PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
ALEXANDRE CORONATO RODRIGUES
LIVE CINEMA: NARRATIVAS DE AUTORIA COLETIVA EM TEMPO REAL
Da fase poética subjetiva a produção de narrativas objetivas.
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
SÃO PAULO
2015
Pontifícia Universidade Católica De São Paulo
Secretaria Acadêmica – Processamento de Dissertações e Teses
Alexandre Coronato Rodrigues
LIVE CINEMA: NARRATIVAS DE AUTORIA COLETIVA EM TEMPO REAL
Da fase poética subjetiva a produção de narrativas objetivas.
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Tecnologias da Inteligência e Design
Digital, sob a orientação do Prof. Doutor
Marcus Vinicius Fainer Bastos.
SÃO PAULO
2015
BANCA EXAMINADORA
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________________________________________________
________________________________________________
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................. 5 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 7 CAPÍTULO 1. CONCEITO DE NARRATIVA ....................................................... 9
1.1 Narratologia - a narrativa como ciência ............................................ 11
1.2 Narrativas como expressão da visão de mundo
e a perda do coletivo segundo Walter Benjamin .............................. 17
1.3 Narrativas e tecnologia: novos paradigmas ...................................... 20
1.3.1 Elementos estruturais da linguagem digital ......................... 22
1.3.2 Narrativa Digital ................................................................... 26
1.3.3 Narrativas objetivas e subjetivas ......................................... 31
1.3.4 Narrativas coletivas ............................................................. 36
1.3.5 Live cinema ......................................................................... 44
CAPÍTULO 2. A QUESTÃO DA AUTORIA ...................................................... 47
CAPÍTULO 3. EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS
DE NARRATIVAS COLETIVAS ................................................. 58
CAPÍTULO 4. ESPECIFICAÇÃO DE SISTEMA PARA PRODUÇÃO
DE FILMES E ROTEIROS EM TEMPO REAL........................... 73
4.1 Transmissão de arquivo x streaming ................................................ 75
4.2 Método para a criação de um filme e seu enredo em tempo real ..... 75
4.2.1 Atores x Equipes ................................................................. 75
4.2.2 Gatilho ................................................................................ 77
4.2.3 Equipes de produção de cenas ........................................... 78
4.2.4 Equipe de finalização .......................................................... 79
4.2.5 Método passo a passo ........................................................ 81
4.3 Tecnologia ......................................................................................... 82
4.3.1 Tipos de conexão sem fio e suas velocidades .................... 82
4.3.2 Tamanho arquivo x tempo de transmissão .......................... 83
4.3.3 Equipamentos: hardware e software ................................... 84
CONCLUSÃO ................................................................................................... 88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 92
LISTA DE IMAGENS ......................................................................................... 95
APÊNDICE I - ENTREVISTA COM IAN SOFFREDINI ..................................... 97
RESUMO
Este estudo busca compreender o estado atual dos processos de
produção de narrativas coletivas em tempo real e identificar uma forma
diferente, ainda não experimentada, de criação de Live Cinema. Para tanto,
parte-se da definição do conceito de narrativa apoiado nas teorias filosóficas de
Rolland Barthes e Walter Benjamin somada às teorias estéticas sobre a mídia
digital de Lev Manovich, da análise dos tipos de narrativas cinematográficas de
André Parente e da discussão do conceito de autoria segundo os
pesquisadores Lucia Santaella, Arlindo Machado e Antonio Miranda. A partir
destas definições identificou-se os parâmetros estruturais das narrativas digitais
contemporâneas, que permitiram a análise de quatro exemplos atuais da
produção coletiva de histórias em tempo real, diferenciando-os quanto ao tipo
de narrativa criada e a profundidade da participação coletiva em sua criação.
Como resultado, este trabalho apresenta a especificação de um sistema
coletivo de produção de narrativas em tempo real, que comprova a descoberta
revelada pela análise e aponta o universo de possibilidades surgidas com o
advento das tecnologias digitais de processamento da informação.
Palavras-chave: narrativa, coletiva, tempo real, Live cinema, interação.
ABSTRACT
This study aims to understand the current state of the production processes of
collective narratives in real-time and identify a different way, not yet experienced,
to create Live Cinema pieces. Therefore, it starts from the narrative concept
definition supported by the philosophical theories of Rolland Barthes and Walter
Benjamin added to the aesthetic theories of digital media of Lev Manovich, the
analysis of the types of cinematographic narratives of André Parente and
authorship concept discussion according to researchers Lucia Santaella, Arlindo
Machado and Antonio Miranda. From these definitions we identified the
structural parameters of contemporary digital storytelling, which allowed the
analysis of four current examples of collective production of stories in real time,
distinguishing them as the kind of narrative created and the depth of the
collective participation in its creation. As a result, this paper presents the
specification of production real-time collective narratives system, which proves
the discovery revealed by analysis and points the universe of possibilities that
arise with the advent of digital technologies of information processing.
Keywords: narrative, collective, real-time, Live cinema, interaction.
7
INTRODUÇÃO
Ao longo de nossa história as formas e processos de construção
narrativa sofrem alterações suscitadas pela expansão da compreensão da
realidade somada aos avanços tecnológicos.
Em minha vida, sempre estive envolvido profissionalmente com o
processo de criação de narrativas audiovisuais, mas nunca havia questionado
com mais profundidade o que exatamente é este processo e sua importância
para a humanidade. Através de uma especialização em cinema, entrei em
contato com um novo tipo de criação audiovisual proporcionada pelos avanços
das tecnologias digitais de processamento da informação. A criação audiovisual
coletiva e colaborativa em tempo real ou Live cinema. A possibilidade de
participar do processo de formação de uma nova linguagem me levou ao
presente estudo.
Nesta dissertação pretendo encontrar uma possível classificação dos
tipos de narrativas a partir de um recorte que permita especificar o que é
narrativa, se é possível uma classificação de tipos e aplicar este conceito para
entender que tipos de narrativa em tempo real existem e em que se diferem.
A partir da análise da concepção narrativa de quatro exemplos com
relação ao tempo de criação, produção, veiculação e quanto ao tipo de
narrativa produzido, procuramos encontrar uma forma diferente e talvez nova
para a produção coletiva de filmes em tempo real.
Proponho duas questões para a investigação nesta dissertação: a
primeira é definir o estado atual das produções de narrativas em tempo real
quanto a forma ou tipo de narrativas produzidas na busca de alternativas ainda
não experimentadas. A segunda é a proposição de um sistema que, utilizando
a tecnologia disponível, possibilite a construção de narrativas audiovisuais
coletivas e em tempo real com a nova alternativa.
Para a busca de tais respostas, divido esta dissertação em 4
capítulos. O primeiro, procura aprofundar a compreensão do conceito de
narrativa através de uma visão histórica. Estudarei autores como Roland
Barthes, Walter Benjamim, Lev Manovich, Janet Murray, Arlindo Machado e
Christine Mello e também alguns exemplos de produção coletiva de narrativas
8
e de Live cinema que me ajudarão a contextualizar as narrativas
contemporâneas baseadas nas evoluções tecnológicas.
No segundo capítulo, discutirei o conceito de autoria nas artes de
modo geral, através exemplos conhecidos na literatura, artes visuais e na
música, bem como a influência da tecnologia na ampliação e condução dos
caminhos para a produção coletiva, as mudanças nos paradigmas e como os
novos modelos influem na estrutura das narrativas produzidas.
No terceiro capítulo procurarei descobrir qual ou quais variáveis
determinariam uma nova forma de produção coletiva em tempo real e também
identificar, a partir da análise de quatro exemplos onde a narrativa é criada em
tempo real e executada em diferentes suportes como filme, jogo ou teatro, os
elementos que possam ser adaptados e recombinados para a composição de
um método de criação de narrativas nessa nova forma se conseguirmos
identificá-la.
Os dois primeiros exemplos escolhidos são duas produções de Live cinema,
STORM de Luiz duVa e Ressaca de Bruno Vianna, onde a produção coletiva
resulta em dois tipos diferentes de narrativas audiovisuais em tempo real cujo
suporte é o cinema ou Live cinema.
O terceiro exemplo é o jogo online Can You See Me Now do grupo de artistas
multimídia Blast Theory, onde a produção colaborativa de narrativas na forma
de um jogo une o mundo real com o virtual colocando seus participantes num
ambiente lúdico que integra todos os participantes. Neste caso, nosso interesse
maior reside no método e tecnologias utilizadas que agregariam ao Live
cinema, visto nos exemplos anteriores, aspectos novos como mobilidade e
aumento no número de pessoas participantes ampliando as fronteiras do
coletivo.
Por fim, no quarto e ''ultimo exemplo, a análise do processo de
produção da peça Espontânea de Ian Soffredini, onde os atores constroem a
história da peça durante a encenação, me levou a um possível método para a
construção de um sistema capaz de produzir filmes e suas histórias em tempo
real.
O quarto capítulo apresenta a especificação metodológica e técnica
de um sistema para a produção de narrativas coletivas, em tempo real como
exercício de comprovação do resultado da análise.
9
CAPÍTULO 1. CONCEITO DE NARRATIVA
A definição do conceito de narrativa é uma tarefa complexa. Ao
começar a procurar uma definição genérica, ou seja, que inclua todos os tipos
e modalidades possíveis de narrativa percebi a complexidade da tarefa.
Encontrei-me diante de um universo infinito de possibilidades. Infinito porque
indefinido e indefinido porque incompleto por definição. A definição tradicional
de narrativa como a descrição de uma sequência real ou imaginária de eventos
não serve como definição para diversas formas de narrativa que existem hoje
nas artes.
A arte da narrativa está presente em nossa história sendo mesmo a
ferramenta através da qual a construímos, pois é através de registros
narrativos que a perpetuamos e criamos o corpo de conhecimento registrado,
ou melhor de percepções da realidade registradas. Segundo Barthes, "a
narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as
sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há,
nunca houve em lugar nenhum povo algum sem narrativa." (2001: p.103).
Vários autores como Barthes, Walter Benjamin e Janet Murray,
destacam que as narrativas são a ferramenta com a qual a humanidade
entende e ao mesmo tempo constrói seu mundo ou aquilo que chamamos de
realidade. Portanto, posso dizer que as narrativas são a expressão de nosso
conceito do que é a realidade e ao mesmo tempo influenciam a construção
desse conceito. Construímos nossa concepção de realidade não apenas a
partir da própria realidade, ou do que captamos dela através de nossos
sentidos, mas também a partir de descrições transformadas em narrativas.
Söke Dinkla, em seu artigo "The Art of Narrative" publicado no livro
New Screen Media de 2002, identifica esta relação dialética entre as narrativas
e nosso conceito de realidade. Cada descrição de realidade é formada por
nossas próprias ideias sobre a realidade e cada narrativa que fazemos da
realidade, influencia essas ideias. As formas de construção narrativa podem,
portanto, ser a expressão de mudanças em nossa concepção (construção) da
realidade assim como podem ser as responsáveis por mudanças nessa
concepção. "Cada representação da realidade é formada por meio de nossas
10
próprias idéias de realidade, e cada representação, por sua vez, influencia
essas idéias"1 (2002, p.27). Numa revisão histórica, sobre o surgimento de
novos métodos estéticos de construção narrativa, não será sempre possível
distinguir quando esses novos métodos ou formas narrativas são a expressão
de uma nova concepção ou visão da realidade, ou quando são os causadores
de uma nova percepção. " Ao longo dos séculos, a arte da narrativa, também
expressou esta mudança social através da mudança do significado da técnica,
sendo ao mesmo tempo uma expressão dessa mudança"2 (2002, p.27).
A própria etimologia da palavra narrativa tem sua origem na palavra
narrare do latim e significa contar, relatar, tornar conhecido, indicando a relação
direta das narrativas com a produção de conhecimento, tornando indiscutível a
relevância do estudo dos processos intelectuais e cognitivos envolvidos na
construção de histórias.
" todas as classes, todos os grupos humanos têm as suas narrativas,
muitas vezes essas narrativas são apreciadas em comum por
homens de culturas diferentes, até mesmo opostas: a narrativa
zomba da boa e da má literatura: internacional, trans-histórica,
transcultural, a narrativa está sempre presente, como a vida"
(BARTHES, 2001: p.103-104).
Assim como o filósofo Roland Barthes, a professora Janet H. Murray
coloca esta importância no prefácio da edição brasileira de seu livro Hamlet no
holodeck: o futuro da narrativa no ciberspaço, onde diz que "a narrativa é
um de nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do
mundo. É também um dos modos fundamentais pelos quais construímos
comunidades" (2003: p.9).
Além disso, a cada surgimento de novas descobertas científicas e
tecnológicas produzimos novos suportes para o registro de nossa cultura, ou
melhor, para a produção de narrativas. Cada novo suporte traz consigo uma
nova forma de codificar a informação. Como consequência, diferentes formas
1 Traduzido pelo autor a partir do original: Every depiction of reality is formed through our own
ideas of reality, and every depiction, in turn, influence those ideas. 2 Traduzido pelo autor a partir do original: Throughout the centuries the art of narrative, ...has
also expressed this social change through changing technical means as well as being an expression of this change.
11
para se construir narrativas, baseadas em uma lógica de encadeamento de
eventos própria, surgem e com elas a possibilidade de novas linguagens.
Desta forma, o conceito de narrativa não pode ser absoluto, pois o
surgimento de novos suportes traz novas possibilidades de construção
narrativas, espelhando novas concepções da realidade que, por sua vez,
modificam as formas narrativas que influenciam e modificam nossa concepção
da realidade e assim sucessivamente. Tal recursividade dialética também foi
percebida pelo filósofo Walter Benjamin, como veremos adiante.
A percepção da importância das narrativas no processo de criação de
nossa cultura e a velocidade com que os meios para se produzir narrativas
passaram a evoluir no início do século passado fizeram com que diversos
pensadores e filósofos se debruçassem sobre o tema, criando uma nova
disciplina para a ciência.
1.1 Narratologia - a narrativa como ciência
Em seu artigo "Narratology" (2013) publicado pelo Interdisciplinary
Center for Narratology, University of Hamburg, o Professor Jan Christoph
Meister, da Universidade de Hamburgo, nota que os estudos sobre as
narrativas se iniciam na antiguidade grega com Platão e Aristóteles que
identificaram os principais elementos na construção de narrativas. O primeiro
distinguiu dois principais modos de narrar: a mimesis, como a imitação direta
do discurso na forma de diálogos e monólogos dos personagens, e a diegese,
que compreende todos os enunciados atribuíveis ao autor.
No livro A Arte Poética, Aristóteles apresentou um segundo critério
que se manteve fundamental para a compreensão da narrativa: a distinção
entre a totalidade dos eventos que ocorrem em um mundo representado e o
enredo ou mythos do fato narrado, uma construção que apresenta um
subconjunto de eventos, escolhidos e organizados de acordo com
considerações estéticas.
No início da década de 1960 surge o estruturalismo francês,
movimento filosófico que reuniu pensadores de diversas áreas e que o
professor e pesquisador José Renato Salatiel define de forma resumida em seu
artigo "Estruturalismo: Quais as origens desse método de análise?":
12
"Na verdade, o estruturalismo é mais um método de análise, que
consiste em construir modelos explicativos de realidade, chamados
estruturas. Por estrutura entende-se um sistema abstrato em que
seus elementos são interdependentes e que permite, observando-se
os fatos e relacionando diferenças, descrevê-los em sua ordenação e
dinamismo. É um método que contraria o empirismo, que vê a
realidade como sendo constituída de fatos isolados. Para o
estruturalismo, ao contrário, não existem fatos isolados, mas partes
de um todo maior" (SALATIEL, 2008).
Sob a influência destas ideias estudiosos e pensadores como Roland
Barthes, Eco, Genette, Greimas e Todorov publicaram artigos onde o estudo da
lógica, dos princípios e das práticas da produção narrativa se configurou como
uma ciência, com a estruturação de um corpo metodológico coerente para se
criar uma teoria sobre as narrativas.O objetivo era identificar e definir os
universais narrativos.
O termo narratologia foi usado pela primeira vez por Todorov em seu
livro Grammaire du Décaméron (1969), onde defende uma mudança de foco
no estudo das narrativas, do texto propriamente dito ou seja, do discurso que
se forma com as palavras, para as propriedades estruturais da narrativa como
instrumento criador de representações e significados na busca de uma
generalização teórica que pudesse ser aplicada a todos os domínios da
narrativa, uma ciência hipotética "que ainda não existe; vamos chamá-la
narratologia, ou ciência da narrativa." (1969, p.10).
Meister, define a narratologia hoje como "uma disciplina de
humanidades dedicada ao estudo da lógica, princípios e práticas de
representação narrativa" (2013) e identifica três caminhos na narratologia
contemporânea: o contextualista, que busca relacionar características da
narrativa a contextos culturais específicos com foco no conteúdo da narração; o
cognitivo, baseado na busca de modelos de compreensão humana de
narrativas, uma abordagem importante para o desenvolvimento da AI na busca
da simulação desta capacidade humana de narrar; e a transgenérica, que
busca aplicar os conceitos narratológicos no estudo de gêneros e outras mídias
indo além das narrativas baseadas em textos e palavras.
13
O caminho cognitivo é importante por servir como campo de testes de
conceitos teóricos de construção de histórias.
"Sistemas de Storytelling podem ser usados para identificar
protótipos de conceitos narratológicos em uso atualmente para
apoiar decisões de construção história. Isso pode ser útil tanto no
que permitam a identificação de conceitos que possam estar sub-
definidos ou ambíguos em sua formulação atual, e na proposição de
conceitos adicionais relacionados com o processo de composição de
histórias que podem ser dignos de maior atenção"3 (GERVÁS, 2012).
É, também, especialmente interessante para esta pesquisa, por
procurar reproduzir o processamento da linguagem natural, na busca de
possíveis regras para que computadores produzam textos literários com uma
história ou enredo, automaticamente.
A produção automática de uma narrativa com uma história explícita e
um enredo facilmente identificável sinaliza a possibilidade de criação de um
método que produza esse tipo de narrativas coletivamente, pois se é possível
que um programa de computador realize tal tarefa, talvez seja possível que um
método, apoiado nas possibilidades comunicacionais advindas das tecnologias
digitais, coordene várias pessoas com esse mesmo fim.
Pablo Gervás, professor associado ao Departamento de Inteligência
Artificial e Engenharia de Software da Universidade Complutense de Madrid,
descreve em seu artigo "Story Generator Algorithms"4 (2013) alguns algoritmos
para a geração automática de histórias e ressalta que "o problema aqui
consiste em criar sistemas, ou seja, algoritmos capazes de executar uma tarefa
não definida" (2013). Entendendo-se algoritmo como um conjunto de instruções
determinados para, ao receber uma determinado input5, fornecer um resultado
definido como output6, a criação de um algoritmo sem o conhecimento prévio
3 Traduzido pelo autor a partir do original: Storytelling systems may be used to identify
prototypes of narratological concepts in actual use to support story building decisions. This may be helpful both in allowing identification of existing concepts that may be under-defined or ambiguous in their present formulation, and in putting forward additional concepts concerned with the process of composition of stories that may be worthy of further attention.
4 http://www.lhn.uni-hamburg.de/article/story-generator-algorithms
5 A palavra input do inglês significa em computação entrada de dados, alimentar o computador
com informação. 6 A palavra output do inglês significa em computação informação liberada e produzida por um
computador. vt produzir informação como resultado de um programa ou operação.
14
dos inputs e de quais são as características do que se espera como output
parece uma tarefa impossível.
Esta indefinição é também percebida no processo humano de
construção de uma narrativa ou história, pois não conseguimos definir
claramente quais foram os dados dos quais o autor partiu para iniciar o seu
processo de criação, o que talvez explique porque sistemas computacionais
ainda não conseguem reproduzir a capacidade humana de criar e contar
histórias de maneira tão diversa como mostrado nos exemplos a seguir.
Novel foi um dos primeiros algoritmos desenvolvido para geração de
histórias na década de 1970. Este software gerava especificamente histórias de
assassinato em um ambiente dado como entrada juntamente com as
características das personagens da história, que incluíam suas ligações
emocionais, tendências à violência e predisposição ao sexo. Produzia um tipo
específico de história com variações muito pequenas.
" O conjunto de regras é altamente restritivo e permite a construção
de apenas um tipo muito específico de história. Apesar de que mais
de uma história poderia ser construída pelo programa, as diferenças
entre elas eram restritas a quem assassina quem com o quê e
porquê e quem os descobre"7 (GERVÁS, 2012).
Na mesma década surge um algoritmo chamado TaleSpin capaz de
produzir histórias com variações maiores no enredo, pela descrição dada por
Gervás, percebe-se que o aumento de parâmetros fornecidos como input para
o algoritmo, ou seja, a diminuição da indefinição, influi diretamente nas
variações de enredo produzido, neste caso mais relevantes que as do exemplo
anterior.
"TaleSpin foi um sistema que gerou histórias sobre a vida de criaturas
simples da floresta. Para criar uma história, um objetivo era dado ao
personagem e, em seguida, um plano desenvolvido para atingir a
meta ou objetivo definido. TaleSpin introduziu as metas dos
personagens como gatilhos para a ação. Também introduziu a
possibilidade de ter mais de um personagem resolvedor de
problemas na história, introduzindo listas de meta separadas para
7 Traduzido pelo autor a partir do original: The set of rules is highly constraining and allows for
the construction of only one very specific type of story. Though more than one story could be built by the program, differences between them were restricted to who murders whom with what and why and who discovers them.
15
cada um deles. Relações complexas eram modeladas entre os
personagens (competição, dominância, familiaridade, afeição,
confiança, fraude e endividamento). Tais relações atuavam como pré-
condições para algumas ações e como conseqüências de outras,
constituindo, assim, um modelo simples de motivação dos
personagens. A personalidade dos personagens era modelada de
acordo com grau de bondade, vaidade, honestidade e inteligência
determinados para cada um deles"8 (GERVÁS, 2012).
Segue um trecho de uma história produzida pelo algoritmo TaleSpin
apresentada por Gervás onde percebe-se a grande simplicidade do texto
produzido encadeando ações perceptivelmente balizadas por parâmetros
embutidos na lógica do algoritmo, muito longe das narrativas produzidas por
seres humanos. Talvez porque as intenções do autor estão implícitas no
algoritmo através dos objetivos dos personagens que, após definidos, não
podem sofrer alterações.
"John Urso está com um pouco de fome. John Urso quer obter
algumas frutas. John Urso quer chegar perto dos mirtilos. John urso
caminha de uma entrada da caverna para o mato, passando por uma
passagem através de um vale através de um prado. John Urso pega
os mirtilos. John urso come os mirtilos. Os mirtilos acabaram. John
urso não está com muita"9 (GERVÁS, 2012).
Outra tentativa de produção de narrativas mais naturais a partir de
algoritmos foi experimentada no início da década de 1980 com o programa
Dehn's Autor. Em oposição à lógica usada no TaleSpin que recebia como input
vários sub-objetivos explicitamente declarados e abertos a manipulação pelo
8 Traduzido pelo autor a partir do original:was a system which generated stories about the lives
of simple woodland creatures. To create a story, a character was given a goal, and then the plan was developed to solve the goal. TALESPIN introduced character goals as triggers for action. It also introduced the possibility of having more than one problem-solving character in the story, introducing separate goal lists for each of them. Complex relations between characters were modeled (competition, dominance, familiarity, affection, trust, deceit and indebtedness). These relations acted as preconditions to some actions and as consequences of others, thus constituting a simple model of character motivation. The characters’ personalities were modeled according to degrees of kindness, vanity, honesty and intelligence.
9 Traduzido pelo autor a partir do original: John Bear is somewhat hungry. John Bear wants to
get some berries. John Bear wants to get near the blueberries. John Bear walks from a cave entrance to the bush by going through a pass through a valley through a meadow. John Bear takes the blueberries. John Bear eats the blueberries. The blueberries are gone. John Bear is not very hungry.
16
programa que, desta forma, reformula continuamente a intenção do autor.
Segundo Gervás o programa "procurava simular a mente de um autor humano
baseado na suposição de que os mundos de uma história são desenvolvidos
pelos autores para justificar as ações já decididas para a construção da
história" (2012). A história é entendida como "a realização de uma teia
complexa de metas do autor." (2012).
Nota-se aqui uma barreira intransponível, ao menos até agora, para
que algoritmos sejam capazes de produzir histórias semelhantes as produzidas
por seres humanos. A criatividade, uma capacidade humana que não possui
estruturas reconhecíveis que possibilitem a criação de um modelo passível de
ser reproduzido como uma sequência de instruções de um algoritmo.
Os programas MEXICA e BRUTUS do final da década de 1990
caminharam nesta direção e revelam a incapacidade de programas de
computador serem realmente criativos. O programa MEXICA restringe as
histórias a um universo conhecido e determinado, mas acrescenta o aspecto
emocional dos personagens como parâmetro para a condução do enredo
somado a um método de avaliação da história produzida. O acréscimo destes
elementos, indiscutivelmente presentes no processo criativo humano, revela-se
incompleto quando vemos um texto produzido por este algoritmo.
"Cavaleiro Jaguar era um habitante da Grande Tenochtitlan. A
Princesa foi uma habitante da Grande Tenochtitlan. O cavaleiro
Jaguar estava andando quando Ehecatl (Deus do vento) soprou e
uma velha árvore desabou, ferindo gravemente O cavaleiro Jaguar. A
Princesa foi em busca de algumas plantas medicinais e curou o
cavaleiro Jaguar. Como resultado, o cavaleiro Jaguar ficou muito
grato a Princesa. O cavaleiro Jaguar recompensou a Princesa com
alguns cacauatl (grãos de cacau) e penas de Quetzalli (Quetzal)"10
(GERVÁS, 2012).
Avançando um pouco mais, Gervás destaca o interesse do programa
BRUTUS por "basear a sua capacidade de contar histórias em um modelo
10
Traduzido pelo autor a partir do original: Jaguar knight was an inhabitant of the Great Tenochtitlan. Princess was an inhabitant of the Great Tenochtitlan. Jaguar knight was walking when Ehecatl (god of the wind) blew and an old tree collapsed, injuring badly Jaguar knight. Princess went in search of some medical plants and cured Jaguar knight. As a result, Jaguar knight was very grateful to Princess. Jaguar knight rewarded Princess with some cacauatl (cacao beans) and quetzalli (quetzal) feathers.
17
lógico de traição. A riqueza desse modelo e as deduções que podem ser
tiradas a partir dele permitiu-lhe produzir histórias muito ricas"11 (2012).
Deduções ou inferências são características encontradas na criatividade
humana e este programa era capaz de produzir histórias muito próximas das
produzidas por autores humanos, porém Gervás observou que o algoritmo não
é criativo por ser " o resultado da engenharia reversa de um programa de uma
história, a fim de ver se ele pode construir essa história particular."12 (2012).
Pode-se perceber que tais algoritmos variam quanto ao tipo de
histórias que produzem e quanto as quantidades e tipos de dados de entrada
que necessitam (input). Tais variações influenciam diretamente a qualidade dos
textos produzidos por cada programa já que quanto maior a quantidades de
dados de entrada e mais restritas as possibilidades de saídas (output), mais
definida está a tarefa a ser executada e, portanto, mais consistente é a saída
produzida pelo algoritmo, entendo-se como consistente, a proximidade da
narrativa produzida pelo algoritmo com as narrativas produzidas pela
criatividade humana.
No entanto, acredito que os programas ou algoritmos ainda estão
muito longe desta capacidade por ser esta diretamente ligada a capacidade de
lidar com a indefinição, um patamar inatingível por inferências programadas
que dependem de um objetivo definido. A capacidade humana de lidar com a
indefinição através da criatividade, permite que seja possível a criação de um
método coletivo de criação de histórias, onde o objetivo se crie ao mesmo
tempo em que a história é contada e se torne identificável apenas ao final.
1.2 Narrativas como expressão da visão de mundo e a perda do coletivo
segundo Walter Benjamin
Em busca de uma visão filosófica que abordasse o papel das
narrativas num contexto social, inerente a condição humana, e portanto ao
próprio contexto cultural, encontrei no livro O Narrador (1994) do filósofo
Walter Benjamin um estudo que demonstra, e de certa forma comprova e
11
Traduzido pelo autor a partir do original: it based its storytelling ability on a logical model of betrayal. The richness of this model and the inferences that can be drawn from it enabled it to produce very rich stories.
12 Traduzido pelo autor a partir do original: the result of reverse engineering a program out of a
story in order to see whether it can build that particular story.
18
ratifica, o que vimos no início deste capítulo a respeito da importância dos
processos de expressão narrativas para a nossa cultura e identifica a
importância do fator coletivo presente nestas formas de expressão.
Através do estudo da obra do escritor Nikolai Leskov, Benjamin
analisa o papel social da narrativa enquanto expressão de um ponto de vista e,
ao mesmo tempo, determinante para este ponto de vista quando inserido num
momento histórico específico, refletindo sobre as contradições e paradoxos do
homem e da cultura demonstrando como a maneira de se contar histórias está
diretamente ligada a visão de mundo e consequentemente à maneira de se
relacionar socialmente.
Para Benjamin, as histórias produzidas através da tradição oral estão
mais próximas da realidade coletiva que procuram retratar, pois são histórias
inacabadas transformadas por cada narrador que a molda segundo suas
experiências e capacidade de compreender nossa realidade, obras coletivas
complementadas e alteradas constantemente por cada um que as conta.
Afastando-se de aspectos psicológicos dos protagonistas e
concentrando-se na memória sensorial e coletiva, esta somatória de diferentes
visões da realidade produz resultados mais naturais e de maior valor social.
Benjamin define essa história coletiva como Narração e a diferencia
do novo tipo, que conta uma história individual - com batalhas heroicas e
protagonistas, definindo como Romance. Esta mudança na maneira de narrar é
o resultado de uma alteração na forma do homem relacionar-se com o mundo e
com os outros homens.
Aqui, a diferença entre o receptor das narrativas - o ouvinte, e o
receptor dos romances - o leitor, denotam uma perda que o segundo sofre em
relação ao primeiro. A perda da participação para a passividade, da coletividade
para o individualismo.
O ouvinte se coloca ao lado do narrador e compartilha suas
experiências, inserido na história como participante. Em oposição, o leitor se
distancia da tradição oral e, portanto, não compartilha as experiências do
narrador, a história narrada é vista como algo externo e dissociado de sua vida,
um produto a ser consumido sem ligação com sua realidade.
Segundo Benjamin, o romance precisou de muito tempo até encontrar
num novo personagem social, a burguesia, um terreno fértil para sua
19
consolidação como expressão de uma nova visão de mundo, inaugurando uma
nova forma de comunicação, a informação.
"O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de
centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os
elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos
surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica;
sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas do novo conteúdo,
mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado,
verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual a
imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais
importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais
antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado
decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é
tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e,
de resto, provoca uma crise no próprio romance. essa nova forma de
comunicação é a informação" (BENJAMIN, 1994: p202).
Com o surgimento desta nova forma de contar histórias, o homem ou
o receptor perde a perspectiva de uma realidade coletiva transmitida através
das narrativas. Agora, já não estão mais ao lado do narrador na construção da
história, ou na hora de receber seus conselhos, que não são mais relevantes
porque descolados de sua realidade, saindo do circuito que perpetua o
conhecimento e os costumes de seu próprio grupo.
A falta de interesse pelas questões coletivas subtrai do homem a
capacidade de sentir-se inserido num contexto maior que si mesmo, passando
portanto a construir uma visão do mundo individual, segundo suas próprias
experiências, exacerbando o valor do protagonista, indivíduo, com relação ao
meio, lugares, pessoas e circunstâncias em que está incorporado.
A narrativa está, então, influenciando a visão de mundo dos homens e
ao mesmo tempo sendo transformada pela nova visão de mundo que o homem
inserido no capitalismo desenvolveu.
Neste sentido, a tentativa de encontrar uma forma coletiva de
produção de narrativas adquire maior importância por indicar a mudança do
ponto de vista individual da existência para o coletivo, uma mudança no estado
da consciência humana, que inclui o todo, que enxerga a importância do meio
20
para a existência individual e induz ao respeito e a valorização de nosso mundo
material e social.
1.3 Narrativas e tecnologia: novos paradigmas
Constatada a importância das narrativas para a humanidade,
passemos a analisar as mudanças que o processo narrativo sofreu ao longo da
história em função das descobertas científicas e dos avanços tecnológicos que
ocorreram em cada período.
As manifestações expressivas sempre estiveram ligadas ao meio ou
suporte disponível em cada momento. No princípio, as pinturas rupestres e a
tradição oral eram os suportes possíveis para a representação e significação
do mundo.
Novos suportes como a escrita, a música, a pintura, a fotografia, o
teatro, o rádio, o cinema, a televisão, foram surgindo e trazendo consigo outros
paradigmas para a construção de narrativas.
Murray (2003) cita o exemplo ocorrido após a invenção da prensa de
tipos móveis em 1455 por Gutenberg, quando livros passaram por um período
de aproximadamente cinquenta anos de experiências até que se
estabelecessem outras convenções, como fontes legíveis, numeração de
páginas, divisão do texto em parágrafos e do livro em capítulos. Os exemplares
impressos até 1501 eram chamados de incunábulos, termo derivado do latim
que se refere a faixa com as quais as crianças recém nascidas são envoltas,
numa alusão de que os livros ainda eram fruto de uma tecnologia recém
nascida. (2003: p41-42).
Após a invenção do cinema, passamos por um período semelhante de
experimentações até que com o uso desse novo meio construíssemos um novo
modelo para as narrativas que agora não eram construídas apenas com
palavras, mas incluíam imagens e posteriormente sons.
"Como ocorreu com a imprensa escrita, a invenção da câmera
cinematográfica conduziu a um período de incunábulos, de "filmes
berçários". Nas três primeiras décadas do século XX, os cineastas
inventaram coletivamente o meio através da criação de todos os
principais elementos da narração fílmica... A chave para esse
desenvolvimento foi agarrar-se às propriedades físicas exclusivas do
filme: os modos como a câmera poderia ser movida, como as lentes
21
poderiam se abrir, fechar e mudar o foco...o modo como as fitas
podiam ser cortadas e montadas. Investigando e explorando com
afinco essas propriedades físicas, os produtores de filmes
transformaram uma mera tecnologia de gravação em um meio
expressivo" (MURRAY, 2003: p73).
Neste início do século XXI, vivemos um momento histórico
semelhante ao vivenciado no início do século XX. Na época, a revolução
industrial imprimiu uma enorme mudança na forma de vermos e interagirmos
com o mundo. As máquinas e a eletricidade, aliados as descobertas científicas,
trouxeram outros suportes ou meios de expressão e inauguraram mais
linguagens e maneiras de nos comunicarmos.
Porém seria ingênuo dizer que vivemos hoje um estágio incunabular
das linguagens digitais, principalmente se pensamos nas mídias digitais
audiovisuais, pois este é bem anterior as mídias digitais e possui uma
linguagem definida que pôde apenas migrar de suporte. Fatores como
velocidade, interatividade e participação se incorporam a estas linguagens
antecedentes inaugurando formas de expressão através delas com uma nova
estética.
A compreensão das narrativas digitais passa obrigatoriamente pela
compreensão dos fatores estruturais que determinam sua forma e, como
consequência, suas possibilidades. Tal compreensão é fundamental para esta
pesquisa na medida em que permite a identificação dos parâmetros que
tipificam as narrativas digitais contemporâneas o que abre a possibilidade do
encontro de formas de construção ainda não exploradas com o uso da
tecnologia atual e das linguagens já estabelecidas.
Em seu livro The Language of New Media (2001) Lev Manovich
decompõe os elementos constituintes das linguagens digitais, estes, somados
as evoluções da tecnologia, são a base estrutural que permite a manipulação
de informação em velocidades cada vez maiores e determinam o surgimento
de possibilidades diferentes para o uso da informação na construção de
narrativas.
Parece-me claro que o aumento das velocidades de acesso,
manipulação e exibição de informação seja a condição necessária para uma
construção em tempo real, que desta forma pode ser vista como uma
22
decorrência direta da maneira como a informação é codificada e dos avanços
tecnológicos.
Sob este prisma, as linguagens das produções audiovisuais ao vivo
não diferem de outras a não ser pelas possibilidades que a velocidade com que
se acessa e apresenta a informação inauguram. Elas se apropriam das
linguagens audiovisuais existentes e incorporam os fatores tempo e espaço em
sua constituição. Ao fundir o tempo de produção com o da exibição, trazendo-
os para o mesmo tempo/espaço, abrem as portas para possibilidades
expressivas mais intuitivas e ligadas ao inconsciente do autor ou dos autores.
Portanto, esta pesquisa não busca a invenção de uma nova sintaxe
que configure uma nova linguagem, mas sim, buscamos uma nova forma de
utilizar as linguagens existentes apoiados na tecnologia.
Quais são então, os elementos ligados aos avanços tecnológicos que
estruturam e determinam estes novos modelos?
1.3.1 Elementos estruturais da linguagem digital
O formato digital possui como característica importante, o fato de
englobar praticamente todos os outros formatos de codificação da informação
existentes até agora.
Manovich coloca as mídias digitais como a convergência de duas
trajetórias históricas distintas:
A computação, utilizada a principio apenas para realizar
cálculos.
As tecnologias midiáticas, que permitiam o arquivamento de
informações na forma de imagens, sons e textos.
"A tradução de todos os meios existentes para dados numéricos
acessíveis para computadores. O resultado é a nova mídia: gráficos,
imagens em movimento, sons, formas, espaços e texto que se
tornam computável, ou seja, simplesmente um outro conjunto de
dados de computador" 13
(MANOVICH, 2001: p44).
13 Traduzido pelo autor a partir do original: The translation of all existing media into numerical
data accessible for computers. The result is new media: graphics, moving images, sounds, shapes, spaces and text which become computable, i.e. simply another set of computer data.
23
Em meados do século XX, a chegada da computação digital, a
possibilidade de codificação de qualquer tipo de informação através de
números, inaugura a síntese entre estas duas trajetórias: imagens, sons e
textos passam a ser computáveis e, portanto, o computador passa a ser a
mídia para onde todas as formas de comunicação convergem e se misturam
em novas possibilidades de construção e expressão da cultura.
É possível perceber que nas mídias analógicas não havia um padrão
para a codificação das informações, cada formato se baseava num suporte
diferente e, consequentemente, num padrão de codificação específico, que
pressupunha uma tecnologia específica para decodificação.
Os textos eram compostos e impressos em papel ou manuscritos, no
caso da fotografia necessitava-se do negativo e do processo de ampliação. No
vídeo a informação era gravada numa fita magnética e dependia de um
aparelho que as decodificasse.
A mídia digital unificou os formatos, codificando as informações
através de Bits, ou dígito binário, definido como uma entidade que pode
assumir apenas dois estados, certo ou errado, ligado ou desligado, 0 ou 1, etc.
O Bit é, portanto, a menor unidade de informação, ou seja, é o átomo
da informação, e através da concatenação destas pequenas partes traduzimos
todas as propriedades e características de um objeto para o computador.
Textos, imagens e sons são agora codificados no mesmo suporte, codificados
no mesmo padrão e decodificados pela mesma tecnologia. Todas as
tecnologias para a representação e a comunicação de informações passam a
existir num único suporte após o avanço da computação ocorrido no século XX.
―O computador ligado em rede atua como um telefone, ao oferecer
comunicação pessoa-a-pessoa em tempo real; como uma televisão,
ao transmitir filmes; um auditório, ao reunir grupos para palestras e
discussões; uma biblioteca, ao oferecer grande número de textos de
referência; um museu, em sua ordenada apresentação de
informações visuais; como um quadro de avisos, um aparelho de
rádio, um tabuleiro de jogos e, até mesmo, como um manuscrito, ao
reinventar os rolos de textos dos pergaminhos. Todas as principais
formas de representação dos primeiros cinco mil anos da história
humana já foram traduzidas para o formato digital‖ (MURRAY, 2003:
p.41).
24
Em resumo, pode-se afirmar que a convergência é o fator estrutural
da linguagem digital e pode ser explicada a partir dos princípios intrínsecos que
a constituem. Lev Manovich identifica cinco princípios que, devido a sua fluidez,
não se configuram como regras e sim como tendências:
I. Representação numérica.
Para que qualquer informação seja manipulada por computadores, esta
deve estar codificada numericamente para que, através do modo
procedimental da programação, possam ser manipulados por algoritmos.
―Todos os novos objetos de mídia, sejam eles criados diretamente
em computadores ou convertidos a partir de fontes de mídia
analógicas, são compostos de código digital; eles são
representações numéricas‖ 14
(MANOVICH, 2001: p. 49).
II. Modularidade.
Todos os textos, imagens e sons são codificados por amostras que,
analogamente, podem ser entendidos como átomos ou módulos,
estruturas menores que compõe um objeto maior preservando sua
identidade individual.
―Este princípio pode ser chamado de estrutura fractal de novas
mídias. Assim como um fractal tem a mesma estrutura em diferentes
escalas, um novo objeto de mídia tem a mesma estrutura modular
por toda parte. Elementos de mídia, seja imagens, sons, formas, ou
comportamentos, são representados como conjuntos de amostras
discretas (pixels, polígonos, voxels15
, personagens, roteiros). Esses
elementos são montados em objetos de maior escala, mas eles
continuam a manter a sua identidade separada‖ 16
(MANOVICH,
2001: p51).
14
Traduzido pelo autor a partir do original: All new media objects, whether they are created from scratch on computers or converted from analog media sources, are composed of digital code; they are numerical representations.
15 Abreviatura de "elemento de volume" ou "célula volume." Cada voxel é um quantum de uma
unidade de volume e tem um valor numérico (ou valores) a ele associado que representa algumas propriedades mensuráveis ou variáveis independentes de um objeto real ou fenómeno. O voxel é a contrapartida conceitual 3D do pixel 2D.
16 Traduzido pelo autor a partir do original:This principle can be called "fractal structure of new
media.‖ Just as a fractal has the same structure on different scales, a new media object has the same modular structure throughout. Media elements, be it images, sounds, shapes, or behaviors, are represented as collections of discrete samples (pixels, polygons, voxels, characters, scripts). These elements are assembled into larger-scale objects but they continue to maintain their separate identity.
25
III. Automação.
Um princípio decorrente da representação numérica e da modularidade
da mídia digital.
―Codificação numérica de mídia (princípio 1) e uma estrutura modular
de um objeto de mídia (princípio 2) permitem automatizar muitas
operações envolvidas na criação de meios de comunicação,
manipulação e acesso‖ 17
(MANOVICH, 2001: p53).
IV. Variabilidade.
Outro princípio que a representação numérica e a modularidade
conferem a mídia digital. Cada objeto possui uma estrutura virtual e
portanto passível de ser recodificada e atualizada, não se estabelecendo
como uma estrutura fixa.
―Um novo objeto de mídia não é algo fixo de uma vez por todas, mas
pode existir em diferentes, potencialmente infinitas, versões. Esta é
uma outra consequência da codificação numérica de mídia (princípio
1) e uma estrutura modular de um objeto de mídia (princípio 2).
Outros termos que são usados frequentemente em relação a novas
mídias e que seria apropriado, em vez de "variável" é "mutável" e
"líquido""18
(MANOVICH, 2001: p56).
V. Transcodificação.
A possibilidade de tradução de um formato para outro, que, para
Manovich, envolve tanto aspectos culturais quanto computacionais,
conferindo à mídia digital a capacidade de traduzir cultura e atualizar sua
própria estrutura procedimental.
―Começando com o básico, o princípio "material" das novas mídias -
codificação numérica e organização modular - partimos para
questões mais "profundas" e de grande alcance - automação e
variabilidade. O último, o quinto princípio, o da transcodificação
cultural, tem como objetivo descrever o que, na minha opinião é a
17
Traduzido pelo autor a partir do original: Numerical coding of media (principle 1) and modular structure of a media object (principle 2) allow to automate many operations involved in media creation, manipulation and access.
18Traduzido pelo autor a partir do original: A new media object is not something fixed once and
for all but can exist in different, potentially infinite, versions.This is another consequence of numerical coding of media (principle 1) and modular structure of a media object (principle 2). Other terms which are often used in relation to new media and which would be appropriate instead of ―variable‖ is ―mutable‖ and ―liquid.‖
26
consequência mais substancial da informatização dos meios de
comunicação‖ 19
(MANOVICH, 2001: p63).
Tais princípios são fundadores das narrativas digitais e determinam seu formato
e suas possibilidades, como veremos a seguir. Porém, pode-se dizer que,
somados ao aumento da capacidade computacional das máquinas e da
velocidade de transmissão de informações, criam um campo propício às
construções narrativas coletivas e em tempo real devido a sua característica
modular e a automação respectivamente. As histórias ou narrativas podem ser
construídas e apreciadas ao mesmo tempo, a criação pode acontecer em
tempo real com a exibição.
1.3.2 Narrativa Digital
Segundo Manovich, as narrativas digitais se baseiam em dois
aspectos principais, o primeiro é o aspecto procedimental e o segundo a lógica
da base de dados.
O autor identifica ainda três estágios procedimentais na linguagem
digital:
a. A codificação digital da informação em Bits ou zeros e uns.
b. A programação, entendida aqui como a forma de traduzir ao computador
o que queremos que seja feito. O programa é uma sequência de
instruções que o computador deve executar para resolver um problema,
manipular informações, executar uma tarefa.
c. O programa pronto e a disposição dos usuários para realizar tarefas.
O aspecto procedimental pode ser verificado facilmente quando
analisamos as narrativas dos games de computador. A narrativa de um game,
que é um programa, esconde uma lógica codificada em seu algoritmo, que é a
chave para sua narrativa e a tarefa do jogador é aprender sua lógica enquanto
joga, construindo a narrativa a partir desta. É curioso notar que os elementos
de uma narrativa, como dados, objetivos, descrições, problemas e possíveis
soluções, sejam encontrados nas bases da programação computacional.
19
Traduzido pelo autor a partir do original: Beginning with the basic, ―material‖ principles of new media — numeric coding and modular organization — we moved to more ―deep‖ and far reaching ones — automation and variability. The last, fifth principle of cultural transcoding aims to describe what in my view is the most substantial consequence of media’s computerization.
27
Outro fator importante é a lógica da base de dados inserida neste
processo. Definida como uma coleção estruturada de dados organizados para
busca e recuperação rápidas através de um computador, a base de dados é
uma nova estrutura para a codificação de experiências, que espelha as novas
formas de relacionamento entre o homem e seu mundo. A base de dados em si
não é narrativa, é uma coleção de informações que se tornam narrativas
através dos caminhos e relações que as interfaces (programas) criam a partir
dela.
De maneira simples, podemos entender que criar narrativas nas
mídias digitais, é o processo de construção de interfaces para uma base de
dados e esta passa a ser o centro do processo de criação.
A ruptura entre o conteúdo e a interface redefine a narrativa como um
caminho através desta coleção de dados organizados, definido pelo criador,
através dos links entre as informações existentes. Diferentes caminhos são
possíveis através da mesma base de dados com a criação de diferentes
interfaces (princípio da variabilidade). A narrativa interativa, ou hipernarrativa,
como a que encontramos em jogos, por exemplo, se compõe através da soma
das trajetórias possíveis, sendo, então, a narrativa tradicional um caso
particular da hipernarrativa.
Para Manovich, a mídia digital reverte a relação entre sintagma e
paradigma definida nos estudos semióticos anteriores a ela.
De acordo com o modelo formulado por Ferdinand de Saussure, em
sua teoria semiótica para o estudo e descrição de línguas naturais e depois
expandido por Roland Barthes para outros sistemas simbólicos (narrativas,
moda, etc), os elementos de um sistema simbólico podem ser relacionados a
duas dimensões:
A dimensão sintagmática, definida por Barthes como a
combinação de sinais que têm o espaço como suporte e
portanto suas relações ocorrem presencialmente ou
materialmente.
A dimensão paradigmática, que, segundo o próprio Barthes,
ocorre pela associação das unidades ou símbolos de um
sistema que possuem algo em comum e formam grupos onde
vários relacionamentos podem ser encontrados, portanto suas
28
relações não são presenciais ou materiais, ocorrem no
pensamento ou na imaginação de quem decodifica a narrativa.
Na mídia digital o paradigma, ou seja, a base de dados passa a existir
materialmente e a narrativa, ou seja, o sintagma, perde sua dimensão material.
Há, portanto, uma inversão: o paradigma é real e o sintagma é virtual.
"Os elementos em uma dimensão sintagmática estão relacionados in
presentia, enquanto os elementos em uma dimensão paradigmática
estão relacionadas in absentia. Por exemplo, no caso de uma frase
escrita, as palavras que a compõem materialmente existem em um
pedaço de papel, enquanto os conjuntos paradigmáticos a que estas
palavras pertencem só existem na mente do escritor e do leitor. Da
mesma forma, no caso de uma roupa da moda, os elementos que a
compõe, como uma saia, uma blusa e um casaco, estão presentes
na realidade, enquanto possibilidades diferentemente de outras
alternativas - saia diferente, blusa diferente, jaqueta diferente - que
só existem na imaginação do espectador. Assim, o sintagma é
explícito e paradigma é implícito; um é real e o outro é imaginado" 20
(MANOVICH, 2001: p203).
Esta inversão não representa uma quebra radical com as formas de
narrar do passado, pois apesar da grande quantidade de novas possibilidades
de experimentações possíveis neste novo suporte, ainda insistimos na
linguagem sequencial dominante no século XX trazida pelo surgimento do
cinema.
Manovich nos dá uma pista do caminho a seguir, pois já que o
software determina os caminhos pelos quais navegamos através da base de
dados, devemos buscar alternativas onde, através dos softwares, a base de
dados e a narrativa trabalhem juntos, com o mesmo grau de importância.
20
Traduzido pelo autor a partir do original: "The elements on a syntagmatic dimension are related in praesentia, whilethe elements on a paradigmatic dimension are related in absentia. For instance, in the case of a written sentence, the words which comprise it materially exist on a piece of paper, while the paradigmatic sets to which these words belong only exist in writer's and reader's minds. Similarly, in the case of a fashion outfit, the elements which make it, such as a skirt, a blouse, and a jacket, are present in reality, while pieces of clothing which could have been present instead — different skirt, different blouse, different jacket — only exist in the viewer'simagination. Thus, syntagm is explicit and paradigm is implicit; one is real andthe other is imagined."
29
Nunca em nossa história a chegada de uma nova tecnologia trouxe
consigo tantos novos paradigmas como a tecnologia digital de processamento
da informação.
Manovich cita Dziga Vertov21 como um precursor do uso da lógica da
base de dados no cinema e aponta seu filme Man with a movie camera de
1929 como um exemplo desta experiência.
O filme é feito sem um script definido, as imagens são captadas com
uma intenção definida, no caso pretende revelar a estrutura social de uma
cidade, e o processo de montagem do filme busca significados que espelhem a
ordem do mundo, experimentando diversas possibilidades de ordenação e
reordenação das imagens até que a sequência obtida, revele ou espelhe as
estruturas sociais da vida moderna.
O método criado por Vertov é, portanto, um passeio através de uma
base de dados. Pode-se dizer que o cineasta realiza a inversão entre sintágma
e paradígma, que Manovich atribui á mídia digital, antes da chegada desta,
quando coloca a coleção de cenas filmadas como a base de dados a ser
percorrida pelo diretor/montador que analogamente se equivale a interface pela
qual se cria tal percurso. A base de dados se torna dinâmica e objetiva,
indicando o caminho que integre base de dados e narrativa e inaugure uma
nova linguagem para o audiovisual.
A linguagem criada pelo diretor russo adquire uma nova forma a partir
dos surgimento da mídia digital que se apropria desta e a adapta para a
velocidade com que é possível consultar e usar a base de dados, que no caso
de Vertov dependia do tempo de produção e captação das cenas e da
montagem para que o filme pudesse ser visto. A mídia digital acelerou o
processo e permitiu que a montagem acontecesse durante a projeção. O tempo
real entre a criação e a exibição inaugura uma nova forma para a linguagem
existente.
Um exemplo, possibilitado pelo advento da mídia digital, da
metodologia de Vertov para a construção de narrativas audiovisuais, é o
surgimento na década de 1990 dos VJs (videojokey).
21
Dziga Vertov (1896 - 1954) Cineasta russo inventor do cine-olho ou cinema verdade.
30
Conforme descrito por Christine Mello no livro Os Vjs e as imagens
ao vivo, inacabadas, imersivas: o corpo em partilha com a obra (2004),
este tipo de vídeo performance diz respeito à manipulação e edição de
imagens em tempo real de forma sincronizada com a música eletrônica, sob a
lógica do improviso. (2004: p154-155). As imagens escolhidas pelos VJs,
muitas vezes não possuíam relações umas com as outras, sendo compostas
por trechos ou clipes de vídeo, animações e imagens abstratas. Porém, apesar
da produção de uma narrativa não linear - sem ligação com o tempo
cronológico - e subjetiva - sem um sentido explicito ou uma história coerente e
definida - não determinava que houvesse a falta total de significados ou de
mensagens.
Sabemos que para algumas vertentes da semiótica (por exemplo, nos
percursos de sentido Greimasianos, ou na semiose Peirceana), mesmos os
encadeamentos sígnicos abstratos produzem sentidos: ritmos, reiterações,
variações, contraste, etc. Isto implica em afirmar que mesmo as construções
que não tem um enredo explícito ―narram‖ algo; não há um vazio de sentido
nestas narrativas mais fluidas e abertas.
Os VJs utilizavam a mesma linguagem audiovisual criada por Vertov,
a produção dos significados surgia através da analogia gerada pela
concatenação das imagens. Porém, tais significados podem não ser os
mesmos para todos os que assistem a projeção, pois há ―a necessidade de
elaboração de um processo de analogia entre uma e outra imagem, deixando a
cargo do público a construção final dos sentidos do trabalho‖ (2004: p64).
Mello nos dá um ponto importante para a distinção de dois grandes
tipos de narrativas possíveis:
A primeira, como citado acima no exemplo dos VJs, é não linear e
subjetiva e seus significados implícitos e extremamente ligados a interpretação
do espectador, não há uma história com personagens e diálogos.
A segunda pode ser linear - compatível com o tempo cronológico - ou
não, porém possui uma história, um enredo.
Esta história é muitas vezes identificável e até previsível pelos
espectadores, estamos falando das narrativas encontradas no cinema
comercial para o grande público.
31
1.3.3 Narrativas objetivas e subjetivas
Tal distinção no entanto não é simples de ser estabelecida quando se
trata do cinema contemporâneo. André Parente, em seu livro Narrativa e
Modernidade (2000), faz um estudo profundo sobre o assunto. Seu objetivo é
caracterizar o audiovisual narrativo e não narrativo e apresentar os parâmetros
que ajudem a esclarecer esta questão sobre tipos de narrativas.
A partir das ideias do filósofo francês Gilles Deleuze, que escreveu
dois livros sobre o cinema e seus processos narrativos (Cinema-1: A Imagem-
movimento (1983) e Cinema-2: A Imagem-tempo (1985)) onde estabelece a
distinção entre imagem-movimento e imagem-tempo e com isso determina a
separação entre o cinema clássico e o moderno, quanto as diferentes formas
de representar o tempo, somadas as ideias de Blanchot sobre a existência de
um devir verídico, e um devir falsificante, que determinariam respectivamente
uma narrativa verídica ligada aos processos conhecidos da realidade e uma
narrativa não verídica onde o mundo conhecido se desmonta e abre espaço
para múltiplas visões de um mundo desconhecido.
"Em outras palavras, os processos narrativos/imagéticos são as
condições que explicam por que as imagens-movimento compõem a
narrativa verídica que exprime um devir único do mundo, e por que
as imagens tempo compõem a narrativa não-verídica a qual exprime
um devir múltiplo do mundo" (PARENTE, 2005: 269).
Parente mostra que as narrativas audiovisuais contemporâneas
mesclam estas duas formas de abordar o tempo e construir histórias e
demonstra a falsidade da oposição entre narrativo e não-narrativo que culmina
na generalização de cinema experimental como não narrativo, ou sem história,
e um cinema clássico ou convencional como narrativo, com história.
Parente nota que a oposição que generaliza o cinema experimental
como não narrativo e o cinema clássico como narrativo é falsa por três razões:
"o cinema, qualquer que seja ele, não tem natureza linguística,
mas propriamente imagética" (PARENTE, 2000: p. 14).
"a maioria dos processos que servem para distinguir as
imagens são, a um só tempo, imagéticos e narrativos"
(PARENTE, 2000: p. 14).
32
"para compreender melhor o cinema experimental, o cinema
direto e o cinema disnarrativo, devemos abandonar as falsas
oposições. Tais oposições não são pertinentes para pensar
as várias tendências que habitam o cinema dito moderno"
(PARENTE, 2000: p. 14).
O autor demonstra, ao longo de seu livro, que na composição do que
se denomina experimental, apenas o "cine-olho", ou "cinema-matéria" de
Vertov pode ser considerado não-narrativo, ou realmente sem uma história.
"o "cinema-matéria" é o único cinema que merece ser
qualificado de não-narrativo. A razão disso é evidente: no "cinema-
matéria", o olho não é distinto das coisas e o mundo é uma matéria
quente anterior aos homens. Para que haja história e narração, é
preciso que haja imagens privilegiadas, ou seja, centros sensório-
motores (intervalo de movimento, centro de indeterminação, cérebro,
organismo vivo, homem). Se não há intervalo de movimento, não se
pode passar de imagem a outra, seja para diferenciá-las ou integrá-
las" (PARENTE, 2000: p 97).
Portanto o universo do que denominamos narrativas é amplo e
contém a maior parte do que chama-se de cinema experimental e
erroneamente entende-se como não narrativo.
As narrativas estão presentes e permeiam nossa existência e as
histórias se constroem internamente especialmente nos processos imagéticos.
Parente afirma que "as imagens são acontecimentos" (2000: p14) e estabelece
três regimes para os acontecimentos imagéticos:
I. Imagens-matérias ou imagens não narrativas: "abordadas do
ponto de vista gasoso de variação universal" (2000: p14), não
têm ligação com nossa realidade por serem anteriores a nossa
existência. Acredito que talvez esta seja a razão pela qual não
suscitam a criação de narrativas em nosso processo de
cognição.
"As imagens-matéria são acontecimentos que antecedem o homem e
sua relação sensório motora com o mundo" (PARENTE, 2000: p. 14).
II. Imagens-substantivas: que expressam uma ligação direta com
nossa realidade, ou como Parente define, "são acontecimentos
33
que expressam as relações sensório motoras do homem e o
mundo" (2000: p. 14).
III. Imagens-tempo: que se formam no tempo, ou no caso do cinema,
ou dos processos narrativos imagéticos, na montagem, na
troca de uma imagem a outra. A quebra espaço-temporal que
desperta um significado ou um devir como explica Parente no
trecho abaixo:
"No regime de imagem-tempo, passar de uma imagem a outra não é
passar de um antes a um depois, é reunir o antes e o depois para
expressar um devir" (PARENTE, 2000: p. 14).
Estes dois primeiros regimes são o que Deleuze chamou de imagens-
movimentos que podem ser não-narrativas por não possuírem ligação direta
com nosso repertório sensório motor e, portanto, não despertarem o processo
mental que nos faz criar histórias. Ou podem ser imagens-movimentos
narrativas que por expressarem nossa relação sensório-motora com o mundo
despertam o processo mental que estabelece relações e constrói as histórias,
ou em resumo narrativas
Independentemente do regime ao qual o acontecimento, ou podemos
dizer a imagem, esteja vinculada - esta sempre será a expressão de um devir,
que se configurará como narrativa se houver relação com a realidade interna
ou externa, em outras palavras, a realidade percebida e a realidade pensada.
Parente conclui:
"Em cada regime de acontecimento imagético, o acontecimento é um
devir que a imagem expressa: devir coisa para as imagens-matérias,
pois passar de uma imagem a outra é pôr os olhos na matéria; devir
verdadeiro para as imagens-substantivas, pois passar de uma
imagem a outra equivale a reconhecer, julgar, universalizar, explicar,
etc.;devir falso para as imagens-tempo, pois passar de uma imagem
a outra é mostrar o que elas têm de incomensurável, de inexplicável,
de comum, de insignificante etc" (PARENTE, 2000: p. 15).
De qualquer forma, no universo do que denominamos narrativas
podemos identificar uma divisão clara entre dois tipos de narrativas possíveis.
Uma que Parente identifica como a narrativa dos "filmes veiculares", ou de
34
cinema convencional, que ao longo do tempo se apropriaram de sintaxes
criadas por filmes considerados não-narrativos ou não-diegéticos, mas
possuem um sentido imediato ligado diretamente a montagem e a diegese.
Acredito que esta característica esteja diretamente ligada à relação
entre cada plano quanto a complementação de seus sentidos. Tal
complementação possui um caráter explicito, uma relação de continuidade de
forma direta ou indireta, "verdadeira" ou "falsa", ou seja, com imagens-
movimento ou imagens-tempo, que conduza a um enredo específico que conte
uma história específica que pode ser reproduzida a partir do encadeamento
dos fatos que a compõe.
Em oposição a este tipo de narrativa, Parente utiliza o termo "filmes
artísticos", ou de cinema experimental, para identificar os filmes onde as
experiências com a linguagem ou a gramática do cinema, são levadas ao seu
limite; o que não significa que os filmes produzidos não desenvolvam narrativas
porém, nestes casos, as narrativas são fluidas, gasosas, subjetivas, onde "o
sentido não adere imediatamente aos acontecimentos representados" (2000:
p26).
Aqui a relação entre os planos não é evidente, não há continuidade
explícita dos sentidos intrínsecos a cada plano que conduzam a uma história
específica, com fatos específicos encadeados. Não possuem um sentido
imediato diretamente ligado a montagem e a diegese.
Procurei sintetizar, no diagrama abaixo, a relação do cinema
convencional e do cinema experimental com os universos das narrativas e das
não narrativas:
35
figura 1 - diagrama da relação do cinema com tipos de narrativas.
Esta distinção é fundamental para esta pesquisa, por permitir a
identificação de dois tipos distintos de narrativas que permitem a análise das
produções narrativas coletivas e em tempo real atuais e a identificação de uma
forma diferente das experimentadas até agora.
Conforme as considerações expostas acima, considera-se à partir de
então neste trabalho, as seguintes nomenclaturas:
Narrativas objetivas - referem-se ao cinema comercial com um enredo
ou história que se desenvolve a partir das ações e diálogos dos personagens
nas cenas que devem possuir uma ligação direta, coerente e inteligível entre si.
Narrativas subjetivas - aquelas onde o sentido, a história ou enredo
não é direto e explícito, quando a ligação entre uma cena e outra não é direta e
36
óbvia como no cinema comercial e, muitas vezes, onde não há uma história
definida.
Outra possibilidade importante, que torna as narrativas produzidas na
mídia digital diferentes das do cinema analógico, é aquela onde acontece a
criação coletiva.
1.3.4 Narrativas coletivas
A produção coletiva de narrativas, direta ou indiretamente, aliadas à
possibilidade de utilização de diversas mídias em tempo real, aparece como
um caminho dos mais instigantes e inovadores por nos levar de volta, ao que
Benjamin chamou de narrativas mais naturais e com maior valor social por
englobarem as visões e experiências de várias pessoas.
É no mínimo curioso pensar que a tecnologia seja o motor que nos
leve de volta a uma visão coletiva do mundo, quando muitas vezes pensamos o
contrário.
Este retorno a valorização do coletivo pode ser identificado nas
práticas trazidas pelo Dadaísmo para a produção de arte. A estética criada pelo
movimento no início do século passado baseava-se na experimentação de
técnicas que envolviam o acaso e o "reaproveitamento" para a produção de
arte, com colagens de imagens e associação de objetos fabricados para outros
usos, criando novos significados. Nota-se um fator coletivo, mesmo que
indireto, no processo de criação, se pensarmos numa colagem de imagens
produzidas por várias pessoas diferentes que são utilizadas em conjunto para a
criação de novos significados.
Pode-se concluir, portanto, que a cultura remix é muito anterior ao
surgimento deste termo. Na verdade, é o dadaismo que inaugura a estética da
recombinação e do reaproveitamento com as produções de poemas aleatórios
e o readymade, nome dado a obras feitas pelo reaproveitamento de objetos.
Um exemplo famoso do readymade é a obra de Marcel Duchamp
intitulada "A fonte" de 1917.
37
figura 2 - Obra "A fonte" de Marcel Duchamp, 191722
Tal estética vem de encontro às possibilidades surgidas na mídia
digital, possibilidades estas diretamente ligadas a forma de codificação das
informações, como descrito por Manovich, que desemboca na existência das
bases de dados e sua lógica de acesso e uso.
O surgimento da base de dados digital que contém as informações de
diversas mídias no mesmo suporte, convida ao reaproveitamento e a colagem
que, somados a facilidade e a velocidade com que a mídia digital permite que
se realize tais operações de recombinação, criaram uma nova estética, não
apenas para o audiovisual, mas para muitas formas de produção de narrativas,
entendida aqui como o conceito amplo de produção da cultura.
22
Disponível em https://egonturci.files.wordpress.com/2012/09/duchamp-fonte.jpg&imgrefurl=https://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/&h=258&w=196&tbnid=2pW2OaDM5msrCM:&zoom=1&tbnh=186&tbnw=141&usg=__1TFW3Jyvv1lQN3cdqO5IqQZuZOs=&docid=3vtOLSAZBTi09M&itg=1&ved=0CMEBEMo3&ei=mEfKVM7oHqTbsATBwICIDQ, acesso em 15/01/2015.
38
Esta passa a ser a forma de produção para muitas áreas artísticas e
criativas no final do século passado. O design em todas as suas vertentes, a
música, a gastronomia passam a utilizar a releitura como processo de criação e
as facilidades do meio digital de produção intensificaram esta tendência que
passou a ser chamada de estética remix, numa alusão a reutilização e
recombinação de elementos.
Manovich nota em seu artigo "What comes after remix?":
‖Atualmente, várias formas de estilo de vida e culturais – música,
moda, design, arte, aplicações web, mídia criada pelos usuários,
comida – estão cheias de remixagens, fusões, colagens e ―mash-
ups‖. Se o pós-modernismo definia os anos 1980, o remix
definitivamente domina os anos 2000 e irá provavelmente continuar a
dominar na próxima década" (MANOVICH, 2007).23
O autor também assinala em seu artigo que o processo de produção
remix surge primeiramente na música com as possibilidades que a tecnologia
dos mixers multipista inauguraram, passando a ser usado para todas as
formas de produção cultural com a chegada da mídia digital:
"O Remixing possuia originalmente um sentido preciso e estreito que
gradualmente tornou-se difuso. Embora precedentes da remixagem
possam ser encontrados mais cedo, foi a introdução de mixers multi-
track que fizeram da remixagem uma prática padrão. Com cada
elemento de uma canção - vocais, bateria, etc. - disponíveis
separadamente para manipulação, tornou-se possível o "re-mix" de
uma canção: alterar o volume de algumas faixas ou faixas novas
alternativas para as antigas. Aos poucos, o termo tornou-se cada vez
mais amplo, referindo-se hoje a qualquer reformulação dos trabalhos
culturais já existentes" (MANOVICH, 2007).
A estética (remix) pode ser entendida como uma forma coletiva
indireta de produção artística, já que podemos nos apropriar de conteúdos
produzidos por outros, para compor um novo objeto artístico, ou uma nova
aplicação de software com novas utilidades e significados.
23
Traduzido pelo autor a partir do original: Today, many of cultural and lifestyle arenas - music, fashion, design, art, web applications, user created media, food - are governed by remixes, fusions, collages, or mash-ups. If postmodernism defined 1980s, remix definitely dominates 2000s, and it will probably continue to rule the next decade as well.
39
O VJing, citado acima como um exemplo da aplicação da lógica da
base de dados, associado as técnicas de montagem criadas por Vertov,
também é um exemplo da cultura remix e de produção coletiva indireta, pois
suas criações são montadas a partir de uma coleção de clipes, imagens e
softwares para a geração do animações, ou seja uma base de dados utilizada
para compor seu filme em tempo real.
Chamamos de produção coletiva indireta porque parte do conteúdo
que compõe a base de dados, foi produzido por outras pessoas que não
participam da criação da narrativa, muitas vezes nem sabem que suas imagens
estão sendo utilizadas para aquele fim.
Alguns VJs criam métodos de criação colaborativos mais diretos,
dando ao público a possibilidade de intervir no filme através de dispositivos
móveis como celular, tornando o filme produzido - uma criação coletiva - aonde
várias pessoas conduzem a narrativa criada e projetada na tela, o que
podemos chamar de uma narrativa coletiva direta.
O VJ Tyler Freeman produziu um aplicativo, que chamou de Layer
Synthesis Device, para a produção colaborativa de vídeo performances ao
vivo em concertos e shows. O aplicativo permite que a audiência manipule a
projeção na tela a partir de smartphones, permitindo a qualquer pessoa se
logar numa das telas ou na tela, no caso de haver apenas uma, e mudar os
vídeo clipes, animações e mesmo misturar diferentes camadas de vídeo juntas.
As modificações feitas são vistas em tempo real na tela para todo o público e
nas telas dos smartphones de quem estiver logado ao sistema.24
24
Outsourcing The VJ: Collaborative Visuals Using The Audience’s Smartphones disponível em
http://www.leoalmanac.org/vol19-no3-outsourcing-the-vj/ em 14/04/2014.
40
figura 3 - apresentação do Layer Synthesis Device25
A ampliação do fator coletivo, presente na narrativa produzida no
exemplo acima, contudo não define um limite do coletivo nas produções
culturais contemporâneas, pois a base de dados (os clipes de vídeo e imagens
utilizadas na produção) tem ainda uma produção coletiva indireta, mas o
acréscimo da intervenção em tempo real no resultado revela caminhos
possíveis para a produção coletiva direta, onde a base de dados também seja
criada coletivamente.
A instauração de ambientes colaborativos para a produção de textos,
imagens, filmes, etc, encontrados na Rede Mundial de Computadores (WEB)
na forma de blogs, vídeo blogs e redes sociais, abre o caminho para a
produção de narrativas coletivas em todas as áreas, de forma não-linear e
subjetiva, na maioria dos casos.
O trabalho Webpaisagem 0 de Giselle Beiguelman, Marcus Bastos e
Raphael Marchetti. explora a estética da recombinação, remix, utilizando a
lógica da base de dados de maneira coletiva direta, recebendo o conteúdo,
composto por sons, imagens, vídeos e textos, enviados por email. Os
25
Disponível em http://www.leoalmanac.org/vol19-no3-outsourcing-the-vj/, acesso em
14/04/2014.
41
conteúdos recebidos são inseridos na base de dados onde uma "máquina de
samplear" mixa os conteúdos. Esta "máquina de samplear" é um software que
assume aqui o papel da interface que constrói a narrativa.
A narrativa resultante é específica, porque restrita a uma região e com
uma intenção definida, porém, subjetiva; não-linear. As cenas e imagens que
compõe a base de dados podem ser vistas em diversas ordenações sem
prejuízo de sua intenção.
O objetivo é construir visões do nordeste brasileiro a partir de imagens
multimídia, num processo infinito de recombinações que produzem uma
narrativa instável e mutante. Não há uma história definida, a narrativa é
subjetiva e seus significados abertos apesar de haver um objetivo que a
conduz.
O resultado é uma criação coletiva de imagens multimídia tratada
como princípio de uma cultura de reciclagem, um remix de muitas pessoas.
É perceptível a ligação direta que estas formas narrativas têm com as
bases estruturais da mídia digital identificadas por Manovich.
Conteúdos de diversas mídias (sons, textos, imagens e vídeo) são
usados para compor a narrativa evidenciando o processo de convergência
possibilitado pela base numérica comum - a modularidade que permite a
montagem aleatória, a lógica da base de dados e a interface que escolhe o
caminho a ser percorrido.
A mídia digital trouxe o suporte com características que facilitam a
convergência e parece ser a causa de seu aparecimento, mas acredito que ela
apenas crie o cenário propício para que a convergência latente no processo de
criação do conhecimento emirja com mais força e velocidade, por ser um
instrumento midiático que possibilita a interação profunda entre as pessoas e
também com a base de dados de informações que sofre uma ampliação de
conteúdos exponencial.
Henry Jenkins diz em seu livro Cultura da Convergência (2009) que
"a convergência não ocorre por meio de aparelhos" mas "dentro dos cérebros
de consumidores individuais e em suas interações sociais com os outros".
Pode-se portanto entender a causa da convergência como uma tendência
natural implícita na forma como construímos e compreendemos nossa
realidade, porém a mídia digital e seus aparelhos são os meios pelos quais
42
essa tendência se expressa de maneira mais direta, onde as interações sociais
se intensificam através da conexão constante que permite a interação ou o
diálogo e a troca de informações em tempo real.
Outro exemplo é o do projeto Telepatia de Daniel Sêda onde sobre
um argumento pré-definido, várias pessoas escrevem e produzem clipes de
filmes que aos poucos formarão um filme completo.
figura 4 - frame de um clipe do projeto Telepatia.26
A narrativa ocorre em duas frentes, uma audiovisual e outra escrita.
Nota-se que a narrativa audiovisual é subjetiva e poética. Ao se assistir os
clipes ou o filme que está se formando não é possível a compreensão da
história e de seu argumento, porém a narrativa escrita se mostra mais definida
sobre este aspecto. Parece-me que os filmes funcionam como ilustração da
narrativa, que após compreendida através dos textos se torna identificável nas
imagens.
Neste caso, há um argumento definido e personagens podem surgir.
Apesar disso, o objetivo final não é a produção de uma narrativa com uma
história definida, identificável e mesmo previsível pelos espectadores. A
proposta é de uma narrativa não-linear e subjetiva, ou mesmo nas palavras do
grupo: uma narrativa de "atos orquestrados de terrorismo poético"27. "Este é
26
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Q2SNzO3R4Qk, acesso em 17/05/2014. 27
Disponível em http://telepatia.blogspot.com.br, acesso em 17/05/2014.
43
um projeto lítero-audio-visual que esta lentamente produzindo um longa-
metragem não-linear experimental... "28
É interessante notar que o argumento inicial para o filme seja o
desenvolvimento de capacidades telepáticas de um grupo de pessoas que
iniciam uma sociedade paralela. Tal argumento vem de encontro às ideias de
Jenkins sobre a convergência como tendência natural da cultura humana e não
necessariamente ligada aos avanços da tecnologia.
Se tivéssemos essa capacidade a interação e conexão constantes
entre as pessoas também nos levariam a convergência que assistimos ocorrer
hoje.
Um exemplo diferente de narrativas coletivas possíveis com a
evolução da tecnologia, é o aparecimento do Mídia Ninja.
O Mídia Ninja é um grupo independente que se propõe a produzir
narrativas jornalísticas fora do circuito da grande mídia e, que por não
possuírem vínculos com grupos econômicos, produziriam um jornalismo mais
transparente.
A palavra NINJA é uma sigla que significa Narrativas Independentes
Jornalismo e Ação. Possuem um canal de TV na Web onde transmitem e
publicam as reportagens gravadas e transmitidas por celulares de fatos e
ocorrências das cidades.
Neste caso as narrativas produzidas são coletivas e objetivas, pois
narram um fato real, com a intenção informativa. A história a ser contada não é
criada pelos participantes. A narrativa se constrói a partir do registro de uma
história em tempo real como uma somatória das visões de quem as está
registrando, trata-se do registro coletivo de uma história ou acontecimento real
e não da criação coletiva dela.
Por ser nossa realidade construída a partir da interpretação que cada
indivíduo faz do mundo, baseado em seu próprio repertório, ou pode-se dizer,
de sua própria base de dados, esta pluralidade de visões, aliada a falta de um
vínculo institucional, teoricamente ligado a interesses econômicos, é que
permite um jornalismo mais transparente e mais próximo da realidade coletiva.
28
Disponível em http://telepatia.blogspot.com.br em 17/05/2014.
44
A seguir veremos uma forma de construção coletiva de narrativas
audiovisuais em tempo real que surge com a mídia digital: o Live cinema.
1.3.5 Live cinema
Uma das formas narrativas surgidas sob evidente influência das
tecnologias digitais foi o Live cinema. Esta forma de narrativa audiovisual é de
difícil definição, pois abarca vários estilos onde o remix é uma característica
comum, mas diferentemente do VJing, o Live cinema parece ser mais autoral e
artístico, principalmente na produção da base de dados, ou seja, do material
que será usado na composição do filme.
O remix é apenas uma das possibilidades exploradas pelo Live
cinema, pois em muitos casos as imagens são produzidas pelos autores que
usam, portanto, imagens inéditas pré-gravadas ou captadas ao vivo e até
mesmo imagens produzidas automaticamente pelo computador ou arte
generativa29.
Mia Makela evidencia esta diferença em sua dissertação de mestrado
Live Cinema: Language and Elements:
"O termo LIVE CINEMA é usado para descrever um trabalho que é artístico em essência, para distingui-lo do VJing, que é basicamente DJing visual. DJs não produzem seu próprio material, eles misturam música, da mesma forma como VJs misturam material já existente. Isto não significa que VJs não podem criar seus video-clips, mas muitos consideram que não é necessário, para um VJ, produzir seu próprio material já que apresenta principalmente as correntes visuais contemporâneas de nossa cultura. Também existe um mercado para compra e venda de vídeo -clips. Isto significa que muitos VJs podem usar os mesmos clipes, nestes casos, o conteúdo não é tão importante quanto a sua usabilidade em uma mistura. O ato de mixar e selecionar torna-se o trabalho de um VJ. DJs fazem o mesmo, eles escolhem certo tipo de música e amostras, batida e estilo, como techno, house ou drum'n'bass. Criadores de Live Cinema parecem ser mais pessoais e artísticos do que os VJs" (MAKELA, 2006: p.23).
30
29
Arte generativa: termo usado para se referir a arte gerada a partir de algoritmos de computador.
30 Traduzido pelo autor a partir do original: "LIVE CINEMA describes work in which is in
essence artistic, to make a separation from VJng, which is basically visual DJing. DJs don’t produce their own material, they mix music, the same way as VJs mix already existing material. This does not mean that VJs would not also create their video-clips, but there are many who consider that producing material it not necessary for a VJ, who mainly presents the contemporary visual currents of our culture. There also exists a market for selling and buying video-clips. This means that many VJs can use the same clips. In these cases, content is not as important as its usability in a mix. The act of mixing and selecting becomes the work of a VJ. DJ’s do the same, they choose certain type of music and samples, beat and style, like techno, house or drum'n'bass. Live cinema creators' goals appear to be more personal and artistic than VJs"
45
Outra diferença do Live cinema para o Vjing se encontra na variação
de formas das performances que se distinguem quanto ao:
Espaço das projeções: podem ocorrer em salas fechadas ou
espaços abertos e públicos.
Suporte das projeções: podem ocorrer sobre telas, prédios,
esculturas.
Técnica de projeção: com o uso de um ou mais projetores,
imagemapping, etc.
Imersão e participação do público.
Tipo de mídias e misturas de linguagens artísticas entre outros
fatores.
Analisando definições de Live cinema, dadas por autores e
produtores, nota-se que, por mais abrangente que sejam, não incluem todas as
possibilidades que as combinações de tantas variáveis proporcionam.
Talvez este seja um dos motivos da dificuldade de construção de uma
linguagem baseada nas características específicas do meio, pois não há
especificidade de características, mas a multiplicidade e a metamorfose que
produzem novas formas constantemente.
Em coluna publicada na revista do cinema brasileiro, Luiz duVa31
define o Live cinema da seguinte maneira:
"O termo "LIVE CINEMA‖ ou ―Cinema ao Vivo" foi usado
originalmente para classificar uma sessão de cinema silencioso que
tinha a execução de música ao vivo durante a sua apresentação.
Mas isso foi no início do século passado, hoje o termo "LIVE
CINEMA" diz respeito à execução simultânea de imagens, sons e
dados por artistas visuais, sonoros ou performáticos que apresentam
suas obras ao vivo diante da platéia. São apresentações onde a
improvisação e o acaso fazem parte de um processo que resulta na
possibilidade de criação e vivência, por parte do público, de uma
31
Luiz Duva é um artista experimental no campo da videoarte, performance e novas mídias que
desenvolve desde o início dos anos 1990. Narrativas pessoais em vídeo, bem como uma série de experiências com videoinstalações. Do ano de 2000 para cá vem se dedicando ao Live Images, termo por ele cunhado para designar a manipulação de imagens e sons em tempo real em ambientes imersivos, à criação e apresentação de composições audiovisuais, de projetos de Live Cinema e ao desenvolvimento de conteúdo para diferentes mídias: TV, internet e celular. Duva também é um dos criadores e o diretor artístico da Mostra Live Cinema, mostra de performances audiovisuais que acontece anualmente no Brasil desde 2007
46
experiência audiovisual expandida, agora mais do que nunca,
também entendida como sensorial e imersiva" (DUVA, 2014).
O professor e artista experimental Marcus Bastos deixa claro que a
construção narrativa ocorre em tempo real .
" O termo é amplo, e se refere à vertentes do audiovisual
contemporâneo em que a construção da narrativa é sincrônica aos
acontecimentos que nela se desenrolam, seja de forma roteirizada ou
a partir de improvisos" (Marcus Bastos, disponível em
http://contradiccoes.net/post/live_cinema/ em 16/05/2014).
Assim como o cinema convencional, o Live cinema também é uma
arte cuja produção é coletiva.
No cinema convencional, um diretor não produz o filme sozinho
porém, coordena a equipe com a intenção de produzir uma narrativa
específica, geralmente objetiva apesar de não necessariamente linear, com
uma história construída a partir de diálogos e personagens. A equipe produz o
filme e não a narrativa.
No Live cinema, as performances podem ser individuais, mas na
grande maioria dos filmes a narrativa é feita por vários artistas produzindo
imagens, sons, atuando com o corpo, etc. A produção coletiva inclui a produção
da narrativa do filme que, ao contrário do cinema convencional, geralmente é
subjetiva.
Talvez porque o Live cinema seja uma arte experimental e siga a
tradição do audiovisual experimental com suas origens no surrealismo e nas
experiências com o vídeo de Nam June Paik32 onde não há vazios de
significados, porém apesar de existir uma narrativa, não existem personagens
nem diálogos que construam uma história com começo, meio e fim. A narrativa
é diferente para cada espectador, pois é decodificada por cada um com seu
próprio repertório de experiências e conhecimento, em conjunto com a
composição de seus sentimentos sobre a vida e o mundo.
Contudo no cinema experimental o mesmo filme é repetido a cada
exibição, sem a possibilidade de re-significação por parte do autor ou autores,
o que o difere profundamente do Live cinema onde a cada exibição um novo
32
Artista coreano considerado um dos fundadores da vídeo arte.
47
filme se cria com a nova montagem, a partir de uma base de dados pré-
construída para esse fim, com um argumento pré-definido na forma de um
roteiro aberto a mudanças ou uma história já criada e apresentada de forma
diferente a cada exibição.
Vale lembrar que a sintaxe da narrativa cinematográfica vem sendo
construída desde o surgimento das tecnologias que permitiram produzir
imagens em movimento e, portanto, estruturas narrativas criadas no cinema
experimental são incorporadas ao filme, porém sem prejuízo da condução da
história ou enredo que em filmes veiculares tem um sentido direto e objetivo.
Reforça-se então a definição proposta no ítem 1.3.3 deste capítulo, onde
colocamos as narrativas objetivas, ou de cinema convencional, como o tipo de
narrativa que o cinema comercial utiliza, onde o espectador vivencia uma
história de ficção com um enredo de fácil entendimento com uma história que
possua começo, meio e fim definidos.
A pergunta que fazemos é: será possível fazer Live Cinema com uma
narrativa objetiva, como a do cinema convencional a partir de uma base de
dados inexistente? É importante deixar claro que estamos nos referindo a uma
história nos moldes do cinema convencional, com personagens que interagem
e vivem um enredo com objetivos e conflitos, que componham uma história
objetiva que seja compreendida de forma parecida por todos que a assistam.
Que tipo de história se produziria? Uma história com vários autores.
Uma autoria diluída, somatória de intenções e visões diferentes. Talvez, mais
uma ramificação ou estilo e mais uma forma ou linguagem a se criar e definir.
CAPÍTULO 2. A QUESTÃO DA AUTORIA
O conceito de autoria existe para qualquer produção ou criação
humana seja ela artística, científica, técnica, etc. A construção de nosso corpo
cultural e de conhecimento está estruturada na recombinação de
conhecimentos acumulados, como tijolos que constituem uma parede - a
evolução de nossa cultura é alicerçada pelos tijolos e teorias anteriores que,
recombinadas e agregadas a novos conhecimentos, produzem novos conceitos
e teorias realimentando essa evolução.
48
A autoria individual é, portanto, um conceito discutível nos colocando
dentro de uma discussão longa e inacabada porque navega por limites
desfocados. Como determinar a importância da contribuição de ideias ou
conceitos anteriores para a nova construção a ponto de configurarem uma
participação autoral?
Percebe-se que este é um questionamento antigo iniciado com
Mallarmé e presente na obra de filósofos como Barthes e Foucault. Estes
questionamentos se intensificam com a chegada da mídia digital e suas
infinitas possibilidades de interação.
Os pesquisadores e professores Lucia Santaella e Arlindo Machado
apresentam parâmetros fundamentais para a amplitude dessa discussão com
relação as novas mídias, e o pesquisador e professor Antônio Miranda
apresenta uma visão focada nos parâmetros práticos para a determinação da
autoria ligada a questão de direitos autorais sobre a obra.
Isaac Newton, o famoso cientista em sua célebre frase "se vi mais
longe, foi por estar de pé sobre os ombros de gigantes", alude à importância da
contribuição de seus antecessores e suas teorias para que chegasse a suas
próprias formulações.
Estas reflexões têm uma variedade imensa de ramificações que
podemos levar para o âmbito da multidisciplinaridade ou da
interdisciplinaridade da autoria.
A influência das ciências sobre as artes já é uma questão discutida há
muito tempo. Evoluções tecnológicas revelam novos aspectos da realidade e
provocam novos pontos de vista que se refletem na produção artística, já que o
artista é um indivíduo inserido numa sociedade e influenciado por sua cultura
(narrativas que influenciam narrativas). Santaella afirma:
"Antes da revolução digital, também já existia uma repercussão, em
maior ou menor intensidade, das descobertas científicas sobre as
artes. Basta lembrar a influência sobre a pintura expressionista das
pesquisas científicas relativas ao funcionamento da visão humana"
(SANTAELLA, 2007: p.78).
Arlindo Machado ressalta que as pesquisas do fisiologista francês
Etienne-Jules Marey, com seus aparelhos para registro de imagens sucessivas
denominados cronofotógrafo e o fuzil-fotográfico, em conjunto com as
49
experiências do fotógrafo Eadweard J. Muybridge com multiplas câmeras, para
o registro e o estudo da anatomia do movimento dos animais, conduziram à
criação do cinema ou da imagem em movimento na tela.
A intenção de Marey e Muybridge, ao registrar imagens sucessivas,
era congelar o movimento para poder estudá-lo a partir de uma visão
decomposta de cada etapa corporal que o compunha. O fotógrafo inglês
registrou o galope de um cavalo em fotogramas sucessivos permitindo a visão
do momento em que as quatro patas ficam no ar durante um galope.
figuras 5 - The horse in motion de Eadweard J. Muybridge.33
Tais pesquisas possibilitaram, através da técnica de fotos sucessivas,
uma nova visão do mundo e, muito mais do que inspirar o cinema ou o
movimento natural na tela, influenciaram as artes como um todo.
Na medida em que muda o contexto onde se inserem os artistas, a
arte produzida passa a refletir a mudança. No caso, através da tecnologia,
33
Disponível em
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/The_Horse_in_Motion.jpg, acesso em
29/01/2015.
50
amplia-se a compreensão do mundo; e a compreensão ampliada inspira novas
visões, concretizadas em obras ou movimentos estéticos. Machado afirma:
"Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar
menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os
futuristas, como se sabe, utilizaram a cronofotografia para cantar as
belezas do movimento e da velocidade, ao passo que um dadaísta
como Marcel Duchamp - cujo Nu descendantl'escalier é uma criação
explícita do método de Marey - travou contato direto com as
experiências cronofotográficas por meio de seu irmão Raymond,
aluno de Londe na Salpêtrière" (MACHADO, 1997: p.18).
figuras 6 e 7 - cronofotografia de Étienne Jules Marey 1952
e reprodução de pintura de Marcel Duchamp de 1912.34
É claro que estas influências estão longe de serem consideradas co-
autorias, mas demonstram o caráter coletivo de qualquer criação da era
34
Disponível em
http://www.gianluigigargiulo.it/ricerca/cronofotografia/index_cronofotografia.htm,
acesso em 20/06/2014.
51
moderna, na medida em que as ideias se constroem ou fundamentam-se a
partir de ações e conceitos anteriores somados a influências do presente.
Lucia Santaella contextualiza o autor individual a partir das reflexões
de Foucault sobre a autoria. Partindo da pergunta: "o que é um autor?",
Foucault lembrou "a necessidade de localizar, como lugar vazio, os espaços
em que se exerce a função de autor, as funções livres que seu
desaparecimento faz aparecer" (apud SANTAELLA, 2007: p72), ao invés de se
ater ao debate dominante no contexto intelectual da época, cujo foco estava no
desaparecimento do autor como estabelecido até então.
Para Foucault o fundamental para a caracterização da função de
autor, é a distinção entre o nome próprio e o nome do autor que têm em
comum a função descritiva e designadora da origem de um conteúdo, porém se
distinguem pela existência de um "nexo claro entre o nome próprio e o
indivíduo nomeado, ao passo que não há isomorfia e um funcionamento similar
entre o nome do autor e aquilo que se nomeia, funciona para caracterizar um
modo de ser do discurso" (apud SANTAELLA ,2007: p73).
O autor tem a função classificatória que determina a importância do
texto dentro de um contexto social e o diferencia de textos cujo conteúdo seja
cotidiano e transitório.
Para Foucault a noção de autor "constitui um momento forte de
individuação na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, também
na história das filosofias e das ciências" (apud SANTAELLA ,2007: p71). Tal
individuação se faz necessária num primeiro momento para a identificação da
fonte das ideias principalmente quando transgressivas e, portanto, perigosas
para o equilíbrio da ordem vigente. Santaella afirma:
"Historicamente, os textos, os livros, os discursos só tinham autores
quando eram transgressivos, e, então o autor era objeto de castigo.
Na nossa e em muitas culturas o discurso não era originalmente um
produto, uma coisa, um bem, mas, sim, um ato entre o sagrado e o
profano, entre o lícito e o ilícito, portanto um ato carregado de riscos"
(SANTAELLA, 2007: p.73).
A individualidade da autoria parece-me mais importante, hoje em dia,
quando se considera o aspecto econômico, capitalista, onde a determinação de
52
um autor identifica o proprietário de um conceito ou ideia e, portanto, determina
o destino dos possíveis ganhos econômicos proporcionados por esta.
A autoria individual tem suas bases na difusão e exacerbação do
individualismo, somado a questões econômicas relacionadas ao direito autoral.
O professor Antonio Miranda aborda esta questão:
"A autoria é uma instituição em crise. Analisando-a em perspectiva, é
possível afirmar que está sujeita a interpretações diversas e até
divergentes em níveis de conceito e de práxis, em uma abordagem
multidisciplinar. Sempre esteve atrelada às noções de cultura e
ciência em que se desenvolveu, mas é na civilização ocidental,
sobretudo com o advento do liberalismo, do capitalismo e do
individualismo triunfantes, que a autoria ganhou foros de direito e as
áureas da sociedade. O estatuto do direito autoral configura-se como
reconhecimento máximo legal e social do indivíduo autor como
detentor de propriedade intelectual de valor econômico e de caráter
hereditário. Várias pesquisas européias sobre economia da cultura
demonstram que os benefícios do copyright em termos econômicos,
no entanto, conforme aponta Canclini(2008), vão satisfazer muito
mais os investidores que propriamente os criadores dos produtos
culturais" (MIRANDA, 2006: p.1).
Roland Barthes constata em seu texto "A morte do autor", que a
autoria pode ser contestada desde a antiguidade clássica, quando o texto já
era construído de forma ambígua e aberta a interpretação do leitor ou ouvinte,
que nesse sentido passa a ter participação "autoral" na medida em que insere
significados pessoais ao sentido do texto.
"Um exemplo, bastante preciso, pode fazê-lo a compreender:
investigações recentes (J.-P. Vernant) trouxeram à luz a natureza
constitutivamente ambígua da tragédia grega; o texto é nela tecido
com palavras de duplo sentido, que cada personagem compreende
unilateralmente (este perpétuo mal-entendido é precisamente o
«trágico»); há contudo alguém que entende cada palavra na sua
duplicidade, e entende, além disso, se assim podemos dizer, a
própria surdez das personagens que falam diante dele: esse alguém
é precisamente o leitor (ou, aqui, o ouvinte)" (BARTHES, 2004: p.70).
53
Acredito que as ideias de Barthes sobre a autoria com relação aos
textos, podem seguramente ser transportadas para as questões de autoria
relativas ao audiovisual e as novas mídias.
"Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas
múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as
outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em
que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como
se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que
uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem,
mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o
leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é
apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os
traços que constituem o escrito" (BARTHES, 2004: p.70).
A incorporação da interatividade amplifica a participação do espectador
na composição da narrativa tornando sua participação diretamente ligada aos
resultados. Barthes já havia sinalizado a morte do autor individual, gerada pela
intertextualidade da relação dialética entre o leitor e o texto, onde os
significados dependem da interpretação do leitor ao conteúdo escrito.
"Começamos hoje a deixar de nos iludir com essa espécie de
antifrases pelas quais a boa sociedade recrimina soberbamente em
favor daquilo que precisamente põe de parte, ignora, sufoca ou
destrói; sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso
inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a
morte do Autor" (BARTHES, 2004: p.70).
Porém, não se trata da morte do autor, mas do nascimento de um novo
tipo de autoria, onde o leitor/espectador preenche os espaços deixados,
conforme sinalizado por Foucault, pela constatação de que, o que chamamos
de autor até hoje, é o instrumento pelo qual convergem as ideias.
Barthes, assim como Foucault, identifica o início da crise da autoria
em Mallarmé quando este percebe que a linguagem, ou seja, o meio através do
qual se constroem as narrativas, é o verdadeiro autor; como se pode notar no
trecho abaixo:
"sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a
necessidade de pôr a própria linguagem no lugar daquele que até
54
então se supunha ser o seu proprietário; para ele, como para nós, é
a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma
impessoalidade prévia - impossível de alguma vez ser confundida
com a objetividade castradora do romancista realista -, atingir aquele
ponto em que só a linguagem atua, «performa»,. e não «eu»: toda a
poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da
escrita" (BARTHES, 2004: p.66).
A impessoalidade colocada como meta na arte moderna, a partir das
ideias de Mallarmé, não representa necessariamente uma renúncia a autoria,
mas sim um "recurso de sustentação da autoridade autoral quando a unidade
da autoria individual se deteriora" (BUCH-JEPSEN, 2002: p.78).
Tais questões relativas à autoria, apesar de concentradas na figura do
autor literário e anteriores ao surgimento das mídias eletrônicas, anteciparam
questões relativas a autoria, que o advento da interatividade, inerente as
mídias digitais, levanta com mais veemência. Aqui o leitor, ou o consumidor da
narrativa, participa da criação de forma direta e influencia sua condução até o
desfecho.
A multiplicidade de formas de interação que vão dos games até a
produção de conteúdos de forma colaborativa, ou mesmo a facilidade que o
uso da base de dados coletiva proporciona para a busca e construção de
novos conceitos, teorias ou obras, exigem um novo olhar sobre a ideia de
autor. O autor se dilui e passa a ser um condutor que instiga a produção de
uma narrativa numa certa direção, sem que com isso determine um desfecho
ou conclusão. De certa forma podemos dizer que as narrativas passam a ter
vida própria e, o autor, como o maestro de uma orquestra, o fio condutor
através do qual se cria uma narrativa com caráter impessoal.
Experiências feitas durante o surrealismo, como as narrativas
aleatórias de Tristan Tzara já indicavam um caminho onde a figura do autor,
como detentor do poder sobre a mensagem de uma narrativa ou de sua própria
constituição, se diluía através da concatenação aleatória de fragmentos de
outros autores. Miranda expõe este pensamento:
"Fernando Pessoa dizia que não se escreve com ideias, mas com
palavras, pretendendo dizer que as palavras é que moldam as ideias.
Tristan Tzara, o revolucionário dadaísta, deu um exemplo curioso da
inversão no processo criativo. Ordinariamente o criador parte de sua
55
experiência para construir seu discurso com as palavras e outros
signos que considera válidos para a representação das ideias. Tzara
recortava palavras de textos alheios, jogava os pedaços de papel em
um balde e depois, aleatoriamente, ia construindo novos e inusitados
textos..." (MIRANDA, 2006: p.6).
Tais exemplos nos permitem uma analogia direta com as formas
modernas de produção de conhecimento, inclusive no que tange a produção de
interfaces programadas para acesso a base de dados das mídias digitais.
A princípio, formatar um conteúdo e publicá-lo na rede mundial de
computadores era uma tarefa que exigia conhecimento profundo de
programação, funcionamento dos computadores e de redes. Apenas
programadores ou técnicos conseguiam produzir programas que executassem
tarefas ou gerassem interfaces para acesso aos dados de maneira lógica e
formatada.
Hoje em dia, é possível escrever um programa aplicativo, ou construir
um website com animações em HTML 5 disparadas através da interação com o
usuário, sem que haja a necessidade desses conhecimentos.
O programa MUSE da Adobe Systems é um exemplo claro desta
evolução, pois com ele é possível construir um site, como o citado acima, sem
conhecimentos de programação html, css e javascript. Pode-se também notar
tal relação também na construção de artes finais para a mídia impressa, onde o
usuário trabalha sem o mínimo conhecimento do postScript, que é a linguagem
de codificação das páginas no final.
Nestes exemplos, a autoria da página ou do site é atribuída a quem o
construiu, porém os códigos que permitiram sua construção foram escritos por
um número, às vezes, incalculável de pessoas e a função do autor foi a de
escolher e aplicar o código segundo sua intenção pessoal.
Um exemplo semelhante é o do website www.wolfram.com que se
apresenta como uma linguagem de programação baseada numa biblioteca de
códigos pré-programados e possíveis de serem combinados para produzirem
novos programas aplicativos.
Através de uma interface que permite de forma interativa e fácil a
composição de novos programas, os usuários não precisam possuir o
conhecimento de programação ou de uma linguagem específica para produzir
56
o aplicativo, que se compõe através dos conhecimentos codificados por outras
pessoas e concatenados, ou agrupados, de maneira diferente pelo usuário
autor. Trata-se, portanto, de uma linguagem de programação onde a autoria do
programa passa a ser coletiva num outro sentido, já que a pessoa que elabora
o programa através das concatenações de programas pré-criados, terá a
sensação de ser um autor único, mas o desenvolvimento do software contou
com uma legião de programadores/autores.
A diferença está no fato de que um software é geralmente escrito em
equipe e tem sua autoria reconhecida como tal, a codificação do conhecimento
na forma de programas de computador vela a participação de quem codificou
tal conhecimento que passa a ser percebido como próprio de quem o utiliza.
O processo de autoria necessita, então, de uma revisão, onde o
processo de produção e a capacidade de geração de novos conhecimentos, à
partir de novas relações entre os conhecimentos já produzidos, sejam levados
em consideração para sua determinação. Miranda afirma:
"Numa etapa final, a autoria seria mais ―inteligente‖ no sentido de sua
construção e projeção social mediadas pelas novas tecnologias da
informação. Exemplificando, os novos autores não partiriam apenas
das próprias experiências e reflexões pessoais, mas ampliariam isso
valendo-se dos recursos informacionais disponíveis em rede assim
também, e sobretudo, pela capacidade de gerar conhecimentos
novos pelas relações desenvolvidas no processo produtivo com as
ferramentas de autoria.
Na prática significa aliar a autoria do texto com o processo de
pesquisa de fontes de informação durante o processo de redação e
produção com a ajuda da ontologia" (MIRANDA, 2006: p.7).
Percebemos que o modo remix de produção cultural, como definida
por Manovich, é o eixo central, a forma básica de produção de conteúdo de
nossos tempos, evidenciada pelo advento das mídias digitais que explicitam o
processo remix de criar, iniciado com as experiências das produções
surrealistas do início do século.
O autor se torna uma figura de difícil definição e análise, mas em sua
resposta a esta questão, Manovich nos dá uma pista sobre os possíveis
critérios para a determinação do conceito, diante desta nova realidade:
57
"Existem tantas e diferentes formas de remix, fusões, mash-ups e
assim por diante, que eu penso que tentar fazer algumas afirmações
gerais sobre autoria em relação ao remix seria uma ilusão. Mas, em
um nível geral e abstrato, posso afirmar que um bom remix é um
diálogo entre o autor do remix e os autores dos trabalhos que estão
sendo remixados. E, já que muito frequentemente os próprios
músicos remixam suas músicas e letras antigas, o remix pode ser
também um diálogo com o meu próprio eu antigo" (MANOVICH apud
SILVA, 2012).
Entendo, portanto, que a autoria de uma história, ou uma narrativa
objetiva de maneira coletiva, representa um passo adiante nesta discussão,
porque coloca o autor individual de forma diluída num contexto coletivo de
produção.
A construção e o desenvolvimento de uma história, com enredo,
coletivamente, desfoca ainda mais a figura do autor individual, mas mantém a
função aglutinadora de ideias e indicativa de um estilo ou talento, que o
conceito de autoria encerra, porém agora, de um grupo e não de um indivíduo.
Como exemplo deste tipo de autoria, podemos citar o coletivo de
artistas Chelpa Ferro do Rio de Janeiro, composto em 1995 pelos artistas Luiz
Zerbini, Barão e Sérgio Mekler. O grupo se auto define como um coletivo
multimídia que realiza trabalhos onde se mesclam experiências com música
eletrônica, artes plásticas e tecnologia, com apresentações ao vivo
(performances) e exposições (instalações).
figuras 8 - Shelpa Ferro - 100m Rasos, Haus der Kulturen der Welt, Berlim, 2006.35
35
Frame extraído do DVD que acompanha o livro Chelpa Ferro editado pela Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo.
58
Diferentemente da autoria coletiva de um remix, a autoria das obras
do Chelpa Ferro é efetivamente coletiva, desde o nascimento da ideia até sua
execução. A intenção é coletiva e a obra não é construída a partir de uma base
de dados pré-existente, portanto se trata da mistura de habilidades,
conhecimentos e intenções que se personificam como um produto multimídia,
seja ele uma performance ou uma instalação.
O resultado final é fruto da integração dos conhecimentos de física,
artes plásticas, música, etc, de cada um.
É a somatória das habilidades e interesses dos artistas, em
permanente diálogo, que determina os caminhos da peça que está sendo
construída e esta, independente do formato, é uma narrativa. Neste caso, não
uma narrativa objetiva, porém com "um" autor coletivo batizado com o nome de
Chelpa Ferro. O autor não desaparece, mas não é possível, aqui, atribuir-se a
autoria a um indivíduo.
CAPÍTULO 3. EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE
NARRATIVAS COLETIVAS
Ao longo de nossa história podemos colher diversos exemplos de
narrativas produzidas de forma coletiva. Desde os estudos promovidos pelos
surrealistas com textos e imagens até o momento presente, onde as novas
tecnologias abrem as portas para produções coletivas em todos os níveis.
Este capítulo apresenta a descrição e análise, de quatro exemplos de
narrativas produzidas coletivamente, com relação ao tipo e as técnicas
empregadas em sua construção.
Para esta análise foram escolhidos dois exemplos específicos de Live
cinema extremamente baseados na lógica da base de dados e outros dois que
envolvem a interatividade e multiplicidade de participantes e a realização pura
de uma história em tempo real sem o auxílio de novas tecnologias
respectivamente. Considera-se a escolha destes exemplos significativa para a
identificação de características específicas do meio digital e da produção
59
coletiva em tempo real, que possam nos conduzir á proposição de um novo
método.
STORM de Luiz duVa36
figura 9 - apresentação de storm.37
Storm é uma composição audiovisual sobre a relação do ser humano
com o desconhecido; coloca-nos frente a frente com os medos e as angústias
que sentimos quando experimentamos a incerteza e a imponderabilidade e as
maneiras que encontramos para superar ou transpor esses obstáculos,
apresentada em um espetáculo de improvisação multimídia.
O público é acomodado na sala de projeções, preferivelmente, não
em cadeiras, mas em almofadas e colchonetes espalhados pelo chão bem
próximo e abaixo da tela. Desta forma imagens, sons e público se misturam
num espaço comum que transcende a tela de projeção e ocupa todo o espaço
físico em torno colocando o público como protagonista.
Luiz duVa compõe o filme ao vivo a partir de centenas de pequenos
arquivos de vídeo captados por ele com paisagens da Mata Atlântica brasileira
e da costa das praias do sul da Inglaterra, que são concatenados de forma
36
Composição audiovisual de luiz duVa; Nas imagens: Benito Karmonah e luiz duVa;
Composição sonora de Manuel Pessôa; Direção de Fotografia: Azul Serra; Assistência de
direção: Cecília Engels: Agradecimentos: Clélia e Líbero Malavoglia.
37 Disponível em http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html, acesso em
22/12/2014.
60
frenética na tela, com sobreposições e efeitos aplicados sobre as imagens,
produzindo um forte impacto visual e emocional.
O áudio também é processado ao vivo pelo compositor Manuel
Pessôa, a partir de samplers previamente produzidos, que são usados para
compor uma nova trilha a cada apresentação do espetáculo.
Como não há um roteiro concreto a ser seguido, a interação entre as
imagens e sons, nem sempre sincronizada, cria espaço para que o jogo, entre
o que se vê e o que se ouve, revele as sensações específicas que cada um de
nós sente frente ao desconhecido.
Neste sentido a imersão adquire um papel fundamental na
composição da obra como forma de intensificar e complementar as sensações
provocadas pelas imagens.
"Em STORM vemos aos poucos uma tempestade se formar e
explodir sensorialmente para fora da tela. Quando ela passa estamos
diante de um homem que aos poucos é conduzido ao interior de uma
floresta, rumo à escuridão. Adentrar a selva em STORM é mergulhar
num misterioso mundo interior e aqui, a despeito de toda
fragmentação apresentada pelo ritmo e encadeamento das imagens,
e de toda a força da natureza que se manifesta, surge um traço
narrativo: o percurso mítico do Herói – das trevas à superação"
(DUVA, 2012) .
Este é um exemplo de Live cinema com uma narrativa subjetiva, um
tipo de cinema que podemos chamar de experimental, como definido acima
através dos estudos de André Parente. Não há uma história definida com
personagens e acontecimentos como as narrativas objetivas do cinema
convencional, o artista constrói uma narrativa da sensação.
Pode-se prever neste exemplo que, ao final de cada apresentação,
várias narrativas foram desenvolvidas individualmente por cada pessoa que
assistiu ao espetáculo. Cada um percorre seus próprios caminhos a partir do
"gatilho" inicial: O medo do desconhecido.
Quando o filme se inicia e imagens e sons começam a se suceder na
tela, as sensações são particulares, determinadas pela experiência acumulada
por cada um em sua relação pessoal com a imponderabilidade da vida. Existe,
61
portanto, um enredo comum, mas este se bifurca em várias histórias diferentes
definidas não por palavras, mas por sensações.
Nota-se aqui, a ligação do Live cinema com as ideias do cineasta
Dziga Vertov e sua teoria sobre o "cinema das sensações" onde as imagens
colhidas pela câmera seriam expressões mais claras e precisas da realidade
em comparação com o olho humano.
"Eu posso forçar o espectador a ver esse ou aquele fenômeno visual
do modo como me é mais vantajoso mostrá-lo. O olho submete-se à
vontade da câmera e deixa-se guiar por ela até esses momentos
sucessivos da ação que conduzem a cine-frase para o ápice ou o
fundo da ação, pelo caminho mais curto e claro" (PERNISA, 2010: p.
98).
O cinema convencional, com suas narrativas objetivas, também utiliza
esta linguagem subjetiva e, a rigor, todos os tipos de narrativas sejam elas
subjetivas ou objetivas, têm esta característica, os sentidos e significados
compreendidos ao final são diferentes para cada espectador porque cada um a
decodifica com base em sua experiência e conhecimentos acumulados.
Porém, pode-se dizer que a narrativa subjetiva abre um espaço maior
para as interpretações pessoais que a narrativa convencional, pois os sentidos
são mais abertos, a história contada pela narrativa não é conduzida através de
uma relação de causa e efeito explícita entre as cenas. A maior parte da
relação entre as cenas é feita por quem assiste ao contrário da narrativa
objetiva onde esta relação é mais explícita e conduzida a um sentido
específico.
No caso de Storm, não há uma história com começo meio e fim, a
intenção é colocar cada um em contato com o medo do desconhecido e não
contar uma história que fale do desconhecido a partir da visão de seus
personagens. Não há personagens, ou melhor, todos os espectadores são
personagens que vivenciarão tal medo a partir de suas experiências pessoais
unicamente. O filme é a porta de entrada para sua própria história.
Nota-se neste exemplo a ligação direta da linguagem do LIve cinema
com as características básicas da linguagem digital proposta por Manovich. A
codificação numérica, a modularidade, a automação, a variabilidade, a
transcodificação, o uso de uma base de dados, o artista ou autor como a
62
interface que escolhe e determina os caminhos que serão percorridos através
da base de dados, etc.
Vejo este tipo de trabalho como a evolução do Vjing, o passo
seguinte. Suas estruturas e lógica de construção são as mesmas, porém no
LIve cinema, como o deste exemplo, a diferença dos trabalhos dos Vjs está na
construção da base de dados, que é produzida pelo autor, ou seja, o conteúdo
da base de dados é produzido pelo autor e não apenas escolhido e
selecionado por este.
O trabalho dos Vjs pode ser definido como um remix de imagens
coletadas por muitas pessoas com suas próprias intenções, que são re-
significadas através do improviso do artista, o que dá à história um caráter
coletivo muito maior e a narrativa construída uma abertura maior de
significados, já que a base de dados não é criada com uma intenção
específica, a intenção, ou o que se deseja comunicar com as imagens, também
é improvisado em tempo-real.
Em seu trabalho Luiz duVa define um objetivo - o medo do
desconhecido - e constrói uma base de dados com imagens colhidas com esta
intenção - a de comunicar o medo do desconhecido. O autor procura colocar o
público em contato com o medo a partir de suas visões pessoais sobre este
assunto, utilizando uma base de dados individual e pensada para este fim.
Percebe-se aqui o aspecto autoral mais profundo do que nas apresentações
dos Vjs, como colocado por Mia Makela ao comparar estes dois tipos de
cinema ao vivo no capítulo 1.
Nos dois casos - o dos Vjs e do Live cinema - os artistas são as
interfaces pelas quais se percorre a base de dados existente, criando insights
de relações entre ideias que são finalizadas numa segunda interface, o público.
Este relaciona as informações do filme com sua base de dados pessoal
acumulada até então. Assim, não temos uma única história sendo assistida por
várias pessoas, mas sim, diversas histórias que versam sobre o mesmo
assunto e que são conhecidas apenas por cada individuo.
Como vimos acima, na descrição de sistemas de geração automática
de histórias feitas por Gervás, quanto mais definida a intenção ou o objetivo,
melhor é a qualidade do texto produzido pelo programa e talvez a mesma
63
lógica se aplique neste caso e neste sentido as narrativas produzidas por este
tipo de Live cinema se aproximam mais das narrativas objetivas que as dos Vjs
figura 10 - captura de tela de vídeo com trecho de uma apresentação de storm.38
Ressaca - filme de Bruno Vianna39
O filme conta a história de um rapaz que passa pela puberdade e
adolescência nos anos 80, período em que o país também atravessava seu
período de adolescência política e econômica com o início das eleições diretas
e acertos econômicos para combater a inflação na forma de planos
econômicos que geraram consequências nas vidas de todas as famílias.
38
Disponível em http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html, acesso em
22/12/2014. 39
Direção: Bruno Vianna; Roteiro: Bruno Vianna, Paola Leblanc, Haroldo Mourão; Produção:
Daniel Scatena; Fotografia: Andrea Capella; Som: Pedro Moreira; Edição: Bruno Vianna; Trilha Sonora: Rodrigo Marçal, Lucas Marcier; Arte: André Weller; Figurinos: Rô Nascimento; Assistente de direção: Clara Linhart; Elenco: João Pedro Zappa, André Santinho, Babu Santana, Bruno Garcia, Carol Pacu, César Augusto, Cinthia Mendonça, Denise Milfont, Isabela Meirelles, J. Farias, João Dabul, Julia Bernat, Keli Freitas, Oscar Saraiva, Sara de Azevedo, Stephanie Serrat, Yasmin Gomlevski
64
figura 11 - captura cena do filme Ressaca.40
O filme foi todo concebido para ser composto por cenas que se
completam em si, como explica Bruno Vianna, ―As cenas são pensadas
individualmente e dentro do conjunto. A partir do momento em que o roteiro
passou a ser escrito pensando-se nessa estrutura, passamos a desenvolver
cenas que tivessem relação com outras cenas, porém mantendo certa
independência.‖. (apud COUTINHO: 2011)
Tal estrutura permite ao diretor montar o filme em tempo real diante
da platéia, escolhendo uma nova ordem para as cenas a cada apresentação,
espelhando a cada montagem o quebra cabeça social vivido na época.
Ao todo foram registradas 129 cenas com aproximadamente três
horas de material filmado que resultava num filme de uma hora e vinte minutos.
Uma interface batizada de "Engrenagem" foi desenvolvida para que o diretor
fizesse a montagem diante da platéia. Tal interface era composta por uma tela
de acrílico sensível ao toque e um programa que permitiam ao diretor/montador
visualizar as seqüências dentro círculos, que podiam ser manipulados e
organizados em qualquer ordem há qualquer momento, acrescentando-se
transições e cortes de uma seqüência para outra.
40
Disponível em http://www.ressaca.net/tudo.htm, acesso em 22/12/2014.
65
A trilha musical foi originalmente produzida em tempo real, na forma
de uma performance de música eletrônica do artista Rodrigo Marçal,
juntamente com a montagem, assim como no exemplo anterior.
figura 12 - a Interface ou Engrenagem de montagem do filme Ressaca.41
Neste projeto Bruno Vianna encontra um caminho intermediário entre
o Live cinema e o cinema convencional.
A narrativa é pré-definida, porém a cada exibição esta é modificada
pela ordem em que as cenas se sucedem. Bruno afirma que não seguia
nenhuma guia ou roteiro específico e que a escolha das cenas se dava pelo
diálogo do diretor com a platéia e com a própria obra. O resultado é sempre
uma história não linear, por não seguir uma ordem cronológica de fatos
narrados, mas objetiva por produzir uma história coerente e definida, como
apontado por Mello no texto acima; e, por ser construída ao vivo, se formaliza
como filme por diferentes caminhos, porém com um enredo constante.
A base de dados usada por Bruno é produzida pelo autor, como no
exemplo anterior, com a diferença de os clipes de vídeo que a compõe
possuírem intenção mais definida. Cada clipe é parte de uma história
específica, resumida no início desta análise, não de uma ideia ou sensação.
41
Disponível em http://www.ressaca.net/tudo.htm, acesso em 22/12/2014.
66
A relação entre as cenas é, neste caso, mais explícita e definida, o
que reduz as possibilidades de interpretação do espectador.
O diretor/montador é também uma interface que escolhe o caminho
percorrido através da base de dados, mas o espaço para que o público seja
também interface, através do acréscimo de sua própria base de dados pessoal,
é reduzido. O aspecto imersivo e sensorial influi menos na construção da
narrativa final dentro de cada pessoa, já que as cenas contêm diálogos que
conduzem a um significado específico não abstrato.
Esta é a proximidade com o cinema convencional que Bruno cria com
este projeto - um Live cinema com narrativa objetiva.
Comparando-se, ainda, com o exemplo anterior, nota-se a redução do
aspecto coletivo no que tange à participação do público, já que as
possibilidades de inferências e interpretações que influam no enredo são bem
menores do que em Storm.
Nos dois casos a história ou o enredo não são criados em tempo real,
Luiz duVa cria o que ele chama de "partitura" para designar o roteiro aberto ao
improviso e a interpretação que conduzem a novos significados como na
música. Sua partitura é em ultima instância um roteiro, uma definição narrativa.
O filme Ressaca possui um roteiro de cenas, ou melhor, cada cena possui um
roteiro que se encerra em si mesmo e o conjunto dos roteiros de cenas compõe
o roteiro do filme, porém um roteiro que não determina sua montagem.
Can You See Me Now - Blast Theory
Nesta obra executada na forma de um game, o grupo de artistas
multimedia Blast Theory, liderados por Matt Adams, Ju Row Farr e Nick
Tandavanitj, cria um sistema para a produção de narrativas coletivas em tempo
real com um alto nível de interação entre os participantes.
Baseado em localização GPS42, o sistema é um jogo de perseguição,
jogado online, nas ruas. Um mundo virtual é criado sobre o mapa da cidade
real permitindo ao jogador habitar os dois mundos simultaneamente,
explorando conceitos de ausência e presença. A correspondência entre o real
42
GPS - Global Positioning System - Sistema de Posicionamento Global.
67
e o virtual às vezes é exata e outras vezes não, numa relação elástica que
permite o encontro de jogadores geograficamente distantes.
A comunicação de áudio e imagens também são fatores importantes.
Os jogadores podem conversar entre si através do "walkie talk chat" e
fotografar a paisagem real onde "encontram" um fugitivo no mundo virtual. As
imagens ficam armazenadas no site como um registro dos acontecimentos de
cada partida.
figura 13 - sobreposição dos mapas do jogo e da cidade.43
Três jogadores perseguidores, equipados com um computador
portátil, um receptor GPS e ligados a uma rede sem fio, que os mantém
conectados uns com os outros e com o mundo virtual do jogo - andam pela
cidade real atrás de jogadores de qualquer lugar do mundo, transportados ao
mundo virtual do jogo, conectando-se ao site. Lá, devem evitar os
perseguidores, pois se forem vistos, terão o local de seu encontro no mundo
real, correspondente ao local de seu encontro no mundo virtual, fotografado e
assim, estarão fora do jogo.
43
Disponível em http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/, acesso em
22/12/2014.
68
figura 14 - jogador perseguidor em ação.44
As imagens produzidas e a comunicação verbal feita pelo "walkie talk
chat", armazenadas no site do projeto constroem a narrativa de cada partida,
com sua história e lugares específicos.
Tal interatividade somada ao registro audiovisual em tempo real das
ocorrências de cada jogo produz um filme.
O tipo de narrativa resultante é não linear e sem uma história
específica, porém, com um enredo de perseguição bem claro e perceptível ao
espectador.
Comparando-se este exemplo com os dois exemplos anteriores nota-
se muitas semelhanças quanto a sua lógica de construção pois esta é baseada
nos mesmos paradigmas tecnológicos, porém aqui não há pré-definição da
história ou enredo que que irá compor a narrativa. Apenas o tipo de história ou
enredo é definido - uma história de perseguição - pela interface utilizada para
sua criação, um jogo de perseguição. A história ou enredo acontece em tempo
real através das ações dos participantes. Tais ações compõem uma base de
44
Disponível em http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/, acesso em
22/12/2014.
69
dados em tempo real. Não há base de dados pré-definida, a única pré-definição
é o tipo de história. Não há um autor para o roteiro, não há roteiro para as
ações ou diálogos.
Neste exemplo, o aspecto coletivo se amplia e a figura do autor
individual desaparece totalmente. Todos os participantes são autores. A história
que se cria como resíduo das ações dos participantes do jogo é única e
indefinida até que o jogo termine e nenhum dos participantes poderia saber a
priori seu sentidos, seus significados, ou seu desfecho. Por outro lado a pré-
definição embutida na interface conduz a narrativa criada sempre para o
mesmo tipo de história, mas com enredos distintos.
A pergunta que nos resta é: de que forma seria possível produzir
qualquer tipo de história objetiva, coletivamente em tempo real?
Espontânea - peça teatral de Ian Soffredini45
Neste exemplo encontra-se a resposta a essa pergunta. Espontânea
é uma peça teatral cuja história é construída em tempo real pelos atores.
Idealizada por Ian Soffredini, neto de Carlos Alberto Soffedini46, que deu
continuidade as pesquisas de estética teatral iniciadas pelo avô, definindo para
si o seguinte objetivo de pesquisa em entrevista concedida ao autor:
"A minha pesquisa vai ser não escolher um texto pronto e montá-lo,
eu vou desenvolver uma linguagem onde qualquer história possa ser
contada. ".(SOFFREDINI, 2014: apêndice I).
Para isso criou um método onde a interação dos atores no palco
constrói um texto e o encena em tempo real.
Para a criação do método, dividiu a pesquisa em quatro frentes:
I. Improvisação: pesquisou técnicas de improvisação específicas
que envolvem conceitos da aceitação, generosidade e da
construção colaborativa. Com estas ferramentas torna-se
45
Diretor da Pesquisa: Ian Soffredini; Elenco: Ana Paula Dias, Ian Soffredini, Leandro Allves,
Michelle Gallindo, Pedro Monticelli, Silvia Lhullier. 46
Pesquisador, ator, autor, dramaturgo e diretor brasileiro, Carlos Alberto Soffredini nasceu em Santos (SP), em 6 de outubro de 1939. Trabalhou com grupos teatrais nas décadas de 70, 80 e 90. Seu trabalho como dramaturgo foi voltado à pesquisa da cultura popular brasileira.
70
possível colocar atores no mesmo lugar e conseguir que eles
construam a cena, juntos.
II. Estética: Ian escolheu a estética teatral com a qual já tinha maior
afinidade e utilizou seus signos como meio de comunicação
entre os atores, que permaneciam no palco o tempo todo,
mesmo que ao fundo ou sem participar da cena,
impossibilitados, portanto, de se comunicarem com palavras,
como ele explica no trecho da entrevista abaixo:
"...escolhi a estética teatral popular brasileira e ela já dá um grande
embasamento no sentido se exercer função dramatúrgica porque
quando você ganha o meio do palco é porque você esta sendo o pivô
daquela cena, como eu não sei que cena estou fazendo ainda, se
alguém toma o centro do palco eu sei que essa pessoa está
querendo ser o pivô daquela cena e todos sabem que têm que apoiar
ele. Então eu peguei os signos que a gente usa geralmente pra
explicar pro público o que está acontecendo pra gente explicar um
para o outro o que está acontecendo também" (SOFFREDINI, 2014:
apêndice I).
III. Dramaturgia: Junto com o dramaturgo paulistano Fabio Brand
Torres, Ian criou um mapa dividindo o espetáculo em três
partes ou, no caso atos. O primeiro ato apresenta os
personagens e o conflito, no segundo o desenvolvimento do
conflito e a crise e no terceiro a conclusão da história.
IV. Dramaturgia corporal: Como o espetáculo não possuía cenário, a
expressão corporal dos atores torna-se fundamental para a
composição da cena.
71
figura 15 - cena da peça Espontânea.47
Nota-se que não há comunicação verbal entre os atores, porém há a
necessidade de alguns códigos para que os atores se comuniquem. Por
exemplo, a tomada física do centro do palco por algum ator, significando o
pedido da palavra. Outros poucos códigos já eram suficientes para que os
atores se coordenassem no palco.
"então havia alguns sinais que indicavam para o outro ator o fim da
fala. Por exemplo, a gente piscava com o olho que não estava virado
para a platéia e o outro ator sabia que eu já havia falado tudo que eu
queria e não tinha mais nada para acrescentar à cena. Um outro
código era mandar um beijo que significava "estou te dando esse
poema de mão beijada", que o que eu estava fazendo era um
encaminhamento pra você ler o poema e pra gente ter certeza de
que o outro viu o sinal do beijo havia um sinal de resposta que era o
movimento de fechar a mão significando se estava com ele na mão,
que você sabia o que estava fazendo. A comunicação se baseava
praticamente a estes três códigos, uma comunicação que a platéia
não compartilhava" (SOFFREDINI, 2014: apêndice I).
47
Disponível em http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5, acesso em 22/12/2014.
72
O público também participa da construção da narrativa, escolhendo
poemas e escrevendo frases que servem de "gatilho" para a história que irá se
criar no decorrer da peça e falas obrigatórias de personagens em outros
momentos. A escolha dos poemas e a escrita das frases são feitas antes do
início do espetáculo que, depois de iniciado, deve contar uma história com
começo meio e fim, enredo, personagens e falas, sem interrupção.
Neste exercício de improviso e adaptação constante, os atores vão
construindo uma história em tempo real. A adaptação e o desapego das
próprias ideias são fundamentais para que a história seja orgânica e fique
interessante para o público. Cada ator tem que adaptar sua atuação com base
no que está acontecendo no palco, ou seja, com base no que está sendo
encenado pelos outros atores.
A música e a iluminação também são improvisadas de acordo com o
desenrolar da trama e por muitas vezes influindo na condução desta,
determinando o estado de espírito de um personagem com o clima criado pela
música da cena, por exemplo.
figura 16 - cena da peça Espontânea.48
48
disponível em http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5, acesso em 22/12/2014.
73
A narrativa criada é sempre diferente a cada espetáculo, não apenas
com histórias diferentes mas, também com gêneros diferentes, como romance,
aventura ou terror, porém sempre objetiva, com enredo, trama, personagens e
falas coerentemente ligadas umas as outras.
Esta característica é a chave para atingir-se o objetivo final desta
pesquisa. Apesar de ser criado para o teatro e não necessitar a utilização de
mídias digitais para sua execução nota-se grandes semelhanças com as
narrativas digitais contemporâneas. As cenas criadas e encenadas pelos atores
compõem em tempo real uma base de dados que constrói a história, como no
exemplo do jogo The Blast Theory visto anteriormente, porém sem limitações
impostas pela interface ou pré-definições de enredo e significados de uma base
de dados criada a priori . Tais semelhanças permitem a transposição direta
deste método, criado para o teatro, para as mídias digitais.
O aspecto coletivo é ainda maior que a dos exemplos anteriores por
abranger os espectadores de maneira direta, nas poucas definições que
inspiraram a criação da narrativa, quando os convida a criar o "gatilho". Aqui
tudo é coletivo, a história criada é de todos e de ninguém ao mesmo tempo.
Aqui temos um método de criação coletiva de uma história objetiva
em tempo real. Uma maneira de várias cabeças trabalharem ao mesmo tempo
no mesmo enredo. Um enredo desconhecido de todos, mutante, que a cada
momento aponta para novas direções compondo uma história da mesma forma
que se fabrica um tecido, onde um fio só fica estável se encostado aos fios já
existentes na trama.
CAPÍTULO 4. ESPECIFICAÇÃO DE SISTEMA PARA PRODUÇÃO
DE FILMES E ROTEIROS EM TEMPO REAL
Nesta etapa da pesquisa apresento uma proposta de sistema para a
produção coletiva de um filme e seu roteiro em tempo real, cuja a narrativa seja
objetiva , unindo características encontradas nos exemplos analisados no
capítulo 3.
Dos exemplos de Live cinema a montagem ao vivo e a base de dados
pré-construída. De um jogo online a mobilidade, a interatividade dos
74
participantes e um site que sirva para a comunicação com os espectadores,
apresentação e depósito das narrativas produzidas. E de uma peça teatral, um
método coletivo para a produção de narrativas objetivas em tempo real.
A junção destas características permite a sistematização de um
método coletivo de criação de uma história que se concretize como narrativa,
na forma de um filme montado ao vivo; não apenas o filme acontecerá em
tempo real, mas a criação da história e do roteiro também.
Pode-se dizer que este método seja Live cinema com a diferença de
que a maior parte da base de dados, com as cenas que irão compor o filme,
será criada durante a montagem.
O método proposto a seguir, não possui um objeto de filmagem
definido. Não se trata apenas de registrar o que acontece, mas, além disso,
trata-se de produzir o acontecimento, na medida em que a história e a cena
são criadas em função das anteriores por todos os participantes. A história,
objeto do filme que se constrói em tempo real, é uma total incógnita para todos.
O grau de indefinição e incerteza é ampliado e a necessidade de comunicação
constante entre os participantes mais crítica.
Num sistema capaz de conduzir e sincronizar a criação de uma
história, a produção e registro das cenas e a montagem de um filme em tempo
real, parte do trabalho é criar, produzir e filmar as cenas; e outra parte é
transmitir as informações para o montador.
Na primeira parte há uma dependência da tecnologia para se cumprir,
mas podemos assumir que essa dependência não é significativa. Não há
dependência de terceiros para que a tarefa seja executada e qualquer falha
pode ser resolvida com um equipamento backup. Trata-se de uma tecnologia
de fácil acesso, qualquer dispositivo móvel ou câmera filma e produz arquivos
em diversos formatos e dimensões.
Já a segunda parte, a transmissão e a manutenção da comunicação
entre todos os participantes durante todo o processo de construção do filme, é
totalmente dependente da tecnologia disponível para conexão com a rede, sua
estabilidade e velocidade.
Como a conexão constante com a internet é um requisito para que o
sistema funcione, a opção pela mobilidade - a possibilidade do filme ser
construído tendo uma região da cidade como "palco" - nos força a criar
75
mecanismos de emergência para cobrir eventuais falhas nesta conexão. Como
tais falhas técnicas não podem ser previstas, o improviso rápido por parte dos
componentes da equipe de produção será necessário, com o intuito de evitar a
perda da continuidade da ação e, mais criticamente, da projeção do filme.
4.1 Transmissão de arquivo x streaming
Antes de definir um método, é necessário que se defina de que forma
o filme será transmitido. As duas opções disponíveis são:
a. Transmissão ao vivo: a cena é transmitida por streaming de
vídeo enquanto é criada e filmada.
b. Transmissão de um arquivo gravado com a cena completa.
Têm-se, então, dois caminhos que implicam diferenças significativas:
Pode-se privilegiar a relação com um filme ao vivo, levando ao limite
esta questão, o que nos obrigaria a criar um método que tornasse possível a
transmissão ao vivo da gravação de cada cena e cobrisse todos os eventuais
problemas que podem ocorrer durante o processo. Considerando-se esta
opção, torna-se muito mais crítico o problema da instabilidade das conexões.
Ou optar-se pela criação de um método onde cada cena é produzida
e registrada integralmente e posteriormente transmitida ao editor do filme.
Reduzindo-se os problemas relacionados à conexão e suas instabilidades, cria-
se maior espaço para a mobilidade das equipes, facilita-se a criação de um
método que coordene o número de pessoas necessárias para a produção de
um filme o que garante a continuidade da montagem e da projeção.
4.2 Método para a criação de um filme e seu enredo em tempo real
4.2.1 Atores x Equipes
O método proposto neste trabalho é inspirado no exemplo da peça
Espontânea de Ian Soffredini, porém com as adaptações necessárias para
suprir as diferenças envolvidas na encenação de uma peça teatral, onde a
imaginação do público aliada a interpretação do ator nos leva a cenários e
climas diferentes; e na construção de um filme, onde outros fatores agregam
expressão e significado: o enquadramento, efeitos, etc criando novas
dinâmicas para construção da narrativa reduzindo o espaço para as inferências
advindas da imaginação do espectador.
76
Quando se trata da criação de uma história de forma coletiva e ao
mesmo tempo em que se produz a cena, as diferenças são ainda maiores, pois
no teatro cada ator é uma célula de criação da história, tomando as decisões
para a condução da trama e as executando no palco. Num filme, cada célula de
criação é formada por um grupo de pessoas e as decisões de condução da
trama podem ser tomadas em grupo, tornando o processo de criação da
história ainda mais coletivo e complexo.
Nossa proposta é transformar os atores em equipes de criação e
produção de cenas. As equipes decidem como será cada cena para dar
continuidade ao filme e as produzem enviando o arquivo para o editor.
Esta situação resolve o problema da produção porém, uma outra
diferença do método aplicado ao teatro para o método aplicado na produção de
um filme, pode ser notada.
No teatro, a criação do enredo e a execução da cena podem ser
simultâneos; no cinema precisamos de um tempo para que a equipe decida em
conjunto o que será filmado e produza a cena que depois de pronta, ainda
precisará ser transmitida na forma de um arquivo de vídeo para que seja
projetada.
Para resolver este problema, incorpora-se uma defasagem de tempo
entre o início da produção das cenas e o início da projeção do filme, de forma
que enquanto uma cena é projetada as próximas cenas já estejam produzidas
e sendo transmitidas.
A defasagem necessária depende da qualidade da conexão
disponível no momento da produção e do número de equipes envolvidas na
produção, pois quanto maior o número de equipes, mais rápida poderá ser a
criação e a transmissão das cenas por poderem ser produzidas
simultaneamente.
Neste método pode-se trabalhar com qualquer número de equipes,
desde uma até um número infinito, portanto, a defasagem deverá ser calculada
no momento da produção levando-se em conta as condições técnicas do
momento e o número de equipes de produção de cenas envolvidas.
77
4.2.2 Gatilho
No capítulo 1 desta dissertação, viu-se pelos estudos de Gervás,
sobre algoritmos para a geração de histórias, que quanto maior a quantidade
de dados de entrada (input), maior é a consistência da saída (output) produzida
pelo algoritmo - no caso a qualidade do texto e da história produzida.
No exemplo da peça Espontânea visto no capítulo 3 deste trabalho,
são usados poemas e frases escolhidos e criados pelo público antes da
encenação da peça começar, como tema de inspiração e objetivo para a
condução da criação da história.
Parece-me claro que, para que seja mais fácil a coordenação da
criação do enredo feita pelos integrantes das equipes de produção e de
finalização, deve haver uma fonte comum determinando o caminho para a
criação da trama - um input que sirva de parâmetro para o início do
funcionamento do sistema.
As pessoa que compõem as equipes e cada equipe em si, criará
caminhos diferentes para a história, no entanto, a cada cena que for ocorrendo,
as ideias de cada um serão mais claras aos outros participantes. Os caminhos
escolhidos, pelas equipes de criação para a condução da trama, serão mais
facilmente compreendidos por todos, e terão que agir rapidamente na
adaptação de suas próprias ideias, de forma a garantir a continuidade do
enredo e do filme.
Esse mote inicial para o despertar da narrativa em cada um é o que
Ian chamou de "gatilho", numa alusão ao mecanismo que dispara um processo.
O gatilho deve ser decidido antes do início do filme na forma de um
título, uma frase ou um texto, como um dado de entrada para o sistema.
As formas de produzir um gatilho para a história, ou para o filme em
si, podem ser variadas e formas diferentes, que incluam interações maiores
com o público, desenvolvidas.
Para definição deste método, decidimos que o envio deve ser feito
pelo público através de um site do projeto, que garanta a identificação da
pessoa que enviou para a exibição nos créditos finais e também garanta
juridicamente a disposição em participar do projeto e a concordância com suas
regras. Para o envio de frases cada participante deve se cadastrar e concordar
com os termos e condições desta participação.
78
No dia e hora marcados para a execução do filme o gatilho é
escolhido por sorteio em tempo real no site.
4.2.3 Equipes de produção de cenas
As equipes deverão funcionar como um ator, as decisões devem ser
tomadas em conjunto e rapidamente. Necessita-se, então, que um componente
da equipe seja o responsável pela palavra final nas decisões. Um diretor local
que coordene os integrantes da equipe e conduza a criação da trama/enredo
da história. Este integrante será chamado de "Condutor de Enredo" e deverá
manter contato constante com os condutores das outras equipes de produção e
com a equipe de finalização. Tal contato pode ser feito por vídeo e áudio via
Skype ou apenas por áudio através de skype, whatsapp ou conferência
telefônica, ou ainda por texto através de um chat.
A composição das equipes de produção de cenas será a seguinte:
a. Operador de câmera: responsável pela operação da câmera na
captação das imagens e do áudio.
b. Produtor: executa rapidamente a produção da cena sendo,
portanto, responsável pela captação das imagens e do áudio
da cena, juntamente com o operador de câmera, ajudando e
dirigindo os atores durante a encenação.
c. Condutor de enredo: responsável pela condução da história
juntamente com os outros condutores de enredo e da equipe
de finalização. Como a criação do enredo da história terá que
estar alguns passos a frente da projeção do filme, os
condutores tem, através do canal estabelecido para a
comunicação, uma forma de criar o enredo em tempo real à
frente do filme que aparece na tela, O tempo necessário para
discutir com a equipe e decidir o que deve ser feito
comunicando as decisões à todas as outras equipes. Com um
computador ou tablet ligado à câmera recebendo o arquivo do
filme, o condutor monitora o áudio durante a captação da cena
e converte o arquivo, transmitindo-o ao final do processo de
captação.
79
d. Atores: As equipes poderão ser formadas com um ou mais
atores que farão a encenação para a câmera após as decisões
tomadas com toda a equipe e o diretor.
Esta é a configuração considerada mínima, porém pode-se criar
equipes maiores com funções mais definidas ou mais pessoas para apoio na
produção. Por exemplo, imagine que uma cena exija a participação de
figurantes, podemos ter vários produtores e um diretor de cena para formar um
grupo entre pessoas que estejam no local na hora da filmagem e dirigir a
atuação da figuração respectivamente.
4.2.4 Equipe de finalização
A equipe de finalização gerencia todo o processo e é responsável
pela montagem e exibição do filme. Utilizando a base de dados, formada pelos
clipes enviados pelas equipes de produção de cenas, somada a uma base de
dados pré construída com clipes e imagens diversas o filme é montado em
tempo real.
A composição das equipes de finalização será a seguinte:
a. Diretor de enredo e assistente de edição: coordena a criação
do enredo que está sendo elaborado pelas equipes de
produção, recebe os clipes das cenas e disponibilizá-los ao
editor na ordem correta.
b. Produtor de trilha sonora: cria os temas e efeitos sonoros
usados durante a composição do filme.
c. Editor: monta o filme com os clipes recebidos, juntamente com
o som, aplicando efeitos e transições enviando ao canal de
stream do site o resultado que é projetado na tela.
O Diretor de enredo, o editor e o sonorizador devem estar numa sala
de projeção aos moldes de uma projeção de Live cinema, diante do público,
que assiste ao vivo a montagem.
O filme também é transmitido por stream através do site do projeto. O
que o público assiste na sala de projeção é o filme que pode ser visto ao vivo
em casa através de um computador ligado a internet. Desta forma as equipes
também podem assistir ao filme durante sua composição, o que é fundamental
para a condução da trama que será criada.
80
Outra característica é que o site servirá como ponto de aglutinação
entre os produtores do filme e o público. As ideias e frases para o gatilho inicial
podem ser transmitidas ao site pelos usuários conectados, onde também
ocorrerá o sorteio que definirá qual é o gatilho da história. Todo o processo,
deste modo, torna-se transparente e passível de interação com todos os que
compõe o público, presentes a sala de projeção ou não.
Os filmes ficam disponíveis em versão integral no site, armazenados
numa base de dados, podendo ser acessados e assistidos a qualquer
momento após sua realização.
O diretor de enredo coordena a criação da história determinando,
através de um código pré-combinado, qual será a equipe a produzir a próxima
cena, ou seja, qual é a equipe que tem a palavra naquele momento. A cena
deve ser criada rapidamente pela equipe e enquanto é filmada, também é
descrita às outras equipes pelo condutor de enredo. Se existir um diálogo ou
fala acontecendo, este deve ser descrito pelo condutor para permitir a criação
de falas coerentes para a próxima cena por parte de outra equipe.
Assim, enquanto uma cena está sendo produzida, as cenas
subsequentes podem ser criadas pelas outras equipes e sua produção iniciada
antes do início da projeção da cena anterior. O tempo de duração do filme
também é pré-determinado e deve ser cumprido, o diretor de enredo deve
coordenar e administrar a criação da história de forma que tenha começo, meio
e fim no tempo previamente definido.
Outra função do diretor de enredo é a assistência ao editor. Ele deve
gerenciar e informar constantemente ao editor o andamento do fluxo de
arquivos, informando qualquer atraso na recepção das cenas, fornecendo se
possível ideias para o preenchimento do tempo que será necessário esperar
até a completa recepção do arquivo da cena que deverá ser exibida na
sequência, dando tempo para que o editor acrescente uma cena feita de
improviso a partir da base de dados pré existente de imagens e filmes.
O editor vai recebendo e improvisando cenas e montando o filme
com transições, sobreposições e efeitos junto com o sonorizador que compõe a
trilha sonora.
A descrição das cenas, feita pelos diretores de enredo de cada
equipe, é o ponto crítico da criação da história. Deve, portanto ser
81
suficientemente detalhada para garantir a continuidade dos diálogos e da
trama.
4.2.5 Método passo a passo
I. Publicação no site da duração do filme, data, hora, local em que o filme
será composto e projetado.
II. Solicitação para o envio de frases ou textos para sorteio do gatilho. As
frases e textos podem ser enviados ao site até o momento do sorteio.
III. Sorteio da frase/texto gatilho para a criação da trama na sala de
projeção no início da sessão.
IV. Tem início o trabalho das equipes de produção e do diretor de enredo,
que dá a palavra a primeira equipe que solicitar, e esta envia a a todos a
descrição da cena que será filmada.
V. Enquanto a cena é filmada e transmitida, o trabalho das equipes e do
diretor de enredo continua e cada equipe filma e transmite suas cenas.
A fim de facilitar a administração do fluxo de arquivos de cenas, o nome
de cada arquivo transmitido deve seguir o seguinte padrão:
Os quatro primeiros dígitos devem ser numéricos e indicam o número da
cena, seguidos de três dígitos numéricos que indicam a equipe que o
produziu e transmitiu.
Ex. 0001001.mov - cena 1 produzida pela equipe 1.
Desta forma os arquivos estarão sempre organizados na sequência em
que serão exibidos.
VI. Após o recebimento das duas primeiras cenas, inicia-se a projeção do
filme para o público. Durante o tempo de espera para a produção destas
duas cenas, o editor e o sonorizador executam um improviso de abertura
do filme com imagens sons e textos, baseados no gatilho escolhido e
nas descrições das cenas enviadas pelos condutores de cena das
equipes que já as estarão produzindo.
VII. A criação e o envio das cenas vão se sucedendo e o filme e seu roteiro
que conta uma história se construindo até o final. Onde os créditos,
acrescidos do nome da pessoa que teve sua frase sorteada para servir
de gatilho, terminam a projeção.
82
VIII. O filme fica armazenado, sem modificações, no site e disponível para o
público.
4.3 Tecnologia
Segue a descrição técnica e definição de equipamentos, programas e
serviços necessários para o funcionamento do sistema.
Um ponto crucial para que o sistema funcione é a definição do tempo
de defasagem entre o início das gravações e transmissão das cenas e o início
do filme. Esta defasagem deve ser calculada de forma a permitir um fluxo
constante entre a produção das cenas e a projeção do filme, pois a defasagem
depende do tamanho dos arquivos de dados a serem transmitidos e da
velocidade de envio de dados da conexão utilizada.
4.3.1 Tipos de conexão sem fio e suas velocidades
Atualmente tem-se dois tipos de conexão de banda larga móvel, 3G e
4G. A opção por este tipo de conexão se justifica pela facilidade de
implementação com baixo custo.
Para a implementação de uma rede sem fio de alto desempenho, com
relação à velocidade e estabilidade, envolveria um grande investimento em
equipamento e infra-estrutura e restringiria a mobilidade das equipes a área de
alcance da rede. As conexões 3G e 4G já possuem a infra-estrutura instalada e
seu alcance abrange todo o país.
As taxas de transferência de dados máximas para o recebimento de
informações, que chamaremos a partir de agora de velocidade da conexão,
download, e para o envio de informações, upload, consultado nas quatro
maiores empresas de telefonia móvel que operam na cidade de São Paulo, são
de: 1000Kbps de download e 100Kbps de upload para as conexões 3G e
5000Kbps de download e 512 Kbps de upload para as conexões 4G.
Fazendo-se a conversão dos valores de kilo bits por segundo para
mega bytes por segundo encontramos os seguintes valores: 0,12 MBytes/s de
velocidade de download e 0,0122 MBytes/s de velocidade de upload para
conexões 3G, e 0,610351563 MBytes/s de velocidade de download e 0,061035
MBytes/s de velocidade de upload para conexões 4G.
83
Como a velocidade com que os dados serão transmitidos tem impacto
direto no tempo de transmissão e este na defasagem necessária entre a
produção das cenas e o início do filme, pode-se definir a conexão 4G como a
mais indicada para que o sistema funcione com a menor defasagem possível,
porém, para a determinação do tempo exato da defasagem, é necessária a
determinação do tamanho médio dos arquivos que serão transmitidos.
4.3.2 Tamanho arquivo x tempo de transmissão
O tamanho dos arquivos de dados com os clipes das cenas gravadas
dependerá da dimensão utilizada para a captação das imagens. Sendo a
dimensão a quantidade de pixels que formam cada frame do vídeo. O tamanho
dos arquivos também será dependente do CODEC utilizado para codificação
das imagens e o formato do arquivo.
A maioria das câmeras digitais existentes hoje em dia, que produzem
filmes com a dimensão de 1920 x 1080 pixels (fullHD) ou 1280 x 720 pixels
(HD), utilizam o formato de arquivo Quicktime identificados com a extensão
".mov" no final do nome do arquivo em câmeras DSLR, com o codec H264. Ou
no formato de arquivo mp4 identificados com a extensão ".mp4", com o codec
H264, em celulares.
Esta opção se deve ao fato de serem estas as combinações, entre
formato de arquivo/codec, que produzem o melhor equilíbrio entre qualidade da
imagem e tamanho do arquivo produzido.
Após alguns testes com uma câmera DSLR e com um aparelho de
celular com capacidades de filmagem na dimensão HD, obtivemos os
seguintes tamanhos de arquivos de dados para cada 1 minuto de filme com
áudio:
equipamento Dimensão
(pixels)
Tempo de
duração do filme
Tamanho do
arquivo
(MBytes)
Câmera DSLR 1920 x 1080 1 min. 330
Câmera celular 1280 x 720 1 min. 88
84
Portanto, o tempo de transmissão de 1 minuto de filme com áudio na
dimensão de 1280 x 720 pixels (HD) será de 7213,115 segundos, ou 120,2186
minutos. Percebe-se a impossibilidade de implementação do sistema com esta
configuração, pois cada minuto de filme, usando-se a menor dimensão, levaria
aproximadamente duas horas para ser transmitido das equipes de produção
para a equipe de finalização.
Com a utilização do software freeware FormatFactory de conversão
de formatos de vídeo, áudio e imagens, os arquivos podem ser convertidos, ou
melhor transcodificados, para o formato quicktime, com o codec H264 e
dimensões de 720 x 480, primeiro padrão considerado de alta definição para a
TV digital. A redução da taxa de transferência de dados do arquivo (bitrate)
para 1200 KB/s também será necessária.
Esta conversão leva em torno de 23 segundos para cada minuto de
filme fullHD e cai para 15 segundos para a conversão de cada minuto de filme
HD resultando em um arquivo de 10 MBytes para cada minuto de filme. O
tempo de transmissão de um minuto de filme com uma conexão 4G passa a
ser de 163,8404194 segundos, ou 2,730674 minutos.
A partir destes números estima-se que será necessária uma
defasagem de 20 minutos entre o início da produção e transmissão das cenas
e o início do filme, para que o filme se inicie com seis minutos de cenas já
disponíveis a equipe de finalização.
Como o método proposto permite que cenas estejam sendo
produzidas e transmitidas ao mesmo tempo, acreditamos que este seja o
tempo suficiente, porém, este cálculo deve ser refinado após a implementação
e testes realizados com o sistema.
4.3.3 Equipamentos: hardware e software
As equipes de produção serão formadas conforme o descrito no
método acima e equipadas com:
I. Câmera digital DSLR Canon dos modelos 7D, 60D, T3i ou T5i, por
permitirem a gravação, do arquivo de vídeo gerado,
diretamente no disco rígido do computador.
85
II. Dois celulares smartphone com câmera HD, que servirão de
câmeras reserva, ou câmeras backup, bem como alternativas
de comunicação entre as equipes.
III. Computador (Laptop) com configuração mínima de 8Gb de RAM,
Placa de vídeo dedicada NVIDIA com 1Gb de VRAM, disco
SSD 120 Gb para o sistema e aplicativos e disco SSD 250 Gb
para dados.
IV. Modem 4G USB.
V. Cabo USB de 5 metros.
Programas: Sistema operacional Android, Sistema operacional
Windowns 8, EOS utility, Core FTP LE, FormatFactory, Skype, Whatsapp.
Para a equipe de finalização será necessário que todos os
computadores tenham acesso a uma rede local de no mínimo 10.000 kbps,
mas preferivelmente de 30.000 Kbps e infra-estrutura de som e projeção na
sala. Para que a transmissão do filme pela internet seja realizada com
qualidade será necessária a contratação de um serviço de transmissão
streaming.
O diretor de enredo e o editor estarão equipados com:
I. Computador com configuração mínima de 16Gb de RAM, Placa
de vídeo dedicada NVIDIA com 2Gb de VRAM, disco SSD 120
Gb para o sistema e aplicativos, disco SSD 250 Gb para
receber e servir arquivos para o editor e disco HD 2 Tb para
dados.
II. Computador com configuração mínima de 8Gb de RAM, disco
SSD 120 Gb para o sistema e aplicativos e disco HD 2 Tb para
dados.
III. Computador com configuração mínima de 16Gb de RAM, Placa
de vídeo dedicada NVIDIA com 2Gb de VRAM, disco SSD 120
Gb para o sistema e aplicativos e disco HD 2 Tb para dados.
IV. Celular smartphone.
Programas: Sistema operacional Android , sistema operacional
Windowns 8, Core FTP LE, Skype, Whatsapp, Isadora, Adobe Flash Media Live
Encoder.
86
Os equipamentos utilizados para a criação da trilha sonora podem
variar de acordo com o artista convidado a participar do projeto porém deverá
possuir o equipamento necessário para receber o som dos clipes produzidos
pelas equipes de produção de cenas, mixá-los com a trilha sonora.
87
Segue um diagrama geral do sistema:
figura 17- diagrama geral do sistema
88
CONCLUSÃO
Iniciei esta pesquisa com dois objetivos: 1 definir o conceito de
narrativa para permitir a análise das formas de narrar contemporâneas
coletivas em tempo real - tentando identificar uma forma diferente ainda não
experimentada e, 2 especificar um sistema que possibilite a construção coletiva
nesta forma - como um exercício de comprovação da análise.
Unindo conceitos de Gervás usados para fazer algoritmos geradores
de histórias e as definições encontradas em estudos sobre a autoria de vários
pesquisadores, definiu-se neste trabalho como narrativa objetiva - aquela que
contém uma história clara e específica; e, como subjetiva - as que não
possuem história ou enredo facilmente identificável.
Numa abordagem mais filosófica do conceito, identificou-se o enorme
papel social das narrativas e sua importância para a criação de nossa cultura e,
indo mais longe, de nossa realidade.
Percebeu-se que tais processos são a matéria-prima de nossa
evolução cultural e que permeiam ou amarram a cultura. São o fator
estruturante que a mantém em pé. Visto por esse ângulo, pode-se dizer, talvez,
que as narrativas sejam o meio pelo qual construímos a cultura. Barthes chega
a dizer que " a narrativa está sempre presente, como a vida" (2001: p104) se
referindo a esta simbiose com a cultura.
Com o estudo sobre questões relativas a autoria, percebi que a
criação individual é extremamente discutível, quando distancia-se o olhar e
enxerga-se um cenário mais amplo, que permite perceber o quão impregnada
de conceitos e ideias anteriores, estão todas as narrativas. O próprio processo
de construção de nossa cultura e nosso corpo de conhecimento se faz sobre
esta lógica.
Penso que é a possibilidade de partir de um patamar já estudado e
conhecido, que permite a evolução do conhecimento. Nesse sentido, não
existiria narrativa individual - toda e qualquer tipo, é coletiva por definição, por
estar apoiada no corpo de conhecimento comum.
Segundo Santaella e MIranda, os motivos que nos levaram a definir
historicamente a figura do autor individual - um autor único e identificável - são
89
a determinação da responsabilidade sobre o que foi dito e o direito a eventuais
lucros econômicos que a obra possa vir a gerar. Por outro lado, nota-se que
existem formas de narrativas coletivas onde o aspecto grupal é imediato,
concomitante com sua construção, onde várias pessoas participam da
construção no mesmo tempo/espaço. A meu ver, tal fato amplifica a discussão
sobre a autoria dos conteúdos produzidos desta forma e podemos dizer que
esta será uma discussão importante neste século que se inicia sob a
perspectiva de evoluções tecnológicas cada vez mais rápidas, que trazem
consigo formas coletivas mais complexas, não incluídas nas determinações
realizadas até o presente. O sistema especificado no capítulo 4 serve como
exemplo claro desta realidade, pois nesta proposta a figura do autor individual é
diluída com maior profundidade ao colocar no âmbito coletivo a criação da
história e a construção da narrativa.
A análise de duas experiências com Live cinema, revelaram-me que
este formato pode produzir narrativas coletivas - subjetivas ou objetivas, na
construção do filme; mas, não com relação ao enredo. A história no caso de
uma narrativa objetiva ou o conceito, no caso de uma narrativa subjetiva - são
pré definidos, fruto das idéias de um indivíduo e não de um grupo. A construção
da narrativa na forma de uma peça audiovisual possui mais de um autor, porém
a história, o enredo, a ideia ou o argumento possuem identificação individual.
Storm é uma obra de Luiz duVa, construída em tempo real como um filme em
conjunto com Manuel Pessôa. O filme possui dois autores a cada exibição, mas
a idéia que motivou sua criação, seu argumento, pertence a uma única pessoa.
Além disso, o aspecto do tempo real, se restringe mais a montagem
do filme, que é feita a partir de uma base de dados pré concebida e criada para
este fim por um indivíduo, o que o qualifica como autor desta, o que demonstra
haver possibilidades coletivas mais significativas e determinantes de tal
qualidade. Já a análise do jogo online The Blast Theory, revelou-me que a
base de dados pode ser construída por várias pessoas em tempo real porém, o
argumento único programado no algoritmo do jogo, restringe o enredo criado a
um único tipo, tornando o que será dito pré definido. Por fim, o espetáculo
teatral estudado, apresentou-me uma forma livre para construção coletiva de
uma história, à partir de um gatilho inicial, que pode ser uma frase, uma ideia,
que sirva de argumento. Neste caso, a criação da história e a construção da
90
narrativa são absolutamente coletivas. O autor individual desaparece e se
personifica como um grupo onde cada componente recebe individualmente a
responsabilidade sobre a autoria dos significados produzidos, porém não
unicamente, porque não há controle individual sobre o resultado final do enredo
e da forma como foi construída a narrativa.
Os avanços tecnológicos e o surgimento das mídias digitais
modificaram as formas de narrar e continuam a fazê-lo, aproximando-as da
forma coletiva inerente a tradição oral. Este fato indica a existência de um
processo de retorno de uma visão de nossa existência como grupo, em
detrimento da visão individual - tão propícia ao capitalismo emergente do início
do século passado. Estas observações, propiciaram-me a percepção ampliada
do significado e importância do segundo objetivo desta pesquisa: a proposta de
elaboração de um sistema, revelando sua inserção num processo amplo de
retorno ao coletivo.
Se a realidade é uma construção coletiva, na medida em que
entendemos como real - aquilo que é possível ser identificado de forma
parecida por muitas ou várias pessoas; os processos narrativos coletivos
destituem as visões individuais como expressões da realidade.
Pode-se dizer que uma narrativa coletiva possui maior autoridade do
que a individual, pois é o resultado da somatória de várias visões do mundo e
por esse motivo, mais próxima do que podemos chamar de real. A redução da
autoridade das visões individuais também nos aproxima cada vez mais de uma
verdadeira democracia, onde as ideias produzidas e difundidas são coletivas,
expressando a visão ou interesses de um grupo e não de um indivíduo.
O exemplo do coletivo Mídia Ninja citado no capítulo 1 é uma tentativa
clara nesta direção. Sua intenção é fazer um jornalismo isento de interesses
políticos ou econômicos. Para isso o grupo criou uma forma coletiva de registro
e difusão de acontecimentos jornalísticos. O fato de várias pessoas produzirem
o conteúdo, é o que torna a matéria isenta, apresentando uma multiplicidade de
visões do mesmo acontecimento, impedindo o direcionamento individual dos
significados. Neste sentido qualquer processo que crie e evolua procedimentos
de produção coletiva de qualquer conteúdo, tem imensa relevância por estar
ligado à mudança de visão da realidade - uma visão mais ampla e distanciada
do corpo que a humanidade forma, à partir de suas individualidades,
91
valorizando o grupo e nos levando a uma sociedade onde as ações individuais
tenham uma ligação mais próxima com os objetivos coletivos, e quem sabe,
mais justa - por enxergarmos os outros como partes de nós mesmos, na
medida em que somos pedaços de um mesmo corpo.
Os quatro casos estudados, no capítulo 3 deste trabalho, levaram-me
a conclusões e caminhos operacionais para a especificação do sistema a que
me propus. A especificação de um método, que possibilite a criação de um
sistema coletivo de produção de histórias, na forma de um filme em tempo real,
ratifica a percepção de que navegamos em um universo infinito de
possibilidades em constante evolução quando se trata de narrativas e,
independentemente do resultado da implementação do sistema ser funcional
ou não, o exercício da especificação aponta a existência de caminhos para a
experimentação que comprovam ou descartam possibilidades e, portanto,
contribui para a evolução e o aparecimento de outras formas de expressão.
Acredito que esta maneira de criar histórias revele anseios, visões, e
morais, ligadas ao inconsciente coletivo, formado pela soma dos individuais.
Digo ligados ao inconsciente, principalmente por serem criadas em tempo real
e, portanto, sem o intervalo necessário para gerar relações conscientes
oriundas do raciocínio lógico. Ao reduzir o tempo para reflexões racionais,
pode-se entrar em contato com as ideias mais puras, menos trabalhadas pela
razão.
Esta pesquisa é um pequeno passo nesta direção, e aponta caminhos
para pesquisas futuras sobre o assunto, na medida em que procura uma forma
diferente de produção de conhecimento e cultura, que vejo como espelho - no
sentido em que as narrativas refletem mudanças culturais; e motor - no sentido
em que estas motivam mudanças de visões de mundo - de um passado
individual para um futuro coletivo.
92
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LISTA DE IMAGENS
Figura 1 - diagrama da relação do cinema com tipos de narrativas. – Pg. 35
Figura 2 - Obra "A fonte" de Marcel Duchamp, 1917. Disponível em
<https://egonturci.files.wordpress.com/2012/09/duchamp-
fonte.jpg&imgrefurl=https://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-
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141&usg=__1TFW3Jyvv1lQN3cdqO5IqQZuZOs=&docid=3vtOLSAZBTi09M&itg
=1&ved=0CMEBEMo3&ei=mEfKVM7oHqTbsATBwICIDQ>. Acesso em 15 jan.
2015.– Pg. 37
Figura 3 - apresentação do Layer Synthesis Device. Disponível em
<http://www.leoalmanac.org/vol19-no3-outsourcing-the-vj/>. Acesso em 14
abr.2014. – Pg. 40
Figura 4 - frame de um clipe do projeto Telepatia. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=Q2SNzO3R4Qk>. Acesso em 17 mai.
2014. – Pg. 42
Figura 5 - The horse in motion de Eadweard J. Muybridge. Disponível em
<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/The_Horse_in_Motion.jp
g>. Acesso em 29 jan. 2015. – Pg. 49
Figuras 6 e 7 - cronofotografia de Étienne Jules Marey 1952 e reprodução de
pintura de Marcel Duchamp de 1912. Disponível em
<http://www.gianluigigargiulo.it/ricerca/cronofotografia/index_cronofotografia.ht
m>. Aacesso em 20 jun. 2014. – Pg. 50
Figura 8 - Shelpa Ferro - 100m Rasos, Haus der Kulturen der Welt, Berlim,
2006. Frame extraído do DVD que acompanha o livro Chelpa Ferro editado
pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. – Pg. 57
Figura 9 - apresentação de storm. disponível em
<http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html>. Acesso em
22 dez. 2014. – Pg. 59
Figura 10 - captura de tela de vídeo com trecho de uma apresentação de
storm. Disponível em
96
<http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html>. Acesso em
22 dez. 2014. – Pg. 63
Figura 11 - captura cena do filme Ressaca. Disponível em
<http://www.ressaca.net/tudo.htm>. Acesso em 22 dez. 2014. – Pg. 64
Figura 12 - a Interface ou Engrenagem de montagem do filme Ressaca.
Disponível em <http://www.ressaca.net/tudo.htm>. Acesso em 22 dez. 2014. –
Pg. 65
Figura 13 - sobreposição dos mapas do jogo e da cidade. Disponível em
<http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/>. Acesso em 22
dez. 2014– Pg. 67
Figura 14 - jogador perseguidor em ação. Disponível em <http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/>. Acesso em 22 dez. 2014. – Pg. 68
Figura 15 - cena da peça Espontânea. Disponível em
<http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&
view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5>. Acesso
em 22 dez. 2014. – Pg. 71
Figura 16 - cena da peça Espontânea. Disponível em
<http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&
view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5>. Acesso
em 22 dez. 2014. – Pg. 72
Figura 17- diagrama geral do sistema. – Pg. 87
97
APÊNDICE I - ENTREVISTA COM IAN SOFFREDINI
Segue a entrevista com Ian Soffredini, realizada em 10 de junho de
2014, onde ele nos explica o método usado por ele na concepção do
espetáculo Espontânea, desde sua definição até a aplicação em ensaios e o
treino dos atores.
P: De onde surgiu a ideia do ―Espontânea‖? Você teve a ideia
sozinho? Você buscou uma ideia que já existia?
R: É, têm várias gêneses pro ―Espontânea‖. Tem uma mais poética
que eu gosto bastante, que é... Eu tinha um sonho recorrente de um espetáculo
que eu entrava e não sabia que peça que era. Acho que todo ator tem esse
sonho. Tive esse pesadelo e resolvi realizar esse pesadelo. E tem outro
caminho que, na verdade é a verdade, que é... A minha família... Eu sou neto
do Carlos Alberto Soffredini. E ele desenvolveu um método chamado ―Estética
Teatral Popular Brasileira‖, que é uma releitura da estética teatral usada no
circo teatro para o palco italiano. Ele fez uma pesquisa muito profunda com as
famílias do teatro, entendendo exatamente como é que era a estética, como é
que era a linguagem, como é que se faz a arte de contar história
tradicionalmente brasileira, e readaptou ela para o palco italiano, e esta foi
minha formação, ou seja, quando parti a procura de novas fontes de pesquisa,
já possuía um forte entendimento sobre o que é contar uma história. Fui para a
Inglaterra estudar teatro e conheci várias linhas de dramaturgia, desde
Shakespeare até os modernos, pensei: Se eu já tenho uma linguagem forte de
como contar, eu vou desenvolver uma linguagem para resolver o que contar. A
minha pesquisa vai ser não escolher um texto pronto e montá-lo, eu vou
desenvolver uma linguagem onde qualquer história possa ser contada.
Encontrei objetivos semelhantes na Commedia Dell'arte, que naquela época
era o oposto do que se considera hoje. Hoje em dia, o teatro pago, o teatro
profissional, as pessoas decoram o texto e tem muitas formas de teatro amador
onde as pessoas vão improvisar e fazem qualquer coisa. Na época era o
oposto. Os amadores decoravam o texto e os profissionais experimentavam,
em cada espetáculo se fazia algo diferente. Uma diferença muito grande da
Commedia Dell'arte para o que a Espontânea acabou se tornando é que a
98
estrutura dramatúrgica da Commedia Dell'arte já estava estabelecida. A atriz
que fazia a ingênua, fazia sempre a ingênua. Às vezes o drama era porque ela
queria casar, às vezes era porque o marido dela tava com fome, mas ela
sempre fazia o mesmo arquétipo. Vamos quebrar com isso também. O mesmo
ator vai ter que ser capaz de fazer arquétipos diferentes. Para isso, ele precisa
entender não só quais são os muitos arquétipos, mas como é que eles
contribuem para uma dramaturgia. Porque que existem esses arquétipos?
Porque que sempre tem o ingênuo? Porque que sempre tem o vilão? Nessa
pesquisa você precisa de atores que não são só capazes de improvisar muito
bem, mas de improvisar o trabalho do ator e do diretor, porque ninguém vai
estar lá na hora pra falar ―olha, se posiciona aqui, se posiciona ali, fala assim,
assado‖, a pessoa vai ter que perceber qual a função dramatúrgica do seu
personagem dentro de um contexto. Para fazer o Espontânea, o ator tem que
entender muito bem o que é uma estrutura dramatúrgica. Iniciamos uma
pesquisa, mas quando você começa a falar de teoria da dramaturgia, tem
muitas pesquisas diferentes. Nosso trabalho foi levantar quais são os mapas
que esses teóricos levantaram e quais são os pontos em comum entre eles. No
Espontânea você começa uma história, só que você não sabe qual história
você está começando, você está dentro de uma dramaturgia, sendo ela linear
ou não, linear no sentido cronológico, Toda cena ela vem pra contribuir com a
história, ela nunca pode estar solta, ela sempre tem que ter relação com as
outras cenas. Quando você faz isso sem saber quais são as cenas que vêm
pra frente, é um puta tiro no escuro, então no Espontânea você tem
constantemente a sensação de corda bamba. E a única defesa que você tem
no palco é você, os outros atores e o público, então você precisa abraçar a
ideia dos outros como se fossem suas. Tudo que for proposto no Espontânea
você tem que aceitar. Se você está querendo contar uma história sobre uma
princesa que quer se casar com o príncipe e alguém faz uma piada, sem
querer, que ela é sapatão, então mudou a história, a princesa é sapatão e você
tem que improvisar...
P: A partir desse start, como você criou a dinâmica de construção da
história? Como você conseguiu explicar para os atores como eles deviam agir?
Como eram os ensaios? De que maneira você estruturou para que tudo
funcionasse na hora?
99
R: Eu dividi a pesquisa em quatro frentes. Então, duas frentes eu
fiquei responsável que é a de improvisação, onde a gente se baseou muito nas
técnicas do Keith Johnstone e Del Close que são teóricos do improviso, nem é
improviso teatral em geral é uma técnica específica de improviso que se chama
"Impro Improf" que envolve os conceitos da aceitação, generosidade, da
construção colaborativa. Em geral se usa essa técnica pra montagem de
espetáculos em cenas que não tem relação entre elas. Os atores têm que criar
uma cena que seja interessante para o público e que se complete em si
mesma. Foi aí que busquei as ferramentas pra conseguir colocar dois atores,
que não sabem que cena estão fazendo, no mesmo lugar e conseguir que eles
construam juntos uma cena. E a outra que eu fiz a frente foi a estética, na
pesquisa teatral ao longo dos séculos se desenvolveram muitas estéticas e eu
precisava que os atores estivessem afinados com uma única estética. Eu
escolhi, é claro, a que eu tinha mais afinidade, que é a estética teatral popular
brasileira e ela já dá um grande embasamento no sentido se exercer função
dramatúrgica porque quando você ganha o meio do palco é porque você esta
sendo o pivô daquela cena, como eu não sei que cena estou fazendo ainda, se
alguém toma o centro do palco eu sei que essa pessoa está querendo ser o
pivô daquela cena e todos sabem que têm que apoiar ele. Então eu pequei os
sígnos que a gente usa geralmente pra explicar pro público o que está
acontecendo pra gente explicar um para o outro o que está acontecendo
também. As outras frentes são a dramaturgia, onde me juntei a um grande
parceiro meu o Fabio Brand Torres que é um dramaturgo paulistano muito
premiado e parceiro em outros projetos e juntos desenvolvemos um mapa onde
a gente dividiu o espetáculo em três atos: o primeiro ato tem a função de
apresentar os personagens e o conflito. Existem muitas formas de se
apresentar os personagens, existe uma que chamamos de dramaturgia pobre
onde apresentação é feita diretamente. O cara chega e fala "eu sou o Carlos e
sou o vilão desta história e quero matar o fulano". Quando você faz uma cena
onde o conteúdo do que o personagem fala e a forma como ela fala e age
permitem a leitura de quem ele é, você tem um tipo de dramaturgia muito mais
rico e então a gente acabou pegando esse caminho onde o enredo acaba
contando para o público que personagem ele é, isso aumenta muito mais a
qualidade e o tesão de assistir o espetáculo, mas dificulta para o ator explicar
100
qual a ideia dele, então muitas vezes eu entrei pra ser o vilão e acabei sendo o
mocinho porque os outros atores assim entenderam e propuseram falas que
me levaram para esse caminho.
P. Não dá pra contestar os caminhos propostos quando se está em
cena é um exercício de aceitação...
R. Não tem não. Até porque um não acrescenta, se eu como
personagem falo não pra alguma coisa, eu estou dando para a platéia um sim
das minhas qualidades, das minhas características, você nunca tira uma
informação, você só acrescenta coisas novas.
O segundo ato é onde ocorre o desenvolvimento do conflito e a crise.
Toda história tem uma crise. Tem um momento em que você percebe que o
personagem não vai alcançar o objetivo dele, ou que a história não vai vingar,
tem que alguma coisa que não vai dar certo. Em geral quando a gente percebia
qual era o conflito da história a gente ainda estava bem longe do conflito, mas
era o momento em que os atores respiravam fundo e falavam para si mesmos:
Ahh entendi que história é essa.
E finalmente o terceiro ato que era a conclusão da história. Como a
gente se baseava em três poemas para a inspiração do espetáculo, a gente
tinha a responsabilidade interna, uma coisa que dificilmente a gente
compartilhava com o público, de usar o poema, que no primeiro ato foi usado
para a apresentação dos personagens, neste momento do espetáculo, ou seja,
o segundo ato é necessariamente a crise então se é um poema que fala sobre
o patinho que sabe voar a gente tem que inventar um jeito do patinho que sabe
voar ser a cagada da peça, ser a crise do espetáculo. E o grande desafio era
usar o terceiro poema, construído colaborativamente pela platéia antes do
espetáculo começar, uma platéia que não sabia para que aquele poema seria
usado, e a gente tinha que usar esse poema para concluir a nossa história.
Então acho que esse era o maior desafio do Espontânea, usar o terceiro
poema para a conclusão da história.
A quarta e última linha de pesquisa foi a dramaturgia corporal, onde
fui ajudado por outro grande parceiro que acompanha a pesquisa da família
desde meu avô, que é o Eduardo Coutinho que é professor da ECA de
dramaturgia corporal. A dramaturgia corporal é por exemplo quando seu
personagem está num momento difícil todo seu corpo "falar" como ele está se
101
sentindo. A gente não tinha cenário, então quando a gente estava num espaço
aberto, quando estava chovendo, subindo uma montanha, com frio, quem
contava isso para a platéia era o nosso corpo, isso não era falado com palavras
e todos os atores tinham que comprar a ideia mesmo que esta não estivesse
diretamente ligada a dramaturgia, para não quebrar a magia do espetáculo.
P. Durante a construção da história como era a comunicação entre os
atores? Havia comunicação? Vocês se falavam no "back stage" pra combinar o
que ia acontecer ou era tudo absolutamente decidido em cena?
R. Para ficar bem clara a opção pelo improviso, os atores nunca
saiam de cena, ou melhor do palco. Quando um ator não estava participando
da cena ele ainda ficava no palco como observador, então nunca havia um
momento onde os atores pudessem conversar e combinar antecipadamente o
encadeamento dos acontecimentos.
P. Mas quando eu assisti o espetáculo notei que os atores que não
estavam em cena conversavam ao pé do ouvido.
R. Como via de regra a gente era proibido de se falar, mas sempre
aconteciam exceções. O que a gente tinha eram códigos internos que
explicavam o que estava sendo proposto. No Espontânea cada cena acabava
com os dois atores saindo do personagem ao mesmo tempo e indo para o ator
neutro olhando diretamente para a platéia sem nenhuma comunicação prévia,
então haviam alguns sinais que indicavam para o outro ator o fim da fala. Por
exemplo a gente piscava com o olho que não estava virado para a platéia e o
outro ator sabia que eu já havia falado tudo que eu queria e não tinha mais
nada para acrescentar à cena. Um outro código era mandar um beijo que
significava "estou te dando esse poema de mão beijada", que o que eu estava
fazendo era um encaminhamento pra você ler o poema e pra gente ter certeza
de que o outro viu o sinal do beijo havia um sinal de resposta que era o
movimento de fechar a mão significando se estava com ele na mão, que você
sabia o que estava fazendo. A comunicação se baseava praticamente a estes
três códigos, uma comunicação que a platéia não compartilhava. Algumas
outras representações estéticas, por exemplo se o ator saia do personagem e
estendia a mão para o céu, significava que ele estava pedindo o poema. Este
era um código aberto, pois a platéia também percebia. Era a hora de algum
102
outro ator pegar o poema e dar na mão do cara porque ele já sabia o que fazer
com aquilo.
Comunicação verbal direta entre os atores era muito rara, mesmo
porquê a gente experimentou e percebeu que isso acabava atrapalhando a
construção da história porque a gente trabalhava com elementos que ainda não
tinham sido expostos ao público. Como a gente ficava sempre no palco e
sempre havia alguém em cena, agindo e falando, cada segundo tinha muita
informação, a gente já estava no jogo e não tinha como escapar, se a gente
colocasse ainda uma informação que não estava no jogo, pra trabalhar
mentalmente a forma de encaixá-la acabava-se perdendo o que estava
acontecendo na cena. Chegamos então a conclusão de que não era bom que a
gente tivesse alguma informação que o público também não tivesse.
P. E as frases que vocês pediam para o público escrever era usadas
em que momento?
R. A inspiração do Espontânea era baseada em quatro elementos:
são três poemas, dois escolhidos de autores já publicados que poderiam ser
escolhidos nos livros que a gente tinha ali ou trazidos pelo público, o terceiro
poema era construído colaborativamente. Cada um escrevia uma frase
sabendo apenas a frase anterior...
P. Como nos exercícios surrealistas de desenho...
R. Exatamente, então a gente lia o poema uma vez, antes de começar
a peça e a gente tinha que dar uma solução pra ele. E o quarto elemento que
eram frases, escritas pelo público quando entravam na platéia. Os papéis com
as frases eram colocadas numa "urna" e sorteávamos três frases, líamos para
o público que votava qual delas seria a frase tema para a última cena do
espetáculo. A frase era lida e nós improvisávamos a última cena do espetáculo
só aí o espetáculo começava e tínhamos uma hora e meia para passar pelos
três poemas e chegarmos a cena final.
Era um trabalho de desapego infinito porque cada um dos seis atores
que estavam lá faziam um espetáculo inteiro em suas cabeças quando a gente
lia os tres poemas e a frase final, mas quando o primeiro ator entrava em cena
e falava a primeira palavra, os seis espetáculos que estavam construídos na
cabeça dos outros caiam e todos formavam um novo espetáculo, que
desabava com a próxima fala. Cada um de nós construía várias histórias
103
durante o espetáculo. Então a gente desenvolveu uma regra: não sou eu que
vou escolher que peça é essa, não sou eu que vou escolher ser o protagonista
ou o antagonista, vou começar com a proposta que me vier e a peça é que
decide. Algumas vezes, quando conversamos depois do espetáculo,
percebemos que quase todos tinham uma ideia parecida para a história no
início, mas quando as pessoas iam realizar essa ideia ela ganhava vida
própria. Fica muito feio se você não segue o desejo do espetáculo. Fica
inorgânico e gritante para a platéia que a condução do enredo para contar uma
história que o ator já tem na cabeça dele.
P. Havia um questionamento com relação a autoria, vocês
conversavam sobre a quem conduziu mais ou menos a construção da história?
R. Uma coisa que acontecia era o oposto disso. Por exemplo: o ator,
hoje você puxou demais, forçou demais pra impor suas ideias. Seis cabeças
pensam melhor que uma, realmente, se a gente deixa a coisa rolar e a
construção se dá de forma igualitária, os espetáculos ficam muito mais ricos.
Se alguém puxa demais para sua ideia acaba "brochando o espetáculo" porque
tira a relação dos atores com o aqui e agora, a relação não acontece com o
que o outro está dizendo e sim com suas próprias ideias e não é esse o
caminho. Tem que ouvir o que o outro está dizendo e se relacionar com isso.
Essa relação acontece em outras camadas também. Essa é uma
pesquisa que realizo há muito tempo e também tive que me desapegar de
conceitos pré definidos para aceitar as soluções que apareciam no processo,
as ideias vinham para resolver problemas que estávamos vivenciando e não
problemas previstos ou premeditados. Então até na estruturação do projeto
aprendemos que estar no presente é o melhor caminho. Chegou um momento
durante o trabalho que nós já nos conhecíamos tão bem que podíamos
prescindir das palavras. Havia uma percepção do que o outro estava propondo
e estávamos ali para tirar o melhor um do outro.
P. Nos ensaios vocês faziam apenas exercícios ou vocês construíam
histórias?
R. A gente teve quatro períodos de ensaios: o primeiro foi puramente
treino para que as pessoas adquirissem as ferramentas para concluir esse
desafio, depois começamos a desenvolver o método. A partir de um poema
desenvolvíamos o primeiro ato de um espetáculo, as vezes à partir do mesmo
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poema fazíamos vários primeiros atos, ou à partir de vários poemas fazíamos
vários primeiros atos diferentes e fomos estendendo para o segundo e terceiro
ato. De vez em quando fazíamos o primeiro ato e pulávamos direto para o
terceiro para que tivéssemos a dramaturgia muito na mão. Depois voltamos
para o teórico fazendo uma peça inteira em dez minutos, ou um primeiro ato
em uma hora, então chegamos num momento que sentimos a necessidade de
fazer oficinas de leitura e ficávamos lendo livros de poesia que cada um trazia,
explorando as possibilidades de criação de cada um.
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