absolutas, a teoria da reparação,
assentada no pensamento de Köhler, para quem a dor da pena objetiva purificar e expiar a
105 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 3 ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p.463. 106 “El resultado alcanzado -‐la pena como confirmación de la configuración de la sociedad-‐ tiene puntos de estrecho contacto con una teoría reciente de acuerdo con la cual la pena tiene la misión preventiva de mantener la norma como esquema de orientación, en el sentido de que quienes confían en una norma deben ser confirmados en su confianza” (JAKOBS, Günther. Sobre la teoría de la pena. Tradução: Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1998, p.32). 107 “Se habla de prevención general positiva no intimidatoria, sino, como se ha dicho, confirmatoria-‐, es decir, de uma confirmación frente a todos” (JAKOBS, Günther. Sobre la teoría de la pena. Tradução: Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1998, p.32). Em sentido contrário, sustenta Eugênio Pacelli de Oliveira que, in verbis: “Günther Jakobs, geralmente reconhecido na doutrina brasileira como um partidário das finalidades preventivas positivas da pena, é, no ponto, tributário da filosofia de Hegel, conforme ele mesmo confessa. Afirma ele a concreta impossibilidade de demonstração de qualquer eficácia preventiva da pena, contentando-‐se em justificar a pena como confirmação da identidade normativa da sociedade, no âmbito de um sistema social no qual habitam e coexistem diversas expectativas individuais e coletivas, necessitando, portanto, de estabilização. E essa, a estabilização, seria alcançada pela pena.” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli: ob. cit., p.32). 108 JAKOBS, Günther. Ob. cit. p.12-‐15. 109 Esta a lição de Sebástian Soler, in verbis: “Para esta doctrina, el estado no es una creación estrictamente humana, sino la exteriorización terrenal de un orden querido por Dios. La pena aparece como el medio por el cual el estado vence a la voluntad que hizo nacer el delito y que se sobrepuso a la ley suprema. Es una necesidad ineludible para mostrar el predomínio del derecho.” (Derecho penal argentino. Vol II. Buenos Aires: TEA, 1992. p.373)
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vontade imoral que fez nascer o crime, de molde a destruir a verdadeira fonte do mal. Consoante
a doutrina de Soler, estas doutrinas não enxergam o mal do delito no fato exteriorizado, mas sim
na vontade determinada por motivos imorais. À vista disto, a pena é necessária, para levar, pelo
sofrimento, à moralidade, que é a vontade divina110.
Em que pese não se poder desconsiderar a imensa variedade de críticas às teorias
absolutas da pena, não se pode olvidar que elas possuem, como mérito, a consagração da ideia de
medição da pena (a pena como justa retribuição ao mal praticado), o que está intimamente ligado
à idéia de proporcionalidade entre o delito praticado e a sanção penal que lhe é respectiva111.
2.2.3. Teorias Relativas
2.2.3.1. Considerações iniciais
Não tardou a cair em descrédito a teoria absoluta. Dentre as inúmeras críticas
assacadas à teoria de natureza absoluta, em suas mais variadas vertentes, sobressai-‐se a alegada
incompatibilidade de seu fundamento de existência com os Estados contemporâneos. Enquanto
os Estados contemporâneos112 são, marcadamente, fundados em idéias de instrumentalidade113,
ou seja, de atendimento a uma finalidade, de busca de um objetivo, as teorias absolutas não
pretendem o alcance de qualquer objetivo específico. Como visto, a lógica que preside as teorias
absolutas é pautada na observância da pena como um fim em si mesmo. Sob um outro viés, as
teorias absolutas centralizam na intervenção penal todo o controle social, o que as tornam
incompatíveis com os novos paradigmas do Direito Penal moderno, orientado pela idéia de caráter
subsidiário da tutela penal.
110 “Teoría de la reparación.-‐ Dentro de la primera corriente, puede tomarse como ejemplo el pensamiento de Kohler, para quien el dolor que la pena representa hace expiar y purificar la voluntad inmoral que hizo nacer el crimen, de manera que destruye la verdadera fuente del mal. Estas doctrinas no ven el mal del delito en el hecho exterior, sino en la voluntad determinada por motivos inmorales. Por eso, la pena es una necesidad, para llevar por el sufrimiento, a la moralidad, que es voluntad divina (Kitz).” (SOLER, Sebástian. Derecho penal argentino. Vol II. Buenos Aires: TEA, 1992. p.373) 111 CORREA JUNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.131. 112 “Si el Derecho penal liberal permitió atribuir a la pena tanto uma función de prevención como de retribución, según se concibiese al servicio del hombre empírico o del hombre ideal, el Derecho penal del Estado social no podía sino conferir a la pena la función de prevención,” (MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria del delito en el Estado social y democratico de derecho. 2º.ed.Barcelona: Bosch, 1982, p.27). 113 QUEIROZ, Paulo. Ob. cit. p.85.
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As teorias que se opõem às absolutas são chamadas de relativas ou teorias da
prevenção, já que identificam na pena uma finalidade, consistente na prevenção de novos crimes.
Estas teorias se dividem em teorias da prevenção geral e da prevenção especial; por seu turno, as
teorias da prevenção geral se dividem em prevenção geral negativa e prevenção geral positiva.
Pode-‐se fazer menção a outras vertentes das teorias da prevenção. A título
exemplificativo, há a vertente contratualista da prevenção, cuja raiz remonta à obra de Rousseau e
assenta-‐se na ideia de que a ordem social é um direito sagrado que serve de base aos demais
direitos. Sob esta perspectiva, a pena seria aplicada ao delinquente como uma forma de
manutenção deste pacto social, afrontado com a conduta criminosa114.
Fala-‐se, ainda, em prevenção primária, secundária ou terciária. Desta forma, a
prevenção primária pauta-‐se pela atuação na raiz do conflito criminal, objetivando impedi-‐lo de se
manifestar115. Como manifestações da prevenção primária podem ser mencionadas a educação,
família, casa, trabalho, e a qualidade de vida. A prevenção secundária, por sua vez, ocorre em um
segundo momento, quando o conflito criminal é gerado. Por fim, a prevenção terciária destina-‐se
ao recluso, pretendendo evitar a reincidência116.
A prevenção primária não ocorre, portanto, mediante a imposição da pena, pois
atua mesmo antes da prática delitiva. Em vista desta peculiaridade, deve-‐se endossar o coro
daqueles que sustentam a tese de que este tipo de prevenção é muito mais eficiente do que a
prevenção secundária e terceiária, as quais pressupõem a aplicação e exceução da pena. Com
efeito, sendo certo que a prevenção primária atua, como dito, na fase anterior à prática delitiva,
impedindo-‐a, este tipo de prevenção é muito mais eficiente na tarefa de proteção aos bens
jurídicos tutelados pelo Direito Penal117.
2.2.3.2. Teoria da prevenção geral negativa
114 SOLER, Sebástian. Derecho penal argentino. Vol II. Buenos Aires: TEA, 1992. p.377-‐378. 115 MOLINA, Antônio García-‐Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Federais. Tradução: Luiz Flávio Gomes, Wellbin Morote Garcia, Davi Tangerino. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.365. 116 Idem, p.365. 117 Neste sentido, afirma Érika Mendes de Carvalho, in verbis: “É sobretudo através do que se constuma denominar ‘prevenção primária’ – que se materializa através da norma – e não mediante a chamada ‘prevenção secundária’ – que se concretiza com a pena – que o Direito Penal cumpre sua função de proteção dos bens jurídicos através da prevenção.” (CARVALHO, Érika Mendes. Punibilidade e direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.343)
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A teoria da prevenção geral negativa pretende, mediante a cominação da pena, em
abstrato, e posterior aplicação e execução desta pena, coibir a reiteração dos delitos por parte da
comunidade. Diz-‐se geral porque esta prevenção é destinada a toda a coletividade, e não apenas
ao autor do delito. Diz-‐se negativa porque sua pretensão adstringe-‐se a coibir a atuação dos
outros membros da comunidade na prática criminosa, sem maiores preocupações relativas à
propagação de outros valores.
Dentre os adeptos da teoria da prevenção geral negativa, podem ser mencionados
Giandomenico Romagnosi118, Francesco Maria Pagano119 e Arthur Schopenhauer120. Contudo, o
maior corifeu da teoria foi, sem dúvida, Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, considerado
fundador da moderna ciência do Direito Penal na Alemanha121. De acordo com Feuerbach, a causa
dos delitos reside na sensualidade122, pois é a busca do prazer que impulsiona o homem à
atividade delituosa. A pena deve, então, funcionar como um contra-‐impulso a este impulso
criminoso oriundo da sensualidade humana123.
A pena – seja quando da sua previsão em abstrato, seja quando da posterior
aplicação e execução – deve servir como uma ameaça aos membros do grupo social. Uma vez
prevista em abstrato, o Estado estaria a dizer aos cidadãos: “é isto que lhe acontecerá, caso venha 118 No que diz respeito à obra do italiano Romagnosi, sua teoria é contemporânea à de Feuerbach. A idéia central de sua tese é a de que se fosse possível ter a certeza moral de que um segundo delito não sobreviria ao primeiro, a sociedade não teria direito a castigá-‐lo. A principal crítica a esta teoria – denominada teoria da defesa indireta – reside no fato de que alcançar esta certeza moral não é possível. (SOLER, Sebástian. Derecho penal argentino. Vol II. Buenos Aires: TEA, 1992. p.380). 119 Sobre a obra de Pagano, afirma Carlo Fiore que: “a exigência de um estudo analítico do princípio e da categoria do direito e do processo penal é evidente na obra de Mario Pagano (1748-‐1799)”. Tradução livre de: “L ´esigenza di uno studio analítico dei principi e delle categorie del diritto e della procedura penale è evidente anche nell´opera di Mario Pagano (1748-‐1799)”. (FIORE, Carlo. Diritto penale: parte generale. – vol. I. Torino: UTET, 2000, p.33). 120 Esta a doutrina de Luigi Ferrajoli, que ainda faz alusão às teorias de Carmignani e Carrara, cuja influência na teoria da prevenção geral negativa seria marcante (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.238). Ao se debruçar sobre a teoria da pena da obra de Carrara, Cezar Roberto Bitencourt a identifica com as lições de Hegel, qualificando-‐a como tese retribucionista (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1, 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.88). 121 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.89. 122 “Todas las contravenciones tienen su causa psicológica em la sensualidad, en la medida en que la concupiscencia del hombre es la que lo impulsa, por placer, a cometer la acción.” (FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de derecho penal común vigente em Alemania. Traducción al castellano de la 14º. edición alemana: Eugênio R. Zaffaroni e Irmã Hagemeier. Buenos Aires, Hamurabi S.R.I., 1989, p.60). 123 “Este impulso sensual puede ser cancelado a condición de que cada uno sepa que a su hecho há de seguir, ineludiblemente, um mal que será mayor que el disgusto emergente de la insatisfacción de su impulso al hecho.” (FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de derecho penal común vigente em Alemania. Traducción al castellano de la 14º. edición alemana: Eugênio R. Zaffaroni e Irmã Hagemeier. Buenos Aires, Hamurabi S.R.I., 1989, p.60).
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a delinquir”. Posteriormente, uma vez realizada a conduta delituosa, a aplicação da pena prevista
na legislação seria uma forma de o Estado dizer aos demais cidadãos: “caso venha a delinqüir,
ocorrerá algo similar”. A pena funciona, de acordo com a doutrina de Feuerbach, como uma forma
de ameaça do Estado, levada a cabo por meio da lei, dirigida aos cidadãos. Por esta razão, a teoria
de Feuerbach é também conhecida como teoria da coação psicológica coletiva.
Naturalmente, esta teoria não passou imune a críticas. Dentre as críticas
formuladas à teoria da prevenção geral negativa pode-‐se apontar, de antemão, o fato de que ela
parece partir do pressuposto de que os destinatários da lei penal – isto é, os membros da
coletividade – a conhecem. É certo que os ordenamentos jurídicos, em geral, acolhem a máxima
de que ninguém se escusa do conhecimento da lei. Esta, sem dúvida, é uma opção política
tendente a obstar abusos justificados com a alegação de desconhecimento.
A despeito desta constatação, não se pode deixar de salientar que a presunção de
conhecimento das leis por parte dos cidadãos constitui uma das maiores – quiçá a maior – falácia
do ordenamento jurídico. O fato é que a imensa maioria da população – destinatária da lei penal –
desconhece seu teor, quando não a sua existência. Mais que isto, a sanha legiferante em matéria
penal parece não conhecer limites, sobretudo na nossa realidade, o que torna a legislação penal
extravagante um desmedido amontoado de incriminações, por vezes esdrúxulas, tornando
impossível o conhecimento irrestrito da lei penal até mesmo pelos operadores do Direito. Alheia a
esta realidade, a teoria da prevenção geral negativa sustenta-‐se na ideia de que a existência da lei,
e sua posterior aplicação, poderia funcionar como contra-‐impulso à pretensão criminosa dos
membros da coletividade.
Além disto, relevante salientar que a teoria em comento não estabelece limites ao
poder de punir do Estado. Em momento algum os adeptos desta corrente de pensamento
abordam a questão atinente aos limites que deveriam ser obedecidos pelo Estado na cominação
de sanções de cunho penal. Esta postura, de busca da coação psicológica coletiva como forma de
obstar a prática de novos delitos, sem que, a par disto, estabeleçam-‐se os limites em que a
intervenção punitiva se legitima, pode conduzir à legitimação de um punitivismo autoritário124,
porquanto exacerbado125.
124 Ao abordar este autoritarismo a que pode convergir a teoria preventiva, ressalta Santiago Mir Puig que: “La pena se convirtió a veces em um arma del Estado esgrimada contra la sociedad, trocándose la eficacia de la pena en terror penal. Este es el peligro que encierra um Derecho penal concebido para se reficaz. Como toda arma peligrosa, la pena preventiva ha de someterse a um control riguroso.” E, conferindo ênfase ao princípio da proporcionalidade como
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2.2.3.3. Teoria da prevenção geral positiva
Como já mencionado, a teoria da prevenção geral, que se dirige à coletividade,
também possui uma vertente positiva. Se para sua perspectiva negativa a teoria da prevenção
geral funda-‐se na ideia de intimidação, para a sua perspectiva positiva, a prevenção geral
preocupa-‐se, conforme salienta Roxin, com a procura da conservação e reforço da confiança na
firmeza e poder de execução do ordenamento jurídico126. Sob esta perspectiva, a pena possuiria a
missão de demonstrar a higidez e inviolabilidade do ordenamento jurídico, diante da comunidade
jurídica, reforçando, assim, a confiança jurídica do povo. Com isto, há uma ênfase em um
significado maior do que apenas o efeito de intimidação, como pretendido pela teoria da
prevenção geral negativa127.
Ainda na linha de pensamento sustentada por Roxin, a teoria da prevenção geral
positiva possui três fins e efeitos distintos, muito embora relacionados. O primeiro é o efeito
sócio-‐pedagógico, de exercício na confiança do Direito, promovido pela justiça penal; como um
segundo efeito, há a confiança surgida no cidadão quando percebe o Direito efetivamente
limite ao poder de punir, conclui que: “Un tal Derecho penal debe, pues, orientar la función preventiva de la pena com arreglo a los principios de exclusiva protección de bienes jurídicos de proporcionalidad y de culpabilidad”. (Funcion de la pena y teoria del delito en el Estado social y democratico de derecho. 2º.ed.Barcelona: Bosch, 1982, p.29-‐30). 125 “Do mesmo modo que as doutrinas retributivistas, que respondem ‘quia peccatum’ ou ‘quia prohibitum’ à questão do ‘porque punir?’, trocando-‐a por aquela do ‘quando punir?’, também as doutrinas da prevenção geral negativa, respondendo ne peccetur à mesma pergunta, elidem a questão prejudicial, e totalmente externa, do ‘porque proibir?’. Mas, enquanto as doutrinas retributivistas podem satisfazer-‐se com as respostas ‘quia peccatum’ ou ‘quia prohibitum’, vez que confundem direito e moral, associando um desvalor ético-‐jurídico intrínseco ao peccatum e ao prohibitum, as doutrinas utilitaristas da prevenção geral deixam o problema simplesmente sem resposta, não sendo capazes, nem mesmo se integradas por uma doutrina acerca dos bens jurídicos protegidos pelas proibições, de pesar e delimitar os custos das punições, heterogêneos em relação a estas” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.259). 126 “El aspecto positivo de la prevención general ‘comúnmente se busca en la conservación y el refuerzo de la confianza en la firmeza y poder de ejecución del ordenamiento jurídico.’” (ROXIN, Claus. Ob. cit., p.91). Anote-‐se, ainda, que, sem descurar desta idéia de que a prevenção geral positiva pretende a confirmação da vigência da norma, destaca Santiago Mir Puig que esta teoria objetiva superar a dicotomia prevenção-‐retribuição. Em suas palavras: “Esta concepción pretende superar las antinomias entre las exigencias de prevención y retribución, convirtiendo estas últtimas en necesarias para la propia prevención. Así, la confirmación de la vigencia de la norma requiere, según la nueva doctrina de la prevención general, que se imponga una pena proporcionada cuando se infrinjan las normas jurídicas fundamentales” (Función fundamentadora y función limitadora de la prevención general positiva. In: BUSTOS RAMIRES, Juan (coord.). Prevención e teoria de la pena. Santiago de Chile: Editorial jurídica conesur, 1995, p.49-‐58). 127 “Conforme a ello, la pena tiene la misión de ‘demostrar la inviolabilidad del ordenamiento jurídico ante la comunidad jurídica y así reforzar la confianza jurídica del pueblo’. Actualmente se le suele atribuira este punto de vista un mayor significado que el mero efecto intimidatorio.” (ROXIN, Claus. Ob. cit., p.91).
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aplicado; por fim, como terceiro e último efeito, haveria a pacificação social, que ocorre quando a
consciência jurídica geral se tranquiliza em virtude da aplicação da sanção128.
Aqueles que se filiam a esta linha de pensamento, no dizer de Jakobs, encaram a
existência da pena pública como idônea a caracterizar o delito como tal, e, desta forma, promover
a confirmação da configuração normativa concreta da sociedade129.
A teoria da prevenção geral positiva, cujo representante mais expressivo é o
próprio Jakobs, encontra suas bases de sustentação na teoria dos sistemas de Niklas Luhman e
apóia-‐se na teoria de funcionalidade do Direito Penal (funcionalismo sistêmico) para o sistema
social130.
Conforme salienta Alessandro Baratta – para quem, esta teoria também é
conhecida como teoria da prevenção-‐integração, esse novo enfoque utiliza a concepção
luhmanniana do Direito como instrumento de estabilização social, de orientação das ações e de
institucionalização das expectativas131. Prossegue Baratta ressaltando que a teoria em apreço
centra-‐se no conceito luhmanniano sobre a confiança institucional, entendida como forma de
integração social, que, nos sistemas complexos, substitui os mecanismos complexos de confiança
recíproca entre os indivíduos existentes em uma comunidade de organização elementar132.
A rigor, é necessário esclarecer, na linha de pensamento de Juarez Cirino dos
Santos133, que há, ao menos, duas posições principais sobre a prevenção geral positiva. Roxin, por
exemplo, assumiria uma postura relativa em relação a esta teoria, encarando-‐a como uma função
em meio a outras funções atribuídas à sanção penal, cuja legitimação consistiria na tutela
128 “En realidad, en la prevención general positiva se pueden distinguir a su vez tres fines y efectos distintos, si bien imbricados entre sí: el efecto de aprendizaje, motivado socialpedagógicamente; el "ejercicio en la confianza del Derecho que se origina en la población por la actividad de la justicia penal; el efecto de confianza que surge cuando el ciudadano ve que el Derecho se aplica; y, finalmente, el efecto de pacificación, que se produce cuando la conciencia jurídica general se tranquiliza, en virtud de la sanción, sobre el quebrantamiento de la ley y considera solucionado el conflicto con el autor” (ROXIN, Claus. Ob. cit. p.91-‐92). 129 “La pena pública existe para caracterizar el delito como delito, lo que significa lo siguiente: como confirmación de la configuración normativa concreta de la sociedad” (In: Sobre la teoría de la pena. Tradução: Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1998, p.15). 130 QUEIROZ, Paulo. Ob. cit. p.88.. 131 “Este nuevo enfoque utiliza la concepción de Luhmann del derecho como instrumento de estabilización social, de orientación de las acciones y de institucionalización de las expectativas (N. Luhmann, 1964, 54 y ss.; 1981, 1983)”. (In: Integración-‐Prevención: una "nueva" fundamentación de la pena dentro de la teoría sistémica», en Revista Doctrina Penal, año 8, nº 29, 1985, Buenos Aires, Argentina, pp. 9-‐26). 132 Idem.. 133 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 3 ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, 468.
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subsidiária de bens jurídicos134. Por seu turno, Jakobs sufraga uma tese que absolutiza a teoria da
prevenção geral positiva, concebida como teoria totalizadora da sanção penal135.
Dentre as inúmeras críticas formuladas à teoria sustentada por Jakobs, no que
concerne à função da pena, merece destaque a que identifica referida linha de pensamento como
uma subjugação do homem ao sistema. Destarte, o sistema que deveria funcionar como
instrumento para satisfação de interesses do homem passa ao centro das atenções, pois a
pretensão primordial seria conferir estabilidade ao sistema, relegando a segundo plano finalidades
como a proteção de bens jurídicos ou a pacificação social, mediante a solução de conflitos. Com
isto, legitima-‐se uma intervenção penal que não está focada no ser humano, como é da tradição
inaugurada desde os tempos do movimento iluminista136.
Partidário desta crítica, Baratta afirma que o funcionalismo sistêmico conduz à
alienação da subjetividade e centralidade do homem em benefício do sistema, tornando o homem
objeto de abstrações normativas e instrumento de funções sociais137. Baratta acusa a teoria de
Jakobs de ser uma legitimação tecnocrática do funcionamento desigual do sistema punitivo138.
Em adendo às críticas já mencionadas, cabe trazer a lume o pensamento de
Ferrajoli, para quem a doutrina da prevenção geral positiva, ao reduzir o indivíduo a um
subsistema físico-‐psíquico subordinado funcionalmente às exigências do sistema social geral
solidariza-‐se com “modelos de direito penal máximo e limitado, programaticamente indiferentes à
tutela dos direitos da pessoa”139.
2.2.3.4. Teoria da prevenção especial
134 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Ob. cit., p.468. 135 Idem, p.468. 136 “La filosofía política de la Ilustración, gracias a la obra Dei delitti e delle pene (1764), brillantemente aplicada al derecho penal, contempla la justificación y el efecto de la pena únicamente en sus consecuencias útiles para la persona. La pena está al servicio de la finalidad humana” (NAUCKE Wolfgang; HASSEMER, Winfried; LUDERSSEN, Klaus. Principales problemas de la prevención general. Traducción por el Dr. Gustavo Eduardo Aboso y la Prof. Tea Low. Montevideo-‐Buenos Aires: B de F, 2004, p.19). 137 In: Integración-‐Prevención: una "nueva" fundamentación de la pena dentro de la teoría sistêmica, en Revista Doctrina Penal, año 8, nº 29, 1985, Buenos Aires, Argentina, pp. 9-‐26. 138 Idem. 139 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.256.
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As teorias que fundamentam a existência da sanção penal na prevenção especial
desenvolveram-‐se conjuntamente com o pensamento penal da segunda metade do século XIX e
do século XX140. Em oposição às teorias da prevenção geral, cujo foco se encontra na coletividade,
a teoria da prevenção especial objetiva prevenir a prática de novos crimes por parte do próprio
criminoso. Com isto, conclui-‐se que a pretensão de referida teoria é evitar a reincidência. Para
tanto, os adeptos da mencionada corrente de pensamento fundamentam sua teoria nas ideias de
neutralização e reeducação do criminoso.
Conforme salienta Paulo Queiroz, inúmeras correntes de pensamento filiaram-‐se à
ideia de prevenção especial, tais como o correcionalismo espanhol, de Dorado Monteiro e
Concepción Arenal, o positivismo italiano de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo, a
moderna escola alemã, cujo representante mais significativo foi Franz Von Liszt e, de forma mais
recente, o movimento de defesa social, de Filippo Gramatica e a, assim chamada, nova defesa
social, de Marc Ancel.
Neste cenário, avulta de importância a obra de Von Liszt141, razão pela qual se
costuma referir que o Projeto Alternativo ao Código Penal Alemão, de 1966, representou a
materialização dos postulados deste penalista, no que tange à consagração da teoria da prevenção
especial142.
Esta prevenção especial, de acordo com os seus defensores, dever-‐se-‐ia se fazer
sentir em dois momentos distintos: primeiro, na aplicação da pena; posteriormente, quando da
sua execução. Desta forma, tanto o aplicador da pena quanto aqueles responsáveis pelo
140 Neste sentido, Luigi Ferrajoli, para quem: “Contrariamente às teorias contratualistas e jusnaturalistas da época iluminista, que expressavam o apelo liberal e revolucionário da tutela do indivíduo contra o despotismo do velho Estado absolutista, referidas doutrinas absolutistas refletem as vocações autoritárias do novo e então consolidado Estado liberal e aquelas totalitárias que emergerão da crise deste. Assim, parece-‐me um erro de perspectiva a opinião de Michel Foucault segundo a qual a transformação em sentido correcional e disciplinar da cultura penalista deveria ser colocada no início da Idade Moderna.” (FERRAJOLI, Luigi. Ob. cit. P.246). 141 “Dos caracteres principales forman, pues, el concepto de la pena: 1. es una lesión sufrida por el autor en sus intereses juridicamente protegidos, una intromisión en la vida, la libertad, la propiedad o el honor del delincuente; y 2. es al mismo tiempo una reprobación tangible de lacto y del autor. En el primer carácter reside el efecto preventivo-‐especial de la pena; en el segundo, el efecto preventivo-‐gerneral” (LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. Florida: Valletta Ediciones, 2007, p.544.-‐545). 142 Neste sentido, assevera Roxin que: “También el ‘Proyecto Alternativo de Código Penal’ (= PA), publicado en 1966 por penalistas de Alemania Occidental (entre los que se encuentra el autor de este libro) y que ha influido notablemente en la reforma del Derecho penal de la República Federal (sobre esto § 4, nm. 20 ss.), le débe mucho y de forma muy especial a la teoría preventivoespecial, y con ello particularmente a Franz v. Liszt y a las opiniones de la defensa social” (ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997).
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acompanhamento da execução da pena cominada deveriam, constantemente, pautar-‐se por
critérios de prevenção especial, isto é, por critérios que conduzissem à ideia de que o apenado não
voltaria a delinqüir.
Tal como ocorre em relação às teorias da prevenção geral, também aqui, na
prevenção especial, costuma-‐se falar em uma dupla vertente, isto é, positiva e negativa. De
acordo com o seu viés negativo, a prevenção especial objetiva neutralizar o criminoso, impedindo-‐
o de praticar crimes durante a execução da pena. Exemplo máxime desta perspectiva é a própria
pena privativa de liberdade, cuja lógica de fundamentação encontra-‐se, dentre outras coisas, na
ideia de que, no curso do cumprimento da pena, o indivíduo, alijado de seu meio social, não
poderia delinqüir.
Saliente-‐se, desde já, que a principal crítica que recai sobre esta ideia de
inocuização do criminoso reside no fato de que a aplicação da pena não possui o condão de
impedir a prática de crimes. Isto porque, mesmo nos limites da prisão – para adotar como
paradigma a pena privativa de liberdade – os crimes continuariam ocorrendo, havendo, apenas, o
deslocamento da prática criminosa, de fora para dentro dos muros das penitenciárias.
Em sua vertente positiva, a ideia da prevenção especial fundamenta-‐se na intenção
de promover a reeducação do criminoso, o que se convencionou chamar de ressocialização143. A
rigor, não há consenso em torno da identidade de significados destas expressões, mas ambas
possuem o mesmo centro axiológico, vale dizer, pretendem promover a reabilitação do criminoso,
levando-‐o a desistir das práticas relacionadas a qualquer atividade criminosa.
Sem dúvida, este discurso ressocializador imperou magnânimo no centro dos
debates relacionados à legitimação da pena, no decorrer do século XX. Como cediço, a
ressocialização é de difícil obtenção prática, sobretudo quando se trata das penas privativas de
liberdade, cuja lógica é educar para a liberdade retirando a liberdade. A despeito de sua
inobservância prática, referido discurso ressocializador, como dito, dominou os debates relativos
às teorias da pena. No caso do Brasil, este discurso fundamentou, por exemplo, a reforma do
143 Há resistência até mesmo à utilização desta expressão, porquanto, no mais das vezes, o criminoso não foi submetido a processos de socialização primária (escola, família, comunidade, etc); como se poderia ressocializar quem não foi socializado? Neste sentido, adverte Jackson C. Azevedo que: “(...) a população carcerária provém, na maior parte, de zonas socialmente marginalizadas, caracterizadas pro problemas já na socialização primária da idade pré-‐escolar.” E prossegue asseverando que: “O cárcere deve ser visto como um continuum que compreende família, escola, assistência social, organização cultural do tempo livre, preparação profissional, universidade e instrução de adultos” (AZEVEDO, Jackson C., Reforma e “contra” reforma penal no Brasil. Florianópolis: OAB/SC, 1999, p.48-‐49).
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Código Penal, ocorrida em 1984144, e também o posterior incremento do sistema de penas
alternativas, oriundo do advento da Lei 9.714/98.
O acentuado descompasso entre o discurso ressocializador e a sua inoperância em
concreto conduziu, porém, à derrocada do prestígio da teoria da prevenção especial positiva145.
Neste contexto, é paradigmática a publicação da obra de Robert Martinson146
(“What works? Questions and answers about reform prison”), em 1974. O trabalho de Martinson
estava baseado em um relatório em que foram analisados projetos de reabilitação como
instrumento destinado a evitar a reincidência, publicados entre 1945 e 1967147. Os resultados
deste trabalho apontavam para a constatação de que a ideia de reabilitação fracassara, porquanto
os índices de reincidência não alcançaram a diminuição pretendida. À vista disto, conclui o autor
que, salvo pequenas e isoladas exceções, os esforços destinados à reabilitação informados não
alcançaram o pretendido efeito sobre a reincidência148.
Desta forma, a falência dos sistemas penitenciários, viga de sustentação do Direito
Penal moderno, conduziu, em certa medida, ao ocaso da teoria da prevenção especial, no que
concerne ao ideal de ressocialização149. Neste contexto, importantes as ponderações formuladas
por Paul Wolf, no sentido de que as discussões sobre o sentido da pena já não se consideram
tanto como um problema teórico e filosófico-‐argumentativo, mas se dirige expressamente à práxis
do Direito Penal. Mais que isto, afirma referido autor que, por meio desta práxis, é que se
demonstra a racionalidade, sua realidade e poder, sua capacidade de fundamentação real. Com
144 AZEVEDO, Jackson, C. ob. cit., p.47. 145 No mesmo sentido, afirmam Francisco Muñoz Conde e Winfried Hassemer: “Em todo caso, é evidente que sobre o conceito de ressocialização gravita pesadamente o fato de não poder aportar resultados mensuráveis sobre o efeito ressocializador das penas privativas de liberdade, e os que se aportam demonstram precisamente o fracasso da mesma” (MUÑOZ CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Tradução: Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.186). 146 “As chamadas tendências re (reeducadoras, ressocializadoras, reeducativas) por sua vez, que, durante sete décadas do século XX, constituíram o ideal dominante de importantes autores do direito penal, assistiram a uma derrocada quando os trabalhos de Martinson concluíram que nenhuma das atividades levadas a cabo, com tais propósitos, funcionava. Os projetos, ao final, não apresentavam resultados distintos daqueles que os estabelecimentos tradicionais desenvolviam e que não atendiam a qualquer orientação específica” (MINAHIM, Maria Auxiliadora, prefácio de: BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, XXXIV). 147 ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução: Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p.761-‐762. 148 “With few and isolated exceptions, the rehabilitative efforts that have been reported so far have had no appreciable effect on recidivism.” (MARTINSON, Robert. What works? Questions and answers about reform prison. The PublicInterest 35 (Primavera). 1974, p.22-‐54). 149 ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução: Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, p.761.
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base nisto, conclui que a efetividade da pena, a respeito da realização do seu objetivo, converter-‐
se-‐á no critério de fundamentação e justificação da pena150.
Demais disso, a utilização desmedida da ideia de prevenção especial, por parte dos
regimes autoritários e totalitários, abalou o prestígio de que gozava a doutrina. Desta forma, de
regimes ditatoriais ao nazismo, em sua essência mais refinada, passando pelos regimes do
socialismo real, a ideia de recuperação do criminoso sempre se fez presente, em maior ou menor
medida151. Neste aspecto, o correcionalismo atende aos anseios do poder político hegemônico;
conduta desviante é aquela que atenta contra a organização do poder152 e o correcionalismo
equipara-‐se a uma formação ideológica consentânea aos valores sustentados pelo regime.
150 “Esta nueva dimensión consiste en que la discusión sobre las teorías de la pena ya no se considera tanto como un problema teórico y filosófico-‐argumentativo sino que se dirige expresamente a la praxis del derecho penal. La praxis se convierteasí en la prueba de la teoría. A través de la praxis debe ser demostrada la postulada racionalidad de la pena, su verdad, es decir, su realidad y poder, su capacidad de fundamentación real. La efectividad de la pena respecto a la realización del objetivo, se convertirá en el criterio de fundamentación y justificación de la pena” (WOLF, Paul. Esplendor e miserias de lãs teorias preventivas de la pena. In: BUSTOS RAMIRES, Juan (coord.). Prevención e teoria de la pena. Santiago de Chile: Editorial jurídica conesur, 1995, p.62). 151 “Em perfeita coerência com as culturas autoritárias que as orientam, as doutrinas correcionalistas foram as prediletas de todos os sistemas políticos totalitários, em que justificaram modelos e práticas penais ilimitadamente repressivas, paternalistas, persuasivas, de aculturação coagida e de violenta manipulação da personalidade do condenado. Pensemos a doutrina nazista do ‘tipo normativo do autor’, orientada para uma total subjetivização dos pressupostos da pena identificados com a ‘infidelidade’ ao Estado e com o correlato repúdio de qualquer relevância, mais do que ‘sintomatológica’, da objetividade da conduta. Pensemos, também, aos manicômios criminais soviéticos e às escolas de reeducação da China popular ” (FERRAJOLI, Luigi. Ob. cit. p.255). 152 Como exemplo patente disto, pode-‐se fazer alusão à lei sobre os “estranhos à comunidade” (Gemeinsschaftsfremde). Dissertando sobre o tema, Munõz Conde salienta que: “Com a nova lei sobre ‘Gemeinsschaftsfremde’, tratava-‐se, pois, de assegurar em momentos de crise, o controle total, atribuindo à Polícia, e, em definitivo, às SS, um poder omnímodo que podia ser utilizado em qualquer momento contra os inimigos interiores do regime, fossem esses do caráter que fossem, inimigos políticos, sociais ou de raça” (MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo: estudos sobre o direito penal no nacional-‐socialismo. Tradução: Paulo César Busato, 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.84-‐85). Por seu turno, ao discorrer sobre a influência desta concepção nos regimes do socialismo real, afirma Ferrajoli que: “Embora se deva a KARL MARX o ponto de partida de uma doutrina penal liberal bem como as críticas mais radicais à ideologia correcionalista de tipo cristão-‐burguês, uma doutrina explicitamente antigarantista da prevenção especial foi elaborada, como já vimos, pelo mais ilustres dos juristas marxistas deste século, EVGENIJ PASUKANIS, o qual tornou-‐se vítima das bases teóricas dos tratamentos terapêuticos e eliminatórios que ele próprio ofertou em alternativa ao formalismo penal burguês sob a forma de medidas de defesa social sujeitas a meras ‘regras técnico-‐sociais’” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.255). Por seu turno, o próprio E. B. PACHUKANIS, mencionado por FERRAJOLI , demonstra esta faceta do Direito Penal soviético, in verbis: “A Comissão do Povo para a Justiça da URSS publicou, a partir de 1919, princípios norteadores do Direito Penal nos quais o princípio da culpabilidade como fundamento da pena é repelido e nos quais a própria pena é caracterizada não como a reparação de uma falta mas unicamente como uma medida de defesa. O Código Penal da URSS, de 1922, prescinde igualmente do conceito de culpabilidade. Por fim, ‘os princípios fundamentais da legislação penal da União Soviética’ excluem totalmente a denominação ‘pena’ para substituí-‐la pela a seguinte denominação: ‘medidas judiciário-‐corretivas de defesa social’”. (PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução: Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p.133).
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Todavia, as críticas à teoria da prevenção especial, mormente de cariz positiva, não
se adstringem à sua inoperância prática. Dentre as críticas lançadas, destacam-‐se aquelas que
apontam o caráter maniqueísta da doutrina, que qualificaria as pessoas em boas ou más, de
acordo com a incidência em algum tipo de prática criminosa. Assim, a ideia de ressocialização seria
uma forma perversa de alterar a personalidade daquele que cumpre pena, incutindo-‐lhe, de forma
autoritária, uma formação que lhe tolheria seu direito à autodeterminação.
Exemplo marcante desta postura é a obra de Cesare Lombroso, médico italiano
representante da Escola Positiva do Direito Penal, que, contrapondo-‐se à sua antecessora, a
Clássica, não reconhece o livre-‐arbítrio do indivíduo, na prática de seus atos. A obra de Lombroso,
e a influência por ela exercida, foram apreciadas com minúcia por Stephen Jay Gould153, para
quem as teses do italiano não se resumiram a uma vaga afirmação do caráter hereditário do
crime, o que era bastante comum na época em que viveu. As ideias de Lombroso, ao revés,
constituíram uma teoria evolucionista específica, baseada em dados antropométricos.
Para Lombroso, o criminoso é um tipo atávico, do ponto de vista da evolução, que
existe entre nós. Nestes indivíduos, são desenvolvidos os germes que jazem em estado letárgico e
que remontam a nossos ancestrais. Em decorrência destas características, ou seja, à sua
constituição inata, estes indivíduos são levados a se comportar como um macaco ou um selvagem,
mas estes comportamentos são tidos como criminosos pela nossa sociedade. Afirma, ainda,
Lombroso que este atavismo que o criminoso nato porta é físico e mental, mas são os sinais físicos
– estigmas, para o médico italiano – que nos conduzem ao reconhecimento deste criminoso nato.
Conclui o autor italiano que a conduta criminosa também pode surgir nos “homens normais”, mas
a anatomia identifica-‐se com o destino, o que equivale a dizer que o criminoso nato não pode fugir
dessa mancha hereditária.
A ideia de ressocialização remonta, em certa medida, a este postulado que já se
encontra presente em Lombroso, consistente na tentativa de “corrigir” o criminoso. A ideia que
fundamenta esta postura, radicada na criminologia de base positivista, refere-‐se a uma concepção
de pessoas boas e más; a ressocialização funcionaria como uma forma de tornar pessoas más em
153 Cf. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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pessoas boas. Assentado nestas premissas, questiona-‐se Roxin se deve-‐se permitir ao Estado
educar e tratar os cidadãos adultos154.
Não se pode deixar de anotar que os valores que fundamentam o Estado
Democrático de Direito estão em íntima relação com as ideias de pluralidade e respeito à
diferença155. O Estado deve velar pela prevenção da prática de crimes, na medida em que
constituem afronta aos bens jurídicos mais relevante da organização social. Todavia, não se pode
permitir ao Estado incutir nos indivíduos uma determinada formação, de maneira impositiva, sem
que se permita o direito a ser diferente.
A rigor, ainda que se possa partir da premissa de que existam pessoas boas e más –
o que, de per si, já é bastante questionável – o Estado deve reconhecer a todo cidadão o direito de
ser mal, conquanto esta maldade não constitua qualquer tipo de lesão a bem jurídico alheio. Para
que possamos nos valer de um exemplo bastante simplório, se algum cidadão deseja de forma
veemente o mal a alguém não poderá ser responsabilizado pelo Estado, de qualquer forma, se
este “desejar o mal” não se materializa em uma conduta externa (cogitatio poenam nemo patitur).
Neste passo, a ideia de ressocialização, quando descamba da pretensão de tutela
de bens jurídicos para correção de comportamentos, mediante formação e divulgação de valores,
incorre no equívoco de ceifar a liberdade individual e a capacidade de autodeterminação do
cidadão. Ao Estado, é dado proteger bens jurídicos, mas não se imiscuir na maneira de vida das
pessoas, sob pena de consagrar-‐se um sistema totalitário, em que o indivíduo é subjugado à
coletividade, por completo.
As doutrinas pautadas na ressocialização, por vezes, legitimaram a adoção de
políticas de tratamento que, em última instância, negam o indivíduo156 em suas peculiaridades,
consagrando, assim, a, já referida, sociedade da disciplina, a que alude Michel Foucault.
154 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.88. 155 Ao discorrer sobre os princípios da liberdade e da tolerância, pontua Alice Bianchini que: “Exalta-‐se, por meio deste princípio, a preocupação com o exercício da máxima liberdade individual não comprometedora da liberdade alheia. Refere-‐se, portanto, à máxima tolerância em relação a condutas que exprimam o modo de ser, a consciência interna, os atos privados do indivíduo – a peculiar maneira de levar a vida –, que nenhum malefício causam à sociedade” (Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: RT, 2002, p.31). 156 Sobre o tema, afirma Salo de Carvalho: “Criam-‐se regras universais de boa conduta carcerária, representadas pelos princípios da correção (a recuperação dos condenados é o objetivo da pena); da classificação (os detentos devem ser classificados e isolados conforme a gravidade de seu ato); da modulação das penas (a pena pode ser modificada de acordo com os resultados obtidos); do trabalho como obrigação e direito (a laborterapia é fundamental no processo de transformação e socialização); da educação penitenciária (precaução e atividade conjunta ao trabalho); do controle técnico dos detentos (a instituição deve ser dirigida por pessoal técnico especializado, que possua condições morais
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Referendando esta perspectiva sufragada pelo pensador francês, Ferrajoli salienta
que a adoção e propagação da teoria da prevenção especial marca a ideia de substituição do punir
mais pelo punir melhor, próprio da orientação disciplinar. Ainda nesta linha de pensamento,
afirma o citado autor que as concepções da prevenção especial (positiva e negativa) não se
excluem mutuamente. Ao revés, complementam-‐se em suas mais variadas manifestações, sendo
comum nas três orientações da prevenção especial, a saber: (i) doutrinas moralistas de emenda;
(ii) doutrinas naturalistas da defesa social; e, por fim, (iii) doutrinas teleológicas da diferenciação
da pena157. Estas três perspectivas, consoante salienta Ferrajoli, reproduzem modelos autoritários
que eliminam a individualidade do cidadão, mediante a transformação das personalidades
desviantes, sob o pálio de um discurso de promoção de melhoria social158.
2.2.4. Teorias unitárias
Digna de destaque, ainda, a menção às teorias unitárias, mistas, ou da união, no
que se refere à pena. Referidas teorias possuem a pretensão de unificar alguns aspectos das
teorias retributivas e das teorias preventivas. Desta forma, a pena serviria como retribuição ao mal
praticado, mas também como neutralização do autor do delito (prevenção especial negativa);
correção, ou ressocialização para que ele não volte a delinqüir, uma vez expirado o prazo de
cumprimento da pena (prevenção especial positiva); intimidação de possíveis criminosos
(prevenção geral negativa); e, por fim, manutenção ou reforço da confiança da ordem jurídica
(prevenção geral positiva).
Consoante ressaltado por Juarez Cirino dos Santos, as teorias da união representam
a síntese de “(...) uma antiga posição de compromisso entre partidários das teorias da retribuição,
como Binding (1841-‐1920) e defensores das teorias da prevenção, como Liszt (1851-‐1919), que
encerrou a famosa controvérsia entre as Escolas Penais clássica e positiva (...).”159
para formar indivíduos; e das instituições anexas (redes de instituições conjuntas, como o manicômio). Cada princípio, adequadamente colocado, permite a conformação de tecnologia voltada à modificação dos seres. A prisão esteve, pois, desde as sua origem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos.” (CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.183). 157 FERRAJOLI, Luigi. Ob. cit. p.246. 158 Idem, p.247. 159 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 3 ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p.470.
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As teorias da união detêm primazia nas legislações ocidentais160. Foi esta a teoria
acolhida no Brasil, conforme se depreende da leitura do art. 59, caput161, do Código Penal, que, ao
fazer expressa menção à aplicação da pena, em especial a primeira fase da dosimetria
(circunstâncias judiciais), dispõe que o julgador deve se pautar por critérios que sejam necessários
e suficientes à reprovação e prevenção do crime. Além desta inquestionável recepção pela maioria
das legislações, as teorias unificadoras possuem grande prestígio, tanto na jurisprudência162
quanto na doutrina penal nacional163 e estrangeira164.
160 “Assim, por exemplo, o Código Penal alemão adota as teorias unificadas da pena criminal, porque o § 46 do Strafgesetzbuch define culpabilidade como fundamento da pena (retribuição), determinada conforme os efeitos esperados para a vida futura do autor na comunidade (prevenção especial), enquanto o § 47 menciona o objetivo de defesa da ordem jurídica (prevenção geral) – nesse sentido, o Tribunal Constitucional alemão atribui à pena criminal a função absoluta da retribuição da culpabilidade, assim como as funções relativas de prevenção do crime e de ressocialização do delinquente.” (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 3 ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p.470-‐471). 161 “Art. 59 -‐ O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. 162 Neste diapasão, relevante salientar que a jurisprudência nacional caminha para uma sedimentação no sentido de que os efeitos de prevenção e retribuição adstringem-‐se à imposição de pena, não podendo servir de fundamento para a adoção de medidas de cunho cautelar, como as prisões processuais. Neste sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, plasmado em acórdão cuja ementa possui o seguinte teor: “1. AÇÃO PENAL. Homicídio doloso. Júri. Prisão preventiva. Decreto destituído de fundamento legal. Decisão de pronúncia. Incorporação dos fundamentos da preventiva. Contaminação pela nulidade daquela. Precedentes. Quando a sentença de pronúncia se reporta aos fundamentos do decreto de prisão preventiva, fica contaminada por eventual nulidade deste. 2. AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado na necessidade de restabelecimento da ordem pública, abalada pela gravidade do crime. Exigência do clamor público. Inadmissibilidade. Razão que não autoriza a prisão cautelar. Precedentes. É ilegal o decreto de prisão preventiva baseado no clamor público para restabelecimento da ordem social abalada pela gravidade do fato. 3. AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado também na necessidade de prevenção de reincidência. Inadmissibilidade. Razão que, não autorizando prisão cautelar, guarda contornos de antecipação de pena. Precedentes. Interpretação do art. 366, caput, do CPP. HC concedido de ofício. É ilegal o decreto de prisão preventiva baseado na necessidade de prevenção de reincidência.” (HC 83891/RS. Segunda Turma. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento: 31/102006). 163 “As teorias da união estão de acordo com o Princípio da Legalidade. É inegável que a pena é um mal, se assim não fosse, os réus criminais voluntariamente a desejariam. Nesse aspecto, as teorias da união têm razão ao atribuir o caráter de mal à pena. Outro aspecto nas teorias da união possibilita a sua compatibilização com o Princípio da Legalidade: é que a aplicação do mal tem uma finalidade, traduzida sempre em uma preocupação com o ser humano. Portanto, as teorias mistas melhor expressam a finalidade da pena, já que conseguem unir à valorização do homem a característica essencial da sanção penal: a inflição de um mal” (BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito pena: análise do sistema penal à luz do princípio da legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.161-‐162). Em sentido similar, assevera Luis Régis Prado que: “Destarte, impõe reconhecer que a adoção de uma teoria unitária da pena coaduna-‐se, de modo inconteste, com as exigências de um Estado democrático e social de Direito, na medida em que fornece sólido amparo à necessidade de proporcionalidade dos delitos e das penas, barreira infranqueável ao exercício do jus puniendi.” (PRADO, Luis Régis. Curso de direito penal brasileiro. vol. I: parte geral. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005., p.566). 164 A força da teoria unitária também se faz presente na jurisprudência estrangeira. Ao discorrer sobre o tema, no que concerne à jurisprudência alemã, afirma Roxin que: “La toma de posición del BVerfG (E 45, 187, 253 s.) es representativa: ‘El Tribunal Constitucional federal se ha ocupado repetidamente del sentido y fin de la pena estatal sin haber tomado en principio posición sobre las teorias penales defendidas en la doctrina... Se ha señalado como
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Para logo se vê que o mérito das teorias unitárias cinge-‐se à ideia de fomentar a
prevenção à prática de delitos sem perder de vista que a pena, em si, constitui um mal a ser
aplicado ao criminoso. Não é desprezível a variedade de manifestações das teorias unitárias.
Cumpre proceder a um destaque especial, todavia, às duas teorias mistas que maior influência
exercem no Direito Penal atualmente: a teoria dialética unificadora, sustentada por Roxin e o
garantismo defendido por Ferrajoli.
2.2.4.1. Teoria dialética unificadora
A expressão dialética não recebeu tratamento uniforme na história do pensamento
ocidental, tendo, ao revés, sido utilizada em inúmeras acepções. Assim, costuma-‐se referir que
dialética pode ser entendida como (i) método da divisão; (ii) lógica do provável; (iii) lógica, pura e
simplesmente; e, por fim, síntese dos opostos165. Da forma como exposta por Claus Roxin, parece
ser o último o sentido da expressão dialética, na medida em que a pretensão do jurista alemão é
congregar determinados elementos das teorias da pena, sem que se proceda, para tanto, a um
mero somatório temerário das suas respectivas aplicações.
A teoria dialética unificadora repudia a adoção de uma concepção de natureza
retributiva da pena, pautando-‐se, destarte, por critérios de prevenção, tanto a geral quanto a
especial166. O repúdio à retribuição funda-‐se no fato de que, para Roxin, é falaciosa a ideia de que
a essência da pena se vê na causa retributiva de um mal. A rigor, os institutos jurídicos não
possuem essência alguma independente de seus fins; assim, esta essência se alcança a partir dos
fins que se pretende alcançar167.
cometido general del Derecho penal el de proteger los valores elementales de la vida en comunidad. Como aspectos de una sanción penal adecuada se señalan la compensación de la culpabilidad, la prevención, la resocialización del sujeto, la expiación y la retribución por el injusto cometido’”(ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.94) 165 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução da 1º. Edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos de Ivone Castilho Benedeti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.315. 166 “Muitas vezes, porém, por ser partidário de idéias (no plural) de prevenção, a teoria de Roxin é de prevenção geral ou prevenção especial, puramente, mas esse equívoco é justificável, por se tratar, justamente, de uma teoria dialética, que reúne, assim, pensamentos diferentes” (FÖPPEL EL HIRECHE, Gamil. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.74). 167 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.98-‐99.
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Como já ressaltado, a teoria da pena está intimamente relacionada à própria função
do Direito Penal. Destarte, falar-‐se em teoria preventiva da pena equivale a dizer que a função do
Direito Penal reside na prevenção de novos delitos. Pois é justamente este um dos pontos de
partidas de Roxin, para quem a função do Direito Penal é a tutela subsidiária dos bens jurídicos
mais relevantes da sociedade, por meio da prevenção geral subsidiária de delitos. Esta deve ser a
função do Direito Penal, e, portanto, esta a finalidade da aplicação da pena.
Diz-‐se prevenção geral, na medida em que se pretende dissuadir as pessoas do
cometimento do delito; demais disso, essa prevenção geral é subsidiária, porquanto apenas
legitima-‐se quando as demais modalidades de controle social não logram êxito. Essas formas de
controle social podem ser extrajurídicas – como o controle realizado pelas instituições sociais, a
exemplo da família, da escola, da igreja, etc – ou jurídicas – valendo-‐se, no caso, dos demais ramos
do Direito. Ademais, a tese de Roxin também se refere à prevenção especial, pois, como já
salientado, pretende o penalista alemão que a pena fortaleça a consciência jurídica da
comunidade.
Roxin ressalta que o Direito Penal deve estar em relação muito próxima à política
criminal (um Direito Penal funcionalizado para fins de política criminal), repudiando a tese de Liszt,
se acordo com quem a Política Criminal é a barreira infranqueável do Direito Penal168. À vista
disso, conclui-‐se que a função do Direito Penal está relacionada com a Política Criminal.
Uma das preocupações centrais da obra de Roxin refere-‐se à criação de limites ao
poder de punir do Estado. Neste diapasão, relevante chamar a atenção para o fato de que, muito
embora esta pretensão de limitação do poder de punir possa identificá-‐lo a uma postura
minimalista, o autor repudia, com veemência, o abolicionismo penal, ainda que em uma
perspectiva futura, salientando que o Direito Penal tem futuro169. Fundamentando essa sua
constatação, Roxin assevera que a adoção de conciliações, tal como sustentado por parcela dos
adeptos do abolicionismo penal substituiria o Direito Penal por um sistema tão precário quanto o
168 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.223-‐224. 169 ROXIN, Claus. Tem futuro o direito penal? ____. In: Estudos de direito penal; tradução de Luís Greco – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.28.
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seria um sistema constituído, exclusivamente, por medidas de segurança. Por fim, sequer um
sistema de vigilância mais efetivo possuiria o condão de tornar o Direito Penal supérfluo170.
Ainda na esteira da pretensão de estabelecer limites ao poder de punir do Estado,
Roxin confere ênfase à ideia de culpabilidade, salientando que esta não serviria para legitimar o
poder de punir – na medida em que isto consagraria uma concepção retributiva –, mas serviria
para aplicação da pena, como limite a ser obedecido pelo Estado nesta aplicação171.
A peculiaridade da doutrina roxiniana reside no fato de que há uma segmentação
dos momentos em que se observa a pena. Dessa forma, não se pode olvidar que há três
momentos de manifestação da sanção criminal, isto é, (i) a sua previsão em abstrato, mediante
atividade legislativa; (ii) a sua aplicação e gradação, por meio da atividade do julgador; (iii) o
momento da execução penal. Na esteira da teoria dialética unificadora, cada um destes momentos
deve estar fundamentado em uma finalidade diversa para a pena.
O legislador, em um primeiro momento – o da previsão em abstrato – isto é, a fase
de criminalização da conduta, deve pautar-‐se por critérios de prevenção geral. No que tange a
esta ideia, convém salientar que devem ser levadas em consideração as restrições imanentes aos
princípios da subsidiariedade e da exclusiva proteção dos bens jurídicos172.
No que se refere ao segundo momento da existência da pena, isto é, sua aplicação
em concreto, deve o julgador pautar-‐se pela ideia de prevenção geral, observado os limites das
garantias, e prevenção especial, observando o limite inerente à ideia de culpabilidade, como
anteriormente salientado173. Além disso, há uma certa primazia da prevenção geral em relação à
especial, haja vista as exigências do Estado Democrático de Direito174.
Por fim, em um terceiro momento, a fase de execução da pena, esta deve estar
pautada pela concepção que objetiva evitar a reincidência. Não se pode deixar de destacar,
170 Idem, p.28. 171 FÖPPEL EL HIRECHE, Gamil. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.81. Nas palavras do próprio Roxin: “Según la opinión aquí defendida, la pena presupone siempre culpabilidad, de modo que ninguna necesidad preventiva de penalización, por muy grande que sea, puede justificar una sanción penal que contradiga el principio de culpabilidad” (Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.793). 172 PIACESI, Débora da Cunha. Funcionalismo roxiniano e fins da pena___. In: GRECO, Luis; LOBATO, Danilo. Temas de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.57 173 FÖPPEL EL HIRECHE, Gamil. Ob. cit. p.82. 174 Neste sentido, PIACESI, Débora da Cunha. Funcionalismo roxiniano e e fins da pena___. In: GRECO, Luis; LOBATO, Danilo. Temas de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.58.
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porém, as ressalvas formuladas por Roxin, já referidas, no que tange ao respeito à personalidade e
poder de autodeterminação do sujeito.
Deve-‐se mencionar, ainda, o fato que Roxin pretende uma aproximação da teoria
do delito com a teoria da pena, transplantando para os elementos integrantes do crime a ideia de
prevenção175. Nesta perspectiva, além da tipicidade e da antijuridicidade, a existência do crime
pressupõe, para esta doutrina, a responsabilidade, constituída, por sua vez, da culpabilidade e da
prevenção176.
2.2.4.2 O garantismo penal
Não apenas os abolicionistas se insurgiram contra a seletividade do sistema penal,
mas também os minimalistas, que, em síntese, sustentam que a tutela penal há de ser mínima,
isto é, adstringir-‐se a situações excepcionais em caráter subsidiário, referindo-‐se a casos extremos,
em que as demais formas de tutela (jurídica ou extrajurídica) não surtam efeitos. Portanto, em
175 Sobre o tema, em crítica à pretensão de alocar a prevenção na estrutura do delito, destaca Érika Mendes de Carvalho, in verbis: “Com efeito, a pretensão de incluir no conceito de delito considerações conectadas aos fins da pena apresenta vários inconvenientes. Como bem assevera Gracia Martín, qualquer elaboração teórica e aplicação prática do Direito Penal deve manter um equilíbrio entre as garantias individuais e os interesses sociais merecedores de tutela. São precisamente os direitos fundamentais do individuo que figuram como uma barreira infranqueável ao exercício do ius puniendi estatal, posto que uma lesão ou perigo de lesão a tais direitos e garantias individuais conduz necessariamente a uma intervenção da atividade persecutória penal, indispensável para assegurar o mínimo imprescindível da ordem social. Pois bem, o que se questiona é a aptidão das tendências que buscam elaborar a ateoria do delito com lastro nos fins da pena para limitar o exercício do ius puniendi, pois seria a própria teoria da pena que decidiria, de modo oportunista, o que deveria ser ou não punido. De fato, uma pena à qual se confira o caráter de prius lógico do pressuposto fático não é capaz de encontrar nenhum limite, porque ela é a que se retroalimenta e se autolegitima, ‘de um modo completamente circular’. Uma perspectiva exclusivamente preventiva não oferece um limite à pena e os limites que os partidários dessa perspectiva sugerem como plausíveis não chegam a convencer, pois ou se encontram na própria hipótese fática – na magnitude do injusto, por exemplo –, ou em considerações relacionadas à justificação social da pena, que estariam englobadas pela categoria da punibilidade enquanto elemento do delito.” (CARVALHO, Érika Mendes. Punibilidade e direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.344-‐345). 176 “La responsabilidad depende de dos datos que deben añadirse al injusto: de la culpabilidad del sujeto y de la necesidad preventiva de sanción penal, que hay que deducir de la ley. El sujeto actúa culpablemente cuando realiza um injusto jurídicopenal pese a que (todavía) le podía alcanzar el efecto de llamada de atención de la norma en la situación concreta y poseía una capacidad suficiente de autocontrol, de modo que le era psíquicamente asequible una alternativa de conducta conforme a Derecho. Una actuación de este modo culpable precisa en el caso normal de sanción penal también por razones preventivas; pues cuando el legislador plasma una conducta en un tipo, parte de la idea de que debe ser combatida normalmente por medio de la pena cuando concurren antijuridicidad y culpabilidad. La necesidad preventiva de punición no precisa de una fundamentación especial, de modo que la responsabilidad jurídicopenal se da sin más con la existencia de culpabilidad.” (Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução: Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.792).
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que pese assentir em boa medida com as críticas ao sistema penal, os minimalistas sustentam a
manutenção do poder de punir estatal, conquanto a intervenção penal seja mínima, excepcional.
Não se pode deixar de aludir, ainda, ao garantismo penal, que também repudia o
abolicionismo, pugnando pela existência de uma tutela penal racional que respeite uma esfera
mínima de direitos que não poderão ser tolhidos ou ameaçados177. Por outras palavras, o
garantismo penal almeja estabelecer parâmetros de racionalidade à intervenção penal,
proscrevendo o arbítrio punitivo, que pode ser identificado seja na criminalização de condutas
banais, seja na inobservância de direitos no curso da persecução criminal, judicial ou extrajudicial.
Na linha sustentada pelo garantismo, resplandece a importância dos direitos
fundamentais, que passam a ser vistos como parâmetro para o poder de punir do Estado, servindo
como sua limitação material. Os direitos fundamentais possuem importância tamanha para o
garantismo penal que eles conformam uma esfera sobre a qual sequer a totalidade poderá decidir,
a esfera do não-‐decidível178, sob pena de consagração da ditadura da maioria, e não da
democracia. Depreende-‐se, portanto, um acentuado grau de valorização da pessoa humana179,
sob a égide da perspectiva garantista, consoante o modelo sustentado por Ferrajoli.
De acordo com Ferrajoli, o Direito Penal e o Direito Processual Penal devem ser
encarados como a lei do mais fraco, isto é, como forma de tutelar os mais fracos. Quando da
prática do delito, a vítima deve ser considerada a parte mais fraca, razão pela qual deverá o Estado
atuar de forma a deflagrar a persecução criminal contra aquele que praticou o crime. Uma vez
deflagrada esta persecução criminal, aquele que cometeu o crime – ou melhor, aquele a quem se
177 Procurando explicitar o significado do garantismo, Luigi Ferrajoli ressalta que, in verbis: ““Segundo um primeiro significado, ‘garantismo’ designa um modelo normativo de direito: precisamente no que diz respeito ao direito penal, o modelo de ‘estrita legalidade’ SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. (...). Em um segundo significado, ‘garantismo’ designa uma teoria jurídica da ‘validade’ e da ‘efetividade’ como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela ‘existência’ ou ‘vigor’ das normas (...). Segundo um terceiro ‘significado’, por fim, ‘garantismo’ designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 785-‐787).” 178 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 4.ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.19. 179 “É uma teoria de resistência a toda e qualquer estrutura de saber/poder que concebe o homem como descartável, que nega a primazia da pessoa e dos direitos. A perspectiva garantista, portanto, estabelece mecanismos jurídico-‐políticos de luta pela razão contra todas as formas de obscurantismo, correspondendo a um saber alternativo ao neobarbarismo defensivista capitaneada, na atualidade, pelos movimentos de ‘Lei e Ordem’ e de ‘(Nova) Defesa Social” (CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Ob. cit. p.20-‐21).
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imputa a prática do crime – passa a ser a parte mais débil da relação, pois está em confronto com
o aparato estatal de persecução, detentor monopolista da legitima utilização da violência. Uma
vez encerrado o processo criminal, culminando com a condenação do réu, o processo de execução
que se lhe sobrepõe terá como parte mais frágil o condenado.
Muito embora esteja assentado sobre a ideia de legalidade, a isto não se adstringe
o garantismo penal, porquanto reputa equivocada a identificação levada a cabo pelo positivismo
legalista entre esta ideia de legalidade e a legitimidade do poder punitivo estatal. A doutrina
positivista apregoa a negação destes dogmas do positivismo legalista, sustentando que (i) o poder
é ontologicamente voltado à violação de direitos; (ii) não há identidade necessária entre
legalidade e legitimidade; (iii) os atos do poder público não gozam de presunção de legitimidade,
devendo ser submetidos ao crivo de eficazes mecanismos de controle180. Nesta linha de
raciocínio, Ferrajoli distingue a mera legalidade, entendida como legitimação jurídica formal e a
estrita legalidade, entendida como legitimação jurídica material181.
De forma bastante objetiva, pode-‐se asseverar que, muito embora não tenha
cunhado a expressão, Luigi Ferrajoli foi o responsável pela difusão dos ideais garantistas, expostos
de forma minuciosa em sua obra “Direito e razão: teoria do garantismo penal”. Para Ferrajoli, o
garantismo pode ser compreendido em três diversos significados182. Assim, (i) em um primeiro
significado, garantismo representa um modelo normativo de direito atinente, no que concerne ao
Direito Penal, à estrita legalidade (e não apenas a mera legalidade, como visto), próprio do Estado
de Direito, que, sob a perspectiva epistemológica caracteriza-‐se como um sistema cognitivo ou de
poder mínimo, sob o plano político caracteriza-‐se como uma específica técnica de tutela idônea a
minimizar a violência ou maximizar a liberdade e, por fim, sob o plano jurídico, o garantismo é
compreendido como um sistema de vínculos impostos à atuação punitiva do Estado, como forma
de tutela de garantia dos direitos do cidadão; (ii) em um segundo significado, ainda consoante
Ferrajoli, garantismo designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias
180 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Ob. cit. p.21 181 Sobre a legitimidade jurídica material, assevera Ferrajoli que esta “(...) deriva dos vínculos que condicionam a validade das normas vigentes à tutela dos demais direitos fundamentais incorporados também às Constituições: não à garantia da liberdade, que em matéria penal supõe a taxatividade e, portanto, a verificabilidade e refutabilidade empíricas das hipóteses de delito, senão às garantias de outros bens e direitos fundamentais, sejam de liberdade ou sociais, que podem não ter nenhuma vinculação com o princípio da taxatividade” (In: Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.350). 182 ARAÚJO, Fábio Roque da Silva. A instrumentalidade constitucional do processo penal: aproximação a uma leitura garantista. Revista Baiana de Direito, v. 02, p. 37-‐64, 2008.
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distintas, não apenas entre si, mas pela existência ou vigor das normas; (iii) de acordo com um
terceiro significado, garantismo corresponde a uma filosofia política que demanda do Direito e do
Estado o ônus da justificação externa com fundamento nos direitos em relação aos quais a
garantia constitui a finalidade183.
Para logo se vê que, aqui, interessa-‐nos a expressão “garantismo” utilizada por
Ferrajoli em sua primeira acepção, isto é, uma técnica de tutela que, sem realizar esta tutela de
forma deficiente, confira primazia aos direitos de liberdade. Em síntese, um sistema punitivo de
feição não-‐autoritária, pautado em parâmetros de racionalidade e civilidade na persecução
criminal.
Uma das maiores críticas que se aponta ao garantismo é, também, uma das
maiores injustiças que se lhe podem cometer, qual seja, o de dar ensejo à impunidade. A rigor,
trata-‐se do mesmo discurso, reproduzido com certa frequência pelos meios de comunicação de
massa, no sentido de identificar a defesa dos direitos humanos com “direito de bandido”. Para
longe de legitimar qualquer tipo de impunidade ou de fomentar a prática de delitos, o garantismo
almeja estabelecer parâmetros de racionalidade à intervenção penal, proscrevendo o arbítrio
punitivo, que pode ser identificado, seja na criminalização de condutas banais, seja na
inobservância de direitos no curso da persecução criminal, judicial ou extrajudicial.
Conferir critérios de racionalidade à elaboração e aplicação da lei significa afirmar,
justamente, que os operadores da intervenção estatal não podem legitimar sentimentos de
vingança, sob pena de retorno à barbárie, outrora institucionalizada pelo Estado quando do agir
punitivo, tampouco consentir com a exclusão pura e simples da reprimenda estatal. Este atuar
racional pressupõe um permanecer eqüidistante do réu e da vítima. Isto porque não se
desconhece a crise do paradigma cartesiano, na medida em que, atualmente, sobretudo em vista
dos avanços dos estudos atinentes à psicanálise, sabe-‐se que a razão não está absolutamente
dissociada da subjetividade e da emoção. Por isto, esta racionalidade objetivada pelo garantismo
não pressupõe um aplicador do Direito insensível ou axiologicamente neutro, o que seria
impossível, mas sim, pressupõe a observância de parâmetros objetivos de atuação que expurgue
os excessos passionais (seja pro reo, seja contra o réu) no atuar punitivo do Estado.
183 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 785-‐787.
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Para tanto, Ferrajoli propõe a adoção de dez princípios axiológicos, que devem ser
obedecidos pelo Estado. Para ele, a incorporação destes princípios fundamentais – cuja origem
remonta ao jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII – caracteriza um sistema garantista, muito
embora faça ele a ressalva de que a previsão em abstrato destes preceitos não significa,
necessariamente, a concreção fática do garantismo.
Os princípios axiológicos que enformam o sistema garantista são184: (i) princípio da
retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito (nulla poena sine crimine);
(ii) princípio da legalidade, seja em seu sentido lato, seja em seu sentido estrito (nullum crimen
sine lege); (iii) princípio da necessidade, também chamado de princípio da economia do Direito
Penal (nulla lex (poenalis) sine necessitate; (iv) princípio da lesividade ou da ofensividade (nulla
necessitas sine injuria); (v) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação (nulla injuria
sine actione); (vi) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal (nulla actio sine culpa);
(vii) princípio da jurisdicionariedade, em sentido lato ou estrito (nulla culpa sine judicio); (viii)
princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação (nullum judicium sine acusatione); (ix)
princípio do ônus da prova ou da verificação (nulla acusatio sine probatione); (x) princípio do
contraditório ou da defesa ou da falseabilidade (nulla probatio sine defensione).
Ainda na linha de pensamento ostentada por Ferrajoli, depreende-‐se de sua mais
célebre obra que, dos princípios enumerados acima, o autor identifica os seis primeiros como
princípios relativos ao Direito Penal, ao passo que os quatro últimos seriam princípios garantistas
concernentes ao Direito Processual Penal. Percebe-‐se, da leitura dos princípios apontados por
Ferrajoli, que a observância de um processo penal garantista, ao contrário do que afirmam seus
críticos, sem conhecê-‐lo, adstringe-‐se a um rol mínimo de garantias conferidas aos acusados em
geral185.
Demais disso, releva notar que alguns dos princípios enumerados acima
encontram-‐se em grau de íntima correlação, razão pela qual pode-‐se afirmar, em determinadas
circunstâncias, que uns não subsistem sem outros. Assim, ante a inexistência, em determinado
sistema, do princípio da retributividade, não se fará presente, também, os princípios da lesividade,
184 FERRAJOLI, Luigi.Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.91. 185 ARAÚJO, Fábio Roque da Silva. A instrumentalidade constitucional do processo penal: aproximação a uma leitura garantista. Revista Baiana de Direito, v. 02, p. 37-‐64, 2008.
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da materialidade e da culpabilidade186; como um outro exemplo, sem o princípio da
jurisidcionariedade, não haverá, naturalmente, os princípios acusatórios e os do ônus da prova e
da defesa187.
No que toca mais de perto à limitação e legitimação do poder punitivo do Estado,
ao levar adiante suas críticas às teorias abolicionistas (não-‐justificacionistas), Ferrajoli ressalta que,
sob um manto de um discurso progressista, os abolicionistas são os maiores reacionários, na
medida em que a abolição do Direito Penal conduziria ao retorno a um estágio em que se
legitimava o exercício das vinganças. Nos dizeres do jurista italiano, a função da pena é evitar as
reações arbitrárias, públicas e privadas, aos delinqüentes188. Assim, uma vez abolido o Direito
Penal, estas reações arbitrárias encontrariam campo propício para proliferarem.
O direcionamento da ideia de legitimação do poder punitivo como forma de evitar,
até mesmo, reações informais ao delito abre espaço para as críticas formuladas ao garantismo
como mais uma manifestação do utilitarismo penal, ainda que sob uma perspectiva
reformulada189.
Estas, em resumo, as teses sobre as quais se sustenta o garantismo sufragado por
Ferrajoli, que, a rigor, constitui a atualização dos postulados defendidos pelos iluministas, no
século XVIII, assentados nas premissas de que se deve proteger o cidadão contra o arbítrio
punitivo do Estado. Para tanto, valem-‐se os iluministas, como visto, em grande medida da ideia de
proporcionalidade, que sempre há de orientar a intervenção punitiva, sob pena de se consagrar a
observância do tão temido arbítrio estatal.
186 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica et. al. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.95. 187 Idem, p.95. 188 “Entiendo decir con ello que la pena no sirve únicamente para prevenir los injustos delitos, sino también los injustos castigos; la pena no es amenazada e infligida ne peccetur, también lo es ne punietur; no tutela solamente la persona ofendida por el delito, del mismo modo protege al delincuente de las reacciones informales, públicas o privadas. En esta perspectiva la «pena mínima necesaria» de la cual hablaron los iluministas no es únicamente un medio, es ella misma un fin: el fin de la minimización de la reacción violenta contra el delito.” (FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo. In: BUSTOS RAMIRES, Juan (coord.). Prevención e teoria de la pena. Santiago de Chile: Editorial jurídica conesur, 1995, p.37). 189 “Nesta perspectiva, os problemas com os quais a perspectiva garantista deve confrontar-‐se para que possa realizar a necessária autocrítica dizem respeito a duas esferas distintas, porém derivadas da mesma opção política: (1º.) no plano da teoria do Estado e da teoria geral do direito, sua ambição de universalização como sistema unívoco de compreensão e interpretação do Direito, do Estado e da Justiça, vício decorrente de sua identificação com o projeto de Modernidade e com as teorias do (pós) positivismo jurídico; e (2º.) na esfera das ciências criminais, a pretensão de revelar novos fundamentos de legitimidade do ius puniendi através da reelaboração das premissas utilitaristas (utilitarismo reformado) face ao apego ao classicismo penal e sua marcada gênese iluminista” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.116)
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