Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Amanda Lobão Torres
Garantismo, Ativismo e Cooperação e(m) Crise
Mestrado em Direito
São Paulo
2016
Amanda Lobão Torres
Garantismo, Ativismo e Cooperação e(m) Crise
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Direito Processual
Civil, sob a orientação do Prof. Dr. William
Santos Ferreira.
São Paulo
2016
Banca Examinadora
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À minha mãe, pelo exemplo de vida. Ao
meu pai, pela influência na escolha da
profissão e pela pressão que sua
memória representa.
Agradecimento especial à bolsa do CNPQ e ao apoio do FUNDASP.
Processo. n.:
AGRADECIMENTOS
Minha eterna gratidão:
Aos dois príncipes de minha vida, Miguel e Marcus, que me
fizeram perceber que o melhor da vida consiste na simplicidade
do dia-a-dia.
Aos meus irmãos e aos problemas que juntos enfrentamos,
ambos engenheiros da verdadeira fraternidade que hoje
possuímos.
Ao meu cunhado e minha sogra, que me escolheram como
componentes de sua família e me auxiliaram, sem qualquer
obrigação, com meu Miguelzinho nos momentos em que tive
que me afastar.
Aos que se foram, aos que ficaram, e aos que foram ficando com
a benção de Deus.
Ao CNPQ e à FUNDASP pelo imenso suporte aos meus
estudos, bem como à Adolfo Alvarado Velloso e à Universidade
Nacional de Rosário, pelo engradecimento na Maestría
argentina.
Ao meu orientador, William Santos Ferreira, pela instrução e
oportunidade, bem como ao Professor João Batista Lopes e
Eduardo José da Fonseca Costa, pelos conselhos.
À minha sócia Larissa Campos Machado, pelo companheirismo
e cuidado de sempre. Suas gentilezas jamais serão esquecidas.
À Letícia Arenal e Silva, por compartilhar questionamentos,
afirmações, felicidades e medos.
Os positivistas têm uma solução simples: o mundo
deve ser dividido em o que podemos dizer de forma
clara e o resto, sobre o que é melhor passar em
silêncio. Mas pode alguém conceber uma filosofia
mais inútil, visto que o que podemos dizer
claramente equivale a quase nada? Se nos omitirmos
sobre tudo que não é claro, nós provavelmente
ficaríamos com tautologias completamente
desinteressantes e banais.
(Werner Heisenberg)
RESUMO
O presente estudo aborda o garantismo e as discussões que o permeiam num contexto
nacional e internacional. Passa pelas necessárias considerações à teoria de Luigi
Ferrajoli abordando-o desde sua obra “Direito e Razão” até publicações mais recentes
que demonstram um posicionamento menos contundente no que tange a tese positivista
da separação entre direito e moral. Em seguida, o estudo direcionou-se ao garantismo no
processo civil apresentando as imensas contribuições dessa doutrina para o combate ao
ativismo judicial. Este fora, aliás, histórica e juridicamente apresentado. E então,
considerando que a doutrina processualista brasileira tem recentemente apontado o
modelo cooperativo como um modelo adequado ao Estado Democrático de Direito, uma
visão garantista às considerações cooperatistas ou colaborativas intermediaram a
discussão, localizando o inquisitivismo neste novo modelo, em contraposição ao
sistema acusatório do garantismo processual. Por fim, após o contato com afirmações
garantistas acerca da possibilidade de aplicação de um texto sem interpretação e tendo
em vista também o apego desta doutrina à semântica, foram postas considerações da
hermenêutica filosófica.
Palavras-chave: garantismo, garantismo processual, ativismo judicial, cooperação,
colaboração, modelo cooperativo.
ABSTRACT
The garantism theory is an existent and important topic surrounding today’s procedural
discussions, both national and international context. So, this study goes through the
necessary considerations to Luigi Ferrajoli theory approaching it since his "Law and
Reason" to more recent publications demonstrating a less forceful position regarding the
positivist thesis of the separation between law and morality. Then the study is directed
to the garantism in civil proceedings presenting the immense contributions of this
doctrine to combat judicial activism. This was, in fact, historically and legally
presented. Since the Brazilian proceduralist doctrine has recently appointed the
cooperative model as the appropriate one for the democratic constitutional state,
considerations garantists were necessary regardin the cooperative or collaborative
doctrine, especially concerning ideological inquisitivists roots to this new model, as
opposed to the adversarial system defended by procedural garantism. Finally,
considering garantists statements about the applicability of a text without interpretation,
and also in view of the attachment of this doctrine with semantics, philosophical
hermeneutics considerations were put, so were also conclusions regarding democratic,
social and liberal paradigms.
Key-words: garantism, procedural garantism, judicial activism, cooperation,
collaboration , cooperative model.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………. 12
1. O GARANTISMO: DO INÍCIO DO VOCÁBULO AO PROCESSO
CIVIL............................................................................................................................. 19
1.1. As primeiras aparições da expressão e os três significados de Luigi
Ferrajoli......................................................................................................................... 19
1.2. Luigi Ferrajoli e sua teoria do garantismo: aprofundando a análise dos três
significados de “garantismo” ...................................................................................... 21
1.3. O sistema garantista: axiomas materiais e processuais ................................ 36
1.4. O garantismo de Ferrajoli e o dilema da dupla “verdade”: quatro limites de
aquisição e controle da verdade fática e da verdade jurídica e o raciocínio
judicial........................................................................................................................... 39
1.5. A teoria garantista ferrajoliana e a herança juspositivista: o problema da
discricionariedade judicial e a separação entre direito e moral .............................. 53
1.6. O Garantismo processual civil ........................................................................ 65
2. ATIVISMO JUDICIAL .................................................................................. 94
2.1. Por que falar sobre isto? ................................................................................. 94
2.2. O caráter patológico do “ativismo judicial” num Estado Democrático de
Direito ........................................................................
2.3. Neoconstitucionalismo e Pós-Positivismo: Analisando a diferença entre
texto e norma, a interpretação do direito não mais como ato revelador da vontade
da lei ou do legislador, e o adeus ao silogismo ......................................................... 104
2.4. Judicialização da política e ativismo judicial .............................................. 110
2.5. Ativismo versus garantismo .......................................................................... 115
3. A COOPERAÇÃO PROCESSUAL COMO MODELO ADEQUADO AO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................................ 133
3.1. Do processo liberal ao processo social .......................................................... 133
3.2. Apresentando a cooperação/colaboração .................................................... 138
3.2.1 A colaboração em Daniel Mitidiero.............................................................. 139
3.2.2 O que é isto? – A cooperação processual em Lenio Streck ........................ 142
3.2.3 A cooperação em Lucio Grassi ..................................................................... 144
3.2.4 O princípio da cooperação no Direito Processual Civil Português na análise
de Fredie Didier Jr. ................................................................................................... 145
3.2.5 A cooperação em seu perfil comparticipativo e o contraditório como
garantia de influência e de não surpresa com as contribuições de Dierle Nunes..151
3.3. A cooperação processual e o garantismo processual .................................. 158
4. APORTES HERMENÊUTICOS DIALOGANDO COM O GARANTISMO
E SUAS CRÍTICAS AO ATUAL ESTÁGIO DO PROCESSO CIVIL
BRASILEIRO ............................................................................................................ 169
4.1. Da hermenêutica clássica à filosófica................................................................. 169
4.2. O paradigma pós-positivista, a teoria das fontes do direito, a diferenciação
entre princípios e regras e a distinção entre princípios gerais do direito e princípios
constitucionais............................................................................................................. 174
4.3. “Questão de fato” e “questão de direito”: a distinção persiste na visão pós-
positivista? .................................................................................................................. 194
4.4. Afinal, e a verdade? O que diz sobre ela a hermenêutica filosófica?
...................................................................................................................................... 196
4.5. O caminhar metodológico do processo civil ................................................ 204
4.6. O processo civil no Estado Democrático de Direito: a visão liberal do
garantismo processual e a materialidade da Constituição democrática .............. 211
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 222
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 239
12
INTRODUÇÃO
O presente estudo nasceu de curiosidades geradas em sua Autora pelas
apresentações expostas no “Encuentro Panamericano de Derecho Procesal Garantista”
de Azul, em 2014. O ativismo era tão benquisto por esta que, apesar de seus pontos
negativos, não se enxergava melhor solução. Era concebido, diga-se, como um mal
necessário para se fazer justiça. Não se via, neste ponto, nenhum indício de
autoritarismo. Pura ilusão!
As exposições congressuais em Azul e os questionamentos direcionados à
própria Autora após breve pergunta que fez aos expositores com o encorajamento de
Hugo Botto foi o “start” para o início do aprofundamento sobre o garantismo processual
e a sua não concepção da prova oficiosa. Perguntando “Porque o juiz era imparcial
quando determinava a produção de prova oficiosa se não sabia o resultado”, a inquieta
resposta de Adolfo Alvarado Velloso e a tradução de Eduardo Fonseca da Costa como
“clássico argumento da doutrina brasileira” foram fundamentais para o estímulo ao
enfrentamento da questão.
A viagem de volta para casa com as efusivas brincadeiras de Glauco
Gumerato Ramos foram, ademais, o puxão de orelha para o despertar ao “pensar
garantista”.
Afinal, se o constitucionalismo contemporâneo que chegou ao Brasil apenas
no final da década de 80 estabelecia um novo paradigma, ou ao menos proporcionava as
bases para a introdução de um novo, a permanência de velhas formas de interpretar e
aplicar o direito deviam ser, no mínimo, questionadas. Aqueles pontapés foram
decisivos para se buscar compreender os distintos pensamentos, em que pese não saber,
naquele momento, o que se encontraria pela frente.
As considerações expostas aqui não se resumem a uma abordagem pontual
sobre o garantismo (até porque seu próprio “criador” o concebeu com três significados),
pois centrou-se no objetivo de colocar em xeque as afirmações comuns que carregam o
rótulo de garantista (às vezes até com tom pejorativo, vinculando o garantismo
processual ao formalismo) resultantes da banalização do termo no Brasil e da falta de
uma séria e necessária compreensão da extensa obra de Luigi Ferrajoli e Adolfo
Alvarado Velloso. Claro que o estudo, como resultará ao final compreendido, não
13
concorda com a integralidade do pensar destes garantistas processuais, contudo,
sobressai-se entre as teorias que se intitulam como uma opção democraticamente válida.
Em sendo assim, o presente estudo aborda primeiramente o início da
expressão “garantismo”, que, como se verá, se deu no âmbito filosófico-político da
escola de Charles Fourier (1112 – 1837) sob uma conotação social. O vocábulo teve seu
uso fortalecido na linguagem filosófico-jurídica italiana do segundo pós-guerra já com o
sentido de proteção das garantias constitucionais das liberdades fundamentais, após a
abordagem com enfoque político por Guido de Ruggiero.
Aliás, como se verá no construir histórico deste estudo, a Segunda Guerra
Mundial produziu uma ruptura paradigmática de grandes influências no direito.
No século XVIII, o garantismo aparece como doutrina de limitação à
discricionariedade potestativa do juiz.
Já em 1970, o termo é designado como caráter próprio das constituições
democrático-liberais e também com o sentido de doutrina político-constitucional.
Entretanto, a pesquisa demonstra que a consolidação do termo garantismo é
decorrência direta das atividades e pesquisas científicas desenvolvidas por Ferrajoli
desde a época em que era juiz vinculado à Magistratura Democrática e professor da
faculdade de Direito da Universidade de Camerino, em especial a partir da publicação,
em 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”.
Foi com a tradução desta obra para o espanhol (Derecho y Razón) em 1995
e para o português em 2002 (Direito e Razão) que o modelo garantista passou a
pertencer ao léxico jurídico e tornou-se progressivamente comum entre os juristas.
Em “Direito e Razão” o autor introduz o garantismo apresentando seus três
sentidos: (i) como modelo normativo, que, sob o plano político designava uma técnica
de tutela idônea a reduzir a violência e fortalecer a liberdade e sob a perspectiva jurídica
como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado para garantia dos
direitos dos cidadãos, (ii) como teoria do Direito, pelo que no decorrer deste estudo se
fará breves digressão acerca do juspositivismo de maneira que leitor algum deixe de
compreender o chamado “positivismo crítico” que Ferrajoli confessa ter se inserido,
para no final apresentar o pós-positivismo, diferenciando-o do neoconstitucionalismo,
afinal, a teoria do processo não está imune a rupturas que se dão no campo dos
paradigmas filosóficos e (iii) como filosofia política.
Nesse sentido, em que pese ter concebido inicialmente como uma teoria
liberal do Direito Penal, o garantismo NÃO SE APLICA SOMENTE AO DIREITO
14
PENAL! Esse é, aliás, um equívoco encontrado fortemente na doutrina brasileira, o que
provavelmente decorre de uma análise superficial da obra Direito e Razão, trabalho do
autor que teve maior impacto no Brasil. Não foi à toa que entrou no século XX como
verdadeiro clássico.
Mas tal obra, apesar de discutir o sistema penal, o faz como pretensão para
constituir uma teoria geral do garantismo, o que se afirma especialmente tendo em vista
que a quinta parte da obra é intitulada “Para uma teoria Geral do Garantismo”.
Ainda nesse sentido, Norberto Bobbio observa já no prefácio do livro que a
pretensão do autor é a elaboração daquilo que denomina teoria geral do garantismo cuja
premissa fundamental é a antítese que atravessa a história da civilização: liberdade
versus poder.
Repisando tal assertiva, o próprio autor do Garantismo, Luigi Ferrajoli, em
entrevista concedida a Gerardo Pisarello e Ramón Suriano, em 1997, na Universidad
Carlo III de Madrid, afirma que a palavra garantismo, nova no léxico jurídico, foi
introduzida na Itália nos anos 70 no âmbito do direito penal, mas é estendida a todo o
sistema de garantias dos direitos fundamentais.
Feita essa observação, destaca-se com precisão que a teoria garantista de
Ferrajoli apresenta dois elementos constitutivos e que são importantes para sua
abordagem: um relativo à definição legislativa e outro à comprovação jurisdicional,
correspondentes respectivamente às garantias legais/substanciais/materiais e às
garantias processuais/formais (no caso penal, do sistema punitivo que fundamentam).
Isto deixa claro que o modelo penal garantista sustenta a insuficiência de
uma análise que se faça apenas sobre o plano legislativo, considerando necessário o
plano judicial pela constatação de espaços inevitáveis de discricionariedade dispositiva
que assume como inafastáveis.
E foi por pressupor uma dupla verdade, a real e a formal,
concomitantemente com a prevalência no direito criminal do princípio da estrita
legalidade e a suposta exigência, neste ramo, de um nexo mais forte entre a verdade da
motivação e a validade da decisão que em qualquer outro tipo de atividade judicial, que
o autor optou por situar-se aí o seu laboratório de pesquisa.
Resta clara a assunção da dupla verdade no Autor. Mas esse dualismo
persiste?! O contexto ativista demonstra a exacerbada utilização do argumento da
“verdade real” como legitimador de decisões judiciais calcadas em verdades subjetivas
e individuais. Assim, o contraponto necessário entre ativismo e garantismo, torna
15
importante a abordagem sobre a busca da verdade no processo. O que se quer chamar
atenção é para o modo como, no campo processual, a dogmática jurídica discute a
questão da verdade, problemática que tem reflexos profundos na gestão da prova.
Nesse tocante, grande parcela jurídica ainda considera o juiz como
destinatário da prova, não o processo, concepção que bem representa o autoritarismo
judicial no Brasil, ainda mais quando acompanha uma motivação concisa e resumida a
uma série de ementas seguida o item “auto-legitimante” do “do livre convencimento”,
que mais se traduzi na convicção pessoal do julgador e leva a uma instrução processual
baseada na certeza interna do magistrado.
Onde se assume haver “verdade real”, há “princípio do livre
convencimento”, mas em contrapartida, como saber que “o que se obteve” é a versão
“real”? Bem, se o conjunto probatório não é suficiente, que venham as provas adicionais
oficiosamente produzidas pelo juiz para que este alcance a certeza de sua decisão, certo?
Afinal, juiz que não se sente convencido não pode decidir sem investigar os fatos,
afirmam: tem que decidir com base no que efetivamente ocorreu, o oposto se estará
permitindo injustiças e erros jurídicos. Mas como seria possível controlar o grau de
“estar-se auto-convencido o juiz” se esse pode simplesmente investigar adicionalmente
e sempre?
É nesse contexto que, no capítulo terceiro, já com as necessárias
considerações ao garantismo (tanto ferrajoliano quanto alvaradiano) e ao ativismo,
apresentar-se-á o Novo Código de Processo Civil brasileiro e o que se tem chamado de
modelo cooperativo ou colaborativo, doutrina que o propor como adequado ao Estado
Democrático de Direito. Far-se-á uma abordagem dos autores brasileiros que se
entregam ao tema com especificidades, como Lucio Grassi, Daniel Mitidiero, Fredie
Didier Jr. Lenio Streck e Dierle Nunes, um a um, para que o leitor perceba as
divergências entre eles.
E ao final deste capítulo, faz-se uma abordagem garantista dos vestígios
inquisitivos apontados à cooperação, bem-vinda ao estudo. Considerações à prova
oficiosa e à preocupação garantista de que o agir probatório de ofício do juiz já carrega
em si a tentativa de uma hipótese a ser confirmada, ao dever judicial em apontar os
erros da petição inicial, ao ônus da prova como necessidade a ser considerada e ao
controle de constitucionalidade em processo que envolva discussão a respeito de direito
transigível serão apresentadas.
16
Nesse contexto, note-se que o Novo Código de Processo Civil, como
herança do Código de Processo Civil de 1973, mantém dispositivos processuais que
atrelam o processo à “verdade”. Em contraposição, o garantismo processual aponta
como perniciosa a argumentação jurídica que recorre à “verdade” e a “justiça”. Em
realidade, essa linha argumentativa esconde muitas vezes concepções próprias do
intérprete que busca um fundamento para o que já decidiu.
Nesta direção, o último capítulo abordará considerações pós-positivistas e
hermenêuticas que se entende como enriquecedoras do debate. Abordar-se-á a diferença
entre texto e norma, a (imperceptível) busca pela vontade da lei ou do legislador, a
sentença como processo silogístico, a impossibilidade de subsistência de afirmações,
inclusive, garantistas, de aplicação sem interpretação, a diferença entre princípios gerais
do direito e princípios constitucionais, a (in)existência da dicotomia entre questão de
fato e questão de direito, dentre outras.
Veja-se: não se intenta de modo algum colocar uma pedra no debate,
apontando o que é certo ou o que é errado. Pelo contrário. A discussão sobre
determinados temas que aqui se põe merecem aprofundamentos muito superiores ao
aqui expostos. O que se pretendeu, em realidade, foi alargar um debate que muitas vezes
aponta o garantismo processual como formalista ou prejudicial ao Estado de Direito. O
garantismo, por óbvio, não “quer” que o processo seja inverídico ou injusto, mas ele vê
o poder como prejudicial, e é por esta visão que molda uma teoria visando a garantia
dos direitos fundamentais.
Ocorre que o garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso, como o
reconhece, situa-se no paradigma liberal. Preocupa-se, assim, com um Judiciário
intervencionista e a separação de Poderes. Ocorre que, por outro lado, a história
brasileira concebe um Estado Democrático de Direito que além de valorizar o jurídico,
desloca seu centro de decisões para o Judiciário.
Se no paradigma liberal o Direito era ordenador centralizando-se na
legislação, no Estado Democrático de Direito, o Direito passa a ser transformador,
tensionando-se no Poder Judiciario.
Isto é, a noção deste paradigma põe uma jurisdição que guarda os valores
materiais positivados na Constituição “Cidadã” de 1988 podendo-se falar, inclusive,
numa redefinição da separação das funções.
17
A postura intervencionista contrapõe-se à postura absenteísta do modelo
liberal. Ou seja, na falta de cumprimento de políticas públicas surge um Judiciário para
a realização dos direitos previstos e não efetivados.
Olhar a Constituição de 1988 sob as lentes do modelo liberal é manter-se
num paradigma não condizente com a história brasileira e significa ignorar o próprio
texto da carta constitucional que, além de inaugurar o Estado Democrático de Direito,
aponta para a construção de um Estado Social de índole intervencionista, devendo-se
pautar-se por políticas públicas distributivistas.
O estudo do tema precisa conjugar garantismo (como técnica de limitação e
de disciplina dos poderes públicos) juntamente com democracia (tanto democracia
substancial ou social de efetivas garantias quanto uma democracia formal ou política em
que o Estado político representativo baseia-se no princípio da maioria como fonte de
legalidade). Como o resultado dessa união tem-se um Estado de Direito que reflete não
somente a vontade da maioria, mas os interesses de todos, num sentido contra-
majoritário. Ocorre que maiorias eventuais retiram as conquistas da sociedade inúmeras
vezes.
E em que pese ter de se preocupar com a “reserva do possível” ou o
“financeiramente possível”, como parece fazer o garantismo processual, assumir e falar
deste problema não pode levar à ineficácia jurídica de direitos reconhecidos.
Ocorre ao condenar o ativismo judicial e a visar a estrita separação de
poderes, o garantismo processual acaba, numa visão liberal, ignorando os ditames
constitucionais. Afinal, difícil dizer o que cabe ao legislador e o que cabe ao juiz
constitucional. Isso nada tem a ver com a defesa da prova oficiosa, note-se!
O errado é entender que por meio da prova oficiosa, da busca da verdade
real, da justiça no caso concreto, está-se lidando somente com a efetivação de direitos
constitucionalmente previstos e não implementados pelo Executivo e/ou Legislativo
(falta de regulamentação, por exemplo).
Do contrário, o Direito se configurará em um mero exercício de poder, e de
poder excludente, exercido por poucos.
Em se tratando da história brasileira, a Constituição de 1988 estabeleceu o
marco de um novo paradigma no direito brasileiro e por ele inegavelmente derrogou o
inquisitivismo, de maneira que deveria ser suficiente para se afastar o denominado
“princípio da verdade real”. Por que, depois de uma intensa luta pela democracia e pelos
direitos fundamentais, enfim, a comunidade jurídica, tanto na doutrina quanto na
18
jurisprudência, continuam a delegar ao juiz a apreciação discricionária das provas ainda
com supedâneo na “busca da verdade real”? De fato este princípio têm sustentado
“verdades solipsistas”.
Ocorre que se a “verdade”, que conduziria a uma decisão “justa”, carrega
tantos subjetivismos quanto as afirmações que sobre ela fazem, como é possível saber o
que é ou não é justo em um caso?
Não se duvida que no caminho da superação desse sujeito deve-se ingressar
no paradigma da intersubjetividade, o que implica admitir que a compreensão exige
suspensão de pré-juízos e que uma decisão não pode ser produto da “vontade”. E por
isso serão feitas as abordagens hermenêuticas e pós-positivistas: o que se diz sobre um
texto é inseparável de quem o diz, pois a partir de suas pré-compreensões o intérprete
produzirá o sentido do texto, evidentemente que sem liberdade para dizer o sentido que
melhor lhe pareça, mas aquele que esteja em conformidade com o próprio texto
constitucional.
Acredita-se que não se romperá com a discricionariedade e o inquisitorialismo,
além de suas derivações como o decisionismo e o ativismo, somente no âmbito da
dogmática jurídica desprovida das discussões necessárias à viragem linguística e
ontológica linguística. Apenas dogmaticamente é impossível olhar o novo com os olhos
do novo.
Pelo menos, reconheça-se, o Novo Código de Processo Civil extirpou dos
dispositivos o “livre convencimento”, extinguindo a contraditoriedade existente quando
se defendia este no bojo de um sistema acusatório, do mesmo modo que se faz
descabida a defesa da verdade real com o repúdio ao sistema inquisitório.
E para tanto, divergências com Luigi Ferrajoli e Adolfo Alvarado Velloso são
necessárias já que o presente estudo se encontra em paradigmas distintos. Afinal, se está
a falar de intersubjetividade, ou seja, da relação sujeito-sujeito em prevalência da
sujeito-objeto, é preciso ao menos desconfiar para se distinguir da parcela ainda
trabalha com os modelos liberais-individualistas.
19
1. O GARANTISMO: DO INÍCIO DO VOCÁBULO AO PROCESSO CIVIL
1.1 As primeiras aparições da expressão e os três significados de Luigi Ferrajoli
Embora a expressão garantismo possa ser remetida a períodos anteriores, sua
incorporação no universo jurídico é tão recente quanto seu uso corrente nas línguas
neolatinas, conforme, aliás, sinaliza Luigi Ferrajoli em entrevista concedida a Gerardo
Pisarello e Ramón Suriano, em 1997, na Universidad Carlo III de Madrid.
A história demonstra tratar de palavra criada e codificada semanticamente
no âmbito filosófico-político da escola de Charles Fourier (1112 – 1837) que utilizava o
termo “garantisme” para designar um estado da evolução civil podrômico, ou seja,
passagem necessária para o alcance do ideal supremo de uma perfeita e harmônica
sociedade comunitária, funcionando como um sistema de segurança social que procura
salvaguardar os sujeitos mais fracos, fornecendo a eles as garantias dos direitos vitais
por meio de um plano de reformas que diz respeito tanto à esfera pública quanto à
privada1.
A expressão pode ser também remetida ao século XVIII e especificamente à
figura de Mario Pagano, para quem o garantismo seria, de fato, uma doutrina voltada à
limitação da discricionariedade do juiz.
Já nas primeiras décadas do século XX, a designação dada ao termo pelo
italiano Guido De Ruggiero em “Storia Del liberalismo in Europa-1925” assumiu uma
conotação política indicativa da liberdade do indivíduo frente ao Estado, isto é, de
garantias da liberdade.
E foi com o sentido de proteção das garantias constitucionais das liberdades
fundamentais que se fortaleceu o termo na linguagem filosófico - jurídica italiana do
segundo pós-guerra.
Nos anos sessenta, seguindo esse viés semântico, o termo ingressou no
constitucionalismo inglês, tornando-se, finalmente, de uso habitual.
1 IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica
e Teoria do Direito (RECHTD), p. 34 – 41, Jan – Jun 2011.
20
Na década de 70 a expressão foi introduzida no âmbito do direito penal
italiano, podendo ser estendida a todo o sistema de garantias dos direitos fundamentais2
e passando a estar presente em todos os principais dicionários, período em que o termo
aparece semanticamente apontado da seguinte maneira:
Em primeiro lugar, o caráter próprio das constituições democrático-liberais
mais evoluídas, consistente no fato de que essas estabelecem instrumentos
jurídicos sempre mais seguros e eficientes (como o controle de
constitucionalidade das leis ordinárias) com a finalidade de assegurar a
observância das normas e dos ordenamentos por parte do poder político
(governo e parlamento). Em segundo lugar, é a doutrina político-
constitucional que propõe uma sempre mais ampla elaboração e introdução
de tais instrumentos. Poder-se-ia parafrasear: (i) garantismo como dimensão
específico do constitucionalismo rígido, (ii) garantismo como teoria
normativa do constitucionalismo rígido.3
Veja-se, então, a ligação do termo com as teorias democráticos, liberais e
constitucionalistas. Ainda, o “garantismo” consta como:
1) Característica própria das mais evoluídas constituições democrático-
liberais, consistente no fato de elas estabelecerem dispositivos jurídicos cada
vez mais seguros e eficientes a fim de garantir a observância das normas e do
ordenamento por parte do poder político; 2) Doutrina político-constitucional
que propugna uma cada vez mais ampla elaboração e introdução de tais
dispositivos no ordenamento jurídico.4
A consolidação do vocábulo, entretanto, advém das pesquisas e atividades
de Luigi Ferrajoli, principalmente pela acepção comum vinculada à justiça penal
divulgado internacionalmente em sua obra “Diritto e ragione: Teoria del garantismo
penale (1989)”5 que fora traduzida para o espanhol em 1995 e para o português em
2002, tonando-se crescentemente comum entre os juristas.
Em “Direito e razão – teoria do garantismo penal”6, Ferrajoli designa três
significados à palavra:
Primeiramente, o autor concebe garantismo (1) como modelo normativo de
direito ideal/utópico, o qual, sob o ângulo epistemológico, é um sistema cognitivo ou de
poder mínimo; já, numa perspectiva política, é uma técnica de tutela idônea que visa
reduzir a violência e fortalecer a liberdade; enquanto que, juridicamente, é um sistema
2 TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/diario-classe-raizes-garantismo-pensamento-luigi-ferrajoli.
Acesso em: 20/04/2015. 3 IPPOLITO, Dario. apud Grande dizionario della língua italiana de Salvatore Battaglia.
4 Idem. Ibidem.
5 Idem. Ibidem.
6 A obra Direito e Razão é, até o momento, a obra que maior impacto teve na doutrina brasileira. Há,
também de grande importância, o seu trabalho intitulado “Principia iuris: teoria Del diritto e della
democrazia”, publicada em 2007.
21
de vínculos impostos à função punitiva do Estado para garantia dos direitos dos
cidadãos.
Assume o termo também (2) como teoria do direito consistente numa teoria
jurídica que considera a distinção entre validade e efetividade7 e entre “existência” e
“vigor” das normas.
Por fim, (3) é expressão concebida também como uma filosofia do direito e
crítica política com heranças iluministas.
Com esses significados, garantismo se torna, num primeiro momento, a
teoria liberal do direito penal. Observa-se, contudo, que a parte final da obra retro-
mencionada trata de uma teoria geral do garantismo cujo prefácio de Norberto Bobbio
enfatiza a intenção do autor na formação de uma teoria geral do garantismo, conforme,
aliás, frisa Ferrajoli em diversas entrevistas suas.
Ainda, esta intenção do autor consta também na publicação de estudos como
na obra “Principia iuris: teoria Del diritto e della democrazia” publicada em 2007 no
qual o jusfilósofo italiano trabalha de maneira mais abrangente temas relativos à teoria
do direito e do Estado.
Compreensível, assim, que este garantismo tem olhos à proteção dos
indivíduos oprimidos pelo poder punitivo do Estado a partir do estabelecimento de
limites à legislação, para que esta tutele direitos, e à jurisdição, para que esta seja uma
atividade limitada ao ius dicere, à afirmação da lei, à subsunção dos fatos estabelecidos
pelas normas legislativas.
Cabe agora, partindo sempre do entendimento que o garantismo procura
resguardar o indivíduo do Estado poderoso e opressor, aprofundar o conhecimento
acerca da teoria de Luigi Ferrajoli.
1.2 Luigi Ferrajoli e sua teoria do garantismo: aprofundando a análise dos três
significados de “garantismo”
- Garantismo como modelo de direito
O modelo normativo garantistaepistemologicamente, é fruto da tradição
jurídica do iluminismo e do liberalismo. Utilizar-se-á no presente estudo modelo como
forma ou conjunto, às vezes por ser alcançada, outras por já predominar em dado tempo,
espaço e lugar.
7 O que se quer dizer, explica-se, é que pode haver uma diferença entre o grau de garantismo conforme a
lei e o grau de sua efetividade, ou seja, da observância prática das garantias constantes na lei.
22
O que se perceberá é que os diversos princípios mencionados no modelo
garantista ferrajoliano configura um esquema epistemológico de identificação do desvio
penal, dirigido a assegurar, em comparação com outros modelos de direito penal
historicamente conhecidos, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e,
portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade.
Esta teoria do garantismo penal baseia-se em dois elementos constitutivos:
um relativo à definição legislativa e o outro à comprovação jurisdicional do desvio
punível.
No âmbito penal, o primeiro destes elementos, o relacionado com a
definição legal, sustenta-se no princípio da legalidade estrita, na determinação abstrata
do que é punível, assim proposta como técnica legislativa específica dirigida a excluir,
enquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas
a pessoas (estas, portanto, com caráter constitutivo, não regulamentar). Em síntese,
estabelece que “auctoritas, non veritas facit legem” (princípio constitutivo do
positivismo jurídico).
Nesse sentido, não é a verdade, a justiça, a moral, nem a natureza, que
confere relevância penal a um fenômeno, mas somente a autoridade, a lei, e esta não
pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio,
como fazem aquelas que perseguem os socialmente perigosos e outros semelhantes.
Este primeiro elemento é visto por duas condições, uma formal e a outra empírica.
No que tange a condição formal ou legal, equivalente ao princípio da mera
legalidade, o desvio penal é aquele formalmente indicado pela lei como pressuposto
necessário para a aplicação de uma pena (nulla poena et nullum crimen sine lege)
desgarrada de juízos de valor, de entendimentos pessoais sobre a imoralidade ou
anormalidade social da conduta, até porque funciona como garantia da submissão do
juiz à lei configurando evidente direcionamento aos julgadores. Corresponde ao
conhecido princípio da reserva legal.
Por sua vez, a condição empírica ou fática corresponde ao princípio da
estrita legalidade que consagra que a definição legal do desvio punível deve levar em
consideração apenas aspectos objetivos do comportamento que se deseja punir por meio
de figuras empíricas desprovidas de subjetividades sobre eventuais características do
autor do comportamento punível. Funciona como garantia do caráter deôntico da
proibição ao excluir qualquer configuração extralegal, sendo assim claramente
direcionado ao legislador.
23
Já o segundo elemento da epistemologia garantista, o relativo à
comprovação jurisdicional do desvio punível, é o cognitivismo processual na
determinação concreta do desvio punível e que afeta a motivação dos pronunciamentos
jurisdicionais. Resta assegurado pelo princípio da estrita jurisdicionariedade que exige a
verificabilidade das hipóteses acusatórias e a sua comprovação empírica. Nesse sentido,
pela teoria entende-se que comportamentos como “ato obsceno” ou “desacato”
correspondem a figuras delituosas cuja identificação judicial devido à indeterminação
de suas definições legais remete a discricionárias valorações do juiz, muito mais do que
a provas.
Deve-se ter em vista que Ferrajoli conceitua a liberdade do juiz como uma
escolha arbitrária e meramente individual.
Note-se que seu enfoque, contudo, ao contrário do que se poderia imaginar,
não condiz integralmente com a conhecida concepção irracional por meio da qual
inexistem critérios identificáveis para a valoração das provas e para a qual valorar é uma
experiência espiritual e subjetiva do julgador a respeito da qual não se pode conhecer.
Ferrajoli concebe a verificabilidade até certo ponto já que a valoração discricionária da
prova realiza-se racionalmente até alcançar a medida do puro espaço de arbítrio,
conforme aborda os espaços irredutíveis de discricionariedade.
Isto porque as figuras legais com indeterminação de suas definições acabam
por remeter a discricionárias valorações do juiz (mais do que a provas) de maneira que o
princípio da estrita jurisdicionariedade visa a que, o juízo tenha caráter recognitivo (de
direito) das normas e cognitivo (de fato) dos fatos por ela regulados, mas jamais
constitutivo.
Entretanto, Ferrajoli já sabia que a atividade judicial não é mecânica e que a
ideia de um silogismo perfeito é uma ilusão, e por isso reconheceu a existência de
espaços de poder insuprimíveis na atividade judicial afirmando que a verificação, tanto
jurídica quanto fática, nunca é absolutamente certa e objetiva.
Isso porque, da mesma forma que a interpretação da lei na verificação
jurídica nunca é exclusivamente recognitiva, sendo sempre fruto de uma escolha prática
das hipóteses interpretativas alternativas (por mais aperfeiçoada que seja o sistema de
garantias materiais), a verificação fática exige decisões argumentadas de maneira que a
prova empírica dos fatos não é uma atividade apenas cognitiva, pois ao final representa
24
uma conclusão mais ou menos provável de acordo com o processo indutivo,
consagrando assim um poder de escolha sobre as hipóteses explicativas alternativas8.
Tais espaços de poder, de acordo com Luigi Ferrajoli, constituem o poder
judicial. Enumera-os em quatro: (i) o poder de indicação, de interpretação ou de
verificação jurídica; (ii) o poder de comprovação probatória ou de verificação fática;
(iii) o poder de conotação ou de compreensão equitativa (esses três constituintes do
poder de cognição e de certa forma irredutíveis e fisiológicos); e (iv) o poder de
disposição ou de valoração ético-política, produto patológico de desvios e disfunções
politicamente injustificadas dos três primeiros tipos de poder9.
Assumindo a impossibilidade de controle integral dos procedimentos
probatórios e interpretativos, a fórmula encontrada por Ferrajoli é a de alcance de um
controle máximo de tais procedimentos por meio desses dois elementos constitutivos de
sua teoria já mencionados: a estrita legalidade e a estrita jurisdicionariedade, integrantes
do sistema garantista ou cognitivo (SG).
Nesse sentido, as preocupações legislativas não são suficientes para a tutela
dos indivíduos de maneira que se deve preocupar adicionalmente com a jurisdição, pois,
para que aqueles princípios sejam satisfeitos é necessário que também o juízo penal,
além da lei, careça de caráter constitutivo e tenha caráter recognitivo das normas e
cognitivo dos fatos por elas regulados. Assim, para tal concepção, o pressuposto da
pena deve ser a comissão de um fato univocamente descrito e indicado como delito.
Mas ora, se o requisito da estrita jurisdicionariedade pressupõe logicamente o da estrita
legalidade, para satisfazê-lo parece necessário que a lei determine tudo quanto seja
possível, deixando aos que julgam o menos possível.
Mas relembre-se que há dois modelos de legalidade logicamente
diferenciados (em sentido formal e substancial), por vezes distinguidos por Ferrajoli
com referência exclusiva ao direito penal, mas posteriormente identificado de modo
generalizado a duas fontes de legitimação: (i) o princípio da mera legalidade, que se
limita a exigir que o exercício de qualquer poder tenha como fonte a lei, traduzindo-se
como condição formal de legitimidade, e (ii) o princípio da estrita legalidade, que exige
que se condicione a legitimidade do exercício de qualquer poder por ela instituído a
determinados conteúdos substanciais.
8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 33/34. 9 Ibidem, p. 33/35.
25
Nesse contexto, note-se que o garantismo resta direcionado à conotação
funcional do moderno “Estado de Direito” concebido tanto um sentido formal, lato ou
débil, no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado nas formas e com
os procedimentos por ela estabelecidos, quanto num sentido forte, ou estrito, ou
substancial, no qual qualquer poder deve ser limitado pela lei que lhe condiciona não
somente as formas, mas também os conteúdos.
E então, em outras palavras, o “Estado de Direito” é associável a duas
noções que variam consoante os clássicos duplos sentidos do princípio da legalidade: (i)
a legalidade em sentido lato, ou validade formal, que exige que todos os poderes sejam
legalmente predeterminados bem como suas formas de exercício; e (ii) a legalidade em
sentido estrito, ou validade substancial, que exige, outrossim, a observâncias de
condições substanciais, ou seja, que lhe sejam legalmente preordenadas e circunscritas,
mediante obrigações e vedações, as matérias de competência e os critérios de decisão.
Pois bem, se de acordo com a noção de legalidade em sentido lato ou
validade formal se encontram os Estados de direito de todos os ordenamentos (inclusive
autoritários e totalitários) e com a noção de legalidade em sentido estrito ou validade
substancial (e que engloba o primeiro) estão somente os Estados Constitucionais – e em
particular aqueles Estados de Constituição rígida – veja-se que aquele é sinônimo deste
em seu sentido tanto formal quanto substancial, isto é, de Estado Constitucional,
superando, assim, o Estado Legislativo.
Nesse sentido, enquanto no direito penal a imunidade do cidadão a punições
e proibições arbitrárias é o que está em jogo, revelando-se as três garantias penais e a
verificação e falsificação destas nas formas expressas pelas garantias processuais,
reconhece Ferrajoli que “nos outros setores do ordenamento, os direitos fundamentais
objeto de tutela são diferenciados; mas mesmo estes, se garantidos
constitucionalmente, se configuram como vínculos de validade para a legalidade
ordinária”10
, que resta caracterizável como estrita legalidade.
É dizer, conforme anteriormente exposto: como modelo de direito o
garantismo diz respeito ao modelo de estrita legalidade SG próprio do Estado de Direito
que, sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder
mínimo, sob o plano político se caracteriza como técnica de tutela idônea a minimizar a
10
Ibidem. p.791.
26
violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de
vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos.
Sabe-se que o Estado moderno nasceu como Estado de Direito limitado por
vedações e não ainda com obrigações, tanto que as cartas fundamentais, desde a Magna
Carta inglesa, são constituídas por um núcleo essencial formado por regras sobre o
limite dos poderes. Ou seja, o Estado de direito era entendido como sistema de limites
substanciais impostos legalmente aos poderes públicos para a garantia dos direitos
fundamentais, se contrapondo ao Estado absoluto, seja ele autocrático ou democrático.
E assim, sobre nem tudo se pode decidir, nem mesmo pela maioria, pois mesmo um
poder do povo ilimitado caracterizaria um regime absoluto e totalitário, pois a garantia
de direitos vitais é condição essencial para a convivência pacífica.
Consoante essa concepção de Estado de direito que preza não somente pela
vontade da maioria, mas que prima pelos interesses e necessidades vitais de todos e
qualquer um, o Estado de direito, Estado Constitucional, precisa ser conjugado com
democracia, a qual abarca uma concepção tanto (i) formal ou política em que o Estado
político representativo baseia-se no princípio da maioria como fonte de legalidade, (ii)
quanto substancial ou social na qual o Estado se preocupa com a efetivação das
garantias.
Ademais, essa democracia (formal e substancial) soma-se ao garantismo
como técnica de limitação e de disciplina dos poderes públicos cujo foco está na
máxima aproximação entre texto e efetividade e no mínimo descompasso existente entre
a normatização estatal e as práticas que deveriam estar fundamentadas nestas.
Aliás, essa conclusão é compatível com uma das grandes preocupações de
Ferrajoli, qual seja, a distância entre o ser o dever ser já que tal desaproximação implica
na perda de legitimação jurídica11
(tanto formal quanto substancial) do funcionamento
dos poderes públicos e das normas por estes produzidas.
É que, enquanto o garantismo discorre sobre a necessidade de estipulação e
observâncias das garantias, reconhece-se que a dificuldade em coincidir ser e dever ser
cresce juntamente com tal previsão.
11
Sobre a perda de legitimação, basicamente a legitimação formal, mera legalidade ou ainda legalidade
em sentido lato, traduz-se em condições formais ao válido exercício do poder e delineia as regras sobre
quem pode e sobre como se deve decidir, relacionando-se assim com a forma de governo. Por sua vez, a
legitimidade substancial ou estrita legalidade traduz-se em condições substanciais que desenham as regras
sobre o que se deve ou não se deve decidir, subordinando todos os atos, inclusive as leis, aos conteúdos
de direitos fundamentais. Se tais regras são inobservadas na prática, há a perda da legitimação jurídica.
Seria o mesmo que tratar da divergência entre normatividade e efetividade.
27
Ou seja, o Estado de direito (de acordo com a noção de legalidade em
sentido lato e estrito, ou seja, Estados Constitucionais) unido à concepção democrática
(em sentido formal e substancial) não pode se distanciar da estipulação de direitos e
garantias e também não pode ignorar a possibilidade da perda de legitimação em
decorrência do distanciamento entre efetividade e vigência das normas, de maneira que
então se passa para o segundo significado do termo garantismo.
- Garantismo como teoria do direito: o direito ilegítimo
Como se viu, o garantismo sustenta a tutela dos direitos vitais dos cidadãos
sempre em atenção à positivação pelo Estado de direito, o que se concebe no âmbito da
teoria do positivismo jurídico12
.
O juspositivismo, em contraposição ao jusnaturalismo, ofereceu uma teoria
coerente do fenômeno jurídico a partir de uma construção racional e controlada,
excluindo, ainda, qualquer conteúdo transcendente ao direito positivo (distinção de
suma importância com relação ao jusnaturalismo) 13
.
É importante recordar que, a depender da teoria positivista, o objeto de
estudo oscila, desde códigos dos novecentos no positivismo legalista, à norma jurídica
Kelseniana, o conceito de regra em Herbert Hart e ainda o conjunto de decisões
proferidas pelos tribunais no realismo jurídico.
Aliás, profundas diferenças existem entre o positivismo jurídico do século
XIX, legalista, cuja característica principal é a equiparação do direito à lei, e aquele
construído no século XX, normativista, reconhecedor do problema dos diversos
12
A título elucidativo: positivismo jurídico é termo que se refere a um modo específico de se estudar o
direito, enquanto direito positivo representa o objeto de estudo do positivismo jurídico: “O direito
positivo pode ser definido como o conjunto de regras e normas que regem o convívio humano num
determinado contexto histórico (temporal), social e territorial (espacial).” ABBOUD, Georges;
CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do
direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 71. Os autores resumem o conceito de
juspositivismo como “o tipo de postura teórica que se caracteriza por esses três elementos: 1) pelas
fontes sociais do direito; 2) pela separação entre direito e moral; 3) pela discricionariedade delegada ao
juiz nos hard cases ou nas incertezas da linguagem.” ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique
Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito, op. cit., 2014, p.
229. Na visão de Lenio Streck, “São três as características presentes de maneira comum nos
positivismos: (i) o objeto é determinado a partir de fontes estatais-sociais do direito recusando a
abordagem do fenômeno jurídico sob uma ótica exterior à regulação pelo Estado; (ii) a tese da
separação entre direito e moral afastando qualquer observação de adequação do direito a um sistema
moral; e, por fim, (iii) um sempre existente coeficiente de discricionariedade judicial.” STRECK, Lenio.
Verdade e Consenso. 5ª Ed. revista, modificada e ampliada. São Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 509. 13
A título elucidativo: positivismo jurídico é termo que se refere a um modo específico de se estudar o
direito, enquanto direito positivo representa o objeto de estudo do positivismo jurídico. Ainda “O direito
positivo pode ser definido como o conjunto de regras e normas que regem o convívio humano num
determinado contexto histórico (temporal), social e territorial (espacial).” ABBOUD, Georges;
CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do
direito, op.cit., p. 71.
28
significados advindos dos conceitos que compõem o direito e que ainda problematiza a
relação desses conceitos com os objetos constituintes do mundo jurídico14
.
O conhecido “exegetismo” tem origem num texto específico no qual
giravam os mais sofisticados estudos do direito, qual seja, o Corpus Iuris Civilis, em
razão da anterior função complementar do direito romano em relação aos Códigos.
Basicamente, se o direito comum não resolvesse o caso, buscava-se a solução nos
estudos sobre o direito romano produzido pelos comentadores ou glosadores15
.
Tal função de complementaridade desaparece totalmente com a vinda dos
Códigos Civis (França em 1804 e Alemanha em 1900) que se tornam o dado positivo
(“texto sagrado”) com o qual deve se dar a ciência do direito.16
Como não poderia deixar de ser, se percebeu que os Códigos não cobriam
todas as hipóteses fáticas, o que gerou um problema de interpretação de direito17
que foi
inicialmente respondido pela Escola da Exegese na França e pela Jurisprudência dos
Conceitos na Alemanha.
É esse primeiro momento que se designa como positivismo exegético,
legalista ou primevo e que é caracterizado principalmente pela consagração de uma
análise sintática para resolução do problema interpretativo18
.
Nesse tocante, necessário saber que uma análise semiótica do direito divide
a análise da linguagem em três níveis: sintática, semântica e pragmática. Em suma, na
análise sintática, a linguagem é considerada a partir da “estrutura dos signos e a análise
obedece a uma lógica de relação signo-signo. Não se considera aqui, para efeitos de
análise, a relação do signo com o objeto ao qual ele faz referência”19
. Já a semântica
visa determinar o sentido do signo relacionando-o com o objeto, E, por sua vez, a
pragmática preocupa-se com o uso que se faz da linguagem por aqueles que com ela
operam20
.
14
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op. cit., p. 230. 15
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 33. 16
Ibidem, p. 33/34. 17
“Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do direito para que essa obra não seja
“destruída”? E, ao mesmo tempo, como excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos que
não eram benquistos pelo modo positivista de interpretar a realidade?” Ibidem, p. 34. 18
Ibidem, p.34. 19
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op.cit., p. 230. 20
Ibidem, p. 230.
29
Como afirmado, o positivismo legalista restringe-se a conhecer e analisar o
direito na perspectiva sintática a partir do emprego de fórmulas lógicas e dos conceitos
que compõem a legislação.
Mas já nas primeiras décadas do século XX o poder regulatório do Estado
cresceu e, consequentemente, o problema da indeterminação do sentido do direito foi
elevado a foco principal.
Foi então que movimentos como a Escola do Direito Livre e a
Jurisprudência dos Interesses reivindicavam a aproximação do direito aos fatos sociais
expondo o direito a ideologias e à política.
Nesse contexto, o normativismo kelseniano veio como tentativa de resposta
ao estado caótico encontrado. Isto é, os estudos de Hans Kelsen tinham como principal
objetivo reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas como respostas às
nefastas consequências geradas pela Jurisprudência dos Interesses e pela Escola de
Direito Livre como a penetração de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na
interpretação do direito21
.
Kelsen percebe a semântica como problema crucial na interpretação do
direito e constata que o espaço de movimentação do intérprete decorre deste problema
semântico existente quando da aplicação de um signo linguístico.
Nesse sentido, encontra-se em Kelsen a interpretação como resultante de
uma cisão: a interpretação como ato de vontade que produz normas (aqui exsurge a
21
“Kelsen não era um positivista exegético. Sua obra vem para superar essa concepção de positivismo. O
seu positivismo é normativista. Ele não separa o direito da moral, mas, sim, a ciência do direito da
moral. Para Kelsen, o cientista faz um ato de conhecimento, descritivo, não prescritivo; já o aplicador da
lei faz um ato de vontade (acrescento, de poder). Juiz não faz ciência e, sim, política jurídica. Sua
preocupação com relação à ciência do direito é de que o intérprete tem uma ideia (ou imagem) da lei (do
seu texto). Os vários sentidos são descritíveis. Quem aplica a lei, o juiz, não tem nenhum método ou
outros critérios que posam assegurar que uma aplicação é melhor que outra ou que uma seja correta e
outra não. Nesse sentido, até mesmo se o juiz decidir para além da ideia (se quisermos, a moldura) da lei
e ninguém recorrer, essa decisão é válida. Por isso é que sempre devemos ler a obra de Kelsen a partir
da divisão entre a ciência do direito (que é uma metalinguagem) e o direito (que é a linguagem objeto)”.
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit. p. 35. “A primeira tentativa de resposta a esse caos
sistemático das finalidades e dos interesses somente será oferecida por Hans Kelsen, com a construção
de sua “teoria pura do direito”. De fato, em sua obra, Kelsen continuava a perseguir o tipo de rigor
lógico que inspirava o dedutivismo da Jurisprudência dos Conceitos, porém, sabia que os instrumentos
por ela utilizados eram insuficientes para garantir precisão epistemológica para a ciência jurídica.
Ademais, ele conhecia as críticas formuladas pela Jurisprudência dos interesses e pelo movimento do
direito livre em relação ao problema da determinação do papel do juiz no preenchimento das chamadas
lacunas e sabia que o dogma da completude dos significados dos conceitos que compõem a lei – em
especial os códigos – não podia mais ser defendido àquela altura da história. A saída encontrada por
Kelsen foi estabelecida a partir de uma fratura entre conhecimento e vontade. Explicamos: a construção
epistemológica kelseniana está alicerçada na clássica dicotomia razão vs. vontade. Assim, todas as
questões reivindicadas pelos intereses, finalidades etc. Kelsen atira para dentro daquilo que ele chamou
de política jurídica, que se manifesta, em termos kelsenianos, na interpretação que os órgãos jurídicos
competentes formulam sobre o direito.”
30
característica relativista da moral kelseniana) e a interpretação como ato de
conhecimento que produz proposições e que, da descrição no plano da metalinguagem,
decorrem as normas produzidas pelas autoridades jurídicas (relação meramente sintática
entre as proposições).22
Semelhantemente, note-se que Ferrajoli, em seu postivismo crítico, quando
falou em discricionariedade, em decisão judicial, a concebeu, ao fim e ao cabo, como
produto de uma escolha. Kelsen privilegiou as dimensões semânticas e sintáticas,
deixando a pragmática para a discricionariedade. Fato é que a questão destratada pelo
positivismo jurídico é a justificação das decisões, que, como menciona Rosemary
Cipriano da Silva23
, abre margem a discricionariedades.
É preciso compreender o momento em que escreve Ferrajoli, pois, como já
expresso e perceptível ao leitor, é tema essencial de sua teoria o constitucionalismo.
Sabe-se que a Segunda Guerra Mundial produziu atrocidades durante a existência de
regimes totalitários e que é inegável o desejável sentimento de se romper com a
estrutura institucional da época e com as teorias e metodologias predominantes, como
por exemplo, no caso do nazismo, a subsunção positivista24
.
Exatamente por essa necessidade, o período posterior à Segunda Guerra
representa uma mudança paradigmática no direito mundial. É um marco determinante
na história do pensamento jurídico dos países ocidentais25
.
Para superá-las, a revolução ensejada pelo segundo pós-guerra envolveu a
concepção de um texto constitucional marcado pela existência de um texto
compromissório visando o bem-estar social26
e que apostava no Judiciário para a
consecução dos objetivos constitucionais.
22
Cf. STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 35: “(...) em um ponto específico, Kelsen se rende
aos seus adversários: a interpretação do direito é eivada de subjetivismos provenientes de uma razão
prática solipsista. Para o autor austríaco, esse desvio é impossível de ser corrigido. (...) O único modo de
corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito somente poderia ser realizado a partir de
uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que o direito se movimentasse em um solo
lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da teoria do direito ou, em termos kelsenianos, da ciência do
direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de
Viena.” STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, p. 36. 23
DA SILVA, Rosemary Cipriano. Direito e processo: A legitimidade do Estado Democrático de Direito
através do processo. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2012. 24
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 42/43. 25
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 2013, p. 19. 26
ROSA, Alexandre Morais da. A constituição no país do jeitinho: 20 anos à deriva do discurso
neoliberal (Law and economics). Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: 20 anos de
constitucionalismo democrático – e agora? Porto Alegre, vol. 1, n. 6, p. 15 – 34, 2008, p. 18 – 23.
31
A pauta “Direitos Humanos” tomou conta do cenário jurídico. Para a
exposição internacional da proteção de tais direitos viu-se a criação da Organização das
Nações Unidas em 24 de outubro de 1945 (em que pese representar resposta dos
vencedores aos vencidos)27
. Aliás, a partir de então deu-se a elaboração de instrumentos
internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Convenção
Europeia dos Direitos Humanos (1953), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966),
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica –
1969).
Como não poderia deixar de ser, a ordem externa veio a influenciar os
ordenamentos internos. Mais especificamente, as Constituições dos países democráticos
vieram a positivar, como direitos fundamentais, os valores reconhecidos pela ordem
externa28
.
O fim da Segunda Guerra, então, impulsionou a passagem do Estado
Legislativo de Direito para um Estado Constitucional de Direito com foco na garantia
dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.
É dizer: a passagem daquele Estado nascido com a afirmação do princípio
da legalidade para que se considerasse como direito existente somente aquilo que fosse
produzido pelo órgão competente (e que caracterizou o monopólio do Estado sobre a
produção jurídica voltada à concepção ético-cognitivista pelo postulado juspositivista
“auctoritas non veritas facit legem”) ao Estado Constitucional de Direito (ou Estado de
direito em senso estrito) caracterizado pelo ordenamento jurídico de constituição rígida
com hierarquia superior das normas constitucionais e sujeito à coerência com os
significados destas, introduzindo um princípio de legalidade substancial (que Ferrajoli
designa como princípio da legalidade estrita) que produz a distinção entre existência e
validade das normas.
O Estado Constitucional, correspondeu, note-se, a uma mutação da
democracia ao deixar de identificar-se somente com a dimensão política do sufrágio
universal, da representatividade e do princípio da maioria para adquirir uma dimensão
constitucional de determinação jurídica do poder, “relativa ao conteúdo das decisões
políticas, submetidas à observância dos direitos fundamentais, os quais, com o
27
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit. p. 19. 28
Ibidem, p. 20.
32
princípio da igualdade, constituem os fundamentos axiológicos positivos da democracia
constitucional”29
.
Assim, o fenômeno jurídico passou a ser visto sob a perspectiva da
substancialidade/materialidade por meio da força normativa da Constituição que
condicionava materialmente a legalidade e a incorporação de novos direitos com seus
respectivos meios assecuratórios.
Nesse contexto, o aspecto formal está no procedimento já traçado
previamente pelo ordenamento jurídico para a validade de uma nova norma, similar à
Teoria Pura do Direito de Kelsen que estabelece na validade de uma norma anterior no
tempo e superior na hierarquia que prevê as diretrizes formais para que seja válida.
Contudo, Ferrajoli acrescenta ao aspecto formal o elemento substancial, isto é, a
validade para este autor também traria elementos de conteúdo, materiais, como
fundamento da norma, os direitos fundamentais.
Para o autor italiano, se a norma ingressasse no ordenamento pelo
procedimento formal – que para ele configurava vigência – mas não estivesse
substancialmente de acordo com os direitos fundamentais, tal norma seria inválida.
Nesse sentido é que os conceitos de validade e de vigência são separados por Ferrajoli.
Em outros termos, conforme debate publicado em 2012 a respeito de um
artigo seu sob o título “Constitucionalismo principialista e constitucionalismo
garantista”, Ferrajoli aborda o constitucionalismo principialista (não positivista ou
neoconstitucionalista) e o constitucionalismo garantista (positivista reforçado) e
diferencia-os afirmando que o primeiro louva a substituição do juiz boca-da-lei pelo juiz
dos princípios na busca por valores, o que trouxe a fragilização da força normativa da
Constituição.
Nesses termos, condenável seria o neoconstitucionalismo, então, por três
principais elementos, quais sejam, (i) a conexão necessária entre direito e moral, (ii) a
distinção entre regras e princípios, e (iii) a ponderação como modelo privilegiado de
aplicação do direito.
Mas como se verá, neoconstitucionalismo é expressão plurívoca. Ater-se-á,
posteriormente, a teorias neoconstitucionalistas que não negam a autonomia do Direito.
Pela confusão do termo, Lenio Streck opta por utilizar “Constitucionalismo
Contemporâneo” para se referir ao fenômeno pós segunda-guerra.
29
IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 34 – 41.
33
Por sua vez, o autor traz o segundo como juspositivismo reforçado e
consagrador, basicamente, (i.1) da tese da separação entre direito e moral, aceitando a
noção de moral como algo que depende do arbítrio do sujeito, em se tratando da análise
judicial, do arbítrio do juiz, por um viés subjetivista e uma concepção antiobjetivista e
anticognitivista da moral e (i.2) de espaços de discricionariedade na jurisdição, da
crítica (ii.1) à contraposição entre princípios e regras, (ii..2) ao neoconstitucionalismo
como uma fábrica de princípios (fenômeno designado por Lenio Streck como pan-
principiologismo, especialmente porque anunciados como positivação de valores,
errôneo, ademais, por não se dever falar em axiologia principiológica mas em
deontologia dos princípios) e (ii.3) ao uso descriterioso da ponderação por fragilizar a
força normativa da Constituição.
No mesmo contexto, por considerar teorizar um reforço ao positivismo,
necessário identificar que o juspositivismo dogmático distingue-se do juspositivismo
crítico de Ferrajoli na medida em que aquele encampa a orientação teórica que não
distingue o conceito de vigor das normas como categoria independente da validade e da
efetividade, englobando tanto os ordenamentos normativos que reconhecem a vigência
somente das normas válidas quanto os ordenamentos realistas que reconhecem a
vigência somente das normas efetivas30
.
O juspositivismo crítico (com a ressalva da doutrina que entende pela
impossibilidade de o positivismo ser crítico31
) coloca em xeque dogmas do
juspositivismo dogmático como o da fidelidade do juiz à lei e o da função meramente
descritiva e valorativa do jurista na observação do direito positivo vigente.
O primeiro dogma que de Bentham até Kelsen forma o postulado teórico do
juspositivismo, qual seja, a obrigação judicial de aplicar as leis vigentes, é facilmente
relativizada no juspositivismo crítico ferrajoliano pela concepção de que as leis vigentes
podem ser suspeitas de invalidade e, portanto, nesses casos em particular, deveriam os
30
“Precisamente, uma abordagem exclusivamente normativa limitando-se à análise (do significado) das
normas, permite apenas descrever o “dever ser” normativo dos fenômenos jurídicos regulados, e não
também o seu “ser efetivo”. Inversamente, uma abordagem exclusivamente realista, limitando-se à
observação daquilo que ocorre de fato, consente apenas descrever os fenômenos jurídicos como
efetivamente são, e não como normativamente devam ser.” FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria
do Garantismo penal, op. cit., p.699. 31
“Aquí se há sostenido que el positivismo crítico encierra em si una contradicción porque el
positivismo no puede ser crítico y porque la crítica no es uma función de la teoria del derecho
positivista.” FIGUEROA, Alfonso García. Las tensiones de uma teoría, cuando se declara positivista,
quiere ser crítica, pero parece neoconstitucionalista. In CARBONELL SANCHEZ, Miguel; SALAZAR
UGARTE, Pedro (Coord.) Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli.
Madrid: 2009, p. 267-284.
34
juízes não aplicá-la, ressaltando seu poder de interpretar as leis e suspender-lhes a
aplicação se as consideram inválidas por contraste à Constituição.
Essa quebra recai inclusive na inobservância do segundo dogma
juspositivista, qual seja, a sujeição acrítica e avalorativa às leis vigentes. Nesse sentido,
a doutrina brasileira conta com inúmeras produções literárias sobre o controle de
constitucionalidade com remissões à teoria garantista de Luigi Ferrajoli32
.
Este segundo dogma se refere também à atitude do jurista e à função da
ciência jurídica no tocante ao direito positivo. As doutrinas juspositivistas apontam o
caráter avalorativo da ciência jurídica e a não possibilidade de crítica das leis vigentes a
partir de seu interior, mas tão somente do seu exterior, ou seja, em sede de moral e
política.
Assim, mantém a distinção entre vigência, validade e justiça, ressaltando
que “confundir as duas primeiras é permanecer no terreno do paleopositivismo,
fazendo verificações meramente formais de validade, sem incorporar as substanciais
modificações trazidas pelo constitucionalismo”33
.
Porém, questiona-se: analisar a validade não seria recorrer a valores internos
positivados nos princípios constitucionais? Aliás, o que a distingue da vigência e
também da justiça, implicando esta em apelar a valores metajurídicos e, portanto,
correlacionado com a legitimação externa do direito. Tal compreendida divergência
entre justiça e validade é respaldada em Ferrajoli para que não haja o enfraquecimento
normativo da Constituição, mas admite como ponto de vista autônomo do e sobre o
direito, o ponto de vista (externo ao direito) da moral e da política que é, portanto, o
ponto de vista crítico do seu juspositivismo crítico34
32
Para mais, ler a obra “Garantismo jurídico e o controle de constitucionalidade material” de Alexandre
Morais da Rosa. 33
PINHO, Ana Claudia Bastos de. Para além do Garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit., 2013, p. 50. 34
“A tese da separação entre direito e moral, mantendo firme não apenas a distinção, mas também a
divergência entre justiça e validade, permite que não se ancore nas falácias provenientes desta confusão:
a falácia jusnaturalista consistente na identificação (e na confusão) da validade com a justiça, em algum
sentido objetivo desta segunda palavra; e a falácia ético-legalista consistente – mesmo na variante do
constitucionalismo ético – na oposta identificação (e confusão) da justiça com a validade. Ao mesmo
tempo, somente a abordagem juspositivista serve para evidenciar o caráter juridicamente normativo da
Constituição, porque supraordenada a qualquer outra fonte, e, portanto, as outras duas virtuais
divergências deônticas – entre validade e vigência e entre vigência e eficácia – cujo desconhecimento
está na origem de outras duas graves falácias: aquela normativista, que impede, como ocorre na teoria
de Kelsen, de reconhecer a existência de normas inválidas, mesmo se vigentes; e aquela realista, que
impede, ao contrário, de reconhecer a existência de normas válidas, mesmo se ineficazes, e de normas
inválidas, mesmo se eficazes.” FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e
constitucionalismo garantista. In: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs.) Garantismo,
35
O juspositivismo crítico exclui aquela sujeição acrítica e avalorativa às leis
vigentes tanto pelos juízos de validade quanto pelos juízos sobre a compatibilidade
entre o conteúdo das leis ordinárias e a Constituição, especialmente porque considera
que a sujeição cega à lei omitiria a complexidade estrutural do Estado de direito e a
potencial ilegitimidade das leis nele geradas por desníveis normativos.
Disso se conclui que Ferrajoli35
critica os dois dogmas a partir da análise
dos juízos de validade, como demonstrado, apontando ainda que ao menos nos
ordenamentos complexos próprios dos Estados de direito tais juízos distinguem dos
juízos sobre o vigor das normas.
Consequentemente, desconsagra tanto a coerência quanto a completude36
,
postulados do juspositivismo dogmático, afirmando e explicando a existência de
antinomias e lacunas.
Seria essa a orientação de crítica ao direito positivo vigente sob uma
perspectiva tanto externa37
ou política, quanto interna38
ou jurídica, voltada à
inefetividade e invalidade que leva à consagração do “juspositivismo crítico”, e que,
como visto, reflete no trabalho do juiz e do jurista especialmente pela fragilização dos
dogmas do juspositivismo dogmático, como se viu até aqui.
- Garantismo como filosofia do direito e crítica da política
O garantismo, num sentido filosófico-político, consiste
(...) de um lado, na negação de um valor intrínseco do direito somente porque
vigente, e do poder somente porque efetivo, e no primado axiológico
hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2012, p. 33. 35
A crítica pode ser analisada no tópico “Juízos sobre vigor e juízos sobre validade. Duas aporias
teóricas: a possibilidade de valoração e a discricionariedade dos juízos de validade”. Ainda, “Para que
uma norma exista ou esteja em vigor, é suficiente que satisfaça as condições de validade formal, as quais
resguardam as formas e os procedimentos do ato normativo, bem como a competência do órgão que a
emana. Para que seja válida, é necessário que satisfaça ainda as condições de validade substancial, as
quais resguardam o seu conteúdo, ou seja, o seu significado (...) Todavia, enquanto as condições formais
de vigor consistem em adimplemento de fato, na ausência dos quais o ato normativo é imperfeito e a
norma por ele ditada não vem à existência, as condições substanciais da validade, e exemplarmente as de
validade constitucional, consistem habitualmente no respeito aos valores (...).” FERRAJOLI, Luigi.
Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit., p.701. 36
“Coerência e completude se configuram, no Estado de direito, não já como propriedade do direito
vigente mas como ideais-limites de direito válido, que não refletem o “ser” efetivo mas apenas o “dever
ser” das normas relativamente às normas superiores.” Ibidem, p.705. 37
“Por legitimação externa ou justificação refiro-me à legitimação do direito penal por meio de
princípios normativos externos ao direito positivo, ou seja, critérios de avaliação moral, políticos ou
utilitários de tipo extra ou metajurídicos.” Ibidem, p.171. 38
“Por legitimação interna ou legitimação em sentido estrito refiro-me à legitimação do direito penal
por via de princípios normativos internos ao próprio ordenamento positivo, vale dizer, a critérios de
avaliação jurídico, ou, mais especificamente, intrajurídicos. O primeiro tipo de legitimação diz respeito
ás razões esternas, isto é, áquelas do direitos penal; o segundo, por sua vez, concerne às suas razões
internas, ou de direito penal.” Ibidem, p.171.
36
relativamente a eles do ponto de vista ético-político ou externo, virtualmente
orientado à sua crítica e transformação; e, por outro, na concessão utilitarista
e instrumental do Estado finalizado apenas à satisfação das expectativas ou
direitos fundamentais.39
Segundo o paradigma da democracia, o Estado não é um fim nem um valor,
mas um produto fabricado pelos homens e que vale tanto quanto servir aos homens
naturais que o produziram em comum acordo, podendo ser também construído e
reconstruído quando seus criadores se insurgem contra eles.
Assim, o que politicamente justifica ou não a produção das normas não são
suas fontes ou formas, mas seus conteúdos concretos, e estes, ou seja, o caráter
substancial das normas está relacionado aos direitos fundamentais, que repise-se,
correspondem às faculdades ou expectativas de todos os que definem as conotações
substanciais da democracia.
São também constitucionalmente subtraídos ao arbítrio da maioria como
limites ou vínculos indissociáveis das decisões governamentais.
Em síntese, enquanto o totalitarismo possui uma visão finalista e otimista do
poder como bom e dotado de valor ético graças à fonte de legitimação que o detém, o
garantismo pressupõe uma visão pessimista do poder como maléfico
independentemente de quem o detenha, diante da possibilidade de degenerar em
despotismo dada a ausência de limites e garantias.
1.3. O sistema garantista: axiomas materiais e processuais
O sistema garantista ou cognitivo (SG) contém axiomas correspondentes às
garantias materiais e processuais consoantes a tradição jurídica do iluminismo.
Trata-se de um modelo-limite resultante da adoção de 10 (dez) axiomas ou
princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, denominados, ademais das
garantias, penais e processuais por eles expressas, respectivamente: 1) princípio da
retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da
legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da
economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5)
princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou
da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato
ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9)
39
Ibidem, p.709.
37
princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da
defesa, ou da falseabilidade.
Os mencionados princípios garantistas consolidados nas constituições e
codificações modernas formam um sistema coerente e unitário, configurando, também,
um esquema epistemológico de identificação do desvio penal voltado a assegurar o
máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo com vistas à limitação do poder
punitivo em prol da tutela do indivíduo contra a arbitrariedade.
Observa-se, entretanto, que Ferrajoli teorizou um garantismo de direitos.
Contudo, considerando que é por meio do processo que se pode efetivar a concretização
dos direitos e que o foco do estudo é o garantismo processual, nada mais sábio do que
abordar as garantias processuais presente no SG.
Os 10 axiomas compõem o modelo garantista com 10 condições, limites ou
proibições identificadas pelo autor como garantias dos cidadãos contra o arbítrio ou
erro, e já foram, de certa forma, incorporados pelas codificações e constituições dos
ordenamentos desenvolvidos de maneira que converteram-se em princípios jurídicos do
Estado de direito40
.
Por outro lado, reconhece-se nove modelos autoritários caracterizados pela
condição patológica ou ausência total de algum ou de alguns destes limites à
intervenção punitiva estatal.
De A1 a A6 estão enunciadas garantias materiais penais, e que, portanto,
não interessam ao presente estudo proposto neste trabalho, enquanto entre os axiomas
A7 a A10 estão enunciadas as garantias processuais, devendo sempre se ter em
consideração que além de muitas das garantias pressuporem outras, as garantias
processuais condicionam a efetividade das garantias penais e resultariam esvaziadas
pela ausência destas. Ressalta-se, ademais, que o princípio da legalidade em sentido lato
configura pressuposto do sistema garantista, vez que nenhuma outra garantia seria
concebível se ele faltasse por completo. São elas:
A7 Nulla culpa sine judicio (princípio da jurisdicionariedade em sentido lato
ou estrito)
A 8 Nullum judieium sine accusatione (princípio acusatório ou da acusação
entre juiz e acusação)
A9 Nulla accusatio sine probatione (princípio do ônus da prova ou da
verificação)
40
Ibidem, p. 75.
38
A10 Nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório ou da defesa,
ou da falseabilidade)
Eventual carência do A9 gera um sistema irracional numa forma absoluta de
Estado “selvagem” ou “disciplinar”, seria o Estado policial caracterizado por leis em
branco com a possibilidade de intervenções punitivas livres de qualquer vínculo,
inclusive o juízo prévio. É o que ocorre em alguns sistemas em “estado de guerra” ou de
“perigo público”41
.
Já o sistema derivado da subtração do A8 “sem acusação separada”
configura o método inquisitivo afetado pela ausência de imparcialidade do juiz e sobre
sua separação da acusação e está presente nos ordenamentos em que o juiz tem funções
acusatórias ou a acusação tem funções jurisdicionais42
.
Nestes, a imparcialidade fica comprometida pela mistura de acusação e
juízo e, chega a enfraquecer consequentemente a publicidade e a oralidade do processo.
Além disso, a carência dessas garantias debilita todas as demais e, em particular, as
garantias processuais do ônus acusatório da prova e do contraditório com a defesa.
Essa fragilidade pode chegar a sistemas que permitem a intervenção penal
sem qualquer satisfação do ônus da prova pela acusação ou sem controle pela defesa,
como a prescrição de prisões preventivas obrigatórias do acusado de acordo com o
delito classificada na denúncia.
Nesse sentido, o grau mais elevado do enfraquecimento de tais garantias
processuais se daria com um ordenamento que permitisse a total falta de prova e de
defesa, não somente em sentido estrito, como também em sentido lato, admitindo, por
exemplo, na esfera criminal, intervenções penais na esfera de liberdade do indivíduo
sem qualquer satisfação ao ônus da prova por parte da acusação e/ou sem qualquer
controle por parte da defesa.
Assim, os juízos acabam por informar-se por critérios meramente
substanciais e de autoridade. Note-se, ainda, que para o autor, as garantias são também
condições ou critérios jurídico-normativos da decisão e do que o autor designa como
verdade processual.
41
Ibidem, p. 82. 42
Ibidem, p. 79.
39
1.4. O garantismo de Ferrajoli e o dilema da dupla “verdade”43
: quatro limites de
aquisição e controle da verdade fática e da verdade jurídica e o raciocínio judicial.
Como visto, Ferrajoli constrói seu sistema garantista com base na antítese
liberdade versus poder e nesse sentido explora a oposição entre os modelos garantistas e
antigarantistas (estes também chamados de autoritaristas e substancialistas), o primeiro
juspositivista e o segundo tendencialmente jusnaturalista, destacando a alternativa
epistemológica de cada um pelo distinto tipo de verdade por eles perseguida.
Aliás, explica o autor que sua escolha pela jurisdição penal como
laboratório de sua teoria se dá, antes de tudo, por considerar que o nexo exigido pelo
princípio da estrita legalidade entre a “validez” da decisão e a “verdade” da motivação é
mais forte do que qualquer outro tipo de atividade judicial.
O modelo substancialista procura a verdade substancial ou material,
legalmente ilimitada, absoluta e unívoca a respeito das pessoas investigadas, recaindo,
como não poderia deixar de ser, em juízo de valor e consequentemente em
arbitrariedades.
De outro modo, o modelo formalista (garantista) persegue uma verdade
formal ou processual a respeito de fatos e legalmente limitada quanto a sua forma de
aquisição.
Contudo, reconhece o autor ser prescindível a verdade somente em se
tratando de um modelo decisionista com renúncia à principal forma de controle racional
da atividade jurisdicional. Ou seja, conclui que uma justiça “sem verdade” corresponde
a um sistema de arbitrariedades, e que, por outro lado, uma justiça “com verdade”
constitui uma utopia. Entende-se que nesta afirmação está o autor tratando da verdade
absoluta, real, material.
Ocorre que a atividade jurisdicional é una e incindível e os objetivos
colimados não diferem em função da natureza do processo, discordando, assim, da
posição doutrinária tradicional que sustenta a aplicação, ao processo civil, do princípio
da verdade formal, enquanto vigoraria, para o processo penal, o princípio da verdade
real44
.
43
“Sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade e da verificação processual, toda a
construção do direito penal do iluminismo, que aqui chamei "cognitiva" ou "garantista", termina
apoiada na areia; resulta desqualificada, enquanto puramente ideológicas as funções civis e políticas a
ela associadas.” Ibidem, p. 39. 44
BATISTA LOPES, João. Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional. São Paulo:
Revista de Processo, vol. 35/1984, Jul - Set / 1984, p. 24 – 67.
40
Ferrajoli diferencia a verdade das teses judiciais da verdade das teorias
científicas. Este autor se utiliza da definição de “verdade” tarskiana (rigidamente
cognitiva) que também estipula, de uma maneira geral, condições de uso do termo
“verdadeiro”.
Deduz o autor, se afastando de doutrinas que trazem uma noção intuitiva da
verdade, que a verdade fática diz respeito aos fatos ocorridos na realidade e a verdade
jurídica às normas que a eles se referem, limitando-se a elucidar univocamente e com
precisão o significado do termo “verdadeiro” de forma metalinguística. Por exemplo: a
proposição Tício cometeu culpavelmente tal fato é verdadeira se, e somente se, Tício
cometeu culpavelmente tal fato e a proposição tal fato está definido na lei como delito é
verdadeira se, e somente se, tal fato está definido na lei como delito.
Nesse sentido, tanto a verdade jurídica quanto a fática seriam constitutivas
da verdade processual apresentada como noção intuitiva da verdade como
“correspondência” (base das doutrinas iluministas da jurisdição como “verificação de
fato” e “boca da lei”), contudo, adverte:
Por certo, o modelo iluminista da perfeita "correspondência" entre previsões
legais e fatos concretos e do juízo como aplicação mecânica da lei é uma
ingenuidade filosófica viciada pelo realismo metafísico. Disso se, pode, no
entanto, salvaguardar o valor teórico e político se - e somente se - for redefinido
como modelo limite, nunca plenamente alcançável, senão apenas aproximável e,
sobretudo, se forem esclarecidas as condições na presença das quais este pode ser
mais ou menos satisfeito.45
Assim, o autor explica que não se compromete com o propósito metafísico
da existência de uma correspondência ontológica entre as teses das quais se predica a
verdade e a realidade às quais elas se referem, pois assume que a "verdade" de uma
teoria científica e, geralmente, de qualquer argumentação ou proposição empírica é
sempre, em suma, uma verdade não definitiva, mas contingente, não absoluta, mas
relativa ao estado dos conhecimentos e experiências levados a cabo na ordem das coisas
de que se fala, de modo que, sempre, quando se afirma a "verdade" de uma ou de várias
proposições, a única coisa que se diz é que estas são (plausivelmente) verdadeiras pelo
que sabemos sobre elas, ou seja, em relação ao conjunto dos conhecimentos
confirmados que delas possuímos.
Afirma que somente redefiniu parcialmente a noção intuitiva da verdade
como "correspondência”, porque limita-se a elucidar de maneira unívoca e precisa o
significado do termo "verdadeiro" como predicado metalingüístico de um enunciado, e
45
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. op.cit., p. 39.
41
que não seria, então, uma definição real, mas uma definição nominal a servir como um
instrumento útil de análise para distinguir as diversas referências semânticas (da
verdade) das proposições fáticas e das proposições jurisdicionais, pois admite o autor
que não serve de ajuda alguma para a solução do problema relativo às condições na
presença das quais é possível asseverar que tais proposições são verdadeiras.
E assim, uma vez estabelecido que o termo "verdadeiro" pode ser
empregado sem implicações metafísicas no sentido de "correspondência", é na realidade
possível falar da investigação judicial como a busca da verdade em torno dos fatos e das
normas mencionadas no processo, e usar os termos "verdadeiro" e "falso" para designar
a conformidade ou a desconformidade das proposições jurisdicionais a respeito deles.
Consoante a teoria objetiva da verdade como correspondência, “a verdade
resulta da correspondência do enunciado com um estado empírico dos fatos”46
e assim
“uma descrição é verdadeira quando descreve um fato real, isto é, quando fornece uma
imagem fiel de um elemento do mundo empírico”47
. Assim, uma decisão seria
verdadeira quando corresponde aos eventos que realmente ocorreram na situação
empírica em que se baseia a controvérsia judicial.
Então, de difícil utilização os ensinamentos do autor que reconhece a
inalcançabilidade da verdade absoluta mas se utiliza de uma teoria objetiva da verdade.
Até porque, com efeito, conclui que no plano semântico a verdade das teses judiciais
não difere em princípio da verdade das teorias científicas.48
E ademais, Ferrajoli
concebe o processo na busca de certezas, ideal do racionalismo (como seria de esperar
de suas raízes iluministas) “para o qual o indivíduo, valendo-se apenas da razão,
evitando as influências dos ídolos, inteiramente desligado de seus laços culturais e livre
da tradição e das doutrinas filosóficas tradicionais, seria capaz de atingir verdades
absolutas”49
.
A teoria da correspondência costuma ser tratada pela doutrina em distinção
à teoria da coerência, subjetiva (como também é a teoria da aceitabilidade justificada),
para qual “a verdade de um enunciado de fato é somente a função da coerência de um
enunciado específico em um contexto de vários enunciados”50
e assim “uma vez que a
46
TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014,
p. 26. 47
Ibidem, p. 26. 48
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. op.cit., p. 42. 49
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Processo e ideologia: O paradigma racionalista. 2. Ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 6. 50
TARUFFO, Michele. A prova. op.cit., p. 26.
42
veracidade ou a falsidade somente pode ser prevista a partir dos enunciados, o único
nível possível para a verdade é o dos enunciados, ou seja, da linguagem e dos
relatos”51
.
Explica o autor que os dois critérios de verdade, no plano sintático e no
plano pragmático, servem para se estabelecer a verdade no plano semântico como
correspondência do que se sabe, pois a coerência servirá como critério para que a tese
alegada se confirme pelas provas coletadas e pelas interpretações jurídicas em
consideração sempre ao conhecimento que se dispõe, enquanto a aceitabilidade
justificada servirá para se dar preferência a um conjunto em razão de sua capacidade
explicativa.
Nesse sentido, quando se fala da verdade de um fato se está a falar sobre a
verdade do enunciado sobre o que ocorreu faticamente e assim, a prova ou
demonstração no processo judicial é a veracidade ou falsidade dos enunciados acerca
dos fatos em litígio52
. Ocorre que, por esta teoria, as narrativas coerentes podem ser
falsas ou podem não pretender ser verdadeiras, o que pode levar à rejeição da verdade
como simples coerência no contexto judicial.
Nesse contexto, Michele Taruffo que (i) a duplicação dos conceitos de
verdade, em real e formal, é inútil (ii) e, também, que é impossível sustentar o alcance
racional de uma verdade absoluta em qualquer domínio do conhecimento humano, tanto
nas ciências como nas físicas e matemáticas, parecendo pertencer tal pensamento
somente à religião e à metafísica, pois a verdade é, em todo contexto, inclusive em se
tratando de processos judiciais, relativa, ou seja, uma verdade não definitiva e não
absoluta relativa ao estado dos conhecimentos e experiências obtidos até dita afirmação,
isto é, conforme o conjunto dos conhecimentos confirmados que delas possuímos.
Para o autor, entusiasta da discricionariedade racionalizada (livre
convencimento motivado) e do ativismo, contrariamente a Ferrajoli, (iii) a verdade
perseguida no processo judicial não é qualitativamente distinta da que se persegue fora
do âmbito do processo, de maneira que os limites apontados por Ferrajoli em se tratando
da verdade das teses judiciais se encontram, de maneira própria, no âmbito científico.
Contrariamente, para Ferrajoli existem quatro razões que consistem em
limites intrínsecos aos procedimentos de controle tanto da verdade fática quanto da
51
TARUFFO, Michele. A prova. op.cit., p. 26. 52
TARUFFO, Michele. A prova. op.cit., p. 19.
43
verdade jurídica e que fazem da verdade uma verdade inevitavelmente aproximada em
direção ao modelo ideal da correspondência.
A primeira razão para que a verdade processual seja uma verdade
aproximada relaciona-se com a não experimentação direta das proposições judiciais de
fato, pois “ainda quando tanto as proposições judiciais de fato quanto as de direito
sejam teses empíricas de forma existencial ou singular, compartilham com as teses das
teorias científicas a não suscetibilidade a uma verificação experimental direta”53
.
Também William Santos Ferreira ao explicar que “os fatos não são
rigorosamente obtidos pelos meios de prova, mas cognoscíveis por estes”, e nesse
sentido, “o trabalho probatório desenvolvido no processo não alcançará o fato, mas
sim a conclusão de muito provavelmente ter ocorrido (ou não), estar ocorrendo (ou
não) ou poder ocorrer (ou não)”54
E assim, no caso da verdade das proposições fáticas, a investigação judicial
faz com que o juiz experimente não os fatos, mas suas provas, pois as provas
relacionam-se com um fato passado.
É, aliás, tradicional a distinção entre questões de fato e questões de direito.
Nessa tendência, Ferrajoli aborda a verdade entre tais proposições de forma diferente,
consistente na segunda razão ou limite intrínseco trazido pelo autor.
Enquanto a verdade processual fática é um tipo particular de verdade
histórica e cuja verdade pode ser enunciada pelos efeitos produzidos, quais sejam, os
sinais do passado, a verdade processual jurídica resulta de um raciocínio comumente
chamado “subsunção” cuja natureza provém de um procedimento classificatório por
referir-se à classificação ou qualificação dos fatos históricos comprovados de acordo
com o vocábulo jurídico e sua interpretação.
Ademais, de acordo com a teoria ferrajoliana55
, no que concerne a verdade
processual fática, ou seja, sobre o conhecimento do passado, a verdade predicável
resulta de uma ilação envolvendo os fatos comprovados do passado e os fatos
probatórios do presente por meio de uma inferência indutiva cujas premissas contêm a
descrição do fato com a explicação que se pretende e as provas praticadas, além de
generalidades, e na conclusão o fato que se aceita provado pelas premissas
correspondentes à explicação. E como toda inferência indutiva, a conclusão vale como
53
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 43. 54
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 55/56. 55
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 45.
44
probabilidade, do que se conclui que a verdade não resulta demonstrada das premissas,
mas apenas provável ou razoavelmente plausível. É exatamente por isso que, aliás, o
mesmo conjunto probatório pode levar a conclusões diferentes.
Também a verificação jurídica resulta de uma inferência, só que dedutiva
(não aquela indutiva que se obtém pelo exame das provas para comprovação do fato),
vez que no antecedente consta o conceito jurídico classificatório e no consequente a
classificação do fato provado no antecedente (conceito). Nesse tipo de inferência,
afirma Ferrajoli, as conclusões são verdadeiras sobre suas premissas, mas ambas (tanto
conclusões quanto premissas) são opinativas. Para ele, a validade da subsunção
dependeria da precisão do conceito classificatório e da proposição sobre o fato que será
classificado, ou seja, do antecedente e do consequente.
Ocorre que, na prática, tentando demonstrar a realização de um silogismo
perfeitamente válido, a proposição fática seria enunciada pelas mesmas palavras
utilizadas pela definição legal do conceito jurídico, isso porque a conclusão sobre a
subsunção já está realizada, ou seja, a conclusão de que o consequente está classificado
no antecedente já fora feito em manifesto caráter opinativo.
Estas considerações levam o autor a concluir pelo aspecto provável da
verdade fática e opinativa da verdade jurídica, constituindo no segundo limite e
afastando qualquer juízo de certeza da verdade processual, conforme expressão de seu
autor.
Note-se, assim, que Ferrajoli admite a concepção abstrata de norma jurídica,
isso porque, assume que a norma pode ser anterior à atividade interpretativa necessária
para o deslinde de um caso concreto, concepção que, aliás, condiz com o procedimento
de aplicação por ele adotado em sua teoria, qual seja, a subsunção, consoante sua
inserção no positivismo, o que também quer dizer que o texto abarca a própria
facticidade (toda a norma é geral e contém respostas antes das perguntas).
Como se vê, todo o pensamento de Ferrajoli está estruturado na distinção
entre questão de fato e questão de direito, o que se conclui, entre outras passagens, pela
sua divisão da verdade processual em verdade jurídica e verdade fática. Ocorre que,
com esteio em Castanheira Neves56
, há uma profunda implicação entre fato e direito, já
que este normatiza aquele. A implicação é natural, pois toda questão de direito é jurídica
porque ela juridiciza um fato e o fato, por sua vez, somente possui sua facticidade
56
NEVES, Antonio Castanheira. Questão-de-fato – questão-de-direito; o problema metodológico da
juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967, p. 511.
45
levada em conta porque apresenta reflexos jurídicos57
, o que será melhor abordado mais
adiante.
Há, ainda, na teoria ferrajoliana, um terceiro fator limitante a ser
considerado que afasta ainda mais tal predicável certeza, qual seja, “o caráter não
impessoal deste investigador particular legalmente qualificado que é o juiz”58
, ainda
que esteja se esforçando ao máximo para livrar-se de qualquer aspecto que influencie
sua objetividade.
É que, reconhece o autor, o juiz estará sempre influenciado por
circunstâncias ambientais nas quais atua, seus sentimentos, inclinações e emoções, seus
valores ético-políticos, a possibilidade de se comprometer com finalidades externas à
investigação de uma determinada verdade, preconceitos que o leva a valorizar
criticamente uma prova diante de um preconceito seu.
Essa verdade processual seria involuntariamente influenciada pela
subjetividade do juiz e é intensificada por três elementos: um extrínseco e dois
intrínsecos à natureza da jurisdição.
O elemento extrínseco refere-se ao objeto da investigação judicial que se
relaciona com o aspecto moral e emocional repercutindo na decisão conforme as
convicções morais e políticas pessoais do julgador, bem como pelas imposições do
ambiente externo como a cultura.
Veja-se, então, que aqui reside uma contradição: o autor preceitua a tese da
separação entre direito e moral, consoante postula o positivismo, mas prevê como
elemento intrínseco da verdade processual e que a diferencia da verdade científica o
aspecto moral e convicções políticas do julgador. Veja-se que as pré-compreensões
gadamerianas explica esta conclusão de Ferrajoli ao dispor que para pré-compreender o
intérprete já está na moralidade, pois já se encontra na história, na tradição, nos
costumes e orientações políticas, sociais, filosóficas e jurídicas. Gadamer explica que
sobre os prejuízos autênticos é possível limitar o poder do intérprete (e pela total
ilegitimidade de criminalizarem-se condutas imorais). A diferença é que em Ferrajoli os
preconceitos são sempre tomados sem uma forma negativa quando teme pela
incorporação, pelo Estado de Direito, dos ideais da moral religiosa precozinando a
radical cisão entre Direito e Moral.
57
Ibidem, p. 511. 58
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 46/47.
46
Já os elementos intrínsecos dizem respeito, o primeiro, aos erros judiciários
que não podem ser corrigidos da forma como são os erros historiográficos e cientistas
em razão da coisa julgada, e o segundo à (de)formação profissional própria do juiz, isto
é, ao (des)conhecimento que ele tem das normas. Isso porque, na interpretação
designada por Ferrajoli59
como “operativa”, as normas condicionam a linguagem do juiz
e sua aproximação aos fatos que devem ser julgados, selecionando os fatos relevantes
conforme as normas e ignorando os demais, de maneira que o conhecimento das normas
dessa ou daquela maneira, fará com que os olhos do julgador saltem sobre determinados
fatos e provas e se fechem a outros.
O autor está a pontuar relevantemente a subjetividade do julgador na sua
compreensão. Peca, contudo, ao não generalizá-la.
Reconhece, também, que, na investigação judicial, além da subjetividade do
juiz, soma-se ainda a subjetividade de muitas fontes de prova, como as testemunhas,
especialmente porque a maioria das fontes judiciais, ao revés, é produzida para a
investigação dos fatos a que alude, e não antes e independentemente dessa
investigação60
.
Mas essa subjetividade não é detectável em todas as formas de
conhecimento empírico? O sujeito que conhecerá não estará sempre dotado dessa
subjetividade porque imerso no seu mundo e dotado de suas próprias experiências e
percepções?
A abordagem que Ferrajoli está fazendo é psicológica com o propósito de
esclarecer algumas características do raciocínio que o julgador precisa desempenhar.
Para Michele Taruffo61
, a perspectiva psicológica da valoração das provas não se ocupa
das características da tomada da decisão, mais importantes sob a análise racional e
jurídica.
Para este autor, não há razão para se pensar que quando o juiz entra em
contato imediato com a prova, como ocorre quando escuta uma testemunha, seja
irremediavelmente transportado para uma dimensão irracional na qual somente tem
espaço para reações interiores e individuais. Entende que neste momento provavelmente
59
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 48. 60
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 48. Nesse tocante,
importante observar a diferenciação entre meios e fontes de prova. William Santos Ferreira, de maneira
clara, e em alusão à José Carlos Barbosa Moreira, explica que “Se a pergunta for: onde podem ser
obtidas informações? Estar-se-á tratando das fontes de prova. Se for: como estas informações chegam ao
julgador? Estão sendo procurados os meios de prova. A primeira é objeto, a segunda e instrumento.”
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op.cit, p. 57/58. 61
TARUFFO, Michele. A prova, op.cit., p. 131.
47
está o juiz sujeito a impressões, as quais podem influenciar quando da valoração
judicial, razão pela qual o próprio juiz deve desconfiar e, portanto, assumir uma atitude
de distância crítica em detrimento do envolvimento emocional. Isso porque se existe o
perigo do juiz usar na sua interpretação o comportamento da testemunha, critério
psicológico sem fundamento extraído de um sentido comum cheio de erros e de
prejuízos, é evidente que o juiz que se deixa levar por suas reações emocionais converte
sua valoração em puro arbítrio62
.
Vê-se que Taruffo acredita, ao abordar o “distanciamento crítico”, na
possibilidade de percepção do juiz sobre os inputs que podem ter algum valor
cognoscitivo sobre a base de critérios intersubjetivamente aceitos ou aceitáveis e sobre
aqueles que não têm este valor e pertencem à esfera das reações emotivas estritamente
individuais e desprovidos de qualquer significado intersubjetivo63
.
De forma semelhante, o estudo empírico voltado à influência das ilusões
cognitivas em decisões judiciais a ser adiante abordado aponta a auto-educação por
parte dos juízes para que evitem erros sistemáticos como ponto a ser desenvolvido pelo
sistema em direção à diminuição dos efeitos das ilusões cognitivas do juiz. O
distanciamento crítico não deixa de ser uma auto-educação.
É imprescindível que se perceba que o presente estudo adere à relevância da
psicologia para a compreensão de algumas características quando da tomada de decisões
sobre os fatos, importância que, conclui-se, não é negada por Taruffo, mas que é
minorada ao considerar que a análise psicológica não se ocupa de outras características
mais importantes em comparação com outras perspectivas.
Os juízes são pessoas e pessoas cedem a ilusões cognitivas produtoras de
erros sistemáticos, de maneira que até os mais talentosos e dedicados juízes cometem
erros ocasionais.
No Brasil, um estudioso importante da temática é Eduardo José Fonseca da Costa
que abordou o tema na exposição do Congresso Panamericano em Azul no tocante às
propensões cognitivas do magistrado e o dilema dos poderes oficiosos de produção de prova.
Um estudo empírico voltado à influência das ilusões cognitivas em decisões
judiciais foi conduzido por Chris Guthrie, Jeffrey J. Rachlinski e Andrew J. Wistrich
para determinar o modo como juízes decidem com base em cinco ilusões cognitivas
comuns: âncora (fazendo estimativas baseadas em pontos iniciais irrelevantes),
62
Ibidem, p24/25. 63
Ibidem, p24/25.
48
enquadramento (tratamento de ganhos e perdas economicamente equivalentes de forma
diferente), influências passadas (percebendo eventos passados como mais previsíveis do
que eles realmente foram), representatividade heurística (ignorando importantes
informações estatísticas a favor de informações individuais) e influências egocêntricas
(supervalorizar suas próprias habilidades).
Participaram do estudo 167 juízes federais tendo em vista que são
designados, nos EUA, por mérito próprio e recomendações. Contudo, como o estudo
ressalta, não há razões para se acreditar que o estudo se aplicaria unicamente a este
grupo. Estes juízes, que concordaram em participar da pesquisa, responderam a
questionários não identificados entregues a todos os participantes, mas com conteúdos
diferentes, a serem respondidos voluntariamente e independentemente dos demais, sem
qualquer discussão prévia.
Os enunciados nos questionários eram elaborados distintamente e voltados
cada um a uma ilusão cognitiva. O primeiro enunciado tratava de analisar o efeito da
“âncora” sobre as decisões judiciais.
Basicamente, trata-se de analisar os valores que as ofertas iniciais produzem
sobre o valor decidido ou acordado ao final. Russel Korobkin e Chris Gutchrie
perceberam com seus estudos que as pessoas estavam mais inclinadas a aceitarem um
acordo final de $12.000,00 (doze mil dólares) quando seguida de uma oferta inicial de
$2.000,00 (dois mil dólares) do que de uma de $10.000,00 (dez mil dólares), e isso
porque aqueles que receberam a oferta inicial menor esperavam receber um valor
pequeno, de maneira que a oferta final de $12.000,00 (doze mil dólares) pareceu muito
generosa.
Nos questionários da pesquisa com os juízes dividiu-se o enunciado com
uma oferta inicial e sem uma oferta inicial para se verificar quais seria o valor final
estabelecido pelos juízes a título de danos em um caso em que um litigante aciona uma
grande empresa afirmando ter sido hospitalizado e estar em uma cadeira de rodas após
ter sido atropelado por um caminhão da empresa. Os questionários com âncora
informavam, em adição comparativamente com os questionários sem âncora, que a
empresa Ré havia requerido o não recebimento da petição porque não atingia o mínimo
legal de $75.000,00 (setenta e cinco mil dólares).
O resultado das respostas demonstrou que os 66 juízes do grupo sem âncora
indicaram que proveriam os danos numa média de $1.249.000,00 (um milhão duzentos
e quarenta e nove dólares) enquanto os 50 juízes do grupo com âncora proveriam os
49
danos numa média de $882.000,00 (oitocentos e oitenta e dois reais). Nota-se que as
diferenças de valores são significantes.
Nesse sentido, o estudo comprova que os juízes são suscetíveis às âncoras,
bem como são os leigos.
Por sua vez, o estudo comprovou que os juízes, bem como comprovado em
estudos anteriores que tinham em consideração advogados experientes, têm menos
suscetibilidade à influência do “enquadramento”.
Diferentemente, o estudo comprovou que os juízes estão tão suscetíveis às
propensões retrospectivas quanto jurados e leigos. As propensões restrospectivas da
psicologia designam a tendência das pessoas de supervalorizarem as suas próprias
habilidades de predizer o passado e acreditam que outros devem ser capazes de prever
eventos melhor do que realmente era possível. Adicionalmente, estudos comprovam que
propensões retrospectivas influenciam julgamentos sobre responsabilidade civil. A
título exemplificativo, Kim Kamin e Jeffrey Rachlinski compararam decisões
prospectivas relativas se deveriam ou não tomar uma medida de precaução contra
inundação com avaliações retrospectivas sobre se a falha de tomar essa precaução foi
negligência. O resultado mostrou que somente 24% dos participantes no grupo das
decisões prospectivas concluíram que a probabilidade de ocorrer uma inundação
justificaria tomar a medida de precaução, enquanto 57% dos participantes no grupo das
propensões retrospectivas concluíram que a inundação era provável de acontecer ao
ponto de haver negligência em não tomar a medida de precaução.
Essa comparação demonstrou que, devido à propensão retrospectiva, a
decisão em tomar a medida de precaução parecia razoável para a maioria dos
participantes ex ante, mas parecia irrazoável para a maioria dos participantes ex post.
E no aspecto judicial, é necessário ter-se em mente que o Judiciário
normalmente avalia um evento depois do fato, de maneira que assim estarão suscetíveis
às propensões retrospectivas.
O reconhecimento da influência das propensões retrospectivas em
julgamentos legais também inspirou uma série de reformas, que incluem
grande influência em juízes. Contudo, esta abordagem é difícil de trazer
sucesso porque as propensões retrospectivas é uma das ilusões cognitivas
mais robustas. Grande confiança nos juízes é improvável de eliminar os
efeitos nas decisões judiciais. Apesar da experiência reduzir o efeito das
propensões retrospectivas, não o elimina.64
64
“Recognition of the influence of the hindsight bias on legal judgements hás also inspired a set of
proposed reforms, which include greater reliance on judges. This approach is unlikely to be successful,
however, because the hindsight bias in one of the most robust cognitive illusions. Greater reliance on
50
Basicamente, saber o resultado influencia a avaliação dos juízes sobre qual
consequência seria mais provável. Na previsão sobre fatos que já ocorreram, os juízes
acabam por respaldarem-se em fatos indisponíveis no momento da decisão. A
suscetibilidade dos juízes às propensões retrospectivas é equivocada porque juízes são
frequentemente esperados a suprimir seus conhecimentos de uma série de fatos antes de
decidirem. Por exemplo, ao decidirem sobre a supressão de provas resultante de uma
busca policial, juízes precisariam ignorar o conhecimento sobre o resultado da busca
para fins de determinar se a polícia tinha justa causa em conduzir a busca.
Já no que concerne à tendência das pessoas basearem seus julgamentos na
extensão em que a evidência analisada é representativa de uma categoria, é genérica, os
psicologistas chamam de “representatividade heurística”. Quando a evidência aparenta
ser representativa de uma categoria ou similar a ela, as pessoas tendem a acreditar que a
evidência é um produto da categoria.
Mas o resultado do estudo comprovou que os juízes são muito mais
atenciosos que outros profissionais a avaliarem estatísticas e são menos propensos a
fazer decisões baseadas somente na representatividade da evidência.
E finalmente, em se tratando da tendência de se auto-avaliarem, que os
psicologistas chamam de propensões egocêntricas, as pessoas tendem a se super
valorizarem. Primeiramente, na auto-apresentação, ainda quando não acreditam que se
encontram acima da média. Ainda, as pessoas se engajam em buscas mentais
confirmatórias por uma teoria que eles querem acreditar. E ainda, as pessoas lembram
suas próprias ações mais do que das ações dos outros, revelando uma mente
egocêntrica.
Nesse sentido, devido às propensões egocêntricas, litigantes e seus
advogados provavelmente superestimam suas próprias habilidades e a qualidade de seus
serviços, bem como os méritos do caso.
Para verificar se juízes são suscetíveis às propensões egocêntricas, os juízes
foram convidados no questionário a estimarem um percentual de reforma de seus
julgamentos em recurso. O resultado foi claramente egocêntrico. Quase 60% dos
entrevistados estimaram que cerca de 25% de suas decisões eram revertidas em
recursos. Ademais, vários juízes indicaram que nunca tiveram uma decisão reformada.
judges is unlikely to eliminate its effect on adjudication. Although experience reduzes the effect of the
hindsight bias somewhat, it does not eliminate it.”
51
Contudo, psicólogos concluem que acreditar fortemente nas suas próprias
habilidades ajuda a manter uma boa auto-estima e saúde. Assim, dá-se preferência a
juízes resolvidos e seguros do que tímidos e inseguros.
Vistas as cinco ilusões cognitivas e o resultado do estudo, concluiu-se que,
apesar dos juízes demonstrarem menos vulnerabilidade a duas das cinco ilusões
cognitivas do que outras pessoas leigas ou de outra profissão, os juízes são levados a
erros de julgamento em determinadas circunstâncias.
Nesse contexto, como foi mencionado por Ferrajoli quanto ao terceiro fator
limitante atinente à verdade processual, qual seja, “o caráter não impessoal deste
investigador particular legalmente qualificado que é o juiz”65
estará sempre presente
ainda que esteja se esforçando ao máximo para livrar-se de qualquer aspecto que
influencie sua objetividade.
Comparativamente, as circunstâncias de um julgamento no Judiciário e na
pesquisa são diferentes, mas o estudo concluiu que a não ser que tais circunstâncias
alterem a forma como os juízes pensam, elas não vão eliminar os efeitos das ilusões
cognitivas.
Então, como deveria se comportar o sistema jurídico para evitar ou reduzir
os efeitos das ilusões cognitivas? O estudo apontou três pontos a serem desenvolvidos
no sistema para se atingir esta finalidade.
Primeiramente, a auto-educação por parte dos juízes no que concerne tais
ilusões cognitivas para que evitem erros sistemáticos, bem como a realocação de
decisões entre juízes e júri considerando o que cada um pode da melhor forma decidir
de acordo com o efeito de cada ilusão cognitiva, e ainda, juízes e legisladores podem
minimizar legalmente os efeitos que as ilusões cognitivas produzem no julgamento.
Mas assume que, mesmo que juízes não tenham propensões ou preconceitos
com relação aos litigantes, compreendam inteiramente a lei aplicável e saibam todos os
fatos relevantes, eles ainda podem cometer erros sistemáticos no processo decisório
sobre algumas circunstâncias simplesmente devido à maneira como pensam, como
todos os seres humanos.
O estudo conclui, enfim que ainda que litigantes, advogados e juízes tomem
medidas para diminuírem os efeitos das ilusões cognitivas, elas ainda persistirão.
65
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 46/47.
52
Voltando à Ferrajoli, o quarto e último fator, de natureza jurídica e
normativa, é designado por Ferrajoli como o “método legal da comprovação
processual”, denominado como um limite específico do conhecimento judicial e
inexistente no conhecimento científico e histórico.
É bastante difundida a corrente de que a verdade judicial distingue-se de
outras verdades fora do contexto judicial, tendo em vista circunstâncias próprias e
especiais dos processos judiciais, como em Montero Aroca66
. Essa corrente sustenta que
os sujeitos processuais não podem se valer de qualquer meio possível para buscar a
verdade diante das regras de admissibilidade e produção das provas, além de existir, no
contexto judicial, a necessidade da solução final ainda que sem a coleta suficiente de
provas, afastando esta verdade das demais.
De modo contrário, entende-se, a existência de regras processuais não
configura impedimento para a busca da verdade nem é argumento plausível para
enquadrar a verdade judicial como um tipo especial ou formal. Contudo, não se está a
negar que normas jurídicas estabelecem limites para a busca dessa verdade.
Para Taruffo, tais regras não impedem a busca, mas apenas regulam a forma
de se provar os fatos, como a produção de teorias científicas também possuem suas
próprias regulações e limites, considerando, ademais, que os princípios do direito à
prova e da livre-apreciação presentes nos sistemas processuais modernos recomendam
que as normas jurídicas que restringem o uso dos meios de provas devem ser reduzidas
a um patamar mínimo67
.
Aliás, em se tratando de regras que disciplinam a investigação,
comprovação e formação da verdade processual, como são exemplos as preclusões, as
nulidades e os testemunhos inadmissíveis, é óbvio que no sistema informado pelo
princípio da “livre apreciação do juiz” há menos rigidez do que no sistema de “provas
legais”.
Assim, para Taruffo, as normas jurídicas definem um contexto da verdade
judicial configurando-a como uma verdade contextual, como em tantas outras áreas da
experiência cotidiana, não havendo grande diferença epistêmica substancial entre a
verdade produzida no processo e outras68
.
66
MONTERO AROCA. La prueba en el processo civil. Madrid: Editora Civitas, 2002, P. 35. 67
TARUFFO, Michele. A prova, op.cit., p. 24. 68
Ibidem, p. 24.
53
Mas será que se deve realmente comparar a verdade judicial com a verdade
dos outros ramos da ciência como fez Ferrajoli e Taruffo? Se a ciência dos outros ramos
buscam a certeza, bem como seus cientistas movem-se procurando a verdade, a
comparação transforma o juiz também neste sujeito que procura a verdade e cujo
resultado de seu esforço, a decisão judicial, é produto de sua certeza. Assim, o juiz que
interpreta vira um matemático que utiliza-se de um método, um procedimento com
regras pré-definidas, para produzir o conteúdo verdadeiro. E não é que o garantismo
processual define o processo como método? Ver-se-á posteriormente.
1.5. A teoria garantista ferrajoliana e a herança juspositivista: o problema da
discricionariedade judicial e a separação entre direito e moral
Ferrajoli fideliza-se, sob o plano teórico, ao positivismo lógico, e sob o
plano metodológico, ao neopositivismo lógico do Círculo de Viena com base no qual
utiliza-se do método axiomático para sua construção da teoria do direito.
O autor sustenta a existência de espaços fisiológicos e insuprimíveis de
discricionariedade judicial, colocando, como já mencionado, quatro dimensões ao poder
do juiz: (i) o poder de denotação ou de verificação jurídica, (ii) o poder de comprovação
probatória ou de verificação fática, (iii) o poder de conotação ou de discernimento
equitativo e (iv) o poder de disposição ou de valoração ético-política.
O poder de verificação jurídica é dependente da semântica da linguagem
legal, aumentando ou diminuindo conforme a vagueza e a imprecisão da linguagem
utilizada de maneira que pode ser reduzido de acordo com uma formulação mais
taxativa normativamente.
Por sua vez, o poder de verificação fática ou comprovação probatória é
aberto à valoração das provas sob a influência do raciocínio probatório indutivo e do
caráter probabilístico de qualquer verdade empírica sendo passível de redução por meio
das garantias processuais, quais sejam, o ônus acusatório da prova, o contraditório, a
não autoincriminação, a publicidade e a oralidade do juízo e a independência dos juízes.
Por fim, o terceiro poder, o de conotação, e também redutível, relaciona-se
com as “figuras do fato”, ou seja, o conjunto dos elementos que diferenciam um
comportamento do outro, dos elementos acidentais e especiais de cada prática delituosa
que a tornam única, dizendo respeito ao caso concreto.
No que tange esse poder em específico, o autor admite que essa tarefa é
valorativa, já que lida com conceitos imprecisos, como “motivo fútil”, apelando para a
54
equidade do juiz. Esse juízo de equidade deve fazer com que o juiz impeça suas
ideologias pessoais, prejuízos e inclinações para compreender as da pessoa que está sob
julgamento, acreditando assim que a equidade é uma condição da imparcialidade do
juiz69
. Isso explica porque julgar com equidade acaba por conceber um juízo menos
rigoroso, a favor do imputado.
Estes poderes, que, para o autor, nunca podem ser totalmente reduzidos,
recaem em poder de disposição, o que leva à sua conclusão acerca da inevitabilidade e
inafastabilidade das margens de discricionariedade judicial porque ligadas a limites da
interpretação na racionalidade jurídica e a limites da indução na racionalidade
probatória, isto é, ao caráter discutível da verdade jurídica e ao caráter probabilístico da
verdade factual, já aqui expostos.
Nesses termos, Ferrajoli aponta o garantismo como solução à defesa das
garantias fundamentais e às circunstancias desoladoras de violação ao Estado de direito
ocasionados pelo protagonismo judicial, mas não extirpa a discricionariedade, o que soa
como contradição.
Em síntese, a abordagem garantista, segundo a qual os espaços e os poderes
da jurisdição tornaram-se essenciais, consiste em promover técnicas normativas e
garantias jurisdicionais que possam limitar o arbítrio judicial e impeçam que os juízes
criem o direito70
.
Nesse contexto, Ferrajoli aposta na determinabilidade dos sentidos da
linguagem legal (diria, uma teoria da legislação) ao ter como objetivo a redução do
poder judiciário ilegítimo por meio da redução dos espaços excessivos de
indeterminação. Mas a redação legislativa mais objetiva nunca vai alcançar a
globalidade dos acontecimentos judiciáveis. E assim, parece levar a plano inferior o
problema da interpretação. Parece insatisfatória sua teoria para a questão da
discricionariedade, e consequentemente, arbitrariedade.
Percebeu-se a necessidade de analisar dois pontos essenciais em Ferrajoli: a
defesa da velha tese juspositivista da separação entre direito e moral e a admissibilidade
da discricionariedade judicial.
Robert Alexy explicou que a relação entre direito e moral pode ser vista de
três formas: (i) a tese da vinculação, vista nas doutrinas do direito natural, (ii) a tese da
separação, que se vê nos autores positivistas como Ferrajoli, na qual o conceito de
69
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 165. 70
FERRAJOLI, Luigi. O constitucionalismo garantista e o estado de direito, op.cit., p. 254.
55
direito deve ser definido de modo que não inclua elementos morais recaindo na fórmula
kelseniana de que todo e qualquer conteúdo pode ser direito; e (iii) a tese da
complementariedade, defendida por Robert Alexy ao sustentar que a moral é um
parâmetro de correção do direito, possuidor de uma autonomia relativa, pois na
existência de algum tipo de lacuna ou casos de evidente injustiça, o discurso moral
poderia corrigir o discurso jurídico. Ou seja, a tese da complementariedade afirma que
há espaços distintos de atuação entre direito e moral, mas que a insuficiência do
discurso jurídico para resolver certas controvérsias jurídicas pode ser corrigida ou
resolvida pelo discurso moral.
De outro modo, Dworkin afirma que entre direito e moral há uma
interconexão, não existindo, assim, nem separação, nem vinculação, tampouco
completariedade. Nesta interconexão, o direito é um ramo da moral. O autor trata a
teoria jurídica como parte da moral política, inserida nela, como se o argumento jurídico
fosse um tipo específico de argumento moral. Propõe uma teoria construtivista a partir
do direito como um fenômeno interpretativo defendendo que a interpretação jurídica
deve ser feita por uma leitura moral, não para corrigir o direito, mas que a moral é o
local de onde a interpretação jurídica retira sua origem. Dworkin é criticado, aliás, por
Ferrajoli, que quando cataloga o constitucionalismo principialista inclui a proposta de
Dworkin juntamente com a proposta de Robert Alexy, teorias muito diferentes. De todo
modo, os critica como defensores da conexão entre direito e moral.
Por sua vez, Lenio Streck, parte de Dworkin e da hermenêutica filosófica de
Gadamer para afirmar que há entre direito e moral uma cooriginariedade.
Entende-se, contudo, que a tese está da separação está superada.
Em Direito e Razão Ferrajoli atribuiu à separação entre direito e moral um
sentido (i) assertivo ou teórico, afirmando a autonomia dos juízos jurídicos em relação
aos juízos ético-políticos, e outro (ii) prescritivo ou axiológico, como um princípio
político do liberalismo moderno. A separação entre Direito e Moral é, portanto, um
pressuposto teórico e axiológico fundamental de seu garantismo: o direito válido parte
da cisão radical entre direito e moral, portanto.
Mas alerta Ferrajoli sobre a importância de não se incorrer no erro de
interpretar a tese da separação como repúdio a qualquer influência da moral sobre o
direito. A separação, nas próprias palavras de Ferrajoli, quer dizer apenas duas coisas:
(...) segundo a tese assertiva, que é um corolário do princípio juspositivista da
legalidade, a justiça é um ponto de vista externo, variável de pessoa para
pessoa, e o juízo sobre a moralidade ou sobre a justiça de uma lei não implica
56
nem está implicado pela tese sobre sua existência ou validade jurídica;
segundo a tese prescritiva, que é um corolário do princípio liberal da
ofensividade, o juízo sobre a imoralidade (não de uma lei, mas) de um
comportamento não é uma condição suficiente (mesmo se necessária) para
justificar a sua proibição.
Note-se, Ferrajoli sustenta a tese da separação entre direito e moral
argumentando que as modificações paradigmáticas advindas com os contemporâneos
Estados Constitucionais não comprometeram a cisão entre moral e direito, pois apenas
tornaram o sistema mais complexo, mas que, não por isso, moral e direito passaram a
implicar-se71
. O autor afasta-se inclusive da tendência de relativização de uma relação
necessária ou conceitual entre direito e moral.
Aliás, para Alfonso Garcia Figueroa72
, o fato de Ferrajoli assumir-se como
um positivista crítico relativiza a tese enquanto que a incorporação de valorações e a
dimensão crítica comprometem o positivismo. Mas Ferrajoli persiste em afirmar que o
que “as constituições democráticas constitucionalizaram não foi a moral, mas alguns
princípios morais fundamentais, de caráter liberal e democrático, que nós
compartilhamos”73
. Um tanto contraditório? O autor relata, apontando inclusive o fim à
onipotência do legislador, que:
Não vejo, portanto, que necessidade há de se falar de incorporação ou
institucionalização da moral, por que, para admitir a dimensão substancial da
democracia constitucional, deve-se dizer, como escreve Streck, que ela é o
reflexo do ingresso da moral no direito, e não simplesmente que é reflexo do
ingresso no direito de determinados princípios morais constitucionalmente
estipulados como fundamentais pela comunidade política. Aquilo que conta é
que o paradigma constitucional, comportando a positivação de alguns
princípios ético-políticos de caráter liberal e democrático, colocou fim à
onipotência do legislador, que caracterizava o modelo paleojuspositivista do
estado legislativo de direito e subordinou, tanto o legislador quanto os juízes,
a tais princípios74
.
Explica-se que a noção de moral compartilhada pelo autor é de algo que
depende do arbítrio do juiz. E, portanto, para Ferrajoli, não há uma resposta ao
questionamento da valoração probatória objetivamente mais correta! Assim “cada um
considerará melhor ou mais correta aquela que entender mais convincente ou melhor
71
PINHO, Ana Claudia Bastos de. Para além do Garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op.cit., p. 50. 72
GARCÍA FIGUEROA, Alfonso. Las tensiones de uma teoria cuando se declara positivista, quiere ser
crítica, pero parece neoconstitucionalista. In Garantismo – Estudios sobre el pensamiento jurídico de
Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 277. 73
FERRAJOLI, Luigi. O constitucionalismo garantista e o estado de direito, op.cit., p. 250. 74
Ibidem, p. 251.
57
motivada, mas isto não torna a solução adotada ‘objetivamente verdadeira’ ou a ‘única
correta’”75
.
Esse seria o jogo do direito no qual em cada processo são confrontadas teses
opostas argumentadas como verdadeiras. Mas, por sua teoria, nada poderia garantir qual
a única verdadeira ou absolutamente correta, pois o juiz resolve a demanda conforme a
solução que lhe pareça mais plausível e imparcial de acordo com o caráter somente
provável da verdade factual e discutível da verdade jurídica:
(...) a prova disso é o fato de que, em todo processo, contrapõem-se sempre
duas verdades, jurídicas e/ou factuais entre elas em contradição, nenhuma
das quais pode se dizer nem absoluta ou certamente verdadeira.76
Bem, se moral depende do arbítrio do sujeito, não haveria como ser
favorável uma tese que admitisse os subjetivismos do juiz. Mas as propostas de Ronald
Dworkin77
e de Lenio Streck, que defendem uma interconexão ou uma cooriginariedade
entre direito e moral, obviamente não admitem moralismo, jusnaturalismo, ou esse tipo
subjetivista da moral e que admitisse um cognitivismo ético. Em realidade, admitem
uma responsabilidade política de cada juiz/intérprete/aplicador a obedecer a integridade
do direito evitando raciocínios próprios seus de moralidade, teleologia ou de política.
Mas ocorre que nesses casos, a compreensão do que seja moral é resultante
da melhor interpretação, e como o “melhor” da interpretação implica “valoração”, o
argumento construído a partir dela será necessariamente moral. Só que, contrariamente,
viu-se que Ferrajoli defende que seu constitucionalismo positivista ou garantista reforça
o paleojuspositivismo ao incrementar o juízo de substancialidade na jurisdição
constitucional para que esta identifique o direito constitucionalmente ilegítimo, mas que
essa substancialidade constitucional é refratária da conexão entre direito e moral.
75
Ibidem, p. 253. 76
Ibidem, p. 249. 77
Adianta-se explicação que se fará em capítulo posterior: Afinal, Dworkin diz que o juiz deve decidir
por argumentos de princípio e não de políticas, apontando, assim, os limites da aplicação judicial para o
que não importam as convicções pessoais do juiz, o que passa pelo compromisso da reconstrução da
história institucional do direito e pelo momento de colocação do caso julgado dentro da cadeia da
integridade do direito de maneira que a decisão não seja uma escolha, mas uma interpretação, aquela mais
adequada, de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política. A distinção entre
argumentos de política e argumentos de princípio em Dworkin é providencial nesse tocante. Para o
jusfilósofo norte-americano, “os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a
decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”, já os “argumentos de
princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um
indivíduo ou de um grupo”, ambos constituindo argumentos políticos num sentido mais amplo, mas um é
argumento de princípio político e outro de procedimento político (que exige que alguma decisão
particular promova alguma concepção do bem-estar geral ou do interesse público).
58
Então, quando se coloca em xeque a tese da separação, se questiona que
quando Ferrajoli reconhece a existência deste juízo de substancialidade da lei em face
da Constituição, a tematização da divergência entre o “dever-ser” constitucional e o
“ser” legislado, esse substancialismo já não carrega intrinsecamente um debate moral
acerca do conteúdo abstrato previsto constitucionalmente?
Aliás, nesse tocante, em vista do fenômeno jurídico como interpretativo,
Gadamer afirma que a moralidade é condição de possibilidade da compreensão de modo
que o homem não tem como optar entre exercer ou não juízos morais na compreensão,
pois já está mergulhado na própria moralidade, na tradição, que condiciona por meio de
conceitos prévios a própria compreensão, ou seja, por meio dos preconceitos, das
opiniões prévias. Em Lênio Streck78
vê-se a ausência de grau zero na compreensão vez
que a pré-compreensão já adianta o sentido e não está à disposição do intérprete, ou
seja, o intérprete não chega cru ao texto já que as pré-compreensões sugerem um
determinado sentido e que serão testadas e revisadas no decorrer para confirmar se são
adequadas àquele texto. É a “coisa mesma” de Martin Heidegger, professor de
Gadamer.
Explique-se, desde já, antes de qualquer dúvida, que a coisa mesma não
significa a coisa em si, até porque a hermenêutica filosófica gadameriana não existe
compreensão sem anteicpação de sentidos, sem pré-compreensão, de modo que um
prejuízo ilegítimo só se retifica quando confrontado com outra antecipação de sentido,
não é confrontando com a coisa sem i, perceba, mas com outra antecipação de sentido
acerca da coisa mesma, o texto, por exemplo79
.
Aceitando que sim como resposta àquela pergunta (é realmente possível que
o juízo de substanciliadade ou materialidade da constitucionalidade da lei seja feito
desprovido dos juízos morais na inetrpretação?) é que Dworkin fala em uma “leitura
moral da Constituição” e do Direito como integridade, e que Lenio Streck toca na
“resposta adequada à Constituição”.
Assim é que afirmam que o constitucionalismo institucionaliza a moral.
Como diz Habermas, a moral está no próprio coração do direito positivo, autor e tema
repisados pela Escola Mineira de Processo.
78
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op.cit, p. 77. 79
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op.cit., p. 67.
59
Ocorre que o Iluminismo, lembrando que Ferrajoli herda as concepções do
movimento da Ilustração, pretendeu luta contra a tradição e concebe o preconceito como
algo negativo, como fruto de um passado a ser abandonado. Substituiu a tradição pela
razão, tomando-a como fonte de toda a autoridade, aliás seu livro chama-se “Direito e
Razão”. Enquanto em Gadamer juízo prévio não significa falso juízo, cabendo a ele
restabelecer o conteúdo positivo da tradição e dos preconceitos, concluindo que pela
tradição e pela incorporação de prejuízos autênticos é possível limitar o poder do
intérprete e decidir pela total ilegitimidade de criminalizarem-se condutas imorais,
objetivo de Luigi Ferrrajoli.
Em “Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com
Luigi Ferrajoli”, estes acaba, em realidade, por reconhecer que sua solução é relativa e
insatisfatória diante da existência de divergências interpretativas e múltiplas respostas,
plausivelmente discutíveis, mas cujo número é reduzido em decorrência do ônus da
coerência com os princípios constitucionais. Assim, conclui que o problema da indevida
discricionariedade judicial se resolve por reconhecer que o poder exercitado pelo juiz
além dos espaços inevitáveis de discricionariedade é juridicamente ilegítimo,
recordando-se que este é por ele chamado de “poder de disposição”, margem de
ilegitimidade que também possui um limite de irredutibilidade, vez que a verdade
processual é absolutamente inalcançável e a submissão à lei inevitavelmente imperfeita.
Ocorre que a tentativa de enfrentar o problema da discricionariedade é
exatamente afastar qualquer afirmação, como a que fora feito pelo autor, sobre algum
grau de ilegitimidade que resida na jurisdição.
Como se viu, a hermenêutica filosófica de matriz gadameriana acredita que
a tradição, a moralidade, não dá margem para relativismos, ao contrário do que
estabelece o garantismo que vê os preconceitos, as posições prévias, como a verdadeira
fonte de equívocos a serem disciplinados pela razão para afastar o intérprete dos erros,
por meio de métodos e técnicas, para o que seria necessário cindir Direito e Moral.
Enquanto para a hermenêutica, considerando que o intérprete não está em condições de
distinguir os preconceitos produtivos daqueles que geram mal-entendidos, deve ela
perguntar pelo modo como isso, a distinção entre preconceitos autênticos e inautênticos
se dá.
E então adentramos no segundo tema deste tópico, para o que deve-se
primeiramente alertar o leitor sobre a discricionariedade judicial que ora se debate. Ela é
aquela sinônima de arbitrariedade, não resulta de modo algum da distinção feita pelo
60
direito administrativo entre atos discricionários e atos vinculados, diferentes de atos
arbitrários.
Sabe-se que o conceito de discricionariedade teve menor estudo e análise na
esfera judicial do que na administrativa por ter nascido como conceito/instituto teórico
deste ramo doutrinário.
A discussão que ora se trava diz respeito ao grau de liberdade do
intérprete/julgador diante da legislação resultante do devido processo legislativo e
democrático devendo sempre observar a Constituição.
Nesse sentido, o conceito de discricionariedade administrativa não
confunde-se com o de discricionariedade judicial, o que se diz especialmente porque
tem sido muito comum aproximar erroneamente aquilo que se chama de ato
administrativo discricionário pela doutrina administrativa com a discricionariedade
judicial.
Com fulcro em Teresa Arruda Alvim Wambier, a qual ressalta a
importância de se diferenciar a discricionariedade no âmbito administrativo em relação
à judicial, “algumas observações devam ser feitas com o objetivo de diferenciar e
afastar definitivamente essa liberdade de que goza o magistrado no ato de decidir, da
liberdade com que pode contar o agente da administração pública em seu atuar”80
.
Veja-se, então, que não se pode importar conceito próprio daquele ramo para este.
Para Celso Antonio Bandeira de Mello, eminente administrativista, a
discricionariedade representa:
(...) a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger,
segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois
comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o
dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal,
quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida
no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução
unívoca para a situação vertente.81
Como se sabe, os tribunais pátrios ainda aplicam a tese clássica sob a qual a
discricionariedade administrativa está fora do controle jurisdicional, ou seja, que a
competência constitucional do Judiciário permite apenas o controle sobre a
competência, a forma, a finalidade, o motivo e o objeto do ato administrativo
discricionário, excluindo qualquer controle sobre a execução do ato e impedindo que o
80
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2.ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, n.72, p. 192. 81
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. 2.
Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 48.
61
Judiciário se manifeste sobre o conteúdo das decisões tomadas pelo administrador no
decorrer dela.
Mas o mérito está exatamente no sentido político do ato administrativo, “é o
sentido dele em função das normas da boa administração, ou , noutras palavras, é o
seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o
ajusta aos interesses privados”82
.
Nesse sentido, o mérito compreende elementos atinentes à aspectos
integrantes e formadores do binômio “oportunidade/conveniência” (justiça,
moralidade...) e estas são dependentes de critérios políticos e meios técnicos peculiares
ao exercício do poder administrativo, o que justifica ser ele de atribuição exclusiva do
Poder Executivo83
, consequência da própria separação de poderes84
. Então, só há
controle do conteúdo quando o ato administrativo for vinculado85
.
Assim, não há como trasladar tal conceito ao âmbito jurisdicional no qual a
discricionariedade permite uma intervenção judicial, vez que na esfera administrativa o
Judiciário não pode intervir no mérito do ato administrativo discricionário.
Conforme ensina Lenio Streck, “no âmbito judicial, o termo
discricionariedade refere-se a um espaço a partir do qual o julgador estaria legitimado
a criar a solução adequada para o caso que lhe foi apresentado a julgamento”86
, de
outro modo, no âmbito administrativo, “tem-se por referência a prática de um ato
autorizado pela lei e que, por esse motivo, mantém-se adstrito ao princípio da
legalidade”87
, isto é “o ato discricionário, no âmbito da administração, somente será
tido como legítimo se estiver de acordo com a estrutura da legalidade vigente”88
.
O autor aponta dois significados para a discricionariedade no Brasil:
“Primeiro, um modo de superar o modelo de direito formal-exegético (e, infelizmente,
82
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8. Ed. Atual.
Gostavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, p. 180. 83
Ibidem, p. 181/182. 84
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Teoria General Del Proceso – Lección 4. Disponível em Academia
Virtual Iberoamericana de Derecho y de Altos Estudios Judiciales, p. 11. 85
Deixe-se registrada a posição de Georges Abboud para quem “os critérios de conveniência e
oportunidade devem sofrer um filtragem hermenêutica, uma vez que constituem critério inconstitucionais
para se atender o ato administrativo”. ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial:
o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 145. 86
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit., p. 50. 87
Ibidem, p. 50. 88
Ibidem, p. 50.
62
acaba não passando disso); b) segundo, uma aposta no protagonismo judicial,
considerado, assim, uma fatalidade (no fundo, Kelsen já havia pensado assim (...)”89
Trata-se, em outras palavras, daquilo:
(...) convalidado pela tradição da teoria do direito, isto é, a experiência
interpretativa “conhece” um conceito de discricionariedade utilizado por
Herbert Hart em seu O conceito de direito. Ao enfrentar o problema da
aplicação da regra jurídica, Hart apresenta a tese de que no direito existe uma
“textura aberta”. Nesse ponto aparece uma diferença gritante com relação à
noção de discricionariedade administrativa: nesta, o administrador está
autorizado pela lei a eleger os meios necessários para determinação dos fins
por ela estabelecidos, mas qualquer ato por ele praticado poderá ser
questionado tendo em vista o princípio da legalidade; já na discricionariedade
judicial, o julgador efetivamente cria uma regulação para o caso que, antes de
sua decisão, não encontrava respaldo no direito da comunidade política.90
Numa análise das decisões judiciais brasileiras é possível perceber que a
discricionariedade atinge qualquer espaço de sentido como vaguezas, ambiguidades e
cláusulas abertas. A consequência é o exercício da subjetividade do intérprete que chega
inclusive a utilizar-se dos princípios para fundamentar sua própria “vontade” e seu
próprio conceito de “justiça”:
(...) da Escola do Direito Livre, passando pela Jurisprudência dos Interesses,
pelo normativismo kelseniano, pelo positivismo moderado de Hart, até
chegar aos autores argumentativistas, como Alexy, há um elemento comum:
o fato de que, no momento da decisão, sempre acaba sobrando um espaço
“não tomado” pela “razão”; um espaço que, necessariamente, será preenchido
pela vontade discricionária do intérprete/juiz (não podemos esquecer que,
nesse contexto, vontade e discricionariedade são faces da mesma moeda).91
No contexto jurisdicional, por exemplo, as decisões judiciais fundamentadas
por meio de fórmulas vazias como “presentes os requisitos legais, nego a liminar”, ou
ainda, “impossibilidade de se examinar as preliminares porque se confundem com o
mérito”, apresentam-se com discricionariedade por não possuírem qualquer
complemento de facticidade ínsita ao caso concreto. Esses termos performáticos
constituem subterfúgios para que o julgador deixe de avaliar aspectos fáticos do litígio
utilizando-se de enunciados performáticos que não são nem verdadeiros nem falsos92
.
Na esfera administrativa, decorrência do mandamento legislativo, essa
discricionariedade se apresenta de maneira distinta ao se performar no binômio
“conveniência/oportunidade”.
89
Ibidem, p. 53. 90
Ibidem, p. 50. 91
Ibidem p. 48. 92
MIRAGEM, Bruno. A defesa administrativa do consumidor no Brasil. Alguns aspectos. Revista do
Direito do Consumidor. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, abr. 2003, n. 46, p. 120.
63
Isto exposto, veja-se que o tema a ser explorado no próximo capítulo diz
respeito ao ativismo judicial. Isso se deve à conclusão de que a discricionariedade
judicial como possibilidade do juiz criar a resposta à questão jurídica apresentada,
propicia ou o ativismo ou o decisionismo judiciais93
.
Note-se que a presença do ativismo judicial fortaleceu-se como solução para
a concretização dos direitos fundamentais diante da própria ideia de um espaço
discricionário à “vontade” do intérprete/julgador. Ocorre que a vontade destes não
configura permissão para uma atribuição arbitrária de sentidos nem tampouco uma
atribuição de sentidos arbitrária, consequência inafastável da discricionariedade94
.
E nesse contexto, Ferrajoli remonta seu pensamento ao positivismo, que já o
próprio Kelsen denunciava a inexistência de um método que possa dar garantia à
correção do processo interpretativo, e à Herbert Hart95
, no qual se precisa perceber que
os espaços da “zona de penumbra” do modelo de regras são preenchidos pelo juiz por
meio da discricionariedade em razão do poder arbitrário a ele delegado, e também, que a
“zona de incerteza” pode resultar de uma construção ideológica do intérprete/juiz
aumentando, consequentemente, o espaço de discricionariedade.
Nesta discricionariedade judicial, diferentemente do que ocorre na
discricionariedade administrativa, há a criação de uma regra para regulamentar o caso
apresentado ao julgador, pois é fruto de uma abertura do sistema para legitimar as
decisões do Judiciário, abrindo, então, espaços para arbitrariedades.
Aliás, pela arbitrariedade decorrente dos espaços de discricionariedade
Dworkin critica o positivismo discricionário de Herbert Hart.
Herbert Hart sustentou que o sistema jurídico é composto por regras
primárias, que impõem deveres, e secundárias, que atribuem poderes, públicos ou
privados, permitindo a criação ou alteração de deveres ou obrigações, formadas estas
últimas pelas de alteração, julgamento e reconhecimento (remédio para a incerteza do
regime das regras primárias). E então desenvolve a tese do direito como instituição
social, como fenômeno cultural constituído pela linguagem, afirmando que a
93
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op.cit., p. 145. 94
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 49. 95
Diga-se, aliás, que Herbert Hart figura como um dos maiores expositores dentre os positivistas do
Common Law. Sua teoria sobre o sistema jurídico ainda assim admite a possibilidade de se solucionar
questões jurídicas sem interpretação, pois, nos seus denominados “casos fáceis” o juiz limitar-se ia a
subsumir a aplicação da regra jurídica em seu núcleo duro, utilizando-se da discricionariedade no
julgamento nos chamados “casos difíceis”, e isso por estar no paradigma interpretativo do positivismo
(por meio do qual se concebe a solução das questões jurídicas pelo silogismo, sem interpretação).
64
normatividade é social96
. Trata-se de uma abertura do sistema para o social
comunicando-se com a moral, a política e a sociedade:
Resumindo tudo: em Hart, os deveres (jurídicos) são criados por regrsa
sociais que ganham normatividade através de seu reconhecimento social.97
O positivismo de Hart contempla a discricionariedade judicial na medida em
que todas as regras estariam compostas por uma textura aberta a ser resolvida pelos
tribunais em cujo âmbito a decisão estará sempre certa, discricionariedade no sentido
forte concebido por Dworkin.
A discricionariedade em Dworkin apresenta três sentidos: um forte, um
fraco e um limitado. Basicamente, pelo sentido limitado, o poder discricionário é
determinado a partir da escolha entre duas ou mais alternativas, assemelhando-se à
discricionariedade administrativa, mas em seu sentido forte, a discricionariedade
implica na incontrolabilidade da decisão segundo padrões previamente estabelecidos e
que, assim, legitima a decisão judicial que fica, portanto, passível somente de críticas.
Em outras palavras, o sentido forte do poder discricionário compreende uma ausência
de limitações de padrões (standards) estabelecidos por outra autoridade.
Assim como Hart, Ferrajoli, como visto, concebe a inevitabilidade da
discricionariedade, como no sentido forte de Dworkin, margem incontrolável, na
atividade judicial.
Em “Direito e Razão” Ferrajoli destacou uma solução à loteria do
protagonismo judicial: o garantismo. Mas em 2012, o próprio autor reconheceu a
hermenêutica como alternativa, concluindo que sua teoria é relativa e não inteiramente
satisfatória ao problema, como já mencionado.
O autor reconheceu a grande utilidade da hermenêutica para o fim de limitar
o arbítrio judicial e, para ele, de impedir que os juízes criem direito, uma teoria da
decisão como aquela proposta por Lenio Streck, assim como, de maneira geral, qualquer
teoria da argumentação e do raciocínio jurídico idôneo para reduzir o arbítrio e reforçar
a racionalidade das decisões.
Ocorre que nessa contraposição à Ferrajoli trabalha-se com dois paradigmas
distintos:
No caso de Ferrajoli é desenvolvido o trabalho sob a perspectiva da filosofia
analítica cuja proposta teórica assenta-se no positivismo normativista da tradição do
96
HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, p. 91. 97
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 72.
65
neopositivismo lógico do Círculo de Viena situando sua interpretação do direito fora da
viragem linguístico-ontológica, razão pela qual Ferrajoli aposta numa “linguagem
rigorosa”, e não aceita a tese dworkiniana da única resposta correta (the one right
answer).
Já na teoria de Lenio Steck, o direito é colocado no paradigma da
fenomenologia hermenêutica e da hermenêutica filosófica que possibilita o
enfrentamento da questão da interpretação do direito, e também de sua aplicação
(Gadamer, contra a cisão entre interpretar e aplicar) concluindo pela defesa de um
direito fundamental do cidadão à respostas adequadas à Constituição com a imbricação
entre Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin.98
O garantismo ferrajoliano indubitavelmente pertence a uma visão da
linguagem como ferramenta disponível para conhecer objetos enquanto Lenio Streck
concebe o giro ontológico linguístico e um novo conceito de norma, que passa a ser
concreta e produto da própria linguagem, da atividade interpretativa do intérprete.
Enfim, precisa-se compreender que, considerando que a discricionariedade
por diversas vezes recai em arbitrariedade, é conceito que com a democracia é
incompatível! Nada mais esperado, para a empreitada que se propõe, abordar as
contribuições dos garantistas processuais civis.
1.6. O garantismo processual civil
A doutrina internacional tratou de aplicar as bases do garantismo de Luigi
Ferrajoli, reconhecendo desde sempre a originalidade da obra do autor da onde ressoou
a voz garantista em virtude do próprio subtítulo que Luigi Ferrajoli utilizou na sua obra
“Direito e razão – Teoria do Garantismo Penal”.
Registre-se desde já, contudo, a existência de equivocada doutrina afirmando
que o reconhecido “garantismo processual civil” baseia-se em errônea aplicação da
teoria de Luigi Ferrajoli ao processo civil, como Jorge Peyrano99
, defensor do ativismo
judicial que muito debate com o garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso,
doutrinador este com destacável repertório e grande defensor do modelo acusatório e da
98
STRECK, Lenio. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In ___; FERRAJOLI, Luigi;
STRECK, Lenio. (Orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi
Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 88. 99
PEYRANO, Jorge W.. Disponível em:
http://www.pensamientocivil.com.ar/system/files/el_cambio_de_paradigmas_en_materia_procesal_civil.p
df. Acesso em 10 jul 2015.
66
Constituição, Lei, com maiúscula, que sempre está acima da lei, com minúscula,100
ao
que se adere irrefutavelmente.
Nesse sentido, tal movimento jusfilosófico pretende o irrestrito respeito à
Constituição e aos Pactos internacionais hierarquicamente igualados, asseverando que o
juiz empenhe-se em favor das garantias constitucionais, jamais de pessoa ou coisa que
não a Constituição.
Afirma-se detidamente que os louvores do garantismo são pela legalidade, tão
apontada por Ferrajoli, que, como visto, constitui sua teoria com dois elementos, quais
sejam, a estrita legalidade e a estrita jurisdicionariedade, mas obviamente, por
constituir-se como aporte do Estado Constitucional, reclama por uma legalidade
constituída a partir dos valores introduzidos na Constituição.
O garantismo no processo civil sustenta um processo idealizado como
método de debate e dialogal entre as partes condicionado às diligências destas na
atividade processual no qual se intenta assegurar, por meio do devido processo legal,
uma ampla participação que valoriza a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade
judicial com a máxima restrição dos poderes dos juízes101
.
No mesmo sentido exposto, o processo a que se refere Glauco Gumerato
Ramos deve ser entendido como um método de discussão, um meio de debate dialogal e
argumentativo que se realiza entre dois sujeitos naturalmente desiguais situados em
posições antagônicas a respeito de uma mesmo bem da vida102
.
A teoria garantista privilegia o sistema acusatório em detrimento do
inquisitivo. Ferrajoli, aliás, já reconhecia a indubitável conexão entre o sistema
acusatório e seu modelo garantista, ainda que faça de seu modelo algo genérico e
aproximável em todo e qualquer sistema.
Esta doutrina garantista concebe a ideia de processo vinculada histórica e
logicamente à necessidade de organizar um método de debate dialogal concluindo que a
100
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal. In SOARES, Carlos H. RAMOS, Glauco G.;
GRADOS, Guido Aguila; RÚA, Mónica Bustamente; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. (Coord.)
Proceso Democrático y Garantismo Procesal. Belo Horizonte: 2015, Arraes Editores, p. 34. 101
RIBEIRO, Sergio Luís Almeida. Porque a prova de ofício contraria o devido processo legal?
Reflexões na perspectiva do garantismo processual. In: FREDIE DIDIER JR; JOSE RENATO NALINI;
GLAUCO GUMERATO RAMOS; WILSON LEVY. (Org.). Ativismo judicial e garantismo processual.
1ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2013, v. 1, p. 639-647. 102
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op.cit., p. 16.
67
razão de ser do processo não pode ser outra que não a erradicação da força no grupo
social para assegurar a manutenção da paz e de normas adequadas de convivência103
.
É claro, contudo, que a ideia de força não pode ser eliminada por completo,
pois há casos em que se permite a subjugação e o triunfo da vontade sem lógica, casos
em que a demora do Direito poderia permitir a consumação de um mal cuja existência
não se deseja. Em tais circunstâncias, a lei, então, permite aos particulares utilizar de
certo grau de força que, mesmo ilegítima, se vê legitimada pelo próprio Direito.
E nesse sentido, o processo tem duas funções: uma função privada,
considerando-o como instrumento que tem todo indivíduo em conflito para alcançar
uma solução pelo Estado se não tiver alcançado sua dissolução mediante uma das
possíveis formas de autocomposição, e uma função pública, constituindo uma garantia
do Estado a todos seus habitantes em razão da proibição da força privada.
Aprofundando a análise sobre a concepção de processo da doutrina processual
garantista, Adolfo Alvarado Velloso104
parte do conceito de instância, entendida
juridicamente como o direito que tem toda pessoa ou ente de dirigir-se à autoridade para
dela obter, além de um procedimento, uma resposta cujo conteúdo final não pode ser
previamente definido.
Entre o instar e a resolução final existe necessariamente uma série de atos que
deve seguir uma ordem preestabelecida, o que seja, um procedimento.
Note-se: o objeto da instância é sempre um procedimento enquanto o objeto do
procedimento é a resolução da autoridade.
Nesse contexto, dispõem de 5 instâncias, sendo uma delas a ação processual,
(além da denúncia, petição, recurso ou reconsideração e queixa) que se diferencia das
demais por seu caráter bilateral, já que para cumprir a atividade necessita da presença
simultânea de três sujeitos: quem insta, quem recebe o instar e uma terceira pessoa que é
quem deve efetuar a prestação pretendida.
Em síntese, o objeto da ação é obter um procedimento que, por dar-se entre três
e não entre duas pessoas, receberá a denominação de processo. Assim, processo é um
procedimento específico que se dá, no mínimo, entre três sujeitos cuja causa é a
necessidade de alcançar o acolhimento da pretensão contida no instar.
103
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I. Buenos Aires:
Rubinzal – Culzoni Editores, 2009, p. 307. 104
Cf. aula ministrada no curso de Mestrado na Universidade Nacional de Rosário.
68
Denunciam, assim, a equivocada doutrina que privilegia a meta sobre o
método porque concebe como processos simples procedimentos que não se dão em
realidade entre três pessoas e muitas vezes não observam sua essencial série lógica:
afirmação – negação – confirmação – avaliação ou conclusão.
Parece ficar claro que o termo “método” é usado pelo autor no sentido de
um procedimento mecânico prévio, capaz de ordenar e estruturar o conhecimento de
algo, acepção construída na modernidade. Este método é rígido e formado por etapas
pré-determinadas que trarão uma decisão correta se também for correta a sua aplicação.
Parece, assim, que a teoria garantista processual coloca o foco na obtenção
da decisão, que, para os autores, será correta desde observe a série lógica. Salvo melhor
juízo, o resultado da decisão não é uma forte preocupação já que a decisão judicial
estará justificada apenas quando respeita a equidade dos procedimentos. E assim,
arrisca-se a apontar tal teoria como procedimental, pois procura estabelecer critérios
prévios para correção da decisão judicial, ao contrário de substantiva, que seria aquela
preocupada com o conteúdo da decisão judicial justificada não apenas na observância à
equidade dos procedimentos.
Nesse sentido, o processo deve possuir as seguintes características:
- o processo somente pode ser iniciado pelo particular interessado. Nunca pelo juiz;
- o impulso processual somente é dado às partes. Nunca pelo juiz;
- o juízo é público salvo exceções;
- existe paridade absoluta de direitos e igualdade de instâncias entre autor (ou acusador)
e demandado (ou réu);
- o juiz é um terceiro que, como tal, é impartial (não parte), imparcial (não interessado
pessoalmente no resultado do litígio) e independente (não recebe ordem) de cada um
dos contraditores. Portanto, o juiz é pessoa distinta da do acusador;
- não preocupa nem interessa ao juiz a busca incessante e a todo custo pela verdade real
senão que, muito mais modesta, procura alcançar a manutenção da paz social fixando
fatos para adequá-los à norma jurídica, tutelando assim o cumprimento das
determinações legais;
- ninguém intenta alcançar a confissão do demandado ou imputado, pois sua declaração
é um meio de defesa e não de prova, pelo que se proíbe sua provocação (interrogatório);
- correlativamente exige que quando a parte deseja declarar espontaneamente o faça sem
mentir. Portanto, penaliza o perjúrio;
- se proíbe a tortura;
69
- o imputado sabe sempre do que é acusado, quem o acusa e quem são as testemunhas.
Inegavelmente essas linhas caracterizam o sistema acusatório. Afinal, o
garantismo concebe o poder como maléfico. Entendem que o sistema acusatório
configura a única possibilidade para se gerar um processo nos termos adiante expostos.
Esse modelo teórico, lembrando que não há porque se falar da existência de um único
garantismo, rechaça toda e qualquer característica que remeta a um sistema inquisitório
ao concordarem que este não poderá nunca dispor de um processo por contrariar a sua
essência lógica.
Sobre a diferenciação entre acusatório e inquisitório, veja-se os
ensinamentos da doutrina garantista, começando por Ferrajoli que relata que:
Pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um
sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um
debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova,
desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e
solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção. Inversamente,
chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício
à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento
após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o
contraditório e os direitos de defesa.105
O mesmo relata os garantistas processuais ao relatarem que no acusatório as
funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a órgãos distintos, enquanto no
inquisitório as funções estão reunidas e o inquisidor deve proceder espontaneamente. E
é por isso que no processo inquisitório a investigação unilateral a tudo se antepõe, tanto
que dele, afirma a doutrina garantista não se tratar de processo genuíno, mas sim de
forma autodefensiva da administração da justiça.
Sobre esta dicotomia, Ada Pellegrini Grinover, apesar de defender o modelo
misto, inconcebível para os garantistas processuais e de, diferentemente, assumir que o
conceito de processo acusatório nada tem a ver com a iniciativa instrutória do juiz,
assume, semelhantemente à transcrição acima, que:
A ambigüidade e indeterminação do binômio acusatório-inquisitório são
conhecidas, sendo polivalente seu sentido. Por isso nos preocupamos, em
diversos escritos, em salientar aquilo que distingue, sinteticamente, o modelo
acusatório do inquisitório. No primeiro, as funções de acusar, defender e
julgar são atribuídas a órgãos distintos, enquanto no segundo as funções estão
reunidas e o inquisidor deve proceder espontaneamente. É só no processo
acusatório que o juízo penal é o actum trium personarum, de que falava
Búlgaro, enquanto no processo inquisitório a investigação unilateral a tudo se
antepõe, tanto que dele disse Alcalá-Zamora não se tratar de processo
genuino, mas sim de forma autodefensiva da administração da justiça. Onde
105
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit., p. 453.
70
aparece o sistema inquisitório poderá haver investigação policial, ainda que
dirigida por alguém chamado juiz, mas nunca verdadeiro processo.106
Ferrajoli, aliás, também relata que a dicotomia acusatório/inquisitório pode
designar uma dúplice alternativa, quais sejam, (i) a que se faz entre dois modelos
opostos de organização judiciária e por conseguinte, entre duas figuras de juiz, (ii) e
aquele entre dois métodos igualmente contrapostos de investigação processual, e,
portanto, entre dois tipos de juízo.
Mas para Ada Pellegrini Grinover entende que o que se relaciona com os
poderes instrutórios do juiz no processo é o denominado adversarial system, próprio do
sistema anglo-saxão, em contraposição ao inquisitorial system, da Europa continental e
dos países por ela influenciados. E nesse sentido, denomina-se adversarial system o
modelo que se caracteriza pela predominância das partes na determinação da marcha do
processo e na produção das provas107.
Mais adiante, Ferrajoli entende que “o sistema acusatório favorece modelos
de juiz popular e procedimentos que valorizam o contraditório como método de busca
da verdade” enquanto “o sistema inquisitório tende a privilegiar estruturas judiciárias
burocratizadas e procedimentos fundados nos poderes instrutórios do juiz,
compensados talvez pelos vínculos das provas legais e pela pluralidade dos graus de
juízo (instâncias)”108
.
O leitor atento se interrogaria de que verdade está Ferrajoli relacionando
com o processo acusatório, e mais ao final de sua obra magna, o autor explica:
Obviamente, nem o processo inquisitório ignora o problema da tutela do
inocente, nem tampouco o acusatório descuida do escopo da repressão dos
culpados. Os dois métodos se distinguem, antes, com base em duas
concessões diversas: uma, do Poder Judiciário; e outra, da verdade. Enquanto
o método inquisitório exprime uma confiança tendencialmente ilimitada na
bondade do poder e na sua capacidade de alcançar o verdadeiro, o método
acusatório se caracteriza por uma confiança do mesmo modo ilimitada no
poder como autônoma fonte de verdade.109
Mas no que está Ferrajoli se referindo à verdade fruto do poder?
(...) o primeiro (inquisitório) confia não só a verdade, mas, também, a tutela
do inocente às presumidas virtudes do poder julgador; enquanto o segundo
(acusatório) concebe a verdade como o resultado de uma controvérsia entre
partes contrapostas por serem portadoras respectivamente do interesse na
punição dos culpados e do interesse na tutela do acusado presumido inocente
até prova em contrário. É nesse sentido que as diferenças entre modelo
106
GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista
Forense, Rio de Janeiro, v. 347, 1999, jul./ago./set., p. 03-10. 107
Ibidem, p. 03-10. 108
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit., p. 453. 109
Ibidem, p. 483.
71
teórico inquisitório e modelo teórico acusatório (...) podem ser vistas como
expressões de duas opostas epistemologias do juízo: dictum de um só sujeito,
ou contenda entre vários sujeitos; relação vertical inquisidor-inquirido, ou
relação triangular entre duas partes e um terceiro supra partes; operação
unilateral do juiz, ou actus trium personarum, iudicis,actoris et rei: o juiz
como terceiro sujeito separado da acusação como exige nosso axioma A8, o
ator como parte da acusação sobre a qual recai o ônus da verificação segundo
o nosso axioma A9, o réu como parte da defesa que tem direito à contestação
segundo o nosso axioma A10. Em todos esses casos o processo tem por fim a
"descoberta da verdade,síntese e compêndio dos dois supremos interesses
processuais" supra-ndicados. Mas são diversas as maneiras de entender a
verdade e os métodos empregados para atingila. Precisamente, enquanto o
método inquisitório se baseia em uma epistemologia substancial e
decisionista, o método acusatório pode ser configurado como a transposição
jurídica da epistemologia da falsificação delineada no terceiro capítulo. E as
três garantias A8-A10 que o compõem, eqüivalendo às condições
epistemológicas de credibilidade identificadas nos pontos 7 e 8 do parágrafo
10, podem ser consideradas ao mesmo tempo como garantias de uma verdade
controlada pelas partes em causa e da liberdade do inocente contra o erro e o
arbítrio.110
E pelo ensinamento de Ferrajoli acerca da verdade controlada pela
participação das partes, vê-se o inquisitivismo nas palavras de Ada Pellegrini Grinover
quando afirma que “o juiz deve tentar descobrir a verdade e, por isso, a atuação dos
litigantes não pode servir de empecilho à iniciativa instrutória oficial”111, pois está a
reconhecer a verdade e a tutela do inocente às virtudes do bom julgador.
Para os principais garantistas, como Juan Montero Aroca, E. Cipriani e Adolfo
Alvarado Velloso, o papel ativo do juiz é prontamente autoritário e tal estado fica
refletido no processo civil.
É que, como se pode aduzir das lições já expostas, o garantismo entende o
processo como instrumento do indivíduo contra o poder do Estado. O garantismo
referido até aqui situa-se na filosofia política liberal. Esse é o caso, por exemplo, de
Adolfo Alvarado Velloso, que assim expressamente se coloca112
.
Também não se está, por outro lado, a concordar com a doutrina que conclui
pela necessidade de se reler o princípio dispositivo diante das cargas que a legislação
atribui ao juiz grande soma de poderes na busca da verdade e na atuação das regras
processuais113
, pois se se entender ser ele o oposto do princípio inquisitivo, o seu
abrandamento, parece, não seria a assunção do modelo misto?
110
Ibidem, p.484. 111
GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório, op.cit., p.
03-10. 112
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I. op. cit., p. 77. 113
BATISTA LOPES, João. Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional, op. cit., p.
24 – 67.
72
Contudo, reconheça-se que a mudança de ideologia decorrente das
degenerações do processo liberal fez com que a passividade do juiz fosse vista
pejorativamente e até inflasse o ativismo. Contudo, “é imprescindível evitar confusões
conceituais e ideológicas: é possível que um sistema não se inspire na ideologia liberal
do século XIX, sem que por isso deixe de ser democrático e, sobretudo, sem que resulte
autoritário”114
.
E além disso, um estudo publicado por Mirjan Damaska faz-se de extrema
relevância para o presente tema. Aponta, entre outras observações, que muito além de
qualquer texto, está a mentalidade de quem o aplica, e que ademais de qualquer
impedimento ao juiz e permissão aos advogados, está a efetiva participação de cada
categoria, produto de muitas peculiaridades do sistema e que extrapolam qualquer
determinação legal. Por exemplo, o Código de Processo Civil francês de 1806 (pioneiro
no processo civil da Europa continental e seguido por todo o continente europeu no
período liberal do século XIX) concebia um processo civil em que os litigantes estavam
autorizados a controlar o processo desde o começo até o fim, limitando os fatos e
podendo, inclusive, dele desistirem. Restava pouco espaço para investigações factuais
por parte do juiz de maneira que estavam limitados a considerar as evidências trazidas
pelas partes e não mais podiam determinar a oitiva de testemunhas de ofício. Contudo,
havia uma exceção legal. Pela importante herança da tradição romana-canônica que
entendia a investigação dos fatos como parte essencial da função judicial, estavam os
juízes encarregados de interrogar a testemunha e permitidos a “ampliar o conjunto
probatório”. Mesmo assim, a tradição da justiça civil na Europa continental não se
constitui em uma investigação judicial dos fatos semelhante ao processo criminal da
Europa continental contemporânea, pois, em realidade, a investigação judicial na justiça
cível não era tão ativa, o que a afastava da tradição inquisitiva e dos juízes criminais da
Europa continental.
Para Adolfo Alvarado Velloso115
, importa ao juiz a manutenção da paz
social fixando fatos para adequá-los a uma norma jurídica, tutelando, assim, o
cumprimento do mandato da lei. Tanto é que para o autor o objetivo do processo é
“alcançar uma declaração do juiz diante de quem se apresenta o litígio ainda que, de fato,
114
TARUFFO, Michele. A prova, op. cit., p. 198. 115
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 24.
73
muitas vezes não se chegue a isso, pois os interessados – em alguns casos – preferem soluções
autocompositivas (ver o capítulo anterior) que evitam a heterocomposição”116
.
Perceba que a escolha ideológica deste autor é que a função do processo
civil é exclusivamente aquela de resolver controvérsias, pondo fim aos conflitos entre os
indivíduos privados, o que justifica a defesa do sistema acusatório e as afirmações do
Autor nos Congressos sobre a irrelevância da verdade no processo. Nesse sentido,
entende que seja deixada às partes a tarefa de gerir o embate processual e também a
produção das provas, sendo o juiz um árbitro passivo.
A doutrina concebe, por outro lado, uma opção ideológica distinta e
centrada na qualidade da decisão ao considerar que esta deve fundar-se na aplicação
correta e racionalmente justificada do direito, ou ainda, de concepções que levam em
consideração a obtenção de decisões justas e da orientação da administração da justiça
por valores públicos, concluir-se ia pela necessidade da verdade já que, com estes
parâmetros, nenhuma decisão judicial poderia ser considerada legal e racionalmente
correta se apoiada em uma determinação errônea e inverídica dos fatos a que se
refere117
.
Não é que o autor não se preocupe com a qualidade da decisão final, ocorre
que ela não é sua prioridade no processo, pois não entende cabível a defesa da meta
sobre o método.
Ocorre que o ideal seria conjugar o processo com o instrumento para a
resolução das controvérsias sem ignorar a qualidade das decisões que as solucionam.
Reconheça-se as grandes lições do autor argentino na medida em que deve-se melhor
explorar o trabalho das partes devendo ser efetivo e hábil o trabalho dos seus
procuradores, até mesmo pelas preocupações com a imparcialidade do juiz.
É que além da compreensão do juiz de sua função no processo, é de
importância fundamental a performance dos advogados a respeito de seus trabalhos, e
esse é o ponto a que devemos nos ater: “no sistema da Civil Law, eles raramente são
participantes vigorosos na produção das provas, ou zelosos na busca por provas. O
quase monopólio judicial reduz o estímulo a uma postura ativa”118
. Curiosamente, em
contrapartida “no sistema da Common Law funciona uma dinâmica similar, embora em
116
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso. Colección Temas procesales conflictivos. Lima:
Egacal, p. 39. 117
TARUFFO, Michele. A prova, op.cit, p. 203. 118
Damaška, Mirjan. The Common Law / Civil Law Divide: Residual Truth of a Misleading Distinction,
Supreme Court Law Review, Volume 49, 2010, p. 13.
74
direção diferente: já que juízes não se engajam na investigação, os defensores das
partes o fazem”119
.
Aliás, habitualmente, a tradição Common Law é apresentada como sistema
em que o curso do processo é controlado pelos litigantes ao apresentarem o caso para
um juiz passivo, enquanto o processo de Civil Law é controlado por um juiz ativo que
conduz uma investigação dos fatos envolvidos na disputa. Contudo, Mirjan Damaska120
denuncia a particularidade dos impactos de um texto normativo em sistemas em que o
juiz se sente responsável pela exatidão dos fatos a serem julgados. É que a existência e
validade do texto normativo não condicionam sua efetividade de maneira que podem os
juízes invocá-los ou deles não se utilizar.
Observa o autor, a justiça civil da Europa continental permitia ao juiz
ampliar o conjunto probatório, mas pragmaticamente não trouxe grandes efeitos
inquisitoriais. Damaska121
relata algumas razões que contribuíam para a fraca
investigação judicial na justiça civil, quais sejam, (i) a natureza não-difusa dos
interesses prevalecentes nas ações ordinárias, (ii) os direitos das testemunhas em
proteção à autonomia individual e vida privada, (iii) o direito de recusa de depoimento
da parte, (iv) a restrição à possibilidade de entrega de documentos que está sob a posse
da parte e (v) à proibição ao juiz de contradizer as declarações e confissões dos
litigantes ainda que não estivesse claro a ele que os fatos envolvendo as declarações
realmente existiram.
Só que a ausência de um comportamento instrutório ativo do juiz não foi
compensada por uma conduta probatória ativa pelas partes ou seus advogados! Os
advogados se baseavam basicamente nas informações dadas por seus clientes, não
possuíam grande contato com as testemunhas e tampouco conduziam numerosas
investigações fáticas. Mas reconheça-se, a defesa das posições contrárias a seus clientes
era feita do início ao fim de maneira zelosa e adversarial. A atenção do autor está
voltada à observação de que o predomínio da atividade das partes no Common Law não
estava condicionada à restrições na atividade judicial, especialmente porque o sistema
de Common Law reconhecia uma definição vaga a respeito dos “poderes inerentes” dos
juízes neste sistema:
(...) vagamente definido “poderes inerentes” dos juízes do Common Law,
uma visão continental poderia facilmente tender a acreditar que o predomínio
119
Ibidem, p. 13. 120
Ibidem, p. 3. 121
Ibidem, p. 4.
75
das partes no processo inglês-americano era decorrente da auto-limitação
judicial na esfera do meu e teu, e por essa razão era menos estável do que em
sua pátria.122
O problema é que os juízes da Civil Law sentem responsabilidade em achar
a verdade e por isso relutam em aceitar as limitações das provas conforme colocadas
pelas partes.
Juízes da Common Law não vêem a exatidão da investigação como central de
suas tarefas, e possuem pouca dificuldade em decidir casos baseados em
provas apresentadas a eles pelas partes. Se esta atitude é um legado de longos
séculos quando a investigação era para o júri, ou se é devida a noções mais
recentes de que os juízes não devem jogar o jogo, o fato permanece que
mesmo nas maiores das reformas dos países de tradição da Common Law,
juízes não se dedicam à investigação, mas meramente supervisionam o
desenvolvimento das provas pelos litigantes. Juízes da Civil Law, por outro
lado, são herdeiros de uma longa tradição na qual precisar a investigação está
no coração de suas vocações123
.
Em que pese o autor relatar que o contraste entre as duas tradições vem
perdendo a utilidade na medida em que países da tradicional família Common Law
foram aproximando-se da tradição Civil Law e vice-versa, do antigo quadro
comparativo continuam as diferentes abordagens sobre a colheita do material para
decisão. Nos países de tradição Common Law, a tarefa é entregue aos representantes
das partes enquanto o juiz somente supervisiona suas atividades e intervém diante de
uma disputa entre eles. Nos países de tradição Civil Law, a tarefa também é ainda
realizada pelos juízes ou por um delegado seu. Enquanto a instrução probatória no
Common Law implica na troca de informações entre as partes e independe da
apresentação de provas, pois os litigantes livremente decidem quais informações
trazidas pela parte contrária serão objeto de produção de prova, no Civil Law a
instrução recebe um sentido formal na medida em que precisa estar nos autos para ser
prova e poderá ser utilizada inclusive como prova emprestada em outros processos. Essa
distinção se torna mais compreensível porque enquanto na Civil Law, a partir da decisão
do juízo a quo as correções de sua decisão deverão ser tradicionalmente realizadas pela
instância superior, respeitando a hierarquia, na Common Law os juízes possuem
significante poder para reconsiderar suas decisões e decidir o prosseguimento de um
recurso. Nota-se que os autos, no Civil Law, são de grande importância, mas não
122
Ibidem, p. 5. Tradução livre: “Apprised of vaguely defined “inherent powers” of common law judges,
a continental visitor could easily be led to believe that the mastery of Anglo-American parties over the
lawsuit was dependent on judicial self-restraint in the sphere of “mine and thine”, and for this reason was
less stable than in his homeland”. 123
Ibidem, p. 13.
76
encontram correspondência no Common Law, pois neste as partes possuem “seus
próprios”. Ou seja, enquanto o Common Law confia às partes elemento de extrema
importância no Civil Law, este confia ao Estado seu elemento primordial no processo
civil, o que per si revela as preferências de cada sistema. Qualquer operador do Direito
no Brasil sabe bem o quão importante são os autos para qualquer processo.
Naquele, o desenvolvimento das provas é notoriamente dividido entre as
duas partes e seus representantes legais e, consequentemente, o ônus de seguir adiante
em direção ao convencimento do julgador pode ser claramente dividido entre os
litigantes. Por sua vez, no sistema de Civil Law, as provas permanecem sob a
responsabilidade do juiz, como se percebe, por exemplo, com a ordem de perguntas em
audiência no sistema brasileiro em que aos advogados cabe somente fazer perguntas
adicionais, até porque as testemunhas não são relacionadas com a parte que as arrola.
Evidentemente, tal responsabilidade fará com que o Estado-juiz sinta-se responsável
pelo conjunto probatório.
Isto tudo demonstra que a distinta forma com a qual o Estado-juiz dos dois
sistemas descritos enxerga seu papel é provavelmente a maior diferença entre eles,
sendo também a fonte de outras inúmeras consequências:
Juízes da Common Law não vêem a exatidão da investigação como central de
suas tarefas, e possuem pouca dificuldade em decidir casos baseados em
provas apresentadas a eles pelas partes. Se esta atitude é um legado de longos
séculos quando a investigação era para o júri, ou se é devida a noções mais
recentes de que os juízes não devem jogar o jogo, o fato permanece que
mesmo nas maiores das reformas dos países de tradição da Common Law,
juízes não se dedicam à investigação, mas meramente supervisionam o
desenvolvimento das provas pelos litigantes. Juízes da Civil Law, por outro
lado, são herdeiros de uma longa tradição na qual precisar a investigação está
no coração de suas vocações124
.
Ou seja, os juízes da Civil Law sentem responsabilidade em achar a verdade
e por isso relutam em aceitar as limitações das provas conforme colocadas pelas partes.
A mudança de ideologia decorrente das degenerações do processo liberal fez com que a
passividade do juiz fosse vista pejorativamente de maneira que o sistema da Common
Law consegue melhor aceitar a postura judicial ativista na investigação dos fatos do que
no sistema da Civil Law.
O problema é que, como apontado, além da compreensão do juiz de sua
função no processo está a performance dos advogados a respeito de seus trabalhos: “no
sistema da Civil Law, eles raramente são participantes vigorosos na produção das
124
Ibidem, p. 13.
77
provas, ou zelosos na busca por provas. O quase monopólio judicial reduz o estímulo a
uma postura ativa”125
, em contrapartida “no sistema da Common Law funciona uma
dinâmica similar, embora em direção diferente: já que juízes não se engajam na
investigação, os defensores das partes o fazem”126
.
Por fim, ambos os sistemas preocupam-se hoje com a eficiência, de maneira
que a tendência é desenfatizar preocupações com formalidades e concentrar em medidas
que contribuam para o funcionamento eficiente da justiça civil.
As conclusões apresentadas por Mirjan Damaska demonstraram que a
atividade judicial precisa preocupar-se com o reflexo de seus atos na atividade das
partes e de seus advogados, especialmente para se alcançar os resultados buscados por
um Estado Democrático de Direito.
E veja-se que um grande fator sobre as funções dos sujeitos processuais e
para o protagonismo judicial é a maneira como o Estado-juiz enxerga seu papel na
condução do processo.
Quando Adolfo Alvarado Velloso considera a verdade como irrelevante ao
processo, exemplifica sua afirmação por meio de um caso hipotético em que o juiz de
primeira instância decide que o objeto da lide é uma água, dois da segunda instância
decidem o mesmo e o terceiro decide ser refrigerante, dois da última instância decidem
também ser refrigerante e os outros três decidem ser suco. Ao final, então, três
magistrados terão decidido que o líquido é água, três que é refrigerante, e três que é
suco. E então, numa oratória invejável, questiona: “Para o que importa a verdade no
processo?”.
O autor está, em realidade, causando impacto para que se repense a questão da
verdade no processo e se perceba que a verdade do juiz não é a melhor resposta a um
processo democrático. Está, em outras palavras, questionando o protagonismo judicial.
Está afirmando que não interessa ao juiz, tampouco deve preocupá-lo a busca incessante
e a todo custo pela verdade real, a verdade objetiva e absoluta. Pois quando imprime as
respostas dos juízes dessa maneira, está em realidade a apresentar os julgadores
solipsistas, que decidem conforme suas consciências, tanto que cada um chega a
conclusões completamente distintas.
125
Ibidem, p. 13. 126
Ibidem, p. 13.
78
Alvarado considera inútil e contraproducente a busca da verdade no
processo, pois para ele, como visto, a finalidade fundamental do processo é a solução
das controvérsias, do contrário estar-se ia privilegiando a meta sobre o método.
Como já expresso, Alvarado crê que o processo como método de diálogo
com respeito absoluto à série lógica de “afirmação – negação – confirmação – avaliação
ou conclusão” controlada pelas partes trará a melhor resposta. Mas será que, mesmo
seguindo essa fórmula, não cairiam os juízes nos mesmos erros apresentados pelo autor
em seu caso hipotético. Essa fórmula talvez garanta que os julgadores observem as
garantias procedimentais das partes estatuídas no sistema, a maior preocupação do
autor, mas claramente não garantirá que todos os juízes cheguem a uma resposta correta
constitucionalmente. Resta, concluir, assim que o autor crê na tese das múltiplas
respostas corretas para um mesmo caso.
O processualista argentino admite, generalizando sua conclusão ao ramo
penal e civil, que, inobservada essa série lógica, já não se estaria diante de uma ação
processual.
Ocorre que as respostas corretas não estão nem no sujeito nem na fórmula:
Não foi (até hoje) possível a construção de uma racionalidade discursiva
que assegurasse condições para uma universalização do processo de
atribuição de sentido, exatamente porque os sentidos não estão nas coisas e
nem na consciência: eles dão-se intersubjetivamente. Sendo assim, estamos
“condenados a interpretar” (Streck), não há outro jeito. A saída é permitir
que a hermenêutica seja filosofia, e lidar com o “método” a partir desta pré-
compreensão”127
.
Aliás, é de se notar também que Alvarado Velloso não considera a sentença
um ato processual por considerá-la o próprio objetivo do processo, enquanto Gustavo
Adrián Calvinho segue na mesma linha, também não a considerando sequer como um
ato procedimental128
.
Essas observações ajudam a compreender o porquê não se vê nessa doutrina
grandes considerações ao conteúdo decisório, ou ainda, preocupações com uma teoria
da decisão.
Essa conclusão revela que um dos grandes problemas quando se faz um
estudo comparado ou se critica uma doutrina estrangeira é a possibilidade de
desconsideração de sua Teoria Geral do Processo. E como se não bastasse, muitas vezes
127
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op.cit., p. 152. 128
CALVINHO, Gustavo Adrián. Teoria Del acto procedimental. Colombia: Revista de Derecho
Procesal Colombiano, 2014.
79
se analisa e se constrói uma argumentação baseada exclusivamente no Direito Positivo
sem as devidas considerações à efetividade deste.
Pretende-se afastar ambos os equívocos!
Ademais, Adolfo Alvarado Velloso aponta como únicos princípios
processuais preconizados pelo modelo garantista o princípio da igualdade das partes
litigantes, da imparcialidade do julgador, da transitoriedade do processo, da eficácia da
série procedimental e da moralidade no debate.
Antes de abordar cada princípio, faz-se necessário esclarecer o que este
autor entende por princípio, e como os diferencia de regra.
Afirma o autor que se trata simplesmente de um ponto de partida que deve
ser visto em função do que se pretende alcançar, são diretrizes que sempre ostentam um
caráter unitário, sem os quais não se pode falar de processo. São eles (no âmbito do
processo): o princípio da igualdade das partes litigantes, da imparcialidade do julgador,
da transitoriedade do processo, da eficácia da série procedimental e da moralidade.
Já as regras são diretrizes que se apresentam de forma binárias ou
antinômicas, e que assim, não podem coexistir, pois se autoexcluem129
.
Assevera, ainda, que as regras possuem importância inferior aos princípios,
pois sem estes não haveria processo.
Note que sua distinção se opera a priori, em um plano abstrato.
Com efeito, a preocupação com os princípios é naturalmente pós-positivista.
Se o Direito não é mais concebido como um sistema de regras, mas de regras e
princípios, interessa aos pós-positivistas saber o que fazer diante de casos não
contemplados pelas regras até mesmo como tentativa de restrição da discricionariedade
(nos termos aqui preconizados) judicial. A tematização de um padrão de julgamento
para tomar decisões diante de tal margem de liberdade é realmente importante.
Diante do tema, faz-se necessário abordar a Teoria dos Direitos
Fundamentais de Robert Alexy que tematiza a distinção entre regras e princípios,
semelhantemente à distinção apresentada por Adolfo Alvarado Velloso, cuja principal
preocupação é a de fornecer respostas racionalmente fundamentadas às questões
vinculadas aos direitos fundamentais. Nesse contexto, o autor alemão desenvolve
critérios interpretativos para a solução de casos complexos.
129
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I, op. cit. p. 347.
80
Na teoria alexyana, a distinção estrutural entre as normas de direito
fundamental, bipartida em regras e princípios, e que são normas porque ambas dizem
aquilo que deve ser, reside no fato de que os princípios são mandados de otimização,
enquanto as regras têm caráter de mandados de definição.
Como mandados de otimização, os princípios determinam a realização de
algo na maior medida possível (satisfação principiológica em diferentes graus), desde
que respeitadas as possibilidades e os limites fáticos e jurídicos, limites jurídicos estes
impostos pela existência tanto de regras quanto de princípios opostos. E assim, o caráter
oposicional dos princípios implica na aplicação deles por meio da ponderação. Ou seja,
as colisões de princípios se dão no âmbito do peso, não no âmbito da validade.
Por sua vez, as regras ou são ou não são aplicadas (impossibilidade de
satisfação em diferentes graus = tudo ou nada), e para tanto, implicam na subsunção.
Isto é, regras são normas que somente admitem cumprimento ou
descumprimento, ou seja, se a regra é válida há de ser atendida, nem mais, nem
menos130
. O conflito entre regras somente pode ser solucionada por uma cláusula de
exceção que excepciona a sua incidência em um caso específico, pois se isso não
acontecer uma delas terá que ser declarada inválida implicando na sua exclusão do
ordenamento jurídico, não muito distinto do all or nothing fashion do Dworkin131
.
Robert Alexy defende a relação de complementariedade entre direito e
moral em que a moral serve como parâmetro de correção do direito. Nesse sentido, o
discurso moral poderia corrigir o discurso jurídico. Segundo o autor, os discursos sobre
o direito lida com a correção de enunciados normativos, os quais comportam
enunciados axiológicos (que se referem a valores) e deônticos (quando está em jogo
uma proibição, uma permissão ou um mandamento). Nesse sentido, o discurso jurídico
é um caso especial do discurso prático. Este é um conjunto de enunciados produzidos
sobre o dever-ser (que liga-se a formas deônticas e a valores, veja-se), abrangente de
todo o universo da cultural e do agir humano. Enquanto o discurso jurídico é um caso
especial dele porque sofre limitações internas do sistema, de fatores derivados da
130
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 86-87. 131
O autor enumera ainda quatro vantagens do conceito que adota: “(1) se mantienen ló más cerca posible
de la Ley Fundamental y, por cierto, (2) sin que a través de ellas se impidan consideraciones de tipo
general, (3) a través de ellas no se prejuzga acerca de ninguna tesis material y estructural y (4) abarcan,
em lo esencial, las disposiciones a las cuales em la discusión sobre derechos fundamentales se les atribuye
el carácter de derecho fundamental”. Ibidem, p. 50-66.
81
legalidade, da conformidade com o ordenamento e da eficácia social com o direito
positivo.
Ou seja, para Alexy, a conexão com a moral faz-se necessária para a
argumentação jurídica, pois esta alcança até onde não são possíveis outros argumentos
jurídicos, quando então, unem-se estes aos argumentos do discurso prático em geral.
Aqui, o discurso jurídico é penetrado pelos valores, pelo discurso moral.
Assim, o autor alemão produz uma teoria da fundamentação racional do
ordenamento jurídico com marco na razão prática entendida numa dimensão axiológica
e o discurso normativo passa a comportar um sentido deôntico e axiológico. Voltando-
se aqui ao ponto inicial: a norma deontológica é composta por regras e princípios e a
norma axiológica comporta as regras de valoração e os critérios de valoração
(propriamente os valores). Afirma, então, que os princípios são normas deônticas
aplicados pela ponderação por meio de um juízo valorativo que será onde o discurso
prático ingressa no discurso jurídico.
Então, note que na Teoria Alexya a distinção também é feita a priori e em abstrato,
pois a norma é configurada antes da problematização de um caso concreto, seja ele real ou
fictício, como Adolfo Alvarado a faz. É uma teoria semântica132
. Ambas são, reconheça-se,
abordagens qualitativas, ou tese como chama Alexy. Isto é, superam a abordagem quantitativa e
que foi denominada por Alexy como tese fraca da separação, que baseava-se na generalidade
como critério adequado para tal distinção, que em realidade é uma conseqüência da natureza dos
princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial.
É oportuna aqui a crítica habermasiana à ponderação alexyana: aponta que
ela implica numa concepção axiologizante do Direito, porque a ponderação só seria
possível ao se poder preferir um princípio a outro, o que somente seria permitido se os
princípios fossem considerados como valores. Para Habermas, no que concorda com
Ronald Dworkin, as normas, como princípios ou como regras, são enunciados
deontológicos, isto é, visam ao que é devido. Já os valores são enunciados teleológicos,
de modo que objetivam o que é bom, melhor ou preferível, sendo condicionados a uma
determinada cultura. E então, a norma alexyana perde a característica de código binário
para se transformar em um código gradual, ao passo que a adequabilidade sede espaço
para uma aplicação ponderada (balanceada) dos princípios tidos como comandos
132
Aliás, a justificativa alexyana para a utilização de um conceito semântico é o propósito de
problematizar as normas no âmbito de sua validade, ou seja, de reunir critérios para saber se uma norma é
ou não válida.
82
otimizáveis133
. Já Habermas acredita, como Dworkin, na natureza deontológica da
validade jurídica, devendo as normas jurídicas deixarem-se reger na sua interpretação e
aplicação pro uma lógica deôntica binária (princípio da adequabilidade das normas à
unicidade e irrepetibilidade da situação concreta de aplicação), não por uma axiologia
gradual e multipolar (princípio da ponderação ou do equilíbrio de valores)134
.
Nesse tocante, quando Dworkin faz uso do termo ponderar utiliza-o em
sentido divergente daquele o atribuído por Alexy. Ele utiliza-o com o significado de
refletir, de modo que a solução de um caso demanda uma construção teórica acerca de
um princípio adequado ao caso concreto.
Quando Adolfo Alvarado Velloso afirma que o princípio é um ponto de
partida que depende do objetivo que se quer que se alcance, está, como Alexy,
assumindo-os a partir de um código gradual, até porque somente afirma a regra, note-se,
como binária. E além disso, concebe-os como teleológicos, como um objetivo a ser
alcançado conforme o que seja melhor, um comando otimizável. A margem que não se
deseja no sistema é exatamente essa, que se coloque como princípio um padrão que na
verdade é de política, ou seja, um objetivo a ser alcançado, que geralmente, consiste na
melhoria de algum aspecto econômico, político ou social da comunidade, buscando
promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada
desejável e que acaba em uma decisão que nega o direito a quem tem
constitucionalmente, seja por um argumento do mercado econômico, por exemplo, ou
um argumento que prioriza a maioria, ignorando o direito efetivo da minoria.
E uma das objeções de Habermas a Alexy se liga exatamente à crítica da
suposta aplicação gradual do direito em oposição ao código binário, que seria causada
pela máxima da proporcionalidade, causadora da perda de normatividade que o
balanceamento acarretaria aos direitos fundamentais, como enuncia o próprio Alexy: “a
abordagem do balanceamento retiraria os direitos constitucionais de seu poder
normativo. Por meio do balanceamento, pretende ele, os direitos são degradados ao
nível de fins, dos objetivos, das políticas e dos valores”135
.
Nesse contexto, veja-se que Ronald Dworkin, por sua vez, formula conceito
de norma que não comporta enquadramento como gênero que engloba regras e
133
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002, p. 88-90. 134
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit., p. 93. 135
ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, balanceamento e racionalidade. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2.
Oxford: Blackwell Publishing Ltd., 2003, p.134.
83
princípios, de maneira que, aliás, há apontamentos errôneos de autores que, por umna
doutrina indicando para uma justaposição entre a teoria dworkiniana e a alexyana136
. É
que os anglo-saxões não distinguem norma de regra, de maneira que Dworkin não
define princípio como norma por este motivo. Assim, para ele, a deontologia dos
princípios e das regras está na interpretação, já que o próprio direito é interpretação, a
norma própria também o é e, portanto, não significam em abstrato, sendo fundamental a
presença do caso concreto, seja real ou fictício, como já adiantado.
Ou seja, primeiramente, o critério de distinção entre regras e princípios
apresentados por Alexy acima não encontra equivalência na posição assumida por
Dworkin. Este não distingue regras e princípios a partir de critérios morfológicos, mas
sim lógico-argumentativos. Assevera que a distinção não pode se operar a priori, em um
plano abstrato, mas somente em face de um caso concreto de modo a adquirir densidade
em razão da argumentação produzida pelos sujeitos no processo. Dworkin, então,
lembra que certas disposições podem funcionar do ponto de vista lógico como uma
regra e do ponto de vista substantivo como um princípio. Para ele, palavras como
“razoável”, “negligente”, “injusto” e “significativo” desempenham freqüentemente essa
função. Ao ter um desses termos, a regra faz com que sua aplicação dependa, até certo
ponto, de princípios e políticas que extrapolam a própria regra, é que a utilização desses
termos faz com que essa regra se assemelhe mais a um princípio. Mas não chega a
transformar a regra em princípio, pois até mesmo o sentido restritivo desses termos
restringe o tipo de princípios e políticas dos quais pode depender a regra137
. Ademais,
em momento algum a teoria de Dworkin deixa de atribuir a natureza deontológica aos
princípios, típicas das normas em geral.
Tratando então de cada um dos princípios conforme as considerações do
autor argentino, ele trata da igualdade como paridade de oportunidades e de tratamento
judicial, e nesse sentido, as normas que regulam a atividade de uma das partes
antagônicas não podem constituir uma vantagem ou privilégio sobre a outra, nem o juiz
pode deixar de dar um tratamento absolutamente similar a ambos os contendedores138
.
A consequência da aplicação desse princípio é, para os garantistas, a
bilateralidade ou contraditório, de maneira que cada parte tem o irrestrito direito de ser
136
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op. cit., p. 334. 137
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p.39/45. 138
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op.cit., p. 240.
84
ouvida a respeito do afirmado e confirmado pela outra. E é por esse sentido que
Alvarado afirma que o debate processual é luta, não um passeio alegre e despreocupado,
de maneira que os litigantes não estão interessados na busca da verdade senão em
ganhar o pretendido ou o resistido.
É também pela igualdade das partes como igualdade jurídica e processual,
não como igualdade real ou natural, que ditos garantistas são contra qualquer conduta
judicial tendente a evitar a desigualdade das partes como a do trabalhador frente ao
patrão e a do menor em situação de abandono.
Nas palavras Gustavo A. Calvinho, a igualdade jurídica fomentada pela
democracia constitui um princípio basilar do processo que possibilita um debate sem
preferências nem privilégios que beneficiem a uma das partes em detrimento de seu
oponente, pois “no processo o rico e o pobre, o grande e o pequeno, a maioria e a
minoria, o bom e o mal, o forte e o débil têm idênticas oportunidades de atuar,
defender-se e ser ouvidos. Igualdade que se conjuga com a imparcialidade de um
julgador independente”139
. Para ele, o objeto do processo é o debate, imprescindível
para a democracia e também para o processo acusatório e dispositivo140
. Não se estaria
aqui jamais a discordar da imprescindibilidade do debate a um processo que se diga
democrático.
Condenam a retirada do princípio da igualdade do contexto jurídico que leva
ao entendimento desse princípio confundindo-o com a igualdade real o que leva à
degeneração do processo como garantia, como ocorreu no direito processual social141
.
Condenam essa conduta judicial porque entendem que essa desigualdade real, que
reconhecem, deve ser atenuada, deverá ser cuidada por outros que não o juiz, como
defensores ad hoc e assistentes no litígio atuando conjuntamente com os representantes
dessas partes mais frágeis. Nunca pelo juiz! Aliás, como última saída, o juiz poderá
sempre ordenar a substituição do advogado ou um assistente técnico ao advogado que a
necessita, como possibilitam muitos sistemas.
Afinal, repisam que a função do juiz não é de igualar, mas sim a de julgar:
Tenha em conta que o conceito de processo que se propugna confere
igualdade de oportunidades aos litigantes, de tal maneira que não é tarefa do
juiz igualar as diferenças que ambos podem apresentar no plano da realidade
social. Precisamente, o grande mérito do processo é fazer iguais os desiguais.
Qualquer inobservância do princípio da igualde rompe o equilíbrio do
139
CALVINHO, Gustavo Adrián. El sistema procesal de la democracia. 2ª Ed. Buenos Aires: 2012,
Editorial San Marcos, p. 167. 140
Ibidem, p. 167. 141
Ibidem, p. 177.
85
método de debate e põe em xeque a imparcialidade que deve manter quem
resolver o litígio.142
Nesse sentido, sustentam que a tentativa judicial de atingir a igualdade real
gera o desequilíbrio do fiel da balança da Justiça repercutindo na ilegitimidade da
decisão proferida.
Sistemas que tendem a essa conduta judicial de inquisidores integram o sistema
inquisitivo no qual têm o dever de aplicar a lei mais benigna e de introduzir
oficiosamente o conhecimento de fatos quando o réu não as opôs.
E é por isso que o garantismo repugna frontalmente o solidarismo judicial.
Sustenta que as bandeiras do solidarismo (a Justiça, a Verdade, o compromisso do juiz
com seu tempo, com a sociedade, com o litigante mal defendido etc.) não podem ser
colocadas sobre a Constituição. (mas será que a Constituição do Estado Democrático de
Direito não está aí para ser solidária?) Sobre o solidarismo, ensina Glauco Gumerato
Ramos, um dos maiores defensores da bandeira garantista no Brasil:
Ser solidário é apoiar ou aderir-se a uma causa alheia, ideia da qual surge o
solidarismo, considerado como uma corrente destinada a ajudar
altruisticamente os demais. A noção se impôs há anos no direito penal e,
particularmente, no direito processual penal, com a presença de autores e
numerosos juízes movidos pelas melhores intenções que, solidarizando-se
com a vítima de um delito. Este movimento doutrinário e judicial também se
estendeu aos processualistas que operam o processo civil, onde ganhou
numerosos e apaixonados adeptos. Reconheço que a ideia e a bandeira que
carregam são realmente fascinantes: trata-se – nada menos – de ajudar ao
mais fraco, ao pobre, ao que se acha mal ou pior defendido etc. Mas quando
um juiz adota essa postura no processo, não percebe que, automaticamente,
deixa de lado de cumprir com o necessário dever de imparcialidade. E, dessa
forma, vulnera a igualdade processual143
.
Mas veja-se: A crítica ao juiz solidário advém porque “quem assim atua não
cumpre uma tarefa propriamente judicial, em razão de que com isso não se resolvem
conflitos intersubjetivos de interesses, que é a essência da tarefa de outorgar justiça
comutativa”. Estaria o juiz que assim atua praticando justiça distributiva sem ter os
elementos para poder fazê-lo: em primeiro lugar, a legitimidade da escolha pelos votos
do povo; logo, pressuposto adequado, conhecimento da realidade geral e do impacto
que causará na sociedade o dar a uns o que as circunstancias da vida negam a outros,
etc.
Como se verá, o autor utiliza-se dessa argumentação para combater o
ativismo. Mas de acordo com as considerações que se fará ao termo, deve-se aqui ter
142
Ibidem, p. 185. 143
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 33.
86
cuidado para que isto não signifique, em realidade, deixar de cumprir com a própria
Constituição, que, aliás, prevê positivamente a justiça, a liberdade e a dignidade,
questões inquestionavelmente morais.
O autor indubitavelmente quer afastar, por exemplo, as concepções “de
justiça” próprias do julgador, individuais suas, ao que se adere. É claro que a afirmação
do autor provoca um choque aos defensores da Justiça, que muitas vezes podem se
tornar até ilegalmente justos. Como os pragmatistas (realistas), que normalmente com
base na justiça, na eficiência ou em alguma outra virtude, acabam por estimular que os
juízes decidam conforme seus próprios pontos de vista. E é exatamente isso que Adolfo
Alvarado Velloso combate. Com isso se está de total acordo. Não se pode aceitar a tese
pragmatista de que o juiz deve tentar melhorar a lei sempre que possível ou que o bom
juiz prefere justiça à lei, inventando o direito em nome da justiça.
Mas o problema é que a afirmação de que não pode colocar a Justiça sobre a
Constituição, pode esquecer que a Justiça é ideal político da própria Constituição, ou
ainda que a inexistência de regulamentação infraconstitucional de um direito previsto
constitucionalmente não pode torná-lo ineficaz, problematização será abordada mais
adiante.
Ingressando no princípio da imparcialidade, este implica em três
características essenciais do julgador: a impartialidade (não há como ser autor e
acusador ao mesmo tempo), imparcialidade (o julgador deve carecer de interesse
subjetivo na solução do litígio) e independência (o julgador não pode atuar com
qualquer subordinação hierárquica a respeito das partes). O autor, veja-se, não fala de
juízo de equidade como condição de imparcialidade do juiz como faz Ferrajoli.
Afinal, este garantismo processual sustenta o simples contentamento da
efetiva tutela dos direitos pelo juiz comprometido com a resolução dos conflitos que a
ele cheguem e ressalvando que é a sua imparcialidade funcional que garantirá a
igualdade processual. Veja-se: a qualidade de imparcialidade do juiz reside em não ter
ele qualquer interesse no resultado do litígio, seja mediato ou imediato.
A preocupação do garantismo processual é com o discurso processual
baseado em argumentações metajurídicas que leva ao arbítrio e ao subjetivismo e
permite ao poder judicial a tomada de decisões solipsistas com base nos sentimentos
próprios do julgador, como também preocupava-se Ferrajoli, apesar de jamais negar os
espaços de discricionariedades intrínsecos à função judicial.
87
É afastada qualquer doutrina que defenda que o ato de julgamento deve
voltar-se à concreção da lei ou qualquer uma que amplie tal entendimento, pois para o
garantismo o processo se trata de manter a paz social evitando a justiça pelas próprias
mãos144
. O garantismo está aqui voltando-se contra o privilégio da meta sobre o método,
isto é, do desrespeito à lei por atender-se a um sentimento de justiça próprio do
julgador.
Em suma, dito garantismo processual:
defende uma maior valorização da categoria fundamental processo, e
conseqüentemente da cláusula constitucional do due process, de modo a
valorizar a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz, como os
pilares de legitimação da decisão jurisdicional a ser decretada145
.
Alvarado ressalta que a palavra imparcialidade significa várias coisas
diferentes da falta de interesse que habitualmente se menciona com o fim de definir o
trabalho diário de um juiz. Designa, por exemplo, ausência de prejuízos de todo tipo
(particularmente raciais ou religiosos); independência a qualquer opinião e,
consequentemente, ter ouvidos surdos ante a sugestão ou persuasão da parte interessada
que possa influir em seu ânimo; não identificação com alguma ideologia determinada;
completa alteridade frente à possibilidade de dádiva ou suborno; e a influência da
amizade, do ódio, de um sentimento caridoso, da vadiagem, dos desejos de brilho
pessoal, de figuração periodística, etc., não envolvimento pessoal nem emocional no
ponto crucial do assunto litigioso; evitar toda participação na investigação dos fatos ou
na formação dos elementos de convicção; decidir de acordo com seu próprio
conhecimento pessoal no assunto; não a desvinculação fundamentada dos precedentes
judiciais146
.
Desde já registre-se que esses prejuízos não tem qualquer relação com as
pré-compreensões gadamerianas que sustenta a hermenêutica filosófica no que tange a
noção de aplicatio na qual Gadamer deixa claro que nenhum processo lógico-
argumentativo pode acontecer sem a pré-compreensão, não havendo como separar o
fenômeno interpretativo em partes.
Afinal, se cada juiz obedecesse suas próprias paixões, ao fim e ao cabo tudo
dependeria daquilo que esse “senhor dos sentidos” decidisse, e cada processo teria a sua
144
Ibidem, p. 16. 145
RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo VS. Garantismo no processo civil: apersentação do debate. In
SOARES, Carlos H. RAMOS, Glauco G.; GRADOS, Guido Aguila; RÚA, Mónica Bustamente; DIAS,
Ronaldo Brêtas de Carvalho. (Coord.) Proceso Democrático y Garantismo Procesal. Belo Horizonte:
2015, Arraes Editores, p. 02. 146
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 243.
88
própria verdade que é a daquela que o julga. É isso o que Alvarado Velloso, aliás,
também quer afastar.
E exatamente por essas considerações a hermenêutica filosófica pode
agregar a este estudo. Afinal, como diz Lenio, a tarefa primordial da hermenêutica é
provocar os pré-juízos.147
Segundo a autoridade da tradição de Gadamer, a compreensão só é possível
pelas pré-compreensões que guiam e possibilitam uma interpretação, de modo que,
perceba-se, a interpretação jamais será reprodutiva, mas sempre produtiva, pois não
haverá intérprete sem sua própria conceitualidade prévia (preconceitos).
O intérprete não pode estar fora da tradição e a autoridade desta é que
permitirá verificar a legitimidade dos preconceitos. “Escutar a tradição e situar-se nela
é o caminho para a verdade que se deve encontrar nas ciências do espírito”148
como
ensina Gadamer. Até porque, com Dworkin, a tradição é incontrolável, “os intérpretes
pensam no âmbito de uma tradição interpretativa à qual não podem escapar
totalmente”149
.
Não há como assumir a “neutralidade” do intérprete, pois é de sua
concepção de justiça, entendida por Dworkin como “uma questão que remete à melhor
(ou mais correta) teoria do que é justo, moral ou politicamente”150
que provém sua
interpretação.
A decisão correta ou boa é aquela construída pelas partes que compartilham
suas razões e provas por meio do processo em contraditório e que deve ser exigida dos
juízes mesmo que não esteja garantido que chegarão a uma mesma resposta boa ou
correta, pois, do contrário, estar-se-ia a admitir qualquer concepção individual. E nisso
se concorda totalmente com o garantismo processual.
Em síntese, como afirmou-se ao abordar a tese da separação entre direito e
moral: para pré-compreender, o intérprete já está na moralidade, pois está na história, na
tradição, nos costumes e nas orientações sociais, políticas, filosóficas e jurídicas, de
maneira que a moral, assim, é condição de possibilidade da compreensão, havendo a
pertença e não a cisão. Mas note-se que a hermenêutica não significa a relexão sobre o
147
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da
Construção do Direito, p. 300. 148
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice. 2 ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2002, p. 53. 149
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2003, p. 36. 150
Ibidem, p. 103.
89
aprisionamento ao passado, mas a reflexão sobre este. Os pré-conceitos serão colocados
em teste, podendo confirmar-se ou não151
.
Aliás, Alvarado denuncia o caráter multívoco da palavra “prova” e sua
utilização com o exato significado científico de afirmação incontestável, e como tal, não
opinável152
. A título de convencimento do leitor, Alvarado utiliza a comparação da lei
da gravidade e da rotação do planeta ao redor sol com a experiência judicial que
demonstra satisfatoriamente que, ainda que as testemunhas ajam de boa-fé, darão
versões distintas e, muitas vezes, claramente antagônicas.
Está a distinguir a verdade judicial, da verdade científica, como aliás, fez
Ferrajoli, com fulcro na definição de verdade Tarskiana como correspondência.
Ocorre que, para Alvarado, o fato das testemunhas interrogadas
apresentarem versões diferentes significa que todas as versões podem ser reais, ainda
que pareçam antagônicas, porque são subjetivamente reais, já que determinada pessoa
viu um acidente a partir de um ângulo e outro viu o mesmo acidente por outro ângulo,
de maneira que lhe parece óbvio que as testemunhas viram de verdade coisas realmente
diferentes. É que está situando-se no paradigma subjetivista do conceito de verdade
como construção do sujeito, para, como conclusão, afastar qualquer busca da verdade
real no processo.
Já Ferrajoli explica que quando se pede que a testemunha diga a verdade, se
pede que não entre em contradição ao relatar como os fatos ocorreram, e assim, a
coerência e a aceitabilidade justificada são os critérios pelos quais o juiz avalia e decide
acerca da verdade ou da confiabilidade das premissas probatórias da indução do fato e
das premissas interpretativas de sua qualificação jurídica. Nesse sentido, se o relato de
uma testemunha sobre uma prova estiver em contradição com o relato de outra
testemunha, é porque uma delas não está condizente com a verdade e cabe ao conjunto
probatório revelar quanto é mais coerente e mais aceitavelmente justificável para que se
cheque à verdade mais aproximada com o ideal de correspondência.
Isso porque o único significado da palavra “verdadeiro”, na teoria de
Ferrajoli, é a correspondência argumentada e aproximada das proposições para com a
realidade objetiva, constituída no processo pelos fatos julgados e pelas normas
151
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit., p. 73. 152
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p.152.
90
aplicadas. Ferrajolia está situando-se no paradigma objetivista, de adequação ou
correspondencial.
E assim, se uma testemunha diz A e outra diz B, a aceitação de A pela
coerência e pela aceitabilidade justificada, faz com que a hipótese explicativa A seja
mais plausível do que a hipótese explicativa B, e, portanto, aceitar uma significaria
rechaçar a outra, até mesmo pelo caráter de probabilidade da verdade.
Ocorre que Alvarado153
ressalta que uma afirmação negada se confirma com
diversos meios que podem gerar convicção a um julgador, mas não em outro, o que
reflete a subjetividade do sujeito cognoscente, bem como o caráter indutivo do
raciocínio probatório. Recorda o juiz justiceiro que, com lealdade e honestidade faz tudo
a seu alcance para se chegar à verdade real dos fatos submetidos a seu julgamento e
depois de longa e incessante busca acreditar ter alcançado essa verdade, mostrando-a
com valor absoluto. Agora, pensando na impugnação da decisão em que os julgadores
do órgão reformador da decisão, também depois de árdua busca, acreditem haver
chegado por eles mesmos à outra Verdade revogando a sentença.
A partir da perspectiva do processualista argentino, a verdade é um valor
relativo alterável no tempo, no espaço e entre os diferentes homens que dela falam. Em
outras palavras, há tantas verdades ou justiças quanto pessoas que pretendem defini-las.
Estas considerações refletem a crise do fundamento (este apontado ou na
coisa objeto do conhecimento e que relaciona-se com a verdade como produto da
correspondência da coisa ao intelecto -paradigma da adequação, objetivista ou verdade
correspondencial- ou no sujeito cognoscente e que relaciona-se com a verdade como
construção subjetiva deste sujeito -paradigma subjetivista ou verdade subjetivista-, e
que torna impossível a noção de adequação entre a inteligência e a coisa baseada na
concepção unitária da verdade agora rompida) que a filosofia no século XX tentou
resolver com o giro linguístico, a ser oportunamente tratado nesse trabalho.
Fato é que a busca da certeza como ainda se pretende em algumas leituras
das ciências naturais não pode ser assimilada. No exemplo da prova testemunhal, o que
se apresenta são informações nem sempre confirmadas, por vezes contraditórias, nas
quais se baseia o juiz no que lhe pareça verossimilhante.
E assim, o que se pode dizer das distintas concepções entre Alvarado e
Ferrajoli é que há uma gigantesca diferença entre a busca da verdade e obtenção, pelo
153
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p.159.
91
que reflete na grande distinção entre as concepções: um aceita-a como inalcançável,
mas procura obtê-la, enquanto o outro ceticamente rejeita sua busca assumindo há tantas
verdades quanto pessoas que digam sobre elas, pois constatar que verdade conduz a uma
decisão justa carrega tantos subjetivismos quanto a semântica desses conceitos. Isto é,
Alvarado simplesmente concebe a inexistência de meios objetivos para se constatar se o
intérprete se distancia ou se afasta da verdade e esta impossibilidade (de se saber por
maneiras objetivas se a verdade foi alcançada) leva à concluir que a verdade não deve
ser buscada pelo processo, ao que não tem como não se aderir.
Aceitando tais conclusões, veja-se que o grande problema é afirmar que o
processo busca a verdade, ou que, preocupado com a justiça deve o juiz assumir um
papel investigativo na busca do que realmente acontece, quando o sistema jurídico
possui muitos mecanismos para enfraquecer essa obtenção do que para fortalecê-la,
como demonstrou Ferrajoli. No caso de uma presunção legal relativa, por exemplo, o
juiz julga considerando o fato presumido, uma probabilidade, não uma verdade.
É por isso que se concorda com William Santos Ferreira quando diz que a
verdade não é uma meta da sentença, mas dela uma expectativa154
.
Lembre-se que o conceito de “verdade” trabalhado pelos autores é aquele da
teoria da correspondência, segundo o qual uma proposição é verdadeira se sobre o que a
proposição afirma há correspondência com a realidade. É fundamental para que se
entenda a relação dos autores com o paradigma da filosofia da consciência no interior
do qual existe um-mundo-em-si a ser apreendido /conhecido pelo juiz, no caso, que
então utilizará da linguagem para sobre ele se comunicar.
Já o princípio da transitoriedade do processo consiste no equilíbrio da
duração do processo como meio de debate para alcançar a solução do conflito sem
causar um novo, pois deve alcançar o aquietamento das paixões inflamadas.
Ambos os autores dão respostas metodológicas para a questão da verdade.
Mas a hermenêutica filosófica Gadameriana, que foca no que acontece além do querer e
fazer (não no que se faz ou no que se deveria fazer) não procura estabelecer um método,
mas sim descobrir e conhecer o que está ignorado e encoberto pela disputa sobre os
métodos, que percebe a ciência e a torna possível155
, e por isso Lenio Streck alerta para
a melhor de “Verdade contra o Método”, pois o fenômeno hermenêutico não é um
154
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 281. 155
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 53.
92
problema de método e compreender e interpretar textos pertence ao todo da experiência
do homem no mundo.
Por sua vez, o princípio da eficácia da série procedimental preconiza os
passos da série lógica já abordada anteriormente e que seja eficaz: afirmação, negação,
confirmação e alegação. Na ausência de um deles sob o pretexto de acelerar o final do
processo haverá violação do devido processo e da segurança jurídica.
Finalmente, o princípio da moralidade processual sustenta a consistência da
regra moral no desenvolvimento do processo, pois entende que se a razão de ser do
processo é erradicar de todo modo a força ilegítima de uma sociedade e evitar que todos
façam justiça com as próprias mãos, não se pode sequer conceber que o legislador
normatize um meio de debate em que se possa utilizar a força sob a forma perversa da
esperteza ou traição156
. Veja-se que o autor utiliza-se de uma justificação que não é
especificamente jurídica. Sua argumentação em defesa do princípio da moralidade
comporta um juízo valorativo, recorrendo à perversidade, esperteza e traição acaso se
entendesse pela imoralidade processual.
Esta é uma observação pertinente para concluir que o autor filia-se à
complementariedade entre direito e moral.
De toda sorte, o princípio da moralidade processual está a sustentar a boa-fé
no trato processual.
Ademais, o garantismo processual repugna as medidas de evidência e
condena a flexibilização do princípio da congruência; a relativização da coisa julgada e
a eliminação da preclusão processual presente na doutrina italiana157
. Especificamente
sobre as medidas autosatisfativas, permite-se um aprofundamento sob o tema na
perspectiva garantista.
Essas medidas são entendidas como resultantes da ineficiência e morosidade
do Judiciário, por meio da qual se chega a uma solução eficaz para solicitações urgentes
sem processo algum, isto é, resolve-se sem o controle prévio de todos os interessados
procedendo ilegitimamente vez que violam a previsão de expressas cláusulas
constitucionais que operam como firmes garantias para todos os litigantes.
Ensina:
advirto que todos olham o problema desde a ótica do autor que se beneficia
com a imediatidade do resultado e jamais a partir da perspectiva do
demandado que não foi escutado previamente e que deve sofrer de imediato
156
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op.cit., p.246. 157
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 42.
93
os efeitos contrários a seu interesse que sobre ele provoca a resolução
judicial. Como sempre ocorre, todas as instituições autoritárias seduzem até
que produzam sofrimento por experiência própria… Gostaria de ver a cara de
um destes amantes da rapidez e da efetividade quando, ao chegar uma noite
em sua casa, se encontra ocupada por outra pessoa a quem um juiz lhe
outorgou a posse porque, com quase divina inspiração, viu em seus olhos um
indicio veemente de propriedade acompanhado de argumentos que o
convenceram da sinceridade dos argumentos. Tanto que não precisou escutar
ao ocupante antes de se alterar o titular.158
Adolfo Alvarado Velloso denuncia a (i) “cautelar” satisfativa por considerá-
la eliminadora do método processual de discussão privilegiando uma meta difusa que se
mostra como justa e verdadeira, o que configura como tipo de decisão decisionista.
Em suma, o garantismo denuncia que em nome da defesa da Constituição,
juízes ativistas assumiram uma postura de intervenção em toda sorte de assuntos cuja
competência constitucional para defini-los foi atribuída a outros Poderes do Estado,
abandonando a sujeição da lei e ingressando numa campo de co-governo e incontrolável
desgoverno.
Assim, em vista da preocupação desse movimento com o chamado
protagonismo judicial, nada mais pertinente do que uma avaliação do ativismo judicial
tão louvado por inúmeros processualistas brasileiros.
158
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 212.
94
1. ATIVISMO JUDICIAL
2.1. Por que falar sobre isto?
A noção de Democracia está relacionada a um sistema em que as normas do
jogo são prévias e claras. É o que se extrai do ensinamento de Noberto Bobbio que
adjetiva a democracia como o governo das leis por excelência e “no momento mesmo
em que um regime democrático perde de vista este seu princípio inspirador, degenera
rapidamente em seu contrário, numa das tantas formas de governo autocrático de que
estão repletas as narrativas dos historiadores”159
.
No Brasil, a presença do ativismo judicial fortaleceu-se como solução para a
concretização dos direitos fundamentais diante da própria ideia de um espaço
discricionário à “vontade” do intérprete/julgador.
Para avaliar criticamente o tema, faz-se necessária uma análise com foco na
importância da lei160
como principal fonte do direito na tradição do Civil Law,
especialmente a partir da Revolução Francesa161
, e, portanto, na relevância de se
argumentar e de se decidir legislativamente como fruto da própria teoria da separação
de poderes, ainda que a insegurança jurídica como resultado de decisões judiciais
ativistas e discricionárias esteja presente também na tradição da Common Law.
Nesse contexto, admitir-se-á, no presente estudo, o conceito de lei como um
texto normativo geral e abstrato constitucional e produzido pelos órgãos legislativos. O
conceito de lei precisa ser tomado tanto em uma perspectiva formal quanto substancial,
de maneira que além de ser produto do competente Poder Legislativo de acordo com
forma constitucionalmente prescrita, no Estado Democrático de Direito ela possui
caráter geral, designando a vontade do povo, e por concretizar esta tem conteúdo
também político a fim de promover a igualdade dos cidadãos. Essa observação é
159
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 185. 160
A partir de um ponto de vista estritamente formal, a lei pode ser ocnsiderada todo texto normativo, de
caráter geral e abstrato, cuja aplicação seja para o futuro, mas essas características também estão
presentes no nosso sistema em institutos como a súmula vinculante e as medidas provisórias. 161
De acordo com R. C. van Caenegem, nem sempre a lei foi a principal fonte do direito, o que se deu
após a Revolução Francesa em que se percebeu a manipulação da sociedade e do direito de maneira
direcionada, com a consolidação de um poder central. CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica
ao direito privado. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 121-123. Também Georges Abboud: “No
que pertine a Revolução Francesa, a lei adquiriu uma posição de destaque, seja para assegurar a
estruturação de um novo regime orientado pela vontade da maioria, seja porque o Judiciário era visto
como poder subserviente ao rei, sendo alvo de grande desconfiança dos Revolucionário.”. ABBOUD,
Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, op. cit.,
p. 420.
95
importante porque se adere à concepção de que nem todo conteúdo pode ser
considerado Direito.
Obviamente, não precisaria mencionar que já se ultrapassou a concepção do
juiz como boca fria da lei. A impossibilidade de se aplicar a lei sem interpretá-la não é
novidade (ao que sempre nos remonta ao dispositivo do Código Francês Napoleônico
que expressamente proibia a interpretação dos dispositivos do código em referência ao
ideal de completude que revestia a codificação francesa)!
Nesse tocante, uma observação precisa ser feita no que tange aos
ensinamentos de Adolfo Alvarado Velloso sobre o que faz o juiz. O autor diz que:
(...) el juez siempre norma: ora aplicando em concreto la ley abstracta, con o
sin interpretación de su texto; ora integrando la norma abstracta mediante la
emisión de uma norma concreta; ora creando la norma concreta en caso de
inexistencia de norma abstracta.162
O autor demonstra sua concepção de que somente se interpreta o que não foi
compreendido, pois interpreta-se para compreender o não-compreendido. Aceita a
possibilidade de aplicação de um texto sem sua respectiva interpretação: ou seja,
compreendo e já aplico, sem interpretação, o que será mais explorado adiante.
É que Schleiermacher, com sua hermenêutica romântica, já concebia que a
experiência da estranheza e do mal-entendido são universais e ocorrem em qualquer
tentativa de compreensão, já não concebendo a separação entre compreender e
interpretar. Aliás, segundo Gadamer, sua maior contribuição foi haver desenvolvido
uma verdadeira doutrina da arte do compreender e que concebe a hermenêutica como a
arte de evitar o mal-entendido; pois todo compreender pressupõe um interpretar.
Em realidade, o problema é que a liberdade de interpretação não pode
significar uma ilimitação à atividade decisória. Mas no Brasil o termo “ativismo” tem
sido utilizado para legitimar decisões que, sob uma análise mais aprofundada, poderiam
ser dadas como ilegais e inconstitucionais, possuidoras de valorações do tipo
consequencialistas/utilitaristas163
, não jurídicas.
162
VELLOSO, Adolfo Alvarado. La terminación del proceso: La sentencia judicial. Las costas.
Paraguai, 2014, p.85. 163
O viés consequencialista preocupa-se com as consequências práticas da decisão judicial. A atenção da
decisão judicial volta-se para o problema prático decorrente da decisão. De acordo com Dworkin, os
argumentos pragmáticos, orientam-se para as consequências futuras da decisão sem levar em conta as
práticas do passado. E nesse sentido diferencia os consequencialistas/utilitaristas dos deontológicos, vez
que este está obrigado a agir de uma maneira que gere consequências piores, enquanto os primeiros nunca
estão moralmente ordenados a agir assim. Para Dworkin, os argumentos consequencialistas não podem
ser utilizados, porque, do ponto de vista teórico os princípios da igualdade e da justiça não são
utilitaristas, e do ponto de vista prático, tal argumentação apresenta, em realidade, risco para o cidadão
tanto pela insegurança jurídica que origina quanto pelo prejuízo a seus direitos fundamentais.
DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 32.
96
Em 1988, o Brasil recebeu uma nova Constituição cujo texto está repleto de
direitos fundamentais e sociais. Ora, o modelo anterior, assentado em um pensamento
liberal-individualista, operava com conceitos oriundos das experiências da formação do
direito privado germânico e francês, desprovido de direitos de segunda e terceira
dimensões além da falta de uma teoria constitucional adequada às demandas do novo
paradigma jurídico.
No Brasil, a voz pátria é majoritariamente ativista e a favor dos poderes
instrutórios do juiz, como José Roberto dos Santos Bedaque, Cândido Rangel
Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, entre outros. Exatamente por este motivo a
atuação do Poder Judiciário aparece como tema cada vez mais em destaque,
especialmente em tempos de alteração legislativa. Este é o ponto!
Nesse sentido, os operadores do direito têm visto um Judiciário ativista que
pretende basear-se na concretização do texto constitucional justificando-se em eventuais
valores da sociedade e que seriam os consolidadores do Estado Democrático de Direito.
No pós-Constituição de 1988, o magistrado pareceu declarar sua
independência ao Direito e aos fatos do caso em prol do que lhe parecesse mais
conveniente. E respaldada em valores como critérios para fundamentar as decisões
acabou-se recaindo numa postura ativista que ultrapassa limites estabelecidos na própria
Constituição para sua atuação. O problema é que “uma hierarquia de valores” não atinge
um consenso universal, o que pode gerar decisões solipsistas.
Inegavelmente, o ativismo fragiliza a autonomia do direito e a democracia e
é por isso que se precisa enfrentar o tema.
2.2. O caráter patológico do “ativismo judicial” num Estado Democrático de
Direito
Desde já, faz-se necessário verificar que não há consenso sobre o que
verdadeiramente apresente este fenômeno.
O ativismo tem origem no sistema jurídico norte-americano em que os
precedentes constituem a principal fonte do direito e, portanto, a atividade jurisdicional
implica a própria criação do direito164
.
164164
TRINDADE, André Karam. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com
Luigi Ferrajoli. In ___; FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs). Garantismo versus
neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terrae brasilis. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2012, p. 110.
97
Ocorre que o texto constitucional norte-americano é extremamente conciso,
não dotando ela de dispositivo como o rol do artigo 5º da Constituição Federal do
Brasil, extensa lista de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, a decisão
judicial que nos EUA tutela qualquer direito não previsto no texto constitucional já é
considerada ativista.
Nesse contexto, denuncia-se, aqui, uma deficiência teórica da doutrina
diante de uma confusão generalizada sobre o tema e que produz um diálogo dificultoso.
O termo é apresentado tanto com ênfase em seu elemento finalístico, que
seria a expansão dos direitos fundamentais, quanto com destaque ao caráter
comportamental, em atenção ao aspecto pessoal que determina a compreensão dos
magistrados a respeito das normas constitucionais.
Clarissa Tassinari exemplarmente identifica algumas tendências de
abordagens: (i) como atuação do Judiciário pela judicial review, (ii) como sinônimo de
maior interferência do Judiciário em face dos demais poderes, (iii) como abertura à
discricionariedade no ato decisório e (iv) como aumento da capacidade de
gerenciamento processual do julgador165
.
Mas concorda-se especificamente com Elival da Silva Ramos quando diz
que o fenômeno judicial em estudo constitui uma indevida invasão tanto na esfera
legislativa quanto na Administração Pública, ou seja, em funções constitucionalmente
estabelecidas a outros Poderes:
Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional
para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de
feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de
natureza objetiva (conflitos normativos).166
O efetivo surgimento da revisão judicial teve seu precedente em 1803 com o
julgamento do famoso caso Marbury vs. Madison pela Suprema Corte em que se
reconheceu a irrevogabilidade da nomeação de Marbury, mas, em contrapartida, não se
considerava possível tal julgamento, isto é, declarou-se inconstitucional a seção 13 do
Judiciary Act que atribuía competência originária à Suprema Corte sob o fundamento de
que tal disposição legislativa ampliava sua atuação extrapolando o conteúdo
constitucional167
. Entretanto, a Constituição não dava o poder aos tribunais de revisão
da produção do Congresso.
165
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op.cit., p. 33. 166
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 117. 167
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op.cit., p. 23.
98
Christopher Wolfe168
afirma ser resultado da tensão entre o judicial review e
self restraint: grandezas inversamente proporcionais (o aumento da primeira e a
diminuição da segunda gera o fortalecimento do ativismo judicial)169
. A partir do estudo
da jurisdição constitucional e das intervenções da Suprema Corte norte-americana, o
autor identifica três épocas distintas na história do constitucionalismo norte-americano:
a tradicional, uma de transição e finalmente a moderna.
Na primeira (1787 – 1890), a Suprema Corte posicionava-se para aplicar a
Constituição diante das leis ordinárias170
.
Já no segundo período, designado como de transição (1890 – 1937), há um
declínio da judicial review e a Suprema Corte é marcada por um Estado impedido de
tomar quaisquer medidas voltadas à regulação das políticas de bem-estar, ou seja, uma
Suprema Corte que impedia o Estado de interferir nas relações privadas. Configurou
uma política judiciária de contenção (self-restraint), verdadeira tendência conservadora
e que tornou ainda mais evidente na década de 30 em razão da crise econômica ter
levado o Estado a tomar medidas reguladoras para superar o cenário político,
econômico e social por qual passava171
.
Nesse contexto, o jurista norte-americano relata que para fazer com que o
Judiciário, em especial a Corte Hughes pactuasse com as medidas de recuperação de
economia propostas pelo governo, o presidente Roosevelt ameaçou criar mais uma vaga
para a Suprema Corte para cada juiz que ultrapassasse 70 anos de idade. Esta medida
também resolveu a promulgação de leis que antes os juízes consideravam contrárias à
Constituição.
Na última (1937 – hoje), consolidada a partir da segunda metade do século
XX e com maior atuação da Suprema Corte, o foco se deslocou da esfera econômica
para as liberdades civis. Inseridos na tradição da Common Law, os juízes deixaram de
168
É um jurista americano favorável a uma modalidade moderada de judicial activism, mediante a qual a
judicial review seria utlizada para proteger direitos individuais, resguardar minorias, impulsionar
reformas sociais, elimianr discriminações ilegais, bem como fulminar e a atualizar leis inconstitucionais.
Wolfe, Christopher. Judicial Activism: bulwark of Freedom in Precarious Security?. New York: Rowman
& Littlefield Publishers, 1997, p.112. Ocorre que, no Brasil, essas ações podem ser realizadas pelo
Judiciário sem que sua atuação extrapole os limites impostos pela Constituição, de maneira que não
podemos entender o ativismo brasileiro da mesma forma. ABBOUD, Georges. Discricionariedade
administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, op.cit., p. 420. 169
WOLFE, Christopher. Judicial Activism: bulwark of freedom or Precarious Security?, op.cit., p.1. 170
Idem. The rise of modern judicial review. From constitucional interpretation to judge-made law.
Bsoton: Littlefiel Adams Quality Paperbacks, 1997, p. 17-119. 171
Ibidem, p. 121-204.
99
interpretar as leis e passaram a “reescrevê-las”172
. Essa fase ficou marcada por decisões
que apregoavam a isonomia com o intuito de eliminar discriminações raciais e sexistas,
assegurando, inclusive, aqueles que não teriam previsão constitucional.
O ápice desse fenômeno deveu-se à verdadeira revolução constitucional
provocada por decisões históricas que influenciavam outras cortes e tribunais, com
especial indicação doutrinária ao caso Brown vs. Board Education.
Contudo, enquanto na década de 70 manteve-se a maioria das decisões
consideradas ativistas contrariando claramente a vontade do Presidente Nixon, na
década de 80 a Suprema Corte voltou a assumir um perfil mais conservador.
Willian Marshall enumera sete tipos de ativismo judicial: ativismo
contramajoritário, ativismo não originalista, ativismo de precedente, ativismo
jurisdicional, ativismo criativo, ativismo remediador e ativismo partisan. Cita-se sua
classificação somente para se observar que ela pressupõe uma disfunção na atividade
jurisdicional, o que revela que também este autor conclui o ativismo sob uma ótica de
extrapolação dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício do poder a eles
atribuídos pela Constituição.
Veja-se que há no Brasil notórios juristas que atrelam à ideia de ativismo
apenas a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos
valores e fins constitucionais, como a maior interferência nos outros Poderes, mas sem
recair em criação do direito173
. Esse não é o entendimento, como visto, defendido nesta
obra.
É também por esses entendimentos que a análise majoritária da questão no
solo nacional identifica o fenômeno como “bom” para a democracia por ser concepção
oposta ao passivismo judicial.
O mesmo tem ocorrido em outros países latino-americanos, como, por
exemplo, na Argentina, como se vê na doutrina de Pablo L. Manili174
que identifica o
“bom” e o “mau” ativismo, Jorge W. Peyrano, Hernán Carrillo, Carlos Carbone, Marcos
Peyrano, Sergio José Barberio, Inés Lépori, Abraham Vargas, Roxana Mambelli e
Maria Carolina Eguren, entre outros.
172
Ibidem, p. 205-322. 173
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In:
COUTINHO, Jacinto N. de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.)
Constituição e ativismo judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 279. 174
MANILI, Pablo. L.. El activismo en la jurisprudencia de la Corte Suprema. In: Quintana e Carlos S.
Fayt. (orgs). Revista Juridica Argentina La Ley. Derecho Constitucional. Doctrinas Esenciales. Buenos
Aires: La Ley, 2008, t. I, n. II, p. 1147-1153.
100
Todavia, entendendo o ativismo como o exercício da função jurisdicional
para além dos limites impostos, ou melhor, decisão judicial fundamentada nas
convicções pessoais do julgador, ou seja, é o pronunciamento judicial no qual as fontes
normativas são substituídas pelo senso de quem a prolatou, conclui-se pelo caráter
sempre patológico do ativismo no Estado Democrático de Direito, para o que é
descabido adjetivá-lo como bom já que sempre será ruim, não importando o resultado
prático de uma decisão ativista: ela viola a Constituição, a Democracia e a Separação de
Poderes, entre muitas outras considerações! E isso porque, em síntese, o Estado
Constitucional, plus ao Estado de Direito, é contra concepções como a de Jorge Peyrano
que sustentam que “O ativismo judicial confia nos magistrados (...) códigos de
procimentos civis mais recentes, depositam nas mãos dos juízes civis um amplo número
de faculdades-deveres para melhor sua missão de distribuir o pão da Justiça”175
!
Jorge Peyrano parece crer que os juízes são seres magnânimes e
extraordinários dotados de uma capacidade única e incontestável?
O fenômeno entendido como “bom” relaciona-se com a tradição jurídica da
Common Law em que se insere os EUA e outros países, denuncia Georges Abboud,
pela dicotomia desenvolvida por Herbert Hart e aqui já sucintamente explorada entre
easy cases vs. hard cases. Nestes últimos admite-se a discricionariedade do julgador
para que exerça o ativismo.
De todo modo, fato é que o ativismo ultrapassou as fronteiras do Common
Law e atingiu o Civil Law. É um dos reflexos do pós-Segunda Guerra Mundial produto
do avanço significativo no direito pelo incremento, na dogmática constitucional, da
positivação de novos direitos.
O que simbolizou o novo modo de compreender a concretização dessas
garantias foi a Lei Fundamental176
e a Jurisprudência dos Valores de acordo com a
postura do Tribunal Constitucional Federal Alemão (na França deu-se Escola do Direito
Livre e no Common Law vieram as correntes realistas).
175
PEYRANO, Jorge W. Activismo y garantismo procesal. Córdoba: Academia Nacional de Derecho y
Ciencias Sociales de Córdoba, 2009, p. 11. Tradução livre: “El activismo judicial confia en los
magistrados (...) códigos de procedimientos civiles más recientes, depositan em manos de los jueces
civiles un amplio número de facultades-deberes para mejor cumplir su cometido de distribuir el pan de la
Justicia”. 176
Situação peculiar vivenciada pela Alemanha por uma espécie de “assembleia constituinte de
emergência” composta pelos aliados e que impulsionou o papel do Tribunal Constitucional e cuja atuação
estava direcionada a constitucionalizar a ordem jurídica a partir de um órgão que, à diferença do Conselho
Parlamentar que aprovou a Lei Fundamental (hoje Constituição), efetivamente representava o povo
alemão. TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit.,
p. 43.
101
Em síntese, o objetivo da Jurisprudência dos Valores era romper com o
modelo jurídico vigente no nazismo para que se legitimasse a tomada de decisões em
respeito à Constituição outorgada em 1949 pelos aliados, notando-se inclusive decisões
contra legem e extra legem como maneira encontrada para se fugir as leis do regime
nazista177
.
Por sua vez, no Brasil, foi promulgada a Constituição Cidadã de 1988,
considerada ápice do processo de redemocratização em que se rompia com o período
ditatorial no país. Nesse sentido, a forte participação do Judiciário atrelava-se a uma
perspectiva em direção à abertura política, e portanto, caminho certo à redemocratização
do país.
Isso porque a Constituição de 1988 representou uma ruptura paradigmática
na história do direito brasileiro, seja pela oposição ao regime autoritário, seja no que diz
respeito aos compromissos firmados pelo constituinte, seja ainda em face da nova
relação que se estabelece entre sociedade e Estado em que se conferiu ao Poder
Judiciário e a todos os seus atores o papel de fiador dos direitos fundamentais e do
regime democrático.
Isto é: o contexto constitucional não consistia em pregar uma democracia
meramente institucional, mas a promessa de inclusão social e de maioria como
pressuposto de sua efetiva conquista.
Assim, as tradições jurídicas aproximam-se nesta questão que se está a
debater: a atuação do Poder Judiciário.
Contudo, um olhar mais preciso das decisões de cada Corte demonstra
distintas posturas para a compreensão dos limites da atividade jurisdicional, e portanto,
de seus ativismos: uma conservadora e outra progressista, ainda que ambas contenham
cunho político.
Representativo do contexto estadunidense é o caso Lochner vs. New York
tratado por Laurence H. Tribe em seu livro American Constitutional Law 178
. Julgado
em 1905, um padeiro reclama da limitação da carga horária de trabalho fixada
legalmente no Estado de Nova Iorque, ao que a Suprema Corte decidiu que a lei violava
a liberdade contratual. Assim, ao interferir na política legislativa do Estado de Nova
177
TRINDADE, André Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo
judicial em terrae brasilis. In:FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs.) Garantismo, hermenêutica e
(neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. In Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2012, p. 113. 178
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op.cit., p. 24.
102
Iorque, a Suprema Corte o faz em respeito à não intervenção na esfera privada dos
indivíduos, retratando sua postura conservadora.
No Brasil, representativa é a emblemática Reclamação Constitucional
4335/AC em que, a título de mutação constitucional atribuiu-se efeito erga omnes à
decisão proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade sob a argumentação
de que o Senado, pelo artigo 52, X da Constituição Federal, apenas cumpre o papel de
dar publicidade à decisão179
, o que retrata o perfil progressista de alteração do texto
constitucional via Judiciário.
Enfim: acredita-se ter demonstrado que, no contexto brasileiro, ativista é a
decisão judicial fundamentada nas convicções pessoais do julgador, ou seja, é o
pronunciamento judicial no qual as fontes normativas são substituídas pelo senso de
quem a prolatou, em consonância com o que expusemos da discricionariedade como
falta de vinculação ao Direito. Nesse tocante, note que não se está aqui a submeter o
Judiciário à legalidade estrita, pois se for a lei inconstitucional, cabe a ele não aplicá-la,
limite que assim o é para qualquer decisão judicial.
Afinal, se toda decisão que aplica a lei está por reputá-la constitucional
implicitamente, a que deixa de aplicar faz o inverso!
O ativismo abrasileirado aproveitou-se fortemente do ativismo norte-
americano quanto à intensificação da atividade jurisdicional potencializada inclusive
para que se concretizassem direitos, ou seja, como solução para os problemas sociais e
etapa indispensável para o cumprimento do texto constitucional, mas desprovido do
necessário debate e problematização sobre o tema180
.
Em nosso país, a doutrina da instrumentalidade do processo enxergou como
natural e positiva o ativismo judicial. Esta doutrina defende um tratamento publicista do
processo com foco na jurisdição enquanto instrumento do Estado para perseguir seus
objetivos181
. Para tanto, o problema da efetividade do processo é resolvida pela redução
das formalidades que teoricamente impedem a realização do direito material em conflito
por meio do princípio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação
179
A título explicativo: O controle difuso de constitucionalidade brasileiro tem como regra a atribuição de
efeito inter partes para a declaração de inconstitucionalidade. O artigo 52, X, Constituição Federal prevê a
competência do Senado Federal atribuir efeito erga omnes nos casos de declaração de
inconstitucionalidade via controle difuso. 180
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit.,p. 26. 181
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. Ed. São Paulo? Editora
Malheiros, 2005, p. 51-67.
103
da técnica processual reconhecendo ao julgador a capacidade para adequá-lo às
especificidades da situação182
.
André Karam Trindade, estudando a realidade brasileira representada pela
atuação do Supremo Tribunal Federal183
assim como das demais instâncias do Poder
Judiciário no concebido Estado Democrático de Direito, a divisão da evolução da
jurisprudência constitucional brasileira, pode-se dizer, deu-se em três estágios: a fase de
ressaca, a fase da constitucionalização e a fase ativista, na qual no encontramos hoje184
.
A fase de ressaca, iniciada com a promulgação da Constituição de 1988,
caracteriza-se pela crise de modelo de direito decorrente da dificuldade em se
compreender o novo paradigma que instituiu o Estado Democrático de Direito com a
consequente necessidade de se filtrar constitucionalmente o ordenamento jurídico, em
especial, pelos mecanismos por ela ampliados no que tange o controle de
constitucionalidade.
Por sua vez, a fase da constitucionalização (década de 90 – 2004)
caracteriza-se pela atenção que passa a se dar à Constituição e seus princípios com
repercussão no papel dos tribunais que se tornam intérpretes da Constituição.
Em suma, o numeroso rol de direitos garantidos previstos na Constituição,
somado à forma de controle de constitucionalidade inaugurada com a fundação da
República e reformulação com a Emenda Constitucional n.16/65185
pelo que se
possibilitou a revisão dos atos dos demais Poderes, o Supremo Tribunal Federal assume
a função de guardião do cumprimento da Constituição, momento em que se iniciam os
debates sobre o ativismo judicial no país!
Já na atual fase ativista com início com a Emenda Constitucional 45
caracteriza-se por um crescente estímulo ao ativismo que permeia todas as instâncias
judiciais sob a argumentação de que posturas pró-ativistas são imprescindíveis para a
implementação dos direitos fundamentais.
Apostou-se no protagonismo do juiz! Confiou-se nele como o faz Jorge
Peyrano. Sob tal ótica, deveria este apontar os valores constitucionais por meio da
técnica da ponderação para que fundamentasse sua decisão racionalmente, o que gerou,
182
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 43/45. 183
“Anuário da Justiça de 2009: O Ano da Virada: País descobre que, ao constitucionalizar todos os
direitos, a Carta de 1988 delegou ao STF poderes amplos, gerais e irrestritos.” 184
Está-se aqui a utilizar da classificação exposta por André Karam Trindade, apesar de ser uma questão
meramente de classificação e metodológicas, apenas para se apresentar o contexto brasileiro. 185
Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-16-26-
novembro-1965-363609-publicacaooriginal-1-pl.html> Acesso em: 19/07/2015.
104
em realidade, enorme discricionariedade. Aliás, o pior e maior efeito da
discricionariedade parece ser o enfraquecimento da normatividade da Constituição e
consequentemente do regime democrático.
O juiz, sob o pretexto de concretizar os direitos fundamentais, utiliza-se de
suas convicções pessoais, o que configura alto grau de voluntarismo e insegurança
jurídica, relegando à interpretação da dogmática jurídica verdadeira escolha casuística
pela consciência do julgador186
: “um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a
partir de argumentos de política, de moral, enfim , quando o direito é substituído pelas
convicções pessoais de cada magistrado”187
.
Obviamente, as conclusões propostas neste estudo não são contra a
concretização dos direitos fundamentais pelo Judiciário. Afinal, implementar esses
direitos não é uma escolha a nenhuma dos três poderes. Mas desde que motivados em
parâmetros jurídico-constitucionais. Nesse sentido, o que importa à caracterização do
ativismo é a fundamentação da decisão, não seu resultado.
No mesmo sentido, de pleno acordo se está com Adolfo Alvarado Velloso
quando denuncia a influência midiática sobre o juiz188
, afinal, a legalidade existe!
2.3. Neoconstitucionalismo e Pós-Positivismo: uma distinção dos conceitos.
Analisando a diferença entre texto e norma, a interpretação do direito não mais
como ato revelador da vontade da lei ou do legislador, e o adeus ao silogismo.
O termo neoconstitucionalismo é importada do direito constitucional
espanhol como novo paradigma científico para estudarmos este ramo jurídico.
Ingressou definitivamente no léxico jurídico e vem sendo empregada para se
referir às tentativas de explicar as transformações ocorridas no campo do direito a partir
da Segunda Guerra Mundial em consideração às novas Constituições que passam a
positivar diversas garantias fundamentais como novos limites para a atuação do Poder
Público.
Miguel Carbonell a utiliza para se referir a duas questões: (i) a uma série de
fenômenos evolutivos resultantes do paradigma do Estado Constitucional e (ii) a uma
determinada teoria do Direito que sustenta essas mudanças e/ou delas trata189
. Nesse
contexto, o discurso do neoconstitucionalismo significa ir além de feições liberais para
186
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit., cap 4, §1 e cap. 13, §5. 187
Ibidem, p. 589. 188
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op.cit., p.205. 189
CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 09/10.
105
se atingir um constitucionalismo de feições dirigentes visando à efetivação de um
regime democrático vez que as Constituições passaram a consagrar os direitos
fundamentais em seu texto190
. E claro que com o novo formato dos textos
constitucionais a doutrina também sofreu alterações em vista da preocupação de
concretizá-los.
Note-se aqui que o instrumentalismo processual brasileiro de Dinamarco
contagia o discurso de concretização do texto constitucional, pois, como visto, aquela
doutrina acredita que a jurisdição é responsável pela concretização dos “verdadeiros
valores” que corroboram com a efetiva justiça.
Bulow, iniciador da face metodológica do processualismo, aliás, já concebia
o processo como instrumento da jurisdição, mas não na perspectiva de controle da
atividade dos juízes. Como denuncia André Cordeiro Leal, há muito do modelo
bulowiano em Dinamarco, pois seu escopo foi o de
(...) apresentar, com base na releitura do direito romano, fundamentos
histórico-sociológicos pretensamente autorizativos da migração do controle
social pela magistratura alemã e de justificar, a partir daí, a adoção de
técnicas que permitissem a desvinculação de julgadores das abordagens
formalistas ou legalistas na aplicação do direito”.191
Leciona Ferrajoli que o constitucionalismo, principialista, jusnaturalista ou
não positivista é uma corrente neoconstitucionalista, em antítese ao constitucionalismo
normativo ou garantista. Nesse sentido, Ferrajoli entende o constitucionalismo de duas
maneiras distintas e opostas: (i) primeiramente como a superação em sentido
jusnaturalista ou ético-objetivista do positivismo jurídico, concepção sob a qual
denuncia estar frequentemente etiquetada de neoconstitucionalista, (ii) ou ainda como a
expansão ou completamento do positivismo, concepção esta que sustenta sob a bandeira
juspositivista192
.
Então, para Ferrajoli, o constitucionalismo principialista, corrente
neoconstitucionalista, é por ele criticada por transformar os direitos fundamentais em
valores ou princípios morais, o que gerou a fragilização da normatividade do direito
com a ponderação.
De todo modo, não se pode negar que o neoconstitucionalismo representou
um importante passo para a afirmação da força normativa da Constituição, em que pese
190
STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo, op. cit., p. 61. 191
LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos,
Faculdade de Ciências Humanas, p. 30-31. 192
FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In:
FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs.) Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um
debate com Luigi Ferrajoli. In Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 13.
106
ter acabado por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da jurisprudência dos
valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy e do ativismo judicial norte-
americano193
.
É por essas considerações que Lenio Streck prefere utilizar-se da expressão
Constitucionalismo Contemporâneo para designar a insurgência do constitucionalismo
pós-Segunda Guerra Mundial em atenção ao redimensionamento do papel do Judiciário
que, progressivamente, tem sido provocado a se manifestar sobre os mais variados
assuntos194
.
Em síntese, o termo neoconstitucionalismo designa um fenômeno político-
jurídico de surgimento de um conjunto de textos constitucionais que surgem após a
segunda guerra.
Neoconstitucionalismo significa a tradição na qual estamos situados em que
a Constituição é topo normativo de perfil dirigente e compromissório. Nesta concepção,
o Direito transforma o social por meio da concretização de direitos com assento
constitucional. E assim “a adesão a essa corrente de pensamento exige que
reconheçamos, entre outras coisas, a interlocução que se dá entre a Moral e o Direito
(...) através, significativamente, da positivação dos direitos fundamentais”195
.
Diferentemente, Luís Flávio Gomes cita o neoconstitucionalismo como a
(neo)constitucionalização do Direito com o risco de superposição da Moral sobre o
Direito vigente196
.
Por isso chama-se a atenção para teorias que se dizem
neoconstitucionalistas, mas que não reconhecem a autonomia do Direito nem trabalham
com a co-originariedade entre Direito, Moral e Política.
Aliás, outra coisa é o pós-positivismo (que remonta à Friedrich Muller e a
sua Metódica Estruturante do direito), um paradigma filosófico estruturado sob a base
do giro linguístico e ontológico-linguísitico197
, em que pese haver séria e respeitada
doutrina que utiliza os conceitos (neoconstitucionalismo e pós-positivismo) como
sinônimos sem discriminação do que seja de fato tais fenômenos.
193
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit., p. 35/37. 194
Lenio Luiz Streck prefaciandoa obra de Clarissa Tassinari, qual seja, Jurisdição e ativismo judicial:
limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: 2013. 195
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 53. 196
Idem, apud, GOMES, Luis Flávio. Candidatos Fichas-Sujas: STF Afasta o Risco da Hipermoralização
do Direito. In: Carta Forense, p. 11, dez. 2008. 197
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 85.
107
Fredie Didier Jr., por exemplo, afirma que neoconstitucionalismo é a fase
atual do pensamento jurídico, entendendo que “há quem denomine esta fase de pós-
positivismo, o que também não quer dizer muita coisa, a não ser o fato de que é um
estágio posterior ao positivismo”198
. O perigo está em minorar fenômeno de extrema
importância.
O pós-positivismo possui berço na obra pioneira de Friedrich Muller199
: a
sua teoria estruturante do direito cujo intento é superar as deficiências do positivismo
conforme os avanços da filosofia da linguagem e da hermenêutica. Ou seja, Müller
navega numa perspectiva pós-positivista da norma jurídica.
Como já mencionado no início deste estudo, o positivismo exclui qualquer
conteúdo transcendente ao direito positivo (por isso opõe-se ao jusnaturalismo) e
sustenta a separação entre direito e moral. Mas as teorizações positivistas oscilam em
torno do seu objeto de estudo. Em síntese: se o objeto de estudo está nos códigos
produzidos nos novecentos, chamamos de positivismo legalista ou exegético, ou em
Ferrajoli, paleojuspositivista; se na norma jurídica, cujo maior expositor teórico é Hans
Kelsen, positivismo normativista; se no conceito de regra, com Herbert Hart ou com
base no conjunto de decisões emitidas pelos tribunais, o realismo jurídico.
Nesse sentido, para que se classifique uma teoria como pós-positivista, é
necessário distinguir norma e texto normativo, e então, diante de uma nova concepção
de norma, aplicar o direito não mais pela via do silogismo. Isto implica dizer que a
norma não é prévia ao caso nem existe em abstrato, pois passa a ser concreta, produto
da linguagem e da atividade interpretativa. Ou seja, o paradigma pós-positivista não
concebe a resolução de nenhuma questão jurídica sem a intermediação da hermenêutica.
Como dito por Castanheira Neves, o direito é fundamentalmente linguagem.
E assim, nesse paradigma, norma é a interpretação conferida a um texto (enunciado),
parte de um texto ou combinação de um texto, de forma que os significados jurídicos
são trabalhados concomitantemente com seu uso prático. Daí que a solução das questões
jurídicas, tanto pelo Judiciário quanto pela Administração Pública, produzem norma,
uma vez que ela não pode mais ser reduzida a uma determinação normativa mediante
silogismo subsuntivo.
Em outros termos:
198
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 43. 199
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. Introdução à teoria metódica estruturante do
direito. 3. Ed. São Paulo: Ed. RT, 2013, n.1, p. 10-11.
108
o texto deve ser compreendido em cada momento e em cada situação de uma
maneira nova e distinta, justamente porque ele não é a norma pronta a ser
aplicada ao caso concreto. O texto, na realidade, apesar de fisicamente o
mesmo, pode tornar-se múltiplos textos a partir de suas interpretações e
compreensões durante o processo histórico de sua aplicação.200
Ocorre que o pensamento jurídico dominante em nosso país ainda incorre no
equívoco de equiparar texto e norma. Tanto que Ministros de nossos Tribunais afirmam
a desnecessidade de se interpretar enunciados como súmulas vinculantes por conterem
uma prescrição literal e objetiva. O mesmo acontece nas aulas de cursinhos para o
exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Ora, todo texto, por mais claro e objetivo
que seja, sempre comporta interpretação!
Perceba que há, portanto, três pontos primordiais no paradigma pós-
positivista: (i) a diferença entre texto e norma, (ii) a interpretação do direito deixa de ser
ato revelador da vontade da lei ou do legislador, e (iii) a sentença deixa de ser processo
silogístico201
.
Para o primeiro ponto, interessa saber que a prescrição juspositivista é
apenas o pontapé inicial na estruturação da norma, já que a prescrição literal, na teoria
de Friedrich Muller, como ficará claro, serve para a elaboração do programa da norma,
mas esta não se resume aqui, pois a normatividade202
(aptidão da norma), entenda, não é
produzida pelo texto. “O texto determina os limites extremos das possíveis variantes em
seu significado”203
. Esse é apenas o caminho de entrada, muito importante, diga-se, no
processo de concretização da norma. O texto possui normatividade por ter aptidão para
produzir a norma em conjunto com o caso concreto.
A teoria estruturante de Müller leva em conta duas entidades jurídicas: o
programa normativo, que configura os dados linguísticos do processo concretizador, ou
200
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 66. 201
ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011, p.
61. 202
Ensina Friedrich Müller que a normatividade “não é nenhuma qualidade (estática, dada, substancial)
de textos de normas. Ela é um processo baseado no trabalho comprometido com o Estado de Direito e a
democracia. Esse processo parte dos textos das normas (e dos casos jurídicos) e encontra neles os seus
limites”. Müller, Friedrich. Metodologia do direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Ed. RT, 2011, p.
124/125. 203
MÜLLER, Friedrich. Postpositivismo. Cantabria: Ediciones TDG, 2008, p. 166/167. “Não obstante o
texto normativo não carregar a norma em si, obviamente que ele constitui um dos limites para as
variantes interpretativas a serem alcançadas. Ou seja, não se pode considerar legítima e correta
qualquer interpretação alcançada do texto normativo. Esse ponto da Teoria Estruturante é fundamental
para demonstrar que a importância dada á prescrição literal busca impossibilitar que a atividade
produtora da norma jurídica possa sempre ser socorrida por elementos discricionários ou arbitrários.
Portanto, ainda que a norma seja diferente do texto normativo, o resultado alcançado pela atividade
interpretativa deve obrigatoriamente ser comportável pelo programa normativo.” ABBOUD, Georges,
Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. p. 74.
109
seja, seu teor literal, e o âmbito normativo, composto pelos elementos não linguísticos,
um recorte da realidade social criado pelo programa da norma como seu âmbito de
regulamentação.
Nesse sentido, matematicamente, a norma jurídica tem que ser mais do que
o texto. Ela resulta da problematização do caso concreto, seja real ou fictício (e por isso
o equívoco brasileiro no que tange a súmula que almeja ser “norma acabada”).
É que cada ato de interpretação deriva da compreensão que se tem a respeito
do ser dos entes. Ou seja, “o Ser-aí compreende o ente em seu ser e, de uma forma
derivada, torna explícita essa compreensão através da interpertação. Na interpretação,
procuramos manifestar onticamente aquilo que foi o resultado de uma compreensão
ontológica”204
pois “A interpretação é o momento discursivo-argumentativo em que
falamos dos entes (processo, direito, etc...) pela compreensão que temos de seu ser.”205
Isto é, “interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as
possibilidades projetadas no compreender”206
.
Assim, a interpretação dos conceitos jurídicos precisa levar em conta toda a
dimensão histórica interpretativa que está por trás de cada um de tais conceitos.
Interpretar e aplicar são realizações que se dão no mesmo momento.
A norma é concreta não apenas porque produzida a cada processo individual
de decisão jurídica, mas porque produto da perspectiva do intérprete em relação ao caso,
real ou fictício, único e irrepetível.
Assim, se não se pode admitir a solução de questões jurídicas sem
concomitante atividade interpretativa, porque texto normativo e norma jurídica não se
confundem, já que o primeiro é pontapé para a segunda, a atividade do Judiciário na
resolução de questões jurídicas tem que ser criativa, além de produtiva de normas, para
o que o silogismo subsuntivo não funciona.
Assim sendo, falemos em hierarquia de textos normativos, não de normas,
pois essas são o resultado da interpretação. E por esta hierarquia, somente é permitido
afastar-se do texto normativo infraconstitucional pelo controle de constitucionalidade,
até mesmo para que se conforme a interpretação daquele para com o texto
constitucional.
204
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 66. 205
Ibidem, p. 66. 206
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo.10ª. ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Bragança
Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco e Editora Vozes Petrópolis , 2015, p. 209.
110
Parece assim, restar esclarecida a confusão entre neoconstitutionalismo e
pós-positivismo, pois nem toda teoria neoconstitucionalista carrega em seu bojo
aspectos essenciais do paradigma pós-positivista.
2.4. Judicialização da política e ativismo judicial
Faz-se necessário abordar a diferenciação entre ativismo judicial e
judicialização da política, especialmente porque é inegável que ambas as expressões
contextualizam a atual conjuntura jurídica brasileira com centralização na atuação do
Judiciário.
A resposta ao que seja judicialização da política passa pela percepção da
interação entre Direito, Política e Judiciário, notando-se, então, que Direito e Política se
interpenetram, e que isto não está necessariamente vinculado a um ativismo.
Essa é uma importante observação a ser feita porque é devido à articulação
entre Direito e Política que possivelmente as duas expressões (ativismo judicial e
judicialização da política) confundem-se no imaginário das pessoas.
Veja-se, por exemplo, que Luis Roberto Barroso207
, na tentativa de
distingui-las, afirma a existência de uma ambiguidade: o Direito, ao mesmo tempo, é e
não é Política. Contraditório?
O ativismo, para Barroso, resume-se em “uma participação mais ampla e
intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior
interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes”208
.
De outro modo, Clarissa Tassinari, em extenso trabalho sobre o ativismo, o
sintetiza “como a configuração de um Poder Judiciário revestido de supremacia, com
competências que não lhe são reconhecidas constitucionalmente”209
.
No tocante à judicialização da política, para Vanice Regina Lírio210
a
constitucionalização do direito pós-Segunda Guerra Mundial e todo o contexto político
neste período provocou uma maior participação do Estado na sociedade, abrindo espaço
para a jurisdição em face da inércia dos demais Poderes. É o que Luiz Werneck
207
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, op. cit., p.
285. 208
Ibidem , p. 279-280. 209
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p. 32. 210
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.) Ativismo Jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal:
laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009, p. 32.
111
Vianna211
chama de publicização da esfera privada na medida em que o contexto de
existência de novos direitos e remodelagem do Estado, entre outros fatores, desfez o
Judiciário inerte às transformações sociais.
Conforme Lenio Streck: “(...) a judicialização é um fenômeno que exsurge
a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do
polo de tensão dos Poderes Executivo e Legislativo em direção da justiça
constitucional”212
.
Feitas essas distinções, é de se notar que o que está atrelado ao plantio e
cultivo da cultura judicante é a judicialização da política, e não necessariamente o
ativismo judicial, fenômeno que deve-se mais ao pós-Segunda Guerra Mundial, ao
surgimento da noção de constitucionalismo dirigente e à atuação dos Tribunais
Constitucionais.
Como se sabe, a Segunda Guerra Mundial produziu atrocidades durante a
existência de regimes totalitários. Pairava o sentimento de que era necessário se romper
com a estrutura institucional da época e com as teorias e metodologias
predominantes213
. Exatamente por essa necessidade, o período posterior à Segunda
Guerra representa uma mudança paradigmática no direito mundial. Para superá-las, a
revolução ensejada pelo segundo pós-guerra envolveu a concepção de um texto
constitucional marcado pela existência de um texto compromissório visando o bem-
estar social214
. É um marco determinante na história do pensamento jurídico dos países
ocidentais215
.
A pauta “Direitos Humanos” tomou conta do cenário jurídico. Para a
exposição internacional da proteção de tais direitos não se pode olvidar o influente fato
histórico que foi a criação da Organização das Nações Unidas em 24 de outubro de
1945 (em que pese representar resposta dos vencedores aos vencidos)216
.
Aliás, destaca-se cronologicamente a partir de então a elaboração de
instrumentos internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
211
VIANNA, Werneck; CARVALHO, Maria Alice R. de; MELO, Manuel P. Cunha; BARGOS, Marcelo
B. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Reavan, 1999, p.15. 212
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit., p. 589. 213
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p.
42/43. 214
ROSA, Alexandre Morais da. A constituição no país do jeitinho: 20 anos à deriva do discurso
neoliberal (Law and economics). In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: 20 anos de
constitucionalismo democrático – e agora? Porto Alegre, vol. 1, n. 6, p. 15 – 34, 2008, p. 18 – 23. 215
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit., p. 19. 216
Ibidem, p. 19.
112
Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1953), Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966), Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa
Rica – 1969).
Como não poderia deixar de ser, a ordem externa veio a influenciar os
ordenamentos internos. Mais especificamente, as Constituições dos países democráticos
vieram a positivar, como direitos fundamentais, os valores reconhecidos pela ordem
externa217
.
O fim da Segunda Guerra, então, impulsionou a passagem do Estado
Legislativo de Direito para um Estado Constitucional de Direito visando à garantia dos
direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.
O Estado Constitucional deve ser um Estado Democrático de Direito para
que possua os atributos do constitucionalismo, identificando-se por duas qualidades: o
Estado de direito e o Estado democrático no qual o poder estatal deve organizar-se em
termos democráticos e o poder político deriva do poder dos cidadãos218
. Isto é, deve ser
a evolução do Estado nascido com a afirmação do princípio da legalidade para que se
considerasse como direito existente somente aquilo que fosse produzido pelo órgão
competente (e que caracterizou o monopólio do Estado sobre a produção jurídica
voltada à concepção ético-cognitivista pelo postulado juspositivista “auctoritas non
veritas facit legem”) ao Estado Constitucional de Direito (ou Estado de direito em senso
estrito) caracterizado pelo ordenamento jurídico de constituição rígida com hierarquia
superior das normas constitucionais e sujeito à coerência com os significados destas,
introduzindo um princípio de legalidade substancial (que Ferrajoli designa como
princípio da legalidade estrita) que produz a distinção entre existência e validade das
normas.
Vê-se que o Estado de direito completou-se com o Estado Constitucional de
Direito, que, aliás, correspondeu ainda a uma mutação da democracia ao deixar de
identificar-se somente com a dimensão política do sufrágio universal, da
representatividade e do princípio da maioria para adquirir uma dimensão constitucional
de determinação jurídica do poder, “relativa ao conteúdo das decisões políticas,
submetidas à observância dos direitos fundamentais, os quais, com o princípio da
217
Ibidem, p. 20. 218
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed. Coimbra:
Almedina, 2004, Parte 1, Cap. 3, p. 93/98.
113
igualdade, constituem os fundamentos axiológicos positivos da democracia
constitucional”219
.
Então, o fenômeno jurídico passou a ser visto sob a perspectiva de
substancialidade/materialidade por meio da força normativa da Constituição que
condiciona materialmente a legalidade e a incorporação de novos direitos com seus
respectivos meios assecuratórios.
Como a complexização das estruturas constitucionais demandou uma
intervenção bem mais efetiva do Poder Judiciário para dar conta desse novo modelo de
Estado baseado nos direitos fundamentais (individuais e sociais), a jurisdição
constitucional passou a tomar forma220
.
No caso europeu, a inexistência de uma efetiva jurisdição sobre a
Constituição somada à necessidade de respeitar a hierarquia constitucional desde a
Constituição de Weimar fez dar vida aos Tribunais Constitucionais que fundamentavam
suas decisões respaldando-se na jurisprudência dos valores. Nesse contexto, além do
Tribunal Constitucional Federal alemão, outros excelentes exemplos de Cortes
Constitucionais instituídas no segundo pós-guerra para a realização da chamada
jurisdição constitucional com vistas ao controle de constitucionalidade das leis e da
interpretação da Constituição são o Tribunal Constitucional espanhol, a Corte
Constitucional italiana e o Tribunal Constitucional português.
É necessário notar, contudo, que o contexto latino-americano nesse período
pós-Segunda Guerra foi marcado por sofrer golpes ditatoriais, por isso os avanços
constitucionais na Europa se deram na América Latina como ruptura aos regimes
ditatoriais de forma tardia. Especificamente no Brasil, o movimento constitucionalizante
chegou em 1987-1988221
e foi definitivamente assimilado com a promulgação da
Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã, que, lembre-se, inaugurou o
Estado Democrático de Direito222
.
Então, juízes que jamais tiveram de lidar em demandas de tamanha
complexidade já que acostumados com demandas individuais viram-se diante de uma
219
IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), op. cit., p. 34 – 41. 220
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit., p. 20. 221
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p. 23. 222
DA SILVA, Rosemary Cipriano. Direito e processo: a legitimidade do Estado Democrático de Direito
através do processo, op. cit., p.1.
114
Constituição recheada de princípios que apontava para uma mudança de postura
inexoravelmente. Como descreve Ana Cláudia Bastos de Pinho:
Juízes formados na tradição positivista e acostumados a (só) decidir com base
em regras de tudo ou nada, efetuando aplicações silogísticas e operando a
partir de métodos tradicionais de interpretação, teriam, agora, de trabalhar
com princípios e acudir em questões da mais alta relevância, envolvendo
direitos e garantias fundamentais.223
Afinal, a Constituição deve constituir-a-ação224
. Em que pese alertar-se
desde já para a equivocada concepção de abertura principiológica da Constituição e sua
nefasta consequência, qual seja, o decisionismo, pois do contrário recair-se-á novamente
no gravíssimo problema da discricionariedade herdada pelo positivismo225
.
No Brasil teve grande influência a obra de José Gomes Canotilho226
na qual
pretendeu afirmar a força atuante do direito constitucional de modo que do texto
constitucional extrai-se direções sociais e políticas a influenciarem os atos do Estado,
inclusive dando novos rumos à jurisdição. A concepção de constituição dirigente
relaciona-se com a mudança da realidade pelo direito.
Contudo, no Brasil, o constitucionalismo dirigente restou fragilizado diante
dos ideais neoliberais de 1990.
A partir da invasão da “Análise Econômica do Direito” a esfera jurídica viu-
se contaminada pelas expectativas predominantes no campo econômico, em especial por
um ideal de eficiência que manipulava o critério de justiça, o que também levou ao
desprivilégio dos direitos sociais e enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.
A promulgação do texto constitucional com o extenso rol de garantias a fim
de concretizar-se o bem-estar social e, em contrapartida ao dever do Estado em torná-las
efetivas a fragilização da esfera estatal, criou-se um ambiente de maior procura do
223
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit., p. 20 224
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 78. 225
“No positivismo, a discricionariedade está presente porque, como as palavras não prendem
significados, ante a falta de clareza delas, fica tudo nas mãos do juiz, para decidir como melhor lhe
aprouver. Eis o enorme perigo de manter uma postura positivista num modelo constitucional
democrático: a corrida aos relativismos e decisionismos.” PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do
garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal, op. cit, p. 21. 226
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo
para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001,
p. 27. Não custa lembra que o próprio autor português posteriormente desencantou-se com a inefetividade
da programaticidade constitucional, isso porque passou a conviver com o enfraquecimento do Estado em
face da constituição da União Europeia. Deve-se ater, contudo, às especificidades do contexto brasileiro,
como o texto de sua própria Constituição.
115
Judiciário227
. A ampla litigiosidade veio como modo de efetivar as promessas não
atendidas pelo Estado Democrático de Direito.
Aliás, denuncia Clarissa Tassinari que o regime democrático acentua a
conflituosidade social já que neles distribui-se difusamente o poder o que aumenta a
possibilidade de surgimento de conflitos, os quais, na sociedade contemporânea, são
encaminhados para o Judiciário228
.
Infelizmente, o cenário piora quando se verifica a tendência da tutela de
direito pela via do litígio individual numa sociedade complexa cuja produção, consumo
e distribuição apresentam-se massificados cuja pluralidade deveria ser tutelada pela via
coletiva.
Ainda, o movimento de acesso à justiça incrementou a judicialização da
política na medida em que proveu meios para o ingresso no Judiciário como a criação
dos Juizados Especiais, a Defensoria Pública e a incorporação da tutela antecipada.
Enfim, a judicialização é uma questão social a respeito do maior número de
demandas decorrentes da consagração de direitos e regulamentações constitucionais, ou
seja, não é uma postura positiva ou negativa sem qualquer análise sobre o
fortalecimento da jurisdição, não depende do órgão judicante, como o ativismo, pelo
contrário, a judicialização deriva de fatores alheios e externos à jurisdição229
.
Ou seja, a judicialização é um fenômeno gerado pela insuficiência dos
demais Poderes em determinado contexto social independentemente da postura de juízes
e tribunais, enquanto o ativismo diz respeito a uma postura do Judiciário para além dos
limites constitucionais230
.
2.5. Ativismo versus garantismo
Para o melhor aproveitamento do tema, seria uma gravíssima falta deixar de
mencionar que o estudo dos antecedentes históricos desse debate se deve em grande
parte a Glauco Gumerato Ramos, um dos grandes contribuidores da relevância do tema
nacionalmente.
Em 1995, o estudioso do tema outorga como relevante marco inicial o
estudo de Franco Cipriani sob o título “Nel centeario Del Regolamento di Klein (Il
227
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p. 44-
46. 228
Ibidem, p. 46-47. 229
Ibidem, p.32. 230
Ibidem, p. 36/37.
116
processo civile tra libertá e autoritá)” em que congregou historicamente os aspectos
ideológicos em que se radicou o CPC austríaco projetado por Franz Klein:
Em síntese, CIPRIANI demonstra que o Regulamento Klein : i) encara o
processo civil como um “mal social” a gerar influência na economia
nacional; ii) tratou o processo como objeto social; iii) conferiu viés publicista
ao processo civil, com “negação” às partes; iv) reforçou os poderes do juiz no
processo. 231
Isto é, Cipriani demonstrou a criação de um juiz com grandes poderes de
direção no processo.
Em 2001, Juan Montero Aroca escreveu “Los princípios políticos de la
nueva Ley de Enjuiciamento Civil – Los poderes del juez y la oralidad”, obra que
representa sua conferência proferida nas XVII Jornadas Iberoamericanas de Derecho
Procesal, organizada pelo Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal e pela Corte
Suprema da Costa Rica na cidade de San José em 2000232
.
Em mencionada conferência, Aroca afirmou que a nova Ley espanhola não
assumiu a ideia da publicização do processo civil, contrariando a concepção reinante na
doutrina do século XX e afastando a legislação processual de seu país das diretrizes
encampadas pelo Código Procesal Civil Modelo para Iberoamérica:
Esta conferência de encerramento teria sido o despertar de um novo enfoque
ao direito processual civil, na qual foi proposto, a partir das diretrizes
políticas que segundo MONTERO AROCA orientaram a nova LEC
espanhola, que o processo civil estava passando por um momento de
mudança de paradigma, com a observação do esvaziamento de seu conteúdo
publicístico. 233
No mesmo ano da conferência foi realizado o II Congresso Internacional de
Derecho Procesal Garantista na cidade de Azul, em Buenos Aires em que foram
distribuídos aos congressistas o texto da conferência de Montero Aroca em Costa Rica e
a tradução de Adolfo Alvarado Velloso do mencionado texto de Franco Cipriani a
respeito do Regulamento de Klein. Foi então que, o autor doutrinariamente tachado de
“revisionista”234
Franco Cipriani nota a correspondência entre suas ideias e as de
231
RAMOS, Glauco Gumerato. Activismo vs. Garantismo em el proceso civil: presentación del debate,
op. cit., p. 3. 232
Ibidem, p. 6. 233
Ibidem, p. 7. 234
Por defender um processo civil italiano adequado à Constituição em vigor, opondo-se aos
negacionistas que rechaçam a ideia de que o CPC italiano de 1940 seja autoritário.
117
Montero Aroca, traduzindo ao italiano posteriormente do autor espanhol “Los princípios
políticos”235
.
Com a tradução italiana de Cipriani, Giovanni Verde publica, na Italia, um
artigo integralmente dedicado ao livro de Montero Aroca, texto que foi traduzido ao
espanhol e publicado na Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, a partir do qual a
temática se alastra na América Latina e na Europa.
Viu-se que há no Brasil notórios juristas que atrelam à ideia de ativismo
apenas a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos
valores e fins constitucionais, como a maior interferência nos outros Poderes, mas sem
recair em criação do direito236
.
Todavia, essa não é a visão apresentada aqui. O ativismo é o exercício da
função jurisdicional para além dos limites impostos, ou ainda, como resultado de
decisões judiciais fundamentadas nas convicções pessoais do julgador, ou seja,
pronunciamentos judiciais nos quais as fontes normativas são substituídas pelo senso de
quem as prolatou. Ou ainda:
O ativismo é gestado no interior da própria sistemática jurídica, consistindo
num ato de vontade daquele que julga, isto é, caracterizando uma
“corrupção” na relação entre os Poderes, na medida em que há uma
extrapolação dos limites na atuação do Judiciário pela via de uma decisão que
é tomada a partir de critérios não jurídicos.237
Nesse sentido, conclui-se pelo caráter sempre patológico do ativismo no
Estado Democrático de Direito, para o que é descabido adjetivá-lo como bom já que
sempre será ruim, não importando o resultado prático de uma decisão ativista, pois ela
sempre violará a Constituição, a Democracia e a Separação de Poderes! E isso porque,
em síntese, o Estado Constitucional, plus ao Estado de Direito, é contra concepções
ativistas como a de Jorge Peyrano que sustentam que “El activismo judicial confia en
los magistrados (...) códigos de procedimientos civiles más recientes, depositan em
manos de los jueces civiles un amplio número de facultades-deberes para mejor
cumplir su cometido de distribuir el pan de la Justicia”238
!
235
RAMOS, Glauco Gumerato. Activismo vs. Garantismo em El proceso civil: presentación del debate.
op. cit., p. 8. 236
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, op. cit., p.
279. 237
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit., p. 65. 238
PEYRANO, Jorge W. Activismo y garantismo procesal, op. cit., p. 11.
118
Assim, consoante o que fora dito sobre a distinção conceitual entre
judicialização da política e ativismo judicial, este é fenômeno que tem como ponto
observado o comportamento judicial, ou melhor, uma postura ativa e criativa.
Condizente com esse pensamento do que é o ativismo, deve-se ater ao
sistema jurídico brasileiro. O Código de Processo Civil de 1973, em seu art.130, e o
Código de Processo Civil de 2015 prevêem a prova judicial oficiosa. Apesar de tal
disposição trazer a possibilidade da prova de ofício, ela é genérica, e assim, o que o
garantismo processual afirma é que a determinação de produção de provas de ofício
pelo juiz é produto de convicções isoladas do julgador, portanto, ativista.
Reconheça-se que a autorização para atividade probatório de ofício coloca a
possibilidade de que o juiz esteja a buscar confirmações para hipóteses que ele próprio
formulou. Por outro lado, entenda-se que quando o Código assim prevê a prova oficiosa
está a passar a mensagem de que as decisões de mérito devem estar adequadas aos fatos
ocorridos, e se poucas provas podem conferir uma probabilidade pequena, a solução
encontrada será a busca por mais provas.
Viola o princípio da imparcialidade, da separação dos poderes e da
igualdade processual. De todo modo, entende-se que, em vista da lei brasileira, faz-se
necessário o reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo consoante as
considerações garantistas.
É inegável que essa previsão legal é caracterizadora do sistema misto no
processo civil brasileiro por caracterizar o juiz investigativo e inquisidor na fase
instrutória, concomitantemente com um processo regido pelo princípio dispositivo.
Aliás, relembre-se que o modelo misto é monstro processual que deve ser rechaçado
para Adolfo. Alvarado Velloso
Nesse contexto, observe que a teoria garantista está dizendo que a simples
determinação da produção de uma prova já viola a imparcialidade judicial. Isso se diz
por que a clássica objeção de que a imparcialidade judicial está preservada nos casos de
determinação judicial oficiosa da produção de uma prova porque não há como o juiz
saber o resultado da instrução probatória merece maior detalhamento para que seja
afastada.
Aliás, o autor, não aponta ao vocábulo prova um exato significado científico
de asseveração incontestável, e como tal, não opinável. Considerando situar-se no
subjetivismo da verdade, ou seja, de que cada pessoa pode considerar um fato como
subjetivamente verdadeiro, de acordo com sua percepção, prefere utilizar-se da palavra
119
confirmação, a qual significa reafirmar uma probabilidade: a rigor, uma afirmação
negada se confirma com diversos meios que podem gerar convicção (não certeza) a um
julgador e não gerar em outro239
. E assim, a confirmação não advém necessariamente de
uma prova científica que não admite opinibilidade alguma. Nesse sentido, designa como
etapa confirmatória a fase instrutória.
Aliás, Ferrajoli, no que chama modelo nomológico-dedutivo da explicação
causal, com auxílio de Popper, Hempel e Oppenheim já advertia na impossibilidade de
demonstrar a verdade, podendo apenas de confirmá-la, admitindo que “não dispomos de
um método de descobrimento ou de verificação, senão apenas de um método de
confirmação ou refutação”240
.
Então, a confirmação tem por objeto os fatos suscetíveis de serem
confirmados de acordo com os fatos afirmados pelo autor e negados pelo réu, de
maneira que, se não há fatos controversos, a questão seria somente de direito, não
havendo o que confirmar no respectivo processo, salvo aqueles insuscetívies de
confirmação: fatos evidente, normais, notórios, presumidos por lei e negativos (pois se
confirma o fato positivo). É que o autor detecta que nem tudo o que vê, ouve ou
racionaliza tem ou pode ter objetivamente a mesma entidade confirmatória, e então
expõe como meios de confirmação processual a comprovação (ou prova propriamente
dita, produz certeza), a acreditação (que significa fazer digno de crédito, produz
verossimilhança), a demonstração (produz percepção) e a convicção (que produz
probabilidade)241
.
Aquele que determina a produção de uma prova a faz com base em alguma
suspeita interna sua, algum indício de que tal alegação não é verdadeira, por isso
ativista, e ademais, acaba auxiliando algum dos lados tendo em vista o ônus da prova,
independentemente do resultado.
E assim, ao agir baseado em convicções suas, auxilia o ônus da prova,
independentemente do resultado probatório, pois a prova não é neutra, mesmo que dela
não se extraia o que se pretende.
239
VELLOSO, Adolfo Alvarado. La prueba judicial: Notas críticas sobre la confirmación procesal.
Paraguai, 2014, p.28. 240
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit, p. 141. 241
VELLOSO, Adolfo Alvarado. La prueba judicial: Notas críticas sobre la confirmación procesal, op.
cit., p.80.
120
O juiz oficioso age respaldado no princípio inquisitivo que valoriza, em
variadas medidas, regras voltadas à ampla atividade instrutória do juiz, à
desconsideração de atos de vontade das partes, à inadmissibilidade dos efeitos da
revelia, à não incidência da preclusão, entre outros, ao reconhecer-se o interesse público
do objeto discutido na lide.242
Sob tal perspectiva publicista, o ativismo consagra que os poderes
concedidos ao Estado-juiz se destinam à realização do direito objetivo com vistas a
proporcionar a pacificação social com relevância à proximidade do juízo de certeza a
partir dos elementos probatórios trazidos para apreciação na resolução de questões, ou
seja, pontos controvertidos de fato e de direito243
.
Essa conclusão coloca a prova e os deveres-poderes instrutórios voltados à
realização do direito objetivo e à formação do livre convencimento necessário do
julgador. Note que considerar o juiz como destinatário da prova é tão ativista quanto
colocar como finalidade da prova a formação da convicção do julgador.
Como se sabe, no Brasil impera o princípio da persuasão racional ou livre
convencimento motivado que consiste, nas palavras de Daniel Penteado de Castro, na
garantia do juiz “formar livremente a sua convicção (persuasão racional), de sorte que
o convencimento esteja vastamente fundamentado (livre convencimento motivado)”244
.
Mas a doutrina ativista, e para tanto utilizarei as palavras do próprio Daniel
Penteado de Castro em sua obra “Poderes Instrutórios do juiz no processo civil”
reconhece que:
Há limites do próprio saber humano que impedem uma visão completa da
realidade. O conhecimento científico mostra como algo considerado correto
atualmente pode ser definido como errôneo no futuro, ao passo que já se
afirmou que a característica marcante de uma tese científica é a possibilidade
de testabilidade e não de seu acerto absoluto. O juiz, ao ter a iniciativa
probatória, deve tomar a cautela de tornar-se um juiz inquisidor que tente a
todo custo obter a certeza absoluta como condição necessária para decidir a
demanda. Portanto, acerta a preocupação para se evitar a postura do juiz que
se compromete como um inquisidor e tende de forma desenfreada descobrir a
verdade nos autos na ânsia de fazer justiça, até porque tal medida pode vir a
protelar excessivamente a entre da tutela jurisdicional.245
De maneira cristalina explica William Santos Ferreira246
em sua obra
“Princípios fundamentais da prova cível” (em que a palavra “verdade” é inclusive
242
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 226. 243
PENTEADO DE CASTRO, Daniel. Poderes instrutórios do juiz no processo civil: fundamentos,
interpretação e dinâmica. Editora Saraiva, 2013, p. 107. 244
Ibidem, p. 107. 245
Ibidem, p. 107/108. 246
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 11.
121
evitada por reconhecer a impossibilidade de seu alcance por meio do processo se
entendida semanticamente como conformidade com a realidade), afirma que:
No processo não se busca “a verdade”, mas são empregados meios capazes
de dar condições para formação do convencimento judicial acerca dos fatos,
na medida exata do possível e razoável para permitir um julgamento. Em
poucas palavras, na sentença a verdade não é a meta, mas expectativa, ou,
tecnicamente, a máxima probabilidade. Tanto assim o é, que no caso de
incidência de uma presunção legal relativa, não havendo prova em contrário,
o juiz julga com base no fato presumido, o que nada mais é do que julgar de
acordo com a probabilidade e não com a demonstração efetiva que resultaria
no fato provado.247
Nesse sentido, entende essa doutrina que quando o Estado-juiz é chamado a
resolver o conflito somente caberá conclusões conforme os fatos de acordo com a
possibilidade de investigação para determinar a produção de provas ainda que
oficiosamente, vez que “deveres-poderes instrutórios do juiz são a ponte entre o dever
de julgar (elemento estático) e o livre convencimento motivado (elemento
dinâmico)”248
.
O caráter dúplice dos poderes-deveres, leciona José Manoel de Arruda
Alvim que a todo dever corresponde, no plano do direito público, um poder, de modo
que poder-dever constitui um binômio que se concretiza através da atividade pública
judicante. No mesmo sentido, Dinamarco assevera que os poderes do juiz ensejam
situações jurídico-processuais ativas e têm, em contrapartida, situação passiva
representada pelo dever de cumpri-los. Resumindo, como compreende Moacyr Amaral
Santos: “dever do juiz é usar dos seus poderes, movimentando a relação processual e,
desde que regular, decidir da ação e do mérito”. Mas note-se que enquanto William
utiliza-se da expressão “dever-poder”, outros utilizam-se da expressão poder-dever.
E nesse contexto, o garantismo combate a doutrina que, ainda que
excepcionalmente, subordina o poder probatório do juiz às condições de a) que se haja
esgotado a atividade das partes e b) que seja absolutamente necessário249
, ou seja, a
complementariedade judicial.
Para o garantismo, o ativismo elimina a ideia de processo como método de
discussão (concebido por Adolfo Alvarado Velloso) na medida em que o utiliza como
meio de investigação aproximando-se de um sistema inquisitivo. O garantismo
processual sustenta que os responsáveis por impulsionar e por dirigir o processo são as
247
Ibidem, p. 281. 248
Ibidem, p. 238. 249
GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a la epistemologia jurídica.
Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2011, p. 206/209.
122
partes privilegiando-se o princípio dispositivo, não o juiz (princípio inquisitivo), nesse sentido,
rechaça a prova de ofício por considerar suas raízes inquisitivas num Estado
Democrático de Direito no qual deveria prevalecer a iniciativa probatória das partes
moldada sob um sistema acusatório, até mesmo como limite à atuação do juiz e como
defesa da liberdade.
Sérgio Luiz Almeida Ribeiro relata que a iniciativa probatória judicial é
entendida também como declinadora de sua imparcialidade, não com relação às partes,
já que não se sabe qual delas será favorecida pelo resultado da prova, mas com relação
ao objeto da lide diante do comprometimento psicológico do juiz, ainda que
inconscientemente, pela convicção sentimental e ideológica em relação aos interesses e
argumentos das partes250
.
Aliás, essa influência das convicções sentimentais, ideológicas e
psicológicas consta em Ferrajoli como demonstração da sempre existente
discricionariedade do juiz e como terceiro fator limitante da verdade processual, qual
seja, o caráter não impessoal deste investigador particular legalmente qualificado que é
o juiz ainda que se esforce para livrar-se de qualquer aspecto que influencie sua
objetividade. Como visto, Ferrajoli asseverou que o juiz é influenciado por
circunstâncias ambientais (sentimentos, inclinações e emoções), seus valores ético-
políticos, a possibilidade de comprometer-se com finalidades externas à investigação de
uma determinada verdade, preconceito que o leva a valorizar criticamente uma prova
diante preconceito seu. Por isso a compreensão de que a iniciativa probatória judicial
viola a imparcialidade. Até porque a imparcialidade do juiz é vista, em Adolfo Alvarado
Velloso, nas decisões judiciais de julgadores que não consideram seus próprios
preconceitos em nenhuma esfera (não estar-se a falar das pré-compreensões
gadamerianas necessárias para a compreensão).
Além de consistir em violação à imparcialidade do juiz, configura
inobservância da separação entre acusação e julgador, ou seja, separação das funções,
pois ao Judiciário incumbe a tarefa de julgar, não de investigar. Isso porque, como visto,
o garantismo processual entende o processo como método de efetivo debate entre as
partes condicionado às diligências destas na atividade processual na qual se intenta
assegurar às partes, por meio do devido processo legal, uma ampla participação, e
portanto, valoriza a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz com a
250 RIBEIRO, Sergio Luís Almeida. Porque a prova de ofício contraria o devido processo legal?
Reflexões na perspectiva do garantismo processual, op. cit., p. 639-647.
123
máxima restrição dos poderes dos juízes251
. É o Axioma 8 do sistema garantista de
Ferrajoli: princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação.
Nas palavras de Sergio Luiz Almeida Ribeiro:
Ao juiz compete atuar como um espectador, um terceiro imparcial, não
podendo criar ou modificar as regras do processo, tampouco produzir provas
como investigador dos fatos, sob pena de promover um desequilíbrio na sua
imparcialidade em relação ao objeto da demanda.252
Nesta direção, o garantismo não admite sequer poder instrutório
complementar por parte do juiz, como já mencionado anteriormente:
...ainda quando normativamente seja estabelecido que logo após a etapa
instrutória deve realizar-se um juízo ora, público e contraditório entre as
partes, onde a prova será formada e controlada por elas, se este modelo
confere poderes instrutórios residuais ao tribunal que deve decidir o caso,
pode sustentar-se que a garantia da separação de funções continua sendo
violada e, por tanto, também as garantias da imparcialidade e do ônus
probatório.253
Respondendo então à pergunta feita anteriormente: seria possível negar
poderes instrutórios oficiosos ao juiz quando o que está em debate no processo é de
caráter indisponível? Ou seja, poderá o juiz, na omissão das partes, determinar as provas
necessárias à instrução da causa?
Essa pergunta é de extrema relevância porque o que se percebeu da doutrina
brasileira colhida é que reconhecem que o julgador não deve se tornar em inquisidor,
mas temem quando retiram das mãos dos juízes o destino de direitos fundamentais.
Eles, de certa forma, acreditam no Judiciário em consideração às mazelas da
desigualdade social no Brasil. E o que o garantismo ensina é que não cabe ao juiz sentir-
se responsável por essas mazelas.
Tanto é assim que, para João Batista Lopes, a utilização do poder oficioso
judicial deve depender do que está em jogo no processo, ou seja, se o direito tem caráter
disponível ou não254
.
De fato a doutrina costuma correlacionar a postura judicial ativista norteada
pelo princípio inquisitivo à indisponibilidade do direito255
(ou ao argumento de que a
finalidade do processo é a verdade), o que é errôneo na visão de William Santos Ferreira
251
Ibidem, p. 639. 252
Ibidem, p. 640. 253
GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a La epistemologia jurídica,
op. cit., p. 197. 254
BATISTA LOPES, João. Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional, op. cit., p.
24 – 67. 255
FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 227.
124
que considera não haver qualquer relação entre o direito material e os poderes do juiz,
mas sim uma opção do sistema jurídico por uma atividade instrutória mais incisiva com
preocupações relacionadas ao livre convencimento motivado.
Certamente João Batista Lopes não está a confundir a relação material e a
processual, ou estaríamos renegando a envergadura intelectual deste autor. Parece,
outrossim, que está a corroborar com a preocupação de William em dizer que a
atividade instrutória oficiosa recai na convicção do julgador para que somente dê o
direito a quem tem, não incorrendo em erro. Note-se: a preocupação do autor, se certa
tal conclusão, está em deixar de dar direito a quem tem, especialmente quando este é
uma parte frágil acompanhada de um advogado sem grande técnica e experiência.
Infelizmente, é o juiz solidário.
Ocorre que ao concluir que “se indisponível o direito, o juiz pode
determinar as provas necessárias quando da omissão da parte”, o autor condiciona os
poderes oficiosos do juiz ao direito material objeto do processo, vez que em se tratando
de direito material disponível o juiz não deve utilizar-se de tais poderes.
Ao que parece, João Batista Lopes está a fazer um juízo de ponderação,
ainda que inconsciente, entre a retirada pontual (porque não se quer admitir violação) de
controle exclusivo na gestão da prova pelas partes (o que decorreria da competência
concorrente com a oficiosidade judicial na determinação da produção da prova) e o
benefício gerado pelo resultado daquela prova ao direito da parte que será beneficiada
com o resultado da instrução, além de cumprir com o sentimento íntimo do juiz na
busca da exatidão jurídica da resposta ao caso apresentado ao julgador? E nesse
contexto, se estiver em jogo direito indisponível, o benefício terá maior peso do que o
controle exclusivo das partes na gestão da prova.
Mas, se sabemos, não é possível adivinhar o benefício a ser tido pela
produção de determinada prova (argumento muito utilizado para justificar que não há
quebra na imparcialidade do juiz ao determinar a produção de uma prova), a conclusão
é única: apriorísticamente, em abstrato, se está admitindo a relevância do direito
material, quando indisponível, sobre o direito processual de exclusividade das partes no
requerimento das provas consequência do princípio dispositivo. Poder-se-ia dizer que
não há direito exclusivo, já que o próprio Código de Processo Civil admite a
oficiosidade judicial. Mas lembre-se que o garantismo parte do pressuposto que tal
permissão é inconstitucional tendo em vista que viola o princípio da imparcialidade já
que está o juiz oficioso sendo conduzido por intuições suas a respeito da falta de
125
confiabilidade nas alegações e dos eventuais suspeitas sobre os resultados da produção
probatória.
É que (i) a participação do juiz na formação da prova afeta gravemente sua
imparcialidade, pois indefectivelmente se envolve com uma hipótese que logo tende a
confirmar e, além disso, (ii) uma investigação desenvolvida por um juiz unilateralmente
dificulta a detecção dos erros em que se poderia haver incorrido e de contaminações nos
elementos probatórios. Em palavras mais simples: Quem pergunta o faz porque algo em
mente tem, caso contrário não o faria, e o faz de certa maneira porque considera esta
forma mais correta de fazê-lo, de modo que reconhecer qualquer vício/falsidade/erro
nesta atividade lhe será de grande esforço! Afinal, todo esforço próprio, comprova a
experiência humana aqui representada pela pesquisa empírica com os juízes americanos,
parece ser mais digna de reconhecimento do que o alheio, o que implica que um juiz
que toma sobre si o trabalho de provar o fato estará mais disposto a reconhecer os frutos
dessa ação própria, que já há implicado uma predisposição de sua parte baseada na
crença sobre a veracidade da acusação e a possibilidade de comprová-la256
.
Também não valeria assumir que sopesando a imparcialidade e a defesa dos
direitos indisponíveis devem estes ter maior peso num juízo de ponderação, já que o juiz
deve-se utilizar de todos os meios possíveis para fazer justiça! Essa afirmação só seria
válida em um sistema autoritário e que ignora toda a construção histórica que culmina
no processo apontada por Adolfo Alvarado Velloso.
Nesse contexto, pergunta-se novamente: é possível sustentar a prova
oficiosa quando for favorável ao acusado? Questiona-se porque há autores que
defendem que só neste único caso poderia o juiz conduzir uma tarefa investigativa
dispondo de ofício acerca da realização de uma prova não proposta pelas partes
considerando que seu resultado será favorável ao acusado.
Como já respondido, ainda que de boas intenções, tal postura seria
equivocada! Afinal, como ensina Abel Flemin e Pablo López Viñals257
, as provas não
são neutras!
Com supedâneo em Nicolás Guzmán258
, o juiz deve limitar-se a julgar a
respeito dos fatos que lhe são apresentados pelas partes em forma de hipótese e em
256
FLEMING, Abel; LÓPEZ VIÑALS, Pablo. Garantías del imputado. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni,
2007, p. 625/631. 257
Ibidem, p. 625. 258
GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Uma contribución a La epistemologia jurídica,
op. cit., p. 197-214
126
função dos elementos de prova que são obtidos no processo como contraditório entre
elas de modo tal que sua participação na busca e formação da prova deveria restringir-se
ao máximo.
E isso não apenas pela violação à imparcialidade gerada com o
envolvimento do juiz na condução da prova, pois como já dito, as provas não são
neutras e elas ao fim e ao cabo, beneficiarão uma ou outra parte, ou seja, servem para
convalidar ou desvirtuar a hipótese em que se baseia a acusação e por tal razão quando o
Tribunal decide a seu modo produzir uma determinada diligencia não está fazendo outra
coisa que suprir a insuficiente atividade do órgão requerente ou da defesa, com o que se
afeta sua imparcialidade259
.
Mas também porque (iii) tal conduta judicial é inútil, pois, com o exemplo
do âmbito penal, se a culpabilidade não foi comprovada, ou seja, quando não foi
confirmada com um grau suficiente (além de toda dúvida razoável), a absolvição deve
resolver-se em função do estado de inocência pela regra do in dúbio pro reo, mas se o
resultado da prova for desfavorável para aquele, o elemento probatório assim obtido se
transforma em prova de acusação que deverá ser valorada por esse mesmo juiz para
resolver o caso.
É por isso que repetidamente Adolfo Alvarado Velloso afirma que o juiz só
produz prova para condenar, já que de outra forma não faz sentido ordenar a prova já
que com a dúvida já é possível afastar a hipótese afirmada pela parte que alega. E é
também por isso que o autor afirma que não é necessário conhecer a verdade do
acontecido para resolver o caso e muito menos deve buscá-la, posto que quando não
chega a conhecê-la conta com os critério jurídicos (o princípio da inocência e o in dúbio
pro reo) que lhe dão as armas necessárias para decidir260
.
Nas palavras de Nicolás Guzmán: “La comprobación de la verdad de la
hipótesis acusatória correrá por cuenta de quien tiene la carga de la prueba, es decir,
el acusador”261
.
Se o direito em jogo é indisponível, a única afirmação que se pode assegurar
em um modelo democrático é que neste modelo a participação dos sujeitos processuais
ganha em importância para o deslinde da causa e consequentemente maior
responsabilidade terão seus procuradores na investigação e apresentação de provas. Se
259
FLEMING, Abel; LÓPEZ VIÑALS, Pablo. Garantías del imputado, op.cit., p. 625/631. 260
GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a La epistemologia jurídica,
op. cit., p. 209. 261
Ibidem, p. 209.
127
estes não são tecnicamente satisfatórios, o sistema, por outros meios, educacionais e
executivos, além do próprio mercado, é que devem tratar desta questão. Não se está
aqui, observe, falando que o Judiciário não deve prover na omissão dos outros Poderes
quando a Carta Magna reconhecer um direito a uma parte, mas se está aqui somente
falando de sua conduta probatória para a decisão sobre a existência de tal direito
faticamente. Diz-se isso porque se a Constituição dirigente prevê o direito a uma vaga
em uma escola pública, aquele que busca o Judiciário pela omissão do Executivo deve
tê-la.
O garantismo vê a prova oficiosa como violação ao princípio dispositivo e
incompatível com a garantia do devido processo legal, por “impor à parte uma
providência jurisdicional não requerida, ferindo-lhe a liberdade individual de
participação no processo e a sua faculdade de disposição, assumindo o ônus da sua
escolha”262
.
E a degeneração da imparcialidade se afirma porque, como demonstrado
pela pesquisa empírica colacionada neste trabalho, é possível reduzir os erros
sistemáticos das ilusões cognitivas, mas jamais exterminá-las. Se demais sistemas
sociais puderem demonstrar que o juiz conseguiria desvincular-se de suas ilusões e não
recair em erros sistemáticos, aí ter-se-ia que considerá-la.
É também contra a inversão das cargas probatórias legais mediante a utilização do
conceito de cargas dinâmicas, acusando o juiz de trocar as regras do jogo no momento
de sentenciar apesar de serem outras as regras observadas pelos litigantes durante o
decorrer do processo. Ainda que o momento acerca da dinamização do ônus probatório
seja anterior à fase instrutória, as partes iniciariam um processo sem conhecer as regras
do jogo? É verdade que a distribuição dinâmica do ônus da prova não significa inversão,
mas significa alteração, ainda que excepcional, à clássica distribuição do ônus
probatório, ainda mantida no Novo CPC, não esqueça-se, pela qual cabe ao autor,
quanto ao fato constitutivo de seu direito e ao réu, quanto à existência de fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
De fato, a apresentação do juiz como protagonista do sistema que com
imparcialidade julga corretamente é de ser contestada. O “mito da imparcialidade
(neutralidade) como blindagem ao elemento anímico do juiz faz crer no seu
262
RIBEIRO, Sergio Luís Almeida. Porque a prova de ofício contraria o devido processo legal?
Reflexões na perspectiva do garantismo processual, op. cit., p. 643.
128
desinteresse no julgamento, de modo absoluto, conduzindo ao desprezo de suas pré-
compreensões”263
.
Para as teorias garantistas processuais, o Poder Executivo é, por essência, o
gestor dos interesses coletivos, enquanto os juízes não devem ditar suas sentenças sobre
a base de argumentos de utilidade e que claramente não sejam gestores de interesses,
que é a base da imparcialidade.
Nas palavras de Alberto M. Binder, em uma República Democrática de base
igualitária, o juiz não poderia alegar que sua legitimidade surge de alguma capacidade
ou herança aristocrática ou de sua adesão a uma moral ou religião particular, tampouco
de sua maior capacidade para captar valores ou dá-lhes forma concreta264
, ao que se
adere.
As considerações trazidas quando se abordou o neoconstitucionalismo e a
construção histórica trazida neste trabalho demonstrou que o decisionismo que atingiu o
sistema brasileiro se deve ao sujeito solipsista que se tornou o julgador conjugando a
Democracia com a possibilidade de atingir e efetivar a ordem concreta de valores que
entende estar disposta na Constituição de 1988.
Alberto M. Binder assume a legitimidade do juiz por seu compromisso com
a verdade mas paradoxalmente reconhece a verdade como tão importante que não deve
o juiz buscá-la, pois, em defesa do sistema adversarial, ensina que deve o juiz exigir a
verdade dos acusadores!
Ocorre que na Democracia o foco de tensão se volta para o Judiciário, pois o
Direito, nestes quadros, é um instrumento de transformação. Aliás, o fenômeno de
expansão da competência do Judiciário, já percebida por Mauro Cappelletti, não é
privilégio do Brasil, como denuncia Lenio Streck265
, mas é um fenômeno próprio das
sociedades contemporâneas, bem como são os aumentados poderes legislativo e
executivo.
O que se está a dizer é que as considerações garantistas são de imensa
importância para combater o atual estágio depressivo da jurisprudência brasileira,
porém, percebe-se sua veia liberal.
263
NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Disponível em: http://justificando.com/2014/10/09/processo-e-
republica-uma-relacao-necessaria/. Acesso em: 09.08.2015. 264
BINDER, Alberto M. La implementación de La nueva justicia penal adversarial. Buenos Aires, 2012,
p. 221. 265
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da
Construção do Direito. 5ª. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 55.
129
Nos quadros da Constituição Brasileira de 1988 que inaugurou o Estado
Democrático de Direito, nossa Constituição Cidadã, não lhe é possível negar o caráter
de programática e dirigente, o que não quer jamais dizer que substitui a política. Ocorre
que torna-se premissa material da política, de maneira que as inércias do Executivo e a
falta de atuação do Legislativo serão supridas pelo Judiciário mediante os mecanismos
democráticos constitucionalmente previstos266
! E assim, muito cuidado deve-se ter
quando se diabolizam os “solidarismos” do Judiciário!
Claro é que não se está aqui de falar de solidarismo como defesa do mais
fraco, do pobre, do que se acha mal ou pior defendido, muito visto na Justiça do
Trabalho em que prevalece o entendimento de que é um poder que cuida apenas do
interesse do trabalhador, e não da relação de trabalho. O empregador sabe que em
muitos casos o empregado que recorre à Justiça termina indenizado após uma audiência
de martirização do juiz.
Está-se falando de fazer acontecer a principiologia e a normatividade
constitucional democrática, claro que independementemente da riqueza ou pobreza, da
saúde ou da doença, da alegria ou da tristeza de uma dar partes.
A crise de dupla face que acomete o direito e a dogmática jurídica nos
países de modernidade tardia, abordada por Lenio Streck , já aponta que o pensamento
jurídico dominante continua lidando com o fenômeno jurídico consoante o paradigma
liberal absenteísta próprio do legalismo econômico reinante ao tempo do Estado
Liberal-burguês.
Ocorre que enquanto o constitucionalismo nasceu como fenômeno
histórico-político cuja função consistia em limitar e racionalizar o poder político por
meio da previsão de regras acerca da atividade do Estado, impondo limites ao poder
soberano pela divisão de poderes (afinal o direito constitucional não surgiu no século
XX, mas se desenvolveu por séculos visando coibir os excessos do Poder Público), a
Constituição Federal Brasileira de 1988 resulta do constitucionalismo democrático do
século XX a partir de Weimar, e nesse movimento histórico as Constituições foram
além com o objetivo primordial de assegurar a existência de alguns princípios
constitucionais fundamentais.
Veja-se: o século XIX colheu os frutos do desenvolvimento do Estado
funcionalizado por meio de uma Administração Pública assentado do Estado
266
Ibidem, p. 55.
130
Absolutista do medievo em que as funções governamentais começaram a se
especificar267
tendo sido dominado pela ideia liberal de uma forma de governo
constitucional e parlamentar. Mas no século XX, parte dos modelos liberais da Europa
foram modificados, pois foram dados passos em direção ao Estado-providência como
consequência das fortes práticas constitucionais. E bem, o final da Segunda Guerra
Mundial marca a evolução para uma nova ordem social, política e jurídica.
Em sendo assim, os textos constitucionais estabelecem princípios e direitos
fundamentais a serem promovidos e respeitados pelos três poderes, sendo a lei um dos
principais instrumentos normativos para implementá-los.
A crítica de Adolfo Alvarado Velloso é que, o juiz solidário, por ter a tarefa
de praticar justiça comutativa, quando pratica piedade com relação às partes, pratica
justiça distributiva sem ter os elementos para poder fazê-lo: em primeiro lugar, a
legitimidade da escolha pelos votos do povo; logo, pressuposto adequado,
conhecimento da realidade geral e do impacto que causará na sociedade o dar a uns o
que as circunstancias da vida negam a outros268
., etc.
Ocorre que ao falar de falta de elementos, pode o autor estar se referindo a
falta de normas regulamentadoras ou falta de possibilidade financeira pelo Estado.
Então, a primeira faceta para a falta de elementos que se precisa ter cuidado
é a inexistência de regulamentação legal de uma hipótese e que poderia inviabilizar o
reconhecimento de um direito fundamental e social. Bem, sob uma concepção jurídico-
formalista vigente em face da inexistência de normas a regular os casos, com relação à
divisão das funções de poder e ou repartição de competência, não cabe ao Judiciário
legislar e, portanto, em estando ele vinculado à lei, sob uma perspectiva
procedimentalista, não poderia julgar.
Ocorre que, quando se trata da proteção de direitos, não resta alternativa
àqueles que se veem privados dos meios necessários ao seu exercício a não ser buscar o
Judiciário, devendo este agir por uma visão constitucional e substancial, pautando seu
agir em princípios. Caso diferente, aliás, é quando o magistrado precisa declarar a
inconstitucionalidade de lei. Não se está aqui a defender que se passe por cima da
legalidade.
267
Surge a figura do funcionário e dos elementos do conceito moderno de Estado, quais sejam, povo,
território e soberania. 268
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op.cit., p. 43.
131
Ademais, em se tratando da segunda faceta, é verdade que há um problema
quanto à “reserva do possível”, ou seja, que o Estado não tenha “elementos” para a
concretização dos direitos fundamentais e sociais previsto no texto constitucional.
Afinal, o texto constitucional apresenta um rol exemplificativo de direitos, sejam eles
individuais ou sociais fundamentais, o que lhe rendeu o nome de “Constituição Cidadã”.
Ocorre, no entanto, que os referidos direitos não se encontram efetivados em sua
plenitude no mundo dos fatos. E a reserva das possibilidades fáticas e jurídicas do
Estado não tem como consequência a ineficácia jurídica dos direitos estabelecidos
constitucionalmente. E assim, clamar por um intervencionismo onde o processo político
falha, onde o Legislativo e o Executivo se omitem, como na implementação de políticas
públicas e dos objetivos sociais nela implicados, caberá ao Poder Judiciária uma postura
ativa (não ativista).
A tese substancialista parte exatamente da assunção de uma postura que
pode ser entendida como intervencionista, distinguindo-se da postura absenteísta liberal.
Além disso, a crítica do autor ao juiz solidário advém porque “quem assim
atua não cumpre uma tarefa propriamente judicial, em razão de que com isso não se
resolvem conflitos intersubjetivos de interesses, que é a essência da tarefa de outorgar
justiça comutativa”269
, pois estaria o juiz que assim atua praticando justiça distributiva
sem ter os elementos para poder fazê-lo.
E aqui se visualiza uma terceira faceta da afirmação do autor. O que com
maior clareza se pode extrair de sua conclusão é que devem ser afastadas, por exemplo,
as concepções “de justiça” próprias do julgador, ao que se adere. Não se pode aceitar a
tese pragmatista de que o juiz deve tentar melhorar a lei sempre que possível ou que o
bom juiz prefere justiça à lei, inventando o direito em nome da justiça.
Mas com o que não se concordaria é com o não colocar a Justiça sobre a
Constituição se essa afirmação levar ao esquecimento de que a Justiça é ideal político
inserido no núcleo mínimo da própria Constituição brasileira. E se isso for esquecido ou
ignorado, recair-se-á na conclusão de que deve-se aplicar o direito posto pouco
importante se sua decisão é justa ou injusta, afinal, consoante sua concepção, o
procedimento será legitimante de seu resultado.
269
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 206. Tradução livre: “(...) quien así actúa
no cumple una tarea propiamente judicial, en razón de que con ello no se resuelven conflictos
intersubjetivos de intereses, que es la esencia de la tarea de otorgar justicia conmutativa.”
132
Note-se que Alvarado não está, jamais, a afirmar que um processo seja
injusto ou inverdadeiro. O processo não “quer” é óbvio, não ser verdadeiro ou ser
injusto. O que o autor está a chamar a atenção é para a difusa ideia de que o juiz deve
buscar a verdade real já que o processo tem que propagar a justiça. Em terras de
ativismos, a verdade (eis a retoricidade do termo) é que no discurso jurídico a “verdade”
muitas vezes apenas legitima um raciocínio íntimo de quem dela se utilizar. Além disso,
sustentar que o processo busca a verdade (real) leva à consequente afirmação de que
deve-se atribuir ao juiz/intérprete poderes instrutórios suficientes para que se certifique
da certeza de que os fatos ocorreram tal como parecem ter ocorridos no processo,
assumindo uma tarefa investigativa até sentir-se convencido.
Ocorre que não se pode olvidar a história do constitucionalismo no Brasil e
o dirigismo da própria Carta Constitucional, para que a necessidade da efetivação de seu
texto faz-se imperativa pelo próprio Judiciário. A concepção de Estado Democrático
que se está a defender consoante a história brasileira sustenta uma certa redefinição da
separação de Poderes.
133
3. A COOPERAÇÃO PROCESSUAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL
3.1. Do processo liberal ao processo social
Far-se-á uma breve apresentação histórica dos dois “modelos processuais”
clássicos: o liberal e o social, analisando também seu desenrolar no contexto brasileiro.
Isso porque a discussão processualística atual tem abordado um terceiro
modelo designado como cooperativo produto do esgotamento e das degenerações dos
dois modelos que comumente divide a teoria processual: o inquisitivo e o dispositivo.
O Estado Liberal, resumidamente, desincumbia-se dos domínios
econômicos e sociais abstendo-se em prol do predomínio da liberdade individual e
concorrencial. Coerentemente, no processo liberal predominava a igualdade formal dos
cidadãos, a escritura270
e o princípio do dispositivo em consonância com a
imparcialidade do juiz e com o comportamento passivo deste. Ademais, neste modelo
de processo o contraditório se reduzia a uma mera bilateralidade de audiência.
Considerando esse conjunto, resta clara a predominância do protagonismo
processual das partes e a posição de mero espectador que possuía o juiz, mero aferidor
do resultado do duelo dos litigantes. É o que se também vê nas exposições de Alvarado
Velloso, em que pese os inúmeros acertos da teoria garantista, aos quais se adere.
Era assim que o liberalismo processual permitia a manipulação do processo
pelas partes, o que gerou claras insatisfações e degenerações sistêmicas resultando no
seu consequente esgotamento no curso do século XIX.
Concomitantemente à percepção dos problemas que o modelo liberal de
processo gerava e à progressividade das mazelas da sociedade industrial do século XIX,
vieram legislações sociais e a defesa do direito como instrumento de transformação
social.
Em busca da melhoria da técnica processual, no final do século XIX
começou a se fortalecer o modelo de processo socializador na doutrina austro-
270
Para Mauro Cappeleti, o princípio da escritura “segundo o qual o juiz devia julgar apenas com base
nos escritos, sem nunca entrar em contato direto (e, por conseguinte, oral) (...) Era, na realidade, a
barreira, o diafragma que separa o juiz do processo e daqueles que do processo são os verdadeiros
protagonistas privados.” In CAPPELETI, Mauro. O processo civil no direito comparado. Belo
Horizonte: Cultura Jurídica, 2002, p. 39-40.
134
germânica271
que ganha força a partir do delineamento do paradigma de Estado de bem-
estar social.
Como não poderia deixar de ser, essa nova linha teórica defende uma maior
intervenção estatal criticando a lógica liberal de abstenção estatal e predomínio da
liberdade individual.
Seus maiores inspiradores são Anton Menger, Franz Klein, no âmbito
legislativo, e Oskar Von Bülow.
Em síntese, Anton Menger criticava os ideais liberais respaldando-se na
conclusão de que na luta de classes os ricos sempre eram privilegiados ao se tomar por
base a ótica da igualdade formal272
.
Para Menger, o juiz possuía um duplo papel, quais sejam,
extraprocessualmente, a de educador, pelo qual deveria o juiz instruir todo cidadão
acerca do direito vigente, de modo a auxiliá-lo na defesa de seus direitos, e
endoprocessualmente, a de representante dos pobres.
Ou seja, tinha o juiz que compensar as desigualdades materiais entre as
partes mantendo sua atenção nas minorias como a mulher, o trabalhador, o menor, e etc.
Essas considerações foram decisivas para a obra Magna de Franz Klein273
,
qual seja, o Código Processual Civil Austríaco, considerada a primeira legislação
tipicamente socializadora (OZPO de 1895).
Nascido em 1854 em Viena, onde estudou e se formou em direito, o
pensamento de Klein resultou das observações tidas em sua experiência profissional.
Como advogado, Franz Klein observou a prática de abusos e condutas maliciosas. Aliás,
continuando com sua formação, recebeu a “vênia legendi” por um importante trabalho
sobre a conduta processual maliciosa das partes.
Ademais, importante notar o que antecedeu a obra Magna deste jurista.
Desde o ano de 1781 vigorava o chamado Código Josefina, também chamado de
Código General dos Tribunais (Allgemeine Gerichtsordnung (AGO) o Josephinische
Gerichtsordnung) que estabelecia o procedimento civil aplicável ao Império Autro-
húngaro implantando um sistema baseado na escrita, no sigilo e no sistema de prova
271
JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,
FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 63. 272
MENGER, Anton. El derecho civil e lós pobres. Atalaya: Buenos Ayres, 1947, p.69. apud NUNES,
Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012, p. 80.
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012,
p. 81.
135
legal ou tarifada. Na atividade contenciosa, a colheita das informações fáticas e a
decisão eram atribuídas a juízes diferentes274
.
Os processos tinham uma excessiva duração no tempo, ao juiz faltava poder
para coordenar o processo, e, por fim, era absolutamente irrelevante qualquer aspecto
relacionado com a verdade, de modo que permitia o êxito da parte mais forte e com
maior poder para influenciar no caso275
.
Assim, Klein o influenciou de maneira a defender, diversamente dos
modelos reformistas liberais, uma reestruturação do papel das partes e dos juízes com
acentuação da função social do processo. Visionava no processo escopos político, social
e jurídico, “o juiz, na esteira do pensamento mengeriano, deveria auxiliar as partes
buscando o clareamento dos requerimentos obscuros, sugerindo o preenchimento de
detalhes incompletos e impedindo que o engano ou desconhecimento na sua elaboração
inviabilizassem o julgamento”276
.
De novas técnicas legislativas de elaboração das leis com a adoção de
conceitos indeterminados decorreria sua cultivada e esperada postura judicial.277
Nessa perspectiva, a contribuição de Franz Klein (social) e Adolf Wach
(liberal) ao desenvolvimento do processo civil europeu e contemporâneo tiveram uma
série de coincidências e diferenças na missão e visão reconhecidas pelo processo e pela
justiça civil. Ambos tiveram o êxito de identificar os três padrões ou variáveis que se
relacionam com uma boa administração de justiça, o que já havia sido mencionado por
J. Bentham278
.
Ainda, a linha de Oskar Bulow, mencionada no tópico anterior, gerou a
autonomia do estudo do direito processual inaugurando o “processualismo científico”,
no final do século XIX por Oskar Bulow, parcialmente sistematizado ainda àquele
tempo por Adolf Wach.
Nesse sentido, ao estruturar a autonomia da ciência processual a partir do
desenvolvimento da concepção de relação jurídica, concebe-se uma relação publicística
274
RAGONE, Álvaro J. D. Pérez. Retrato del revisionismo garantista en el proceso civil a través de
Klein y Wach:algunas precisiones sobre eficiencia y derechos procesales. In Revista de Processo. Vol.
233/2014. P. 241 – 269. 275
RAGONE, Álvaro J. D. Pérez. Retrato del revisionismo garantista en el proceso civil a través de
Klein y Wach:algunas precisiones sobre eficiencia y derechos procesales, op.cit. P. 241 – 269. 276
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op. cit., p. 83 277
Ibidem, p. 85. 278
RAGONE, Álvaro J. D. Pérez. Retrato del revisionismo garantista en el proceso civil a través de
Klein y Wach: algunas precisiones sobre eficiencia y derechos procesales, op. cit., p. 241 – 269.
136
lastreada primordialmente na figura do juiz. Dessa maneira, as partes seriam meros
colaboradores ao se buscar uma aplicação livre e subjetiva do direito.
Conforme o exposto, é evidente que essa linha teórica idealizada e
sistematizada por Menger, Klein e Bülow, entre outros, assume uma posição estatalista
(socializadora) com direcionamento ao enfraquecimento do papel das partes e ao
protagonismo judicial.
Essa defesa (do modelo social autoritativo) até é compreensível quando nos
atemos ao fato de que é fruto da luta contra as degenerações da aplicação liberal do
direito a qual impôs o predomínio dos interesses privados em detrimento dos sociais,
não no atual momento de Estado e da Ciência processual, quando a única opção aceita é
a falta de protagonismo de qualquer um dos sujeitos processuais.
Dito de outra forma: o processualismo fez oposição ao praxismo que
concebia, no final do século XIX, o processo como um mero apêndice do direito
material. A opção pela compreensão de “processo” demonstra que além deste não se
confundir com o direito material debatido entre as partes, manteve-se a subordinação
entre as pessoas e que contém um conceito de jurisdição como atividade do juiz.
No Brasil, a tendência legislativa socializadora que formula o papel ativo do
juiz foi implementada pelo Código de Processo Civil de 1939.279
Contudo, no território nacional essa tendência ganhou contornos próprios,
como por exemplo, quanto ao princípio da oralidade caracterizante desse modelo, em
que a distância existente entre a lei e a realidade no nosso país nos revela que a
oralidade acaba por esfacelar-se quando as argumentações foram e são reduzidas a
escrito.
Ademais, a título elucidativo, Dierle Nunes ressalta que,
de fato, o único aspecto da socialização que se implementou no Brasil foi o
de se reforçar o papel da magistratura e a credulidade de sua superioridade,
ao se partir de um suposto privilégio cognitivo que encontra suas bases no
âmbito da teoria do processo, no pensamento de vários autores, mais
notadamente, Oskar Von Bulow”280
.
Os contornos próprios da tendência socializadora no Brasil traz a lembrança
sobre o questionamento de uma existência de fato do Estado Social no território
nacional, em virtude de um percurso histórico diverso na conquista de direitos, o que
afasta a história brasileira da europeia. No Brasil aponta-se a centralidade do tema do
279
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op.cit., p. 98. 280
Ibidem, p. 98.
137
direito e da justiça a partir da década de 1980 no País, em que,“[...] vinda a abertura
política e a redemocratização, o Judiciário voltou a ter voz ativa.
É possível, desta maneira, abordar o surgimento do Movimento pelo acesso
à justiça a partir de apontamentos de momentos históricos situados após a Segunda
Guerra, numa espécie de evolução teórica do conceito de acesso à justiça, intimamente
relacionada à construção de um Estado Social, como momento posterior ao Estado
Liberal.
De fato, ao investigar o tema “acesso à justiça” são encontradas diversas
considerações que, se por um lado aparentam a obviedade do sentido social ao se tratar
de justiça, por outro, muitas vezes se misturam em tecnicismos, processualismos e mera
exegese legal. Aqui nos remetemos ao sentido proveniente de pesquisa de campo
realizada pelo Projeto Florença, que resultou em Relatório Geral mais conhecido
simplesmente por “Acesso à Justiça”, redigido por Mauro Cappelletti e Bryant Garth.
Esta pesquisa trouxe não só o estudo do tema, mas um novo enfoque social
do direito. As discussões quanto ao acesso à justiça ultrapassaram os limites colocados
pelo Projeto Florença, de tal maneira que, muitas vezes, ao ser mencionado o termo
“acesso à justiça”, assimila-se, automaticamente, este como sinônimo do conceito dado
pelo Projeto em questão.
O ápice do movimento socializador se deu com o Projeto Florença de
Acesso à Justiça281
, momento em que ocorreu no Brasil reformas do processo civil
brasileiro com a introdução em nossos sistemas de algumas novidades como a ação civil
pública além de alterações no sistema já em vigor em prol da socialização processual282
.
Houve, no plano acadêmico, um incentivo ao estudo acerca das finalidades
da jurisdição e do reforço do papel dos juízes, enquanto no plano doutrinário apareciam
obras a respeito da instrumentalidade do processo e dos poderes do juiz com tendências
socializadoras.
No modelo reformista brasileiro junto à tendência socializadora se deu uma
subversão das próprias ideias dos socializadores (entre eles as de Dinamarco), vez que
estes buscaram uma colonização do Direito pelos imperativos do Mercado, como vem
281
Ibidem, p. 115. Ademais, nesta mesma obra, Dierle Nunes relata que o movimento de acesso à justiça
surgiu exatamente no momento histórico em que a crise do Welfare State estava plenamente
implementada pela incapacidade do Estado provedor de cumprir e aplicar as suas promessas. 282
O Projeto Florença de Acesso à Justiça que envolveu 23 países representados por grandes juristas
nacionais, do qual decorreu o movimento pelo acesso à justiça com o desenvolvimento de ondas de
reforma voltadas à assistência judiciária, à tutela efetiva dos interesses difusos e coletivos e à
simplificação de procedimentos
138
sendo realizado de modo sub-reptício e sob o rótulo de ‘socialização’ pelo aqui
chamado neoliberalismo processual”283
.
Apostava-se na virtude de um órgão decisor para captar uma ordem concreta
e homogênea de valores compartilhados pela comunidade, ou seja, para identificar os
sentimentos e as vontades de todos os membros. Desse modo, o processo se torna mero
instrumento de aplicação de um ideal já predefinido e de acordo com os sentimentos da
comunidade sensíveis ao julgador.
Contudo, claro é que depender da captação de uma ordem concreta de
valores por um sujeito (nesse caso, o julgador) de maneira solitária, especialmente se
considerarmos a história brasileira de distorções entre o interesse social e interesses
funcionais do mercado ou da própria Administração Pública (e seus agentes estatais),
significa ignorar grandes riscos de dominação.
Aliás, parecia se estar olvidando da estrutura complexa e plural de nossa
sociedade que impossibilita a própria captação desses valores.
Fato é que na contemporaneidade, após a evolução da Ciência Jurídica
considera-se impensável e ingênua a sustentação de qualquer forma de protagonismo,
seja o das partes ou o do juiz, conclusão que decorre do perfil democrático que se espera
de um processo, análise que será aprofundada no decorrer do presente estudo.
A única premissa aceitável nessa discussão é a de que o Estado
Constitucional de Direito extirpou qualquer concepção de monopólio das partes na
instrução da causa com consequente abandono da concepção do juiz espectador!
3.2. Apresentando a cooperação/colaboração
Viu-se que os movimentos reformistas iniciados no final do século XIX
serviram como ponte de um processo liberal a um processo social que permitiu o
fortalecimento dos poderes judiciais tanto no seu aspecto formal, de regular e promover
a ordem e o ritmo dos atos do processo, quanto no aspecto material, de ofertar ao órgão
judicial controle e iniciativa oficiosa no recolhimento do material que formará o objeto
de juízo sobre o mérito.
Era o Estado paternalista na esfera judicial.
283
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op.cit., p. 155.
139
O aumento da ingerência do Estado na vida dos cidadãos levou a um
discurso processual que tinha em consideração a perspectiva liberal. Em um ou outro
extremo, as degenerações do processo liberal mostraram-se inaceitáveis.
A esperteza da parte mais forte pela perspectiva privatista ou o acesso
privilegiado de um sujeito aos ideais de justiça levou às degenerações desses modelos
rumo a um modelo com enfoque na utilização do espaço processual para a discussão das
questões em prol da formação adequada da decisão.
No Brasil, o contexto do Novo Código de Processo Civil brasileiro traz o
ápice da discussão de um novo modelo processual: o cooperativo.
Cooperação, do latim cooperacione, significa ato ou efeito de cooperar.
Cooperar, do latim cooperare, por cooperari, significa operar ou obrar simultaneamente;
trabalhar em comum; colaborar; ajudar; auxiliar.
Contudo, na perspectiva que aqui se pretende abordar, o vocábulo não pode
ser compreendido como “andar de mãos dadas”, tampouco como solidarismo. Ronaldo
Brêtas de Carvalho Dias, em Congresso do Instituto Panamericano, apontou que talvez
seja uma palavra com nova semântica em nosso idioma.
A doutrina brasileira já se depara com contribuições de consideráveis
estudiosos sobre o tema, sendo a produção mais extensa voltada ao ordenamento
jurídico brasileiro a tese de doutoramento de Daniel Mitidiero, grande estudioso do
formalismo-valorativo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveria. No tema são magníficas as
contribuições de Dierle Nunes sobre o “Processo Jurisdicional Democrático” e o estudo
de pós-doutoramento de Fredie Didier a respeito dos “Fundamentos do princípio da
cooperação no Direito Processual Civil Português”.
Nesse sentido, inciar-se-á com breve exposição do pensamento de parcela
da ilustre doutrina brasileira a respeito do tema.
3.2.1. A colaboração em Daniel Mitidiero
Primeiramente, é importante observar que a extração do posicionamento de
Daniel Mitidiero se deu pela leitura da segunda edição de sua obra “Colaboração no
processo civil – pressupostos sociais, lógicos e éticos”.
Essa ressalva é feita porque somente a partir desta edição foi que o autor
levou em consideração produções bibliográficas ainda não acessadas quando da
primeira edição do livro como os texto de Lúcio Grassi, tese de Dierle Nunes e o
relatório de pós-doutoramento de Fredie Didier Júnior, bem como a jurisprudência que
140
progressivamente se formou a partir da ideia de colaboração no processo civil e das
regras que intentam concretizá-la no Projeto do Código de Processo Civil apresentado
ao Congresso Nacional pela Comissão em junho de 2010.
Na mencionada obra, Daniel Mitidiero parte da ideia de formalismo
processual284
para identificar três modelos processuais civis correspondentes a três
modelos de organização social, o que confirma sua assertiva de que o modelo de
organização política da sociedade condiciona a maneira como vai se resolver o
problema da divisão do trabalho entre o juiz e as partes.
Então, como mencionado, do estudo de três modelos de organização social
identifica três maneiras diferentes de conceber o formalismo processual no que tange ao
papel reservado aos juízes e às partes: (i) o modelo paritário, (ii) o modelo hierárquico e
(iii) o modelo colaborativo.
Nesse sentido, o estudo de Mitidiero defende que o modelo de processo civil
conforme as exigências do Estado Constitucional corresponde ao processo cooperativo,
considerando este uma decorrência do formalismo – valorativo por compreender que os
deveres de colaboração do juiz para com as partes e das partes para com o juiz só
podem ser identificados a partir da visão total do fenômeno processual – de seu
formalismo.
Conclui, assim, que o princípio da colaboração assenta-se no Estado
Constitucional e que não há processo justo sem colaboração. Isso porque espera-se do
Estado Constitucional não só abstenções como a que vigia no Estado Legislativo dos
Oitocentos, mas também prestações que viabilizem o alcance de todos os fins inerentes
à pessoa humana, o que, em termos processuais, significa organizar um processo justo –
de formalismo cooperativo – e muito especialmente idôneo para prestação de tutela
jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva aos direitos, o que repercute na posição do
juiz no processo.
Então, o que é colaboração para Mitidiero? Responde ser um modelo de
processo civil e um princípio.
284
Daniel Mitidiero entende a expressão “formalismo do processo” no sentido de formalismo ou forma
em sentido amplo, como algo que abrande “a totalidade formal do processo, compreendendo não a
forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos
sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do
processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais”, investindo-se assim na “tarefa
de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado,
estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu
desenvolvimento”, consoante o formalismo-valorativo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira.
141
É um modelo de processo civil que visa a organizar o papel das partes e do
juiz na conformação do processo285
, isto é, objetiva dar feição ao formalismo do
processo dividindo de forma equilibrada o trabalho entre todos os seus participantes286
.
Trata-se, então, de modelo estruturado a partir de pressupostos culturais que
podem ser enfocados sob o ângulo social, lógico e ético.
Pelo ponto de vista social, o Estado não pode ter um papel de pura
abstenção e cumpre com seus deveres constitucionais por meio de prestações positivas.
Pela perspectiva lógica, reconhece-se o caráter problemático do Direito o que enfatiza a
sua feição argumentativa. Ou, melhor dizendo, o autor entende que o Direito “deixa de
ser visto como um objeto que o homem tem de conhecer para alcançar a verdade e
passa a ser encarado como um problema que o jurista tem de resolver em uma
atividade dialética, comunicativa, visando à obtenção do consenso”287
. Mas sob o
ângulo ético, o processo busca, tanto quanto possível, a verdade, jamais olvidando seus
sujeitos, inclusive o juiz, a observância da boa-fé objetiva.
O autor sustenta a existência de uma nova dimensão do papel do juiz na
condução do processo: o juiz do processo cooperativo é um juiz isonômico na condução
do processo e assimétrico no momento da decisão das questões processuais e materiais
da causa. O que, aliás, é uma colocação diferente dos demais autores que abordam o
tema, como se verá.
Assim, para Daniel Mitidiero, o juiz desempenha duplo papel, pois ocupa
dupla posição: paritária no diálogo e assimétrico na decisão. Visa-se alcançar, com isso,
um “ponto de equilíbrio” na organização do formalismo processual, conformando-o
como uma verdadeira “comunidade de trabalho”288
entre as pessoas do juízo.
Paritária no diálogo porque, embora dirija processual e materialmente o
processo, agindo ativamente, o faz de maneira dialogal, colhendo a impressão das partes
a respeito dos eventuais rumos a serem tomados no processo, possibilitando que elas
dele participem, influenciando-o a respeito de suas possíveis decisões (de modo que o
iudicium acabe sendo efetivamente um ato trium personarum, como se entendeu ao
longo de toda a praxe do direito comum).
285
MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no Processo Civil como Prêt-à-porter: Um Convite ao
Diálogo para Lenio Streck. In: Revista de Processo, 194, ano 36, Abril de 2011. 286
Ibidem. 287
MITIDIERO, Daniel Francisco. O Problema da Invalidade dos Atos Processuais no Direito
Processual Civil Brasileiro Contemporâneo. In: Revista Ajuris. Porto Alegre, n.96, dez. 2004, p. 70. 288
A expressão “comunidade de trabalho” aplicada ao processo fora cunhada por Leo Rosenberg.
142
Assim, nesse processo, perceba-se, o juiz integra o contraditório. Coloca-se
o órgão jurisdicional como um dos participantes do processo, igualmente gravado pela
necessidade de observar o contraditório ao longo de todo o procedimento. O juiz
converte-se em um de seus sujeitos. Por força do contraditório, vê-se obrigado ao
debate, ao diálogo judiciário. Vê-se na contingência, pois, de dirigir o processo
isonomicamente, cooperando com as partes, gravado por deveres de esclarecimento,
prevenção, consulta e auxílio para com os litigantes.
Além de um modelo processual, Daniel F. Mitidiero considera a cooperação
um princípio, pois impõe um estado de coisas que tem de ser promovido: “O fim da
colaboração está em servir de elemento para a organização de processo justo idôneo a
alcançar a decisão justa”.
Mas, no momento da decisão, há uma assimetria apesar de não aceitar um
foco de centralidade no juiz. Essa assimetria advém do caráter obrigatório da decisão.
Destoando-se de grande parte da doutrina, afirma Mitidiero que a
colaboração no processo civil não implica colaboração entre as partes, em que pese o
artigo 6º do Novo Código de Processo Civil estabelecer que “Todos os sujeitos do
processo devem cooperar entre si”. Antecipe-se, todavia, que cooperar entre si não é
explicado com o significado de “andar de mãos dadas” ou “abdicar de seus próprios
interesses por solidariedade”.
3.2.2. O que é isto? – A cooperação processual em Lenio Streck289
Lenio Streck de pronto afirma que cooperação não é princípio:
“A ‘cooperação processual’ não é um princípio; não está dotada de densidade
normativa; as regras que tratam dos procedimentos processuais não adquirem
espessura ontológica face à incidência desse standard. Dito de outro modo, a
‘cooperação processual’ – nos moldes que vem sendo propalada – ‘vale’
tanto quanto dizer que todo processo deve ter instrumentalidade ou que o
processo deve ser tempestivo ou que as partes devem ter boa-fé. Sem o
caráter deontológico, o standard não passa de elemento que ‘ornamenta’ e
fornece ‘adereços’ à argumentação. Pode funcionar no plano performativo do
direito. Mas, à evidência, não como ‘dever ser’.”290
Este autor afirma não ser crível nem constitucional, “atribuir aos
contraditores o dever de colaborarem entre si a fim de perseguirem uma “verdade
289
STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et. al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-
23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015. 290
STRECK, Lenio Luiz. Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero ou
“colaboração no processo civil” é um princípio? In: Revista de Processo. vol. 213, Nov 2012, p. 13 – 34.
143
superior”, mesmo que contrária àquilo que acreditam e postulam em juízo, sob pena de
privá-los da sua necessária liberdade para litigar”291
.Afinal, o que cada uma das partes
e seus advogados ambiciona é resolver a questão da melhor forma possível, desde que
isso signifique favorecimento em prejuízo do adversário.
Ainda, de acordo com seu entendimento, o referido artigo 6º do novel
Código está a sugerir que a obtenção de decisões justas, efetivas e em tempo razoável
não constituem propriamente direitos dos cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes
no pais, mas também deveres a eles impostos, pois para o proferimento de uma decisão
justa, efetiva e tempestiva, necessariamente deverá o jurisdicionado cooperar com o juiz
e sobretudo com a contraparte, mas é inconcebível a ideia de parte e contraparte estarem
de mãos dadas a fim de alcançarem a pacificação social.
Entende que o Novo Código acredita no homem bom em descompasso com
a realidade do Estado brasileiro e que, sob a insígnia da cooperação, fortalece o
protagonismo judicial, pois
As palavras “entre si” do artigo 6º. podem servir para uma instrumentalização
epistemológica do processo pelo Estado-juiz, numa ética narrativa tão penosa
e desventurada que não é endossada nem mesmo por um Michelle Taruffo[2]
— entusiasta da “discricionariedade racionalizada” (= livre convencimento
motivado) e do ativismo processual como método truth acquiring centrado
no juiz.
Para o autor:
Uma comunidade de trabalho com a finalidade de regulamentar o diálogo
entre juiz e partes é algo bem diferente de inserir a todos num mesmo
patamar, como se o primeiro exercesse juntamente com as últimas o
contraditório, debatendo teses, argumentando e rebatendo argumentos,
levando fatos (ou obrigando as partes a levá-los) para o processo, produzindo
provas e contraprovas.292
Ocorre que, ao contrário do que afirma Lenio Streck, a cooperação é
defendida por outra parte da doutrina não como solidarização entre as partes, tampouco
institui em favor do juiz poderes para obrigá-las, contra vontade delas, renuncia a seus
interesses, mas sim comunicação entre todos os sujeitos para a formação e influência da
decisão do órgão jurisdicional, fruto esta do debate e de um contraditório que veda a
decisão surpresa, como se verá.
É que, veja-se, parte da doutrina atribui uma semântica ao termo
“cooperação”, enquanto Lenio Streck, trabalhando no paradigma hermenêutico, afirma
que “cooperação ou colaboração não parecem mesmo ser os melhores “nomen juris”
291
STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et. al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-
23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015. 292
STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-
23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015.
144
para designar o processualismo pós-liberalista e pós-socialista, ora sob recomposição
paradigmática no Estado Democrático de Direito”. Não está o autor, contudo,
contrariando “a formulação da coparticipação por Dierle Nunes, enquanto garantia de
influência e não surpresa” nem negando o acerto deste autor quando reconhece “que há
papeis distintos, mas que todos cooperam para o resultado final”.
O autor está, em realidade, alertando para o protagonismo que pode surgir e
afastar os aspectos positivos da cooperação que até combina com democracia denotando
um agir conjunto, participação, apoio293
.
3.2.3 A cooperação em Lucio Grassi
Para Lucio Grassi, a legitimidade da decisão judicial advém da “efetiva
oportunidade dos agentes processuais participarem ativamente de sua construção.
Agentes que interagem, dialogam, participam e cooperam”294
.
Referido autor utiliza-se da expressão “cooperação intersubjetiva”, à qual
aponta como definição para o direito processual a significação de trabalho em comum,
em conjunto, de magistrados, mandatários judiciais e partes, visando a obtenção, com
brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Ademais, eleva a cooperação intersubjetiva à categoria de princípio porque
a considera como orientação a atividade de todos os sujeitos processuais, não só a do
intérprete-aplicador, e interferir na interpretação dos demais dispositivos legais contidos
na legislação processual civil.
Então, o princípio da cooperação intersubjetiva como comparticipação dos
sujeitos processuais para formação da decisão com a efetiva participação de todos,
respaldando no “princípio da participação” constante do art. 5º, LV da Constituição
Federal.
Contudo, a primeira observação quanto às contribuições de Lucio Grassi
consiste nos dois aspectos que atribui à cooperação: “(a) dever das partes de cooperarem
com o juízo ou tribunal; (b) dever do juízo ou tribunal de cooperar com as partes.”295
.
Ou seja, não considera a cooperação entre as partes (entre si). As contribuições do autor,
293
STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-
23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015. 294
GRASSI, Lucio. A função legitimadora do princípio da cooperação intersubjetiva no processo civil
brasileiro. In: Revista de Processo Vol. 172, Jun. 2009, p. 32-53. 295
Ibidem, p. 32-53.
145
todavia, são anteriores à redação final do Novo Código de Processo Civil e portanto, à
vigência do art.6º.
Ademais, a cooperação em Lucio Grassi objetiva atingir um sistema de
“processo social, dirigido por um juiz ativo, responsável(...)processo nitidamente com
caráter publicístico e dialógico, aproximando-se do que Klein qualificou como um
instituto de bem estar social”296
.
Nesse sentido, a compreensão de Lucio Grassi resta distinta da grande
maioria da doutrina brasileira acerca do tema, em que pese ser autor que abordou o tema
com anterioridade.
3.2.4 A cooperação do Direito Processual Civil Português na análise de Fredie
Didier Jr.
O modelo reformista português sempre inspirou o processo brasileiro.
A partir das reformas dos anos 90, o sistema português tende a afastar-se do
caráter social (ou seja, de um modelo com predominância do controle judicial gerado
pela degeneração do processo liberal) aproximando-se de um modelo de repartição da
direção do processo entre partes e juiz por meio da aplicação da “cooperação
intersubjetiva” a partir do exemplo alemão.
Nesse sentido, considerando a reconhecida importância do diploma
processual civil português aos sistemas de civil-law, bem como a influência da
legislação portuguesa sobre o sistema brasileiro, necessário se faz analisar seu
ordenamento em razão do artigo 266.º, 1, do Código de Processo Civil Português que
consagra a cooperação.
Primeiramente, de acordo com Miguel Teixeira de Sousa, o princípio da
cooperação constitui linha do processo civil não-liberal, de cunho social, destinado a
transformar o processo em uma comunidade de trabalho297
.
O autor português aduz que o princípio da cooperação gera os poderes-
deveres de (i) esclarecimento, (ii) consulta (das partes sobre os pontos fáticos e jurídicos
que cercam a demanda), (iii) prevenção e (iv) auxílio resultantes estes de regras
específicas e previstas no ordenamento que concretizam aquele princípio.
296
Ibidem, p. 32-53. 297
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, p. 62.
146
Aliás, Miguel Teixeira de Sousa divide tais regras que concretizam o
princípio da cooperação em “fechadas”, que são aquelas que não deixam margem de
verificação ao tribunal e cuja inobservância acarretam invalidade processual, e em
“abertas”, constituídas por aquelas que dão discricionariedade ao julgador, cujas ofensas
não implicam qualquer sanção.
Nesse contexto, Ana Paula Costa e Silva enxerga no princípio objeto de
estudo a opção legislativa de estabelecer o modelo processual civil cooperativo, e
consequentemente, reconhece que o princípio da cooperação gera situações jurídicas
processuais diversas298
, em que pese não admitir a eficácia direta, assumindo que “o
conteúdo do princípio da cooperação será estritamente aquele que resultar da
justaposição do conteúdo dos deveres em que se manifesta”299
, de modo que sempre
que a lei impor uma intervenção deverá o tribunal assim atuar.
Ademais, para Miguel Teixeira de Sousa, o dever de esclarecimento
consiste no dever do julgador esclarecer junto das partes quanto às dúvidas que tenha
sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo300
.
Claramente, possui o dever de esclarecimento um duplo sentido já que
permite ao magistrado esclarecer fatos e situações jurídicas em consonância com a
premissa de máximo aproveitamento do mérito além de viabilizar às partes a
potencialidade de obter do magistrado decisões que sejam fruto do debate em
contraditório, desprovidas de dúvidas e obscuridades.301
Quanto a este dever, observa Fredie Didier, que “parece que o dever de
esclarecimento não se restringe ao dever de o órgão jurisdicional esclarecer-se junto
das partes, mas também o dever de esclarecer os seus próprios pronunciamentos para
as partes”, e nesse sentido, conclui que “o dever de motivar contém, obviamente, o
dever de deixar claras as razões da decisão” não havendo, assim, “necessidade de buscar
o fundamento do dever de esclarecer as decisões no princípio da cooperação, visto que
ele já está muito bem delimitado no dever de motivar.”.302
298
SILVA, Paula Costa e. Acto e processo – o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos
vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, n. 410 – 418, p. 590. 299
Ibidem, p. 591. 300
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, op. cit. p. 65. 301
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português.
Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 20/21. 302
Ibidem, p. 20/21.
147
Há também o dever de consulta pelo qual o magistrado deve consultar as
partes sobre eventual questão fática ou de direito para que possam elas se manifestar,
mesmo que possa ser conhecida de ofício303
.
Ainda, tem o magistrado o dever de prevenção, que, conforme os
ensinamentos de Teixeira de Sousa, persiste em todas as situações nas quais o sucesso
em favor do interesse de uma parte esteja em risco pelo uso inadequado do processo,
devendo ser aplicado para a explicitação de pedidos pouco claros, em eventuais lacunas
de fatos relevantes, para a adequação necessária do pedido à situação concreta e ainda
como aconselhamento de conduta à parte.304
Adota o autor a compreensão do dever de prevenção do Direito alemão,
identificando um dever geral de prevenção305
.
Para Fredie Didier, o dever de prevenção, corolário do máximo
aproveitamento e da primazia do mérito, consiste no dever do magistrado em apontar as
deficiências das postulações das partes, para que possam ser supridas, concretizado no
dever de convite ao aperfeiçoamento pelas partes dos seus articulados306
.
Por fim, existe o dever de auxílio que assegura, às partes, o efetivo exercício
de seus direitos, faculdades, ônus ou deveres valendo-se elas sempre da necessária
providência por parte do juiz para a superação de dificuldades e obstáculos que o
impeça307
.
Fredie Didier ensina que o dever de assistência é também chamado dever de
auxílio constitui no dever do juiz de providenciar, sempre que possível, eventuais
dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de
ônus ou deveres processuais308
.
Outrossim, para Ana Paula Costa e Silva, lamentando a impossiblidade de
se dar ao dever de prevenção uma amplitude maior pela análise do sistema português,
conclui que ele não foi consagrado como cláusula geral porque previsto para
determinada situação, qual seja, “a complementação ou clarificação na exposição da
matéria de facto”309
.
303
SOUSA, Miguel Teixeira de. op.cit., p. 65/66. 304
Ibidem, p. 66. 305
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil
Português, op. cit., p. 20. 306
Ibidem, p. 20/21. 307
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, op. cit. p. 67. 308
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português,
op.cit., p. 20/21. 309
Artigo 508º, 1, b, CPC português:
148
Essa limitação do dever de prevenção no sistema português leva Fredie
Didier a concluir que mais adequado seria falar em “dever de determinar a
complementação ou clarificação da exposição fática”, vez que aquela constitui
designação mais genérica.310
Outro aprendizado311
que se pode extrair do sistema português consiste na
previsão normativa de ilícito processual sob a tipificação de grave omissão, ao que
melhor seria se a omissão bastasse para configuração de ilícito.312
No que diz respeito às sanções, José Lebre de Freitas aduz que o
descumprimento do dever de cooperação gera a obrigação de indenização, multa e o
ônus da prova quando a violação impossibilitar eventual produção de prova pela parte
prejudicada.
Imputa, ainda, duas dimensões (sentidos) ao princípio da cooperação: a
dimensão material, em que o princípio da cooperação apontaria para a apuração da
verdade sobre a matéria fática, e a dimensão formal, que consiste na justa composição
do litígio no menor tempo possível, sem protelações indevidas. E nesse sentido
identifica regras condizentes com tais dimensões, demonstrando que sua análise parte de
dispositivos específicos com direção ao princípio da cooperação, e não extraindo do
dispositivo 266 as eventuais possíveis consequências jurídicas no sistema.313
Fredie Didier relata que, no tocante ao dever de esclarecimento, Lebre de
Freitas compreende que ele consiste no poder do juiz de ouvir as partes e no dever das
partes de colaborar e prestar esclarecimentos, isto é, a dimensão material do princípio da
cooperação implica poderes do juiz e deveres das partes, diversamente do que ocorre na
Alemanha, onde o princípio da cooperação implica verdadeiros deveres do magistrado,
ainda que reconheça a tendência de aumento desses deveres com extensão aos
magistrados314
.
As contribuições de Fredie Didier com a publicação de sua tese de pós-
doutoramento são importantíssimas para o contexto nacional porque trouxeram uma
explicitação mais aprofundada da cooperação.
310
DIDIER Jr., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil Português,
op. cit., p. 20. 311
Ibidem, p. 28. 312
artigo 456, 2, c, do CPC português 313
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil
Português, op. cit., p. 28. 314
Ibidem, p. 30.
149
Mas além disso, o autor defende que além dos dois modelos de estruturação
do processo comumente identificadas pela civilização ocidental resultantes das
influências do iluminismo, quais sejam, o modelo dispositivo (também chamado pelo
autor como modelo adversarial) e o modelo inquisitivo (denominado também de não
adversarial), um terceiro modelo seria o cooperativo315
. E logo os diferencia:
Em suma, o modelo adversarial assume a forma de competição ou disputa,
desenvolvendo-se como um conflito entre dois adversários diante de um
órgão jurisdicional relativamente passivo, cuja principal função é a de
decidir. O modelo inquisitorial (não adversarial) organiza-se como uma
pesquisa oficial, sendo o órgão jurisdicional o grande protagonista do
processo. No primeiro sistema, a maior parte da atividade processual é
desenvolvida pelas partes; no segundo, cabe ao órgão judicial esse
protagonismo. (...)Fala-se que, no modelo adversarial, prepondera o princípio
dispositivo, e, no modelo inquisitorial, o princípio inquisitivo.316
Contudo, questiona-se: modelo adversarial e dispositivo são a mesma coisa?
Viu-se com Ferrajoli que adversarial é um modelo dispositivo. E ainda, será que
realmente não existe em vigor um modelo completamente adversarial? O autor não
comprovou sua afirmação empiricamente, de maneira que necessitamos questioná-la.
Veja-se que o autor utiliza princípio como orientação preponderante, como
fundamento, e, no caso dos princípios dispositivo e inquisitivo, utiliza a dicotomia com
relação à atribuição de poderes ao juiz manifestando um ou outro quando o legislador
atribuir ao magistrado ou aos litigantes e pode, nesse sentido, manifestar-se em relação
a vários temas: “a) instauração do processo; b) produção de provas; c) delimitação do
objeto litigioso (questão discutida no processo); d) análise de questões de fato e de
direito; e) recursos etc”317
de maneira que “nada impede que o legislador, em relação
a um tema, encampe o princípio dispositivo e em relação ao outro, o princípio
inquisitivo”318
pelo que seria difícil estabelecer um critério identificador da
dispositividade ou da inquisitividade que não comporte exceção pois assume o autor
não existir sistema totalmente dispositivo nem completamente inquisitivo. Os
procedimentos são frutos de suas combinações.
O autor, salvo melhor juízo, está a afirmar que só existem, no mundo,
procedimentos mistos.
315
DIDIER JR. Fredie. Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo.
Disponível em:
<https://d24kgseos9bn1o.cloudfront.net/editorajuspodivm/arquivos/ativismo%20soltas%20fredie.pdf>
Acesso em 13/06/2015. 316
Ibidem, p. 209. 317
Ibidem, p. 209. 318
Ibidem, p. 209.
150
É então que encampa o surgimento de um princípio que surge baseado nos
princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório, o princípio
da cooperação que define o modo como o processo civil deve estruturar-se no direito
brasileiro.
O modelo guiado pelo princípio da cooperação diferencia-se dos demais
porque inclui o órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual e não mais
como um mero espectador do duelo das partes. Neste modelo, a condução do processo
não é determinada pelas partes, tampouco há uma condução inquisitorial pelo órgão
jurisdicional em posição assimétrica em relação às partes. O que é uma condução
cooperativa do processo sem destaques a algum dos sujeitos processuais.
O autor nega veementemente a doutrina de Daniel F. Mitidiero no que tange
a assimetria no momento decisório. Para Fredie Didier, não há pradidade no momento
da decisão porque as partes não podem decidir com o juiz tratando de função
exclusivamente sua, mas a decisão judicial é fruto da atividade processual em
cooperação por ser resultado das discussões travadas ao longo de todo o arco do
procedimento. A assimetria se faz necessária porque a decisão jurisdicional é
essencialmente um ato de poder, mas no processo autoritário/inquisitorial, essa
assimentria existe também na condução do processo, e assim, o autor afirma que
“assimetria, aqui, não significa queo o órgão jurisdicional está em uma posição
processual composta apenas por poderes processuais, distinta da posição processual
das partes, recheadas de ônus e deveres”319
, mas “assimetria significa apenas que o
órgão jurisdicional tem uma função que lhe é própria e que é conteúdo de um poder,
que lhe é exclusivo”320
.
Por fim, esse seria o modelo de direito processual civil que o autor
considera adequado à cláusula do devido processo legal e ao regime democrático.
3.2.5 A cooperação em seu perfil comparticipativo e o contraditório como garantia
de influência e de não surpresa com as contribuições de Dierle Nunes
As contribuições de Dierle Nunes e da Escola Mineira de Processo são de
grande valia para o estudo do tema, como aliás, para o todo o processo civil. Mas
adiante-se que o autor possui uma visão procedimental de Estado Democrático de Direito. De
319
Ibidem, p. 213. 320
Ibidem, p. 213.
151
todo modo, são inegáveis suas contribuições para a ideia de contraditório que se debate
no Novo Código de Processo Civil brasileiro.
A estruturação de um espaço com técnicas de fomento ao debate somente
pode ser efetivamente atendido sob a perspectiva democrática de Estado, na qual se
percebe não haver predominância de qualquer aspecto, seja público ou privado321
.
Nessa perspectiva, e em direção à efetiva democratização jurídica do
processo jurisdicional, o processo deverá permitir o controle recíproco entre o julgador
e as partes, uma responsabilidade compartilhada entre os sujeitos processuais.
Foi nesse sentido que o Novo Código de Processo Civil implementou um
sistema cooperativo (cooperação/comparticipação322
) no qual todos os sujeitos
processuais possuem responsabilidades na construção do provimento final por meio de
uma comunicação ativa ao prever em seu artigo 6º que “Todos os sujeitos do processo
devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito
justa e efetiva”.
Fala-se da cooperação policentrista sob um perfil comparticipativo323
. Aliás,
o autor entende que a visão procedimental de Estado Democrático de Direito impõe uma
necessária comparticipação na implementação legislativa e jurisdicional. O autor assume
também a concepção do primeiro Fazzalari324
na teoria do processo, que problematiza
(...) o significado do aumento dos poderes dos juízes no processo, em face de
uma aplicação forte dos princípios constitucionais, tentando verificar o modo
de estabelecer contrapesos a essa atuação salvadora dos juízes que impeçam a
redução do papel das partes a uma mera sujeição e o processo a mero
instrumento técnico.325
Elio Fazzalari inaugurou a defesa da procedimentalidade como necessária
para as decisões a partir do processo como procedimento em contraditório, afastando a
concepção de processo como relação jurídica processual.
321
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op. cit., p. 49. 322
Chamada pela doutrina alemã de “comunidade de trabalho”. NUNES, Dierle José Coelho. Processo
Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012, p. 212 e ss. 323
Nunes, p. 50. A tese comparticipativa é vista em Dierle Nunes a partir de uma reconstrução
historiográfica e comparatística dos sistemas processuais apresentando as principais características e
degenerações dos processos liberal e social. Na defesa de sua tese, Dierle Nunes assumiu como marco
teórico no campo da teoria do processo do primeiro Fazzalari, afastando assim a adoção da teoria da
relação jurídico-processual, dando ênfase ao procedimento na formação das decisões e no controle do
exercício das funções estatais.Na teoria do direito adotou a teoria procedimental de Estado Democrático
de Direito de Jurgen Habermas, “que defende uma tensão entre os argumentos liberais e sociais
apontando suas inconsistências teóricas e permitindo a busca de uma legitimidade alicerçada na relação
interna entre direitos fundamentais e soberania do povo”. NUNES, Dierle José Coelho. Processo
Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012, p.51 – 52. 324
O pensamento Fazzalariano foi propagado pela obra pioneira de Aroldo Plínio Gonçalves. 325
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op.cit. p. 202.
152
O presente estudo demonstrou que os paradigmas jurídicos dos Estados
Liberal e Social produziu um protagonismo inaceitável por seus resultados práticos.
Este protagonismo acredita que um sujeito solipsista conseguiria captar o bem viver em
sociedades complexas e plurais diante da concepção democrática do direito.
Essa conclusão torna necessária a existência de uma procedimentalidade na
qual os interessados possam participar com a possibilidade e finalidade de influenciar na
formação das decisões.
Assim, o fluxo discursivo dará margem a um procedimento a partir dos
princípios fundamentais do processo e que permite refletir a respeito do aumento dos
poderes dos juízes no processo em prol de uma possibilidade de não se diminuir o papel
das partes para que não fique resumido a uma mera sujeição.
A concepção de uma procedimentalidade balizadora das decisões tem como
marco inicial o pensamento de Elio Fazzalaria que concebeu o processo como
procedimento em contraditório e não uma relação jurídico-processual permissiva da
subordinação entre os sujeitos processuais com predominância do papel do juiz tal
como demonstrado pelo pensamento de Oskar Von Bülow.
Isto porque Fazzalari buscou uma forma de legitimação decisória pelo
debate e pelo procedimento, não a partir da jurisdição que conta com a sabedoria do
juiz, de maneira que se contrapõe a Bülow, representando inclusive uma superação do
estudo baseado nos institutos da ação e da jurisdição ao centralizar-se na categoria
processo.
Em seu estudo, Fazzalari demonstrou que a difusão de módulos processuais
em atividades tanto jurisdicionais quanto não-jurisdicionais poderia proporcionar a
participação dos interessados em direção à formação dos provimentos.
Em torno das decisões judiciais, é evidente que as partes são os destinatários
do ato emanado e que este vela primeiramente por seu interesse e apenas
secundariamente no interesse do Estado. Ademais, o processo permite que os mesmos
destinatários do ato possam participar da concretização do poder naquele ato, do que se
pode concluir ser o processo a forma típica de explicação da função jurisdicional326
.
Nesse contexto, Fazzalari percebeu em Benvenutti uma estrutura dialética
de procedimento, levando-o a entender a existência do processo pelo contraditório
existente na formação de um ato. Parte da concepção de Feliciano Benvenutti de que o
326
Ibidem, p. 205.
153
processo e o procedimento pertenciam a um gênero comum na medida em que como os
atos do procedimento são pressupostos de validade e eficácia do ato final, cada
provimento é necessariamente precedido de um procedimento, que deixa de ser um
simples procedimento e se torna um processo quando:
(...) um ou mais atos de um dos sujeitos (v.g. o Estado) encontram as suas
razões de ser ou o seu limite em atos de outro sujeito (v.g. o particular). E
quando essa razão de ser ou esse limite surge ou é colocado no interesse do
sujeito diverso daquele que emana o ato e que é deste o destinatário, está-se
na presença não mais de um simples procedimento, mas de um processo.327
Mas se a participação das partes for pontual, não se configurará processo,
mas somente mero procedimento:
(...) processo é um procedimento do qual participam (estão habilitados a
participar) também aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a
desenvolver efeitos: em contraditório e de modo que o autor do ato não possa
impedir as suas atividades328
.
Apenas a título de recordação, o processo, para Adolfo Alvarado Velloso, é
um procedimento. O procedimento é o objeto das instâncias, e uma destas instâncias é a
ação processual. Esta específica instância possui características próprias e gera um
processo quando respeitadas tais características, já mencionadas, e quando segue a série
lógica que o autor afirma como necessária para que o procedimento não seja um simples
procedimento, mas sim um processo.
Observe-se, contudo, que na teoria de Fazzalari329
somente as partes são
sujeitos do contraditório, e, aliás, tal participação técnica das partes na formação das
decisões configura elemento estrutural e legitimante das atividades processuais, mas o
autor do provimento não integra o contraditório330
.
Nesse contexto das diferenças entre Dierle Nunes e Elio Fazzalari, este
também não demonstrou uma aplicação dinâmica dos princípios constitucionais, de
maneira que a teoria fazzalariana permite, a partir da sua concepção sobre a relevância
da participação técnica das partes no processo, somada a bases do constitucionalismo
(contemporâneo) e da teoria do direito, o alcance de uma procedimental democratização
do processo.
327
BEVENUTTI, Feliciano. Funzione amministrativa, procedimento, processo. Rivista Trimestrale di
Diritto Pubblico. Milano: Giuffrè, p. 118-145, 1952. apud NUNES, Dierle. Processo jurisdicional
democrático. Curitiba; Juruá Editora, 2012, p. 205. 328
FAZZALARI, Elio. Diffusione Del processo e compiti della dottina. Rivista Trimestrale di Diritto e
Procedura Civile,: Giuffrè, n. 3, p. 873. apud NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático.
Curitiba; Juruá Editora, 2012, p. 206. 329
FAZZALARI, Elio. Diffusione Del processo e compiti della dottina, op.cit., p. 873. apud NUNES,
Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 206. 330
NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 206.
154
Já no campo da teoria do direito, Dierle Nunes adotou a teoria
procedimental de Estado democrático de direito de Jürgen Habermas, que a partir das
inconsistências dos argumentos liberais e sociais permitiram a busca de uma
legitimidade baseada na relação interna entre direitos fundamentais e soberania do
povo331
.
O estudo a partir das tensões entre os paradigmas Liberal e Social permite a
conclusão de suas visões produtivistas “de uma sociedade econômica apoiada no
capitalismo industrial que despreza o nexo interno entre a autonomia pública e privada
e delineia um quadro de exclusão”332
seja pela cegueira social, como se dá no modelo
liberal, seja pela insensibilidade de autodeterminação dos cidadãos, como no modelo
social333
.
Assim, assume-se a correlação entre a forma de estruturação do sistema
jurídico com a própria organização estatal implementada em determinado espaço
histórico falando-se em paradigmas como um norte interpretativo de acordo com a
teoria procedimentalista de Habermas.
Ocorre que, como elucidado anteriormente, o Direito brasileiro permitiu,
após o movimento de acesso à Justiça com seus contornos próprios, a instalação do
neoliberalismo processual em cujo bojo reina a sobrevalorização da rapidez
procedimental e de uma específica concepção funcional de eficácia. Disso decorreu a
massificação dos julgamentos e a redução do aspecto técnico do processo a uma mera
formalidade. Permitiu, ademais, que o Judiciário legitimasse o interesse do mercado e
da Administração.
Restou ignorado o processo como verdadeira garantia contra o exercício
ilegítimo de poderes públicos e privados em todos os campos, como elemento
estruturante e legitimante da participação cidadã e da própria democracia.
Nesse sentido, os procedimentalistas, como Dierle Nunes, capitaneados pela
tese procedimental de Habermas pretendem a superação da oposição entre os
paradigmas liberal e social de Direito propondo um modelo de democracia
constitucional que não tem como condição prévia fundamentar-se nem em valores
compartilhados, nem em conteúdos substantisvos, mas em procedimentos que
asseguram a formação democrática da opinião e da vontade e que exige uma identidade
331
Ibidem, p. 52. 332
Ibidem, p. 202. 333
Ibidem, p. 202.
155
política não mais ancorada em um “nação de cultura”, mas em uma “nação de
cidadãos”.
Na opinião de Habermas, uma interpretação da Constituição baseada em
valores, optando assim por um sentido teleológico, desconhece o pluralismo das
democracias contemporâneas e a lógica do poder econômico e administrativo. E nesse
sentido, entende que a função da justiça constitucional deve limitar-se a compreender
procedimentalmente a Constituição, ou seja, a proteger o processo de criação
democrática do Direito, não devendo guardar uma suposta ordem suprapositiva de
valores substanciais334
.
Nesse sentido, o processo na perspectiva comparticipativa e policêntrica dá-
se como um espaço público no qual se apresentam as condições comunicativas para que
todos os envolvidos, assumindo a responsabilidade de seu papel, participem na
formação de provimentos legítimos que permitirá a clarificação discursiva das questões
fáticas e jurídicas335
.
O jurisdicionado, por meio do processo, expõe as razões relevantes sobre o
tema a ser julgado conforme o modelo constitucional de processo e os princípios
processuais constitucionais que fixa limites de atuação e asseguram a possibilidade de
participação de todos os sujeitos processuais na discussão para a formação da decisão
mais adequada ao caso.
Está-se a falar da denominada “comunidade de trabalho” entre juiz e partes
que, reconheça-se, nasceu numa perspectiva de discurso social, que deve ser revista
numa perspectiva policêntrica e comparticipativa especialmente diante do novo
paradigma do Estado Democrático de Direito. Aliás, um grande responsável nesse
sistema policêntrico é a advocacia como categoria de profissionais vinculados a uma
participação cidadã. Perspectiva já abordada com as considerações de Mirjan Damaska.
A assunção de linhas pós-positivistas, em especial, a procedimentalista
normativa, leva à inaceitabilidade de subjetivismos e preferências dos agentes políticos
limpando o espaço do processo para o conforto de argumentos racionais sujeitos ao
debate em que os interessados participem amplamente. Nesse sentido, o autor rechaça
qualquer aceitação de discricionariedades, assunção esta que afasta a teoria de Ferrajoli.
334
HABERMAS, J. Direito e Democracia – entre faticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 297 e ss. 335
NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 211.
156
Ocorre que há uma reflexão necessária: a representatividade do discurso
pós-positivista comunitarista que encara a Constituição como uma ordem concreta de
valores ostentada por uma participação ativa do Estado-juiz, como se tais valores
pudessem ser homogeneamente compartilhados numa sociedade complexa é concepção
que foi, no Brasil, apropriada pelo neoliberalismo e permitiu a aplicação do direito por
manipuladores agentes políticos que observavam preferências do mercado e dos poderes
públicos!
Mas enquanto os liberais acreditam que os direitos fundamentais devem
prevalecer sobre a soberania popular, os comunitaristas pregam a sobreposição da
vontade da comunidade em relação aos direitos humanos, numa terceira via, Habermas
sustenta que autonomia privada e autonomia pública são interdependentes, de maneira
que devem ser asseguradas simultaneamente336
.
O abandono aos modelos solipsistas típicos de um modelo autoritário de
viés positivista ou axiológico, acredita Dierle Nunes, poderá ser alcançado com uma
leitura forte e dinâmica dos princípios formadores do modelo constitucional de processo
a servirem como diretrizes normativas para as decisões e que geram responsabilidades a
todos os sujeitos processuais sem o protagonismo de qualquer um destes.
Afinal, seu modelo cooperativo e de democratização processual assume um
perfil comparticipativo e policentrista sob o pilar de inexistência de qualquer
protagonismo, o que só poderá ocorrer pela divisão de atuação entre partes e julgador a
partir de um contraditório dinâmico como garantia de influência e de não surpresa e
como princípio fundante do processo, um elemento normativo estrutural da
comparticipação envolvendo todos os sujeitos processuais.
É fundamental notar a profunda diferença entre o contraditório de Adolfo
Alvarado Velloso que o vê como bilateralidade da audiência e o contraditório de Dierle
Nunes que não se resume à possibilidade das partes à devida informação e possibilidade
de reação. Veja-se:
A reforma alemã de 1976 que influenciou o modelo reformista português e
que, por sua vez, inspira o discurso processual brasileiro desde sempre possibilitou pela
doutrina a extração de 4 deveres do magistrado. São eles: dever (i) de prevenção, (ii) de
336
LEITE, Roberto Basilone. Hemenêutica constitucional como processo político comunicativo: a crítica
de Jürgen Habermas às concepções liberal e comunitarista. In: LOIS, Cecilia Caballero (Org.) Justiça e
democracia: entre o universalismo e o comunitarismo. São Paulo: Landy, 2005, p. 197 – 230.
157
esclarecimento, (iii) de assistência das partes e (iv) de consulta a elas dos pontos fáticos
e jurídicos que cercam a demanda, já tratados.
O dever de esclarecimento consistente no dever de prestar informações
sobre os ônus que lhes incumbem, convidando-as, por exemplo, a esclarecer e a
complementar suas declarações acerca dos fatos, ou chamando-lhes a atenção para a
necessidade de comprovar alegações”337
.
O dever de prevenção, corolário do máximo aproveitamento e da primazia
do mérito, consiste no dever do magistrado em apontar as deficiências das postulações
das partes, para que possam ser supridas, concretizado no dever de convite ao
aperfeiçoamento pelas partes dos seus articulados338
.
Já o dever de assistência, também chamado dever de auxílio constitui no
dever do juiz de providenciar, sempre que possível, eventuais dificuldades que impeçam
o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres
processuais339
.
Por fim, o dever de consulta impõe o fomento ao debate preventivo e a
submissão de todos os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão (ratio decidendi)
da futura decisão ao contraditório, assegurando-se a igualdade de chances e a igualdade
de armas.
Evidentemente tais deveres do magistrado influenciam a comunidade de
trabalho, e consequentemente, o entendimento do contraditório como garantia de
influência e de não surpresa que se desenvolve nos deveres de informação do juiz e nos
direitos de manifestação e consideração para partes340
.
O dever de informação, também chamado dever de orientação, advirta-se
desde já, não se trata de assistencialismo do magistrado, mas sim de trazer às partes
observações acerca de pontos de fato e de direito, sejam eles materiais ou processuais,
relevantes para a causa.
Por sua vez, o direito de manifestação da parte se liga à garantia de
fundamentação ao exigir do juiz a análise de fatos e fundamentos discutidos
337
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 52. 338
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português,
op. cit, p. 20/21. 339
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português,
op.cit., p. 20/21. 340
JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,
FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 83
158
previamente no processo, manifestação esta que deve se dar antes da decisão, salvo
hipóteses de urgência.
E do outro lado, o dever do juiz de levar em consideração os argumentos das
partes341
. Nessa tendência, o juiz não pode mais decidir, em grau algum de jurisdição,
com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de
se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício seria
passível de nulidade por ofensa ao contraditório.
Aliás, Dierle Nunes denuncia precedente da Corte de Cassação da Itália, (n.
14637,2002), em que se decidiu que “é nula a sentença que se funda sobre uma questão
conhecida de ofício e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes”342
.
Esse é o modelo cooperativo que entende Dierle Nunes tenha sido adotado
pelo Novo Código de Processo Civil Brasileiro, que, de maneira inovadora quanto ao
seu texto prevê o já expresso artigo 6º estabelecendo que “Todos os sujeitos do processo
devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito
justa e efetiva”.
3.3. A cooperação processual e o garantismo processual
Primeiramente, é importante mencionar que os garantistas estudados não
concebem um modelo cooperativo de processo. Entendem que se cooperação é trabalho
em comum para um mesmo objetivo (cooperar semanticamente como ajudar), não é
possível adotá-la ao considerar que processo é luta.
Contudo, viu-se que a cooperação é repisada por alguns autores brasileiros
com uma semântica distinta da proposta por eles. Para estes autores, cooperar não
significa ajudar a outra parte no pleito desta contrariando os seus próprios interesses
como se estivessem em um processo civil dos ursinhos carinhosos ou no caminho de um
arco-íris processual: “um processo efetivo e célere e capaz de produzir resultados
justos”343
. Essa seria uma tese sem nexo! Afinal, só há “processo (em jurisdição
contenciosa) porque há crise, conflito de interesses qualificado por uma pretensão
resistida e levado à resolução pelo Poder Judiciário. Cada sujeito assume nele uma
341
JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,
FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 83 342
NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 232. 343
MACHADO, Marcelo Pacheco. Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-principio-da-cooperacao-e-
processo-civil-do-arco-%C2%ADiris. Acesso em: 12.05.2015.
159
diferente função e representa um diferente interesse”344
. É legítimo que o litigante não
busque uma decisão justa ou tampouco uma jurisdição célere, pois o próprio Estatuto da
Advocacia estabelece em seu artigo 2º, §2º que o objetivo direto da advocacia é a
postulação de uma decisão favorável ao seu constituinte345
.
Para Marcelo Pacheco Machado, cooperação “configura apenas um limite
imposto ao exercício dos direitos processuais, especialmente, ao contraditório. Limite
que é, no mínimo, tão velho quanto a Constituição Federal de 1988”346
.
Para Leonardo Carneiro da Cunha, a cooperação impõe deveres para todos
“os intervenientes processuais, a fim de que se produza, no âmbito do processo civil,
uma ‘eticização’ semelhante à que já se obteve no direito material, com a consagração
de cláusulas gerais como as da boa fé e do abuso de direito”347
.
Cooperação, nesse sentido, designaria o fomento ao diálogo, à participação,
ao debate instrutório, à formulação de teses fundamentadas contra as afirmações e
provas trazidas e contra seus interesses, de maneira que as partes colaborem com uma
efetiva participação na defesa de seus interesses com as melhores armas que tiverem em
prol da construção da decisão influenciando a convicção do julgador, que, por sua vez,
utilizará seus poderes para fomentar o debate entre as partes e a participação destas, sem
condutas autoritárias que empurram uma conciliação ou restrinjam o contraditório.
Até porque, como se sabe, no ambiente processual prevalece os interesses
não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz mantém-se concentrado em
metas impostas que envolvem o número de seus julgados, enquanto as partes se atêm ao
agir estratégico com a finalidade de obtenção de êxito.
Assim sendo, os autores repisam que a Lei 13.015/2015 acredita na
cooperação como serviço ao diálogo por seu viés democrático no qual todas as esferas
de exercício do poder encontrariam um controle compartilhado, uma blindagem de mão
dupla, em um espaço de problematização incessante, que impediria o subjetivismo e o
autoritarismo judicial, de um lado, e a má-fé e a procrastinação por parte do advogado,
do outro.
Mas ainda assim, o garantismo processual não concordaria com tal modelo
cooperativo porque, entre muitas outras discordâncias, a que mais salta os olhos é a
344
Ibidem. 345
Ibidem. 346
Ibidem. 347
Disponível em: <http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-
cooperacao-no-processo/>. Acesso em: 19/07/2015.
160
concepção do contraditório na perspectiva do modelo cooperativo apresentado, seja
pelos deveres que reflete ao magistrado, os deveres de prevenção, auxílio, consulta e
esclarecimento, seja ainda porque inclui o julgador no âmbito do contraditório.
Note-se que a doutrina brasileira também não é pacífica no que toca o
contraditório, como já exposto. Na redação do Projeto de Lei da Câmara 8046/2010, o
dispositivo que consagra a cooperação era diferente e nele constava que “as partes têm
direito de participar ativamente do processo, cooperando com o juiz”. Mas a alteração
de redação induz que de mera condição de produção da sentença pelo juiz ou de aspecto
formal do processo, ou seja, pela redação sancionada deve ser afastada a compreensão
de que o dispositivo voltou-se ao juiz no sentido de garantir-lhe subsídios para que
profira decisões. E assim, a cooperação instituída inclui: (i) a cooperação das partes para
com o juiz, (ii) do juiz para com as partes, (ii) e das partes entre si, ou seja, colaboração
entre todos os sujeitos processuais.
Alertam, contudo, não se tratar de solidariedade entre as partes nem andar
de mãos dadas como se acreditássemos ingenuamente, sob uma visão romântica, que as
pessoas querem utopicamente chegar ao resultado conforme o ordenamento em clara
renúncia aos seus interesses. Não se trataria de fingir serem os sujeitos processuais bons
amigos, como se o processo fosse um alegre passeio no jardim na companhia do juiz.
Também não estão os cooperatistas, alegam, a defender correntes
doutrinárias que assumem a cooperação partindo da premissa estatalista, socializante, de
submissão das partes ao juiz. Há na doutrina nacional, como visto no presente estudo,
que apregoam outro viés semântico à cooperação que não o perfil comparticipativo e de
processo democrático.
A cooperação no Novo Código de Processo Civil tratar-se-ia, em realidade,
de uma releitura democrática normativa da cooperação sob um perfil comparticipativo,
que leva a sério o contraditório como influência e não surpresa, de modo a garantir a
influência de todos na formação e satisfação das decisões e inibir aqueles atos
praticados em má-fé processual348
. E assim, prega que mesmo com papéis distintos,
todos cooperam para o resultado final, na medida em que colaboram para construir a
decisão vez que esta cooperação é lida por um contraditório como garantia de influência
e não surpresa!
348
JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,
FLAVIO. Novo CPC : fundamentos e sistematização, op.cit., p. 60.
161
Ocorre que tal entendimento não corrobora com a visão garantista do
processo. A título exemplificativo, o poder de esclarecimento do juiz, nos processos
alemão e italiano, cumpre dupla função: a de facilitar a obtenção de elementos de
convencimento e a de proporcionar uma assistência à parte débil, eventualmente
suprindo uma defesa eficiente num viés assistencial para a obtenção de melhor defesa
para as razões do litigante débil, cumprindo a técnica do processo com finalidade social.
Nota-se uma técnica do processo com finalidade social promovendo a paridade real de
armas. O garantismo é contra esta concepção. Para eles, os cooperatistas estão, em
realidade, escondendo aspectos do processo social, ainda que sem intenção.
Ademais, o Novo Código de Processo Civil traz um conjunto que assenta o
controle das ações dos sujeitos processuais e um fomento ao diálogo, como a
fundamentação estruturada das decisões, ressaltando que não se considera
fundamentada a decisão que judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que (i)
se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua
relação com a causa ou a questão decidida; (ii) empregar conceitos jurídicos
indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (iii) invocar
motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; (iv) não enfrentar todos os
argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada
pelo julgador; (v) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem
identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento
se ajusta àqueles fundamentos; ou (vi) deixar de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Outro fundamento muito importante para assumirmos essa afirmação é a
“retirada” do livre convencimento349
. Parece melhor, a retirada do mero convencimento
judicial. Afinal, como visto e com base em Ferrajoli, o princípio da livre convicção não
é princípio da mera convicção, mas simplesmente um princípio que leva à insuficiência
da prova legal como critério único de formação da decisão a partir dos dados que se
entende como comprovados. A livre convicção entendida como mera convicção produz
sim autoritarismos, subjetivismos, decisionismos, solipsismos e todos os ismos que
possam retratar a decisão como escolha do julgador desgarrada da lei porque agarrada
somente num ideal individual de justiça.
349
STRECK, Lenio. Por que agora apostar no projeto do novo CPC!. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2013-out-21/lenio-streck-agora-apostar-projeto-cpc>. Acesso em: 21/09/2013.
162
É nesse sentido que alivia Lenio Streck:
Conseguir romper com o mito de “Oskar Bülow” é um salto em direção ao
futuro. Livrar o processo civil das amarras do instrumentalismo presente em
Carnelutti, Couture, Liebman etc, é olhar para o futuro. Mais do que isto, é
entender o papel da história e das possibilidades de deixar para trás aquilo
que foi importante, mas que se perdeu em face das alterações paradigmáticas
que se produziram na filosofia e no direito. Se Bülow e Klein apostaram, no
século XIX, no protagonismo judicial para a recepção do direito romano, isto
não quer dizer que isso que propalou — porque o primeiro era adepto do
Movimento do Direito Livre — pode(ria) ainda hoje ser útil em tempos de
fortalecimento da autonomia do direito e da produção democrática da
legislação. Isto é, efetivamente, alvissareiro.350
Nesse contexto de discussões e incertezas trazidas pelo Novo Código de
Processo Civil, especialmente com os dispositivos cooperativos/comparticipativos,
importante será revisitar assuntos que constituem o núcleo duro do processo. Note-se
também que o Novo Código de Processo Civil inova, otimiza e transforma dispositivos
cooperativos/comparticipativos do regime processual de 1973 que caminha para
revogação.
Um exemplo é a emenda da petição (emendatio libeli), como permissão de
correção da parte autora a corrigir defeito expressamente apontado pelo juiz
previamente ao indeferimento da exordial. Decorre da observância do dever de
prevenção sob pena de nulidade da decisão em consideração ao máximo aproveitamento
da atividade processual.
Por sua vez, conforme previsto no novo Código em seu artigo 321, o
magistrado terá que ir além ao “indicar com precisão o que deve ser corrigido ou
completado”. Ademais, somente na hipótese de descumprimento o magistrado
indeferirá o libelo.
Para o garantismo processual, a imposição ao juiz do dever de apontar os
defeitos ou omissões da petição inicial é revestido de caráter inqusitorial. O garantismo
processual entende que se um dos requisitos intrínsecos para a apresentação da demanda
é que o conteúdo da demanda seja eficiente, o cumprimento deste requisito é de capital
importância pois ele viabiliza a defesa do demandado351
.
Este tema não se relaciona, observe-se, com a correção da própria decisão
pós recurso, que é admitida pelo garantismo processual como dever do juiz, pois
350
Ibidem. 351
VELLOSO, Alvarado. Accion procesal, pretensión y demanda, acumulación y eventualidad. El
derecho de defensa em juicio. Del actor. Paraguay, 2014, p.121.
163
“parece claro que resulta absurda la elevación de la causa al superior si el propio juez
puede suplir la omisión, aclarar el concepto oscuro, o corregir el error material”352
.
Essa doutrina entende que para que cada litígio possa cumprir com a
garantia constitucional generalizada universalmente que assegura um devido processo
como meio para chegar a uma solução heterocompositiva legítima e eventualmente
justa, faz-se necessário que desde o próprio escrito da demanda se possibilite um
adequado e pleno contraditório dentro do marco de regras de debate que devem
respeita-se por todos os sujeitos do processo. Para que o demandado possa efetivamente
se defender, é preciso que o autor exponha inequivocamente o conteúdo de sua
pretensão: 1) quem pretende, 2) de quem se pretende, 3) o quê se pretende (com as
exceções quando isso não é possível, claro) e 4) o porquê se pretende (sujeitos, objeto e
causa da pretensão). É para isso que a leis processuais prevêem os requisitos gerais
(intrínsecos e extrínsecos) e os requisitos específicos da demanda.
Caso tais requisitos não sejam respeitados, o demandado podem apresentar
uma exceção de defeito legal no modo de propor a demanda (excepción Del defecto
legal en el modo de proponer la demanda), ressaltando que esta exceção é espécie do
gênero exceções cujo objeto é paralisar o processo, alegando fato impeditivo da
continuação do processo. No caso dessas exceções, algumas são solucionáveis pelo
autor no mesmo procedimento e este pode prosseguir, enquanto outras exigem o arquivo
do procedimento autuado e o posterior ingresso do autor com nova demanda que se
adeque aos pressupostos que regulam sua utilidade.353
Note a mensagem do garantismo processual: se o processo se dá entre as
partes, então deixe que elas resolvam suas questões. Se a parte não apresentou a
exceção, é porque não viu prejuízo ao seu direito de defesa. Se a viu, apresentará. O que
não pode é o magistrado imiscuir-se em problema que a parte, que é quem se defende,
não entendeu prejudica. Se o magistrado indicar com precisão o que deve ser corrigido
ou completado na petição, sem a parte assim fazer, além de ultrapassar o seu papel de
julgador, (i) ou estará auxiliando uma das partes, caso sua determinação tenha aclarado
os pontos da petição, (ii) ou suas determinações resultam de decisionismo e relativismo,
pois estarão conforme suas próprias convicções, suas suspeitas íntimas, sem qualquer
respaldo no direito de defesa de nenhuma das partes.
352
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo II. Buenos Aires:
Rubinzal – Culzoni Editores, 2009, p. 421. 353
VELLOSO, Alvarado. Contestación y excepción. El derecho de defensa Del demandado civil y del reo
penal. Paraguay, 2014, p.67.
164
Exemplificando, um dos requisitos da demanda diz respeito à exposição
fática, devendo estar ser feita com clareza. Mas poderia o magistrado determinar que o
peticionante indique este ou aquele fato com maior precisão? Será que a instrução
probatória, visando confirmar as alegações das partes, já não os explicaria? Se não os
explicar, o fato não restará confirmado, devendo o magistrado levar em conta quando da
sentença.
Outro exemplo é o dispositivo 342 do Código Buzaid (não muito utilizado
na prática) e que constitui mecanismo para a cognição ao prever a possibilidade do juiz,
de ofício, em qualquer estado do processo determinar o comparecimento pessoal das
partes, a fim de interrogá-las sobre os fatos da causa.
E a conduta oficiosa, já se abordou aqui, deve ater-se às propensões
cognitivas (cognitive biases – estudo apresentado por Eduardo Costa) e a eventual
desestímulo de debate entre as próprias partes. Aliás, o estímulo da conduta judicial
oficiosa sem as preocupações que isso pode causar no sistema pode demonstrar que
este, em realidade, persiste em premissas socializadoras.
Como viu-se no estudo publicado de Mirjan Damaska, foi apontado, entre
outras observações, que muito além de qualquer texto, está a mentalidade de quem o
aplica, e que a justiça civil da Europa continental permitia ao juiz ampliar o conjunto
probatório, mas pragmaticamente não trouxe grandes efeitos inquisitoriais.
Basicamente, a ausência de um comportamento instrutório ativo do juiz não foi
compensado por uma conduta probatória ativa pelas partes ou seus advogados, pois os
advogados se baseavam basicamente nas informações dadas por seus clientes, não
possuíam grande contato com as testemunhas e tampouco conduziam numerosas
investigações fáticas. Afirmou Damaska que no Common law a produção de provas é
de controle das partes ou de seus advogados com a possibilidade de uma compelir a
outra a produzir prova contra si mesma, pois o processo liberal não reconhecia tal
conduta como contrário à autonomia dos litigantes.
Mas na hipótese trazida, qual seja, a possibilidade do juiz, em qualquer
estado do processo, determinar, de ofício, o comparecimento pessoal das partes, a fim
de interrogá-las sobre os fatos da causa, além das considerações já feitas a respeito da
não admissão da determinação de produção probatória oficiosa na teoria processual
garantista, esta afirmaria que o juiz que age pactuado com tal dispositivo está em busca
da verdade real sobre os fato submetidos a seu julgamento para fazer a Justiça,
comprometendo sua imparcialidade.
165
Veja-se: o julgador justiceiro, com toda honestidade de espírito, faz tudo o
que está a seu alcance para chegar à verdade real dos fatos submetidos a julgamento. E
depois de árdua busca, acreditar ter alcançado a verdade, com base em que emitirá sua
decisão.
O que está por trás do juiz que determina o comparecimento pessoal das
partes para que estas expliquem fatos da causa? Está a busca da verdade sobre o que
“realmente” aconteceu até certeza de como os fatos ocorreram.
O Código de Processo de 2015, aliás, contribui, infelizmente, para tal
pensamento quando se refere à prova como comprovação da verdade dos fatos, como
por exemplo, o artigo 319, IV ao prever que “A petição inicial indicará (...): IV - as
provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados”), o artigo
369 ao estabelecer que “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos,
ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos,
em que se funda a ação ou a defesa” e o artigo 378 “Ninguém se exime do dever de
colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”.
Se todas as instâncias buscam a verdade, como justificar o fato da verdade
do juiz da primeira instância não coincidir com a verdade do tribunal de 2 instância, e
por aí em diante?
E veja: se a outra parte podia, por meio de exceções e da própria instrução
probatória, apontar a deficiente explicação acerca dos fatos, pelo que resta prejudicado
seu direito de defesa, ou por meio da etapa instrutória apresentar provas que contrariem
a versão da outra parte, o juiz só estará a agir para, em realidade, pactuar com seu
sentimento interno de justiça e que o faz sentir-se responsável pelo destino que tomarão
as partes após sua declaração definitiva.
Mas do dispositivo, no Novo Código, foi retirada a expressão “de ofício”354
,
preservando-se o direito de não produzir prova contra si355
, em coerência, aliás, com a
previsão legal pela qual não se poderá mais decidir, em grau algum de jurisdição, com
base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se
manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Ou seja, o
seu dever-poder de decidir é limitado pela vedação às “decisões surpresa” ou “juízos de
354
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: VIII -
determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da
causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso;. 355
Art. 379. Preservado o direito de não produzir prova contra si própria, incumbe à parte: I – comparecer
em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado; II – colaborar com o juízo na realização de inspeção
judicial que for considerada necessária; III – praticar o ato que lhe for determinado.
166
terceira via”, os quais, em muitos casos, exatamente porque não ouvidas as partes,
podem ignorar aspectos relevantes da relação litigiosa (direito material e processo).
Afinal, no NCPC, o contraditório é concebido como desenvolvimento nos
deveres de informação do juiz e nos direitos de manifestação e consideração para
partes356
, como explicado no tópico anterior.
Sob a perspectiva garantista, os direitos de manifestação e consideração são
reflexos, em realidade, da necessidade de motivação de toda e qualquer decisão, muito
importante para o garantismo em que pese não trabalharem analiticamente com uma
teoria da decisão. E o direito de informação do juiz seria reflexo do assistencialismo do
magistrado ao ter que trazer às partes observações acerca de pontos de fato e de direito,
sejam eles materiais ou processuais, relevantes para a causa.
Lembre-se: os cooperatistas entendem que este dispositivo decorre do
dever-poder de esclarecimento. Ocorre que nos processos alemão e italiano, o poder de
esclarecimento do juiz cumpre dupla função: a de facilitar a obtenção de elementos de
convencimento e a de proporcionar uma assistência à parte débil, eventualmente
suprindo uma defesa eficiente num viés assistencial para a obtenção de melhor defesa
para as razões do litigante débil, cumprindo a técnica do processo com finalidade social.
Uma técnica do processo com finalidade social promovendo a paridade real de armas.
Veja-se, inclusive, que com Miguel Teixeira de Sousa, o princípio da
cooperação constitui linha do processo civil não-liberal de cunho social, destinado a
transformar o processo em uma comunidade de trabalho357
.
No que tange a prova, William Santos Ferreira relatou em palestra no
tocante aos deveres-poderes instrutórios do juiz sobre o artigo 370358
, vez que houve a
passagem da possibilidade de indeferimento das diligências inúteis ou meramente
protelatórias para um parágrafo único, não mantendo mais no caput do dispositivo como
é feito pelo artigo 130 do Código Buzaid, o que indicaria à excepcionalidade da
possibilidade de indeferimento.
356
JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,
FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização, op.cit., p. 83 357
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, op.cit., p. 62. 358
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao
julgamento do mérito. Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis
ou meramente protelatórias.
167
Observa o autor que o artigo 369359
subjetivou o direito à prova ao prever
que “as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os
moralmente legítimos” (...), não mantendo a redação do artigo 322360
do Código
Processual de 1973 no sentido de que “todos têm direito”, induzindo à contenção dos
poderes instrutórios do juiz, ou seja, da excepcionalidade da iniciativa probatória do
juiz, além da configuração do autônomo direito à prova.
Sob um viés garantista e acusatório, já viu-se que o controle da gestão da
prova é das partes, de maneira que os poderes instrutórios do juiz já são relegados
intrinsecamente na teoria a uma contenção.
Aliás, no que tange a prova pericial, João Batista Lopes defende mesmo na
omissão das partes, caberá ao juiz determinar sua produção sempre que a complexidade
da matéria fática o exigir. Por exemplo, suponha-se que para demonstrar o cumprimento
de obrigações contratuais, exiba o réu, na contestação, numerosos demonstrativos
contábeis cuja compreensão escape ao conhecimento do juiz. O autor conclui que
“Nessa hipótese, mesmo que o réu não requeira perícia contábil, caberá ao juiz
determiná-la para perfeito esclarecimento dos pontos controversos”, e assim, para ele,
poder-se-ia dizer que “a prova pericial deve ser produzida sempre que se mostrar
necessária, haja ou não sido requerida pelas partes”361
.
Contudo, “garantisticamente”, se há pontos controversos, devem as partes
confirmá-los consoante seus interesses, afinal, o sistema processual civil concebe o ônus
da prova com relação às alegações das partes em consonância com a previsão do art.
373, I do Novo Diploma Processual (art. 333, I do CPC de 1973). Acaso não cumprido
o ônus, recairá uma situação desfavorável, no caso da prova, o não reconhecimento pelo
juiz do que alega a parte. Nesse sentido, a apresentação de documentos sem as devidas
explicações implicam na não confirmação dos fatos, e se o fato alegado não é
confirmado/provado, o juiz terá que assim considerar os fatos quando se suas
conclusões na sentença. Afinal, fazer alegações e confirmá-las é tarefa das partes, não
do julgador.
359
Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente
legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o
pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz. 360
Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados
neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. 361
BATISTA LOPES, João. Iniciativa instrutória do juiz e os arts. 130 e 333 do CPC. São Paulo: Revista
de Processo, vol. 716, Jun 1995, p. 41 – 47.
168
No que tange à postura dos sujeitos processuais, o princípio da cooperação
impôs condutas362
. Além da imposição ao juiz em ouvir as partes antes de decidir
oficiosamente sobre determinadas matérias, a doutrina traz como exemplo a advertência
sobre a possibilidade de revelia no mandado citatório, dando ciência sobre o prazo de
defesa e explicando a consequência no caso concreto sobre a ausência de resposta e
participação no processo, bem como eventual informação acerca da Defensoria Pública
e de como dela se utilizar, não por informações genéricas, mas com dados específicos.
Isso se daria porque o leigo, em especial o hipossuficiente, desconhece o
significado de revelia e não compreende a expressão “reputar-se-ão verdadeiros os fatos
alegados na petição inicial”, de maneira que permaneceria inerte.
O garantismo apenas dirá que há sempre uma série de erros por parte do
jurisdicionado que se mantém inerte e não se interessa em participar da causa
acreditando que nada vai lhe acontecer, margeando a lei.
Fato é que a sorte do processo civil brasileiro é uma incógnita! Sabe-se que
louváveis esforços não garantem, pelo menos de modo seguro, um diagnóstico prévio
acerca das reais consequências do novo sistema.
É evidente que nem todas as opções do Novo Código de Processo Civil
atrairão a concordância geral, até porque, críticas foram, são e serão continuamente
apresentadas, como aquelas resultantes da constatação de inúmeras precisões técnicas
que não correspondem ao atual estágio do desenvolvimento teórico da ciência jurídica
brasileira363
.
Não se pode é deixar de reconhecer que as críticas e os elogios mostram que
a Lei 13.0105/2015 é resultado de um incessante debate democrático com participação
das diversas classes da comunidade jurídica, como juízes, advogados, políticos e
professores.
362
MACHADO, Marcelo Pacheco. Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-principio-da-cooperacao-e-
processo-civil-do-arco-%C2%ADiris. Acesso em: 12.05.2015. 363
DIDIER JR., FREDIE. A teoria dos princípios e o projeto de novo CPC. In: ROSSI, Fernando;
RAMOS, Glauco Gumerato; GUEDES, Jefferson; DELFINO, Lúcio. MOURÃO, Luiz Eduardo. (Coord.)
O futuro do processo civil no Brasil: Uma análise crítica do Novo CPC. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2011, p. 699.
169
4. APORTES HERMENÊUTICOS DIALOGANDO COM O GARANTISMO
E SUAS CRÍTICAS AO ATUAL ESTÁGIO DO PROCESSO CIVIL
BRASILEIRO
Como mencionado, Ferrajoli reconhece que uma teoria da decisão como as
trabalhadas por Lenio Streck e defendida por André Karam Trindade no livro
“Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli.”
é opção para reduzir o arbítrio e reforçar a racionalidade das decisões. Por isso, fez-se
necessário abordar o tema no presente trabalho, mesmo reconhecendo que iminentes
processualistas brasileiros não trabalham sob os termos da Hermenêutica Filosófica.
Mesmo ciente de que esta exposição pode não refletir a grandiosidade dos
ensinamentos de tais autores, decidiu-se por expô-la porque é debate que, no Brasil,
circunda o garantismo e que pode engrandecer o debate por abordar tema tão importante
como a interpretação e os prejuízos do intérprete.
4.1. Da hermenêutica clássica à filosófica
Na hermenêutica jurídica clássica, a interpretação se dá segundo uma
relação sujeito-objeto, na qual o conjunto normativo é tido como algo totalmente
despido de sentido e que irá receber, da nossa compreensão subjetiva, determinada
significação, como se essa significação fosse determinada pelo sujeito.
Assim, a linguagem é um meio pelo qual o sujeito conhece o sentido dos
textos. Veja: o intérprete só revela o sentido do texto. A interpretação é ato de
conhecimento “e toda preocupação está voltada para que seja garantida a objetividade
da interpretação ou um caráter de neutralidade do intérprete em relação à lei (ou à
vontade do legislador)”364
.
O sujeito se põe frente ao objeto, passivamente, para apreender a realidade. E para
esta apreensão faz-se necessários métodos que condicionam a atividade do sujeito
perante o texto. Veja-se: é inconcebível que o sujeito venha a ocupar os dois polos da
relação (esquema sujeito-sujeito). Concebe-se, na hermenêutica clássica (i) a pretensão
de totalidade de apreensão de sentidos do texto e (ii) a possibilidade de métodos que
garantam a objetividade do sentido do texto atribuído por seu autor, como os
364
ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à filosofia do direito, op. cit., .p.395.
170
conhecidos nos primeiros anos da graduação, o gramatical, lógico, sistemático, histórico
e teleológico365
( que preconiza que a interpretação deve ser realizada tendo em vista a
“ratio legis” ou “intento legis”, isto é, conforme a intenção da lei, buscando-se entender
a finalidade para a qual a norma foi editada, isto é, a razão de ser da norma).
Perceba-se: há na hermenêutica jurídica clássica uma separação entre
interpretação e aplicação do direito, o que leva ao entendimento de que a interpretação é
ato de conhecimento, do qual (se espera que) o sujeito reproduzirá o sentido exato
extraído do texto legal.
Veja-se que no atual sistema jurídico brasileiro a Lei de Introdução às
Normas de Direito Brasileiro consagra em seu art.5o,, a aplicação da lei pelo juiz
atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Ou seja,
Nesse sentido, o intérprete primeiro interpreta para só depois compreender o sentido do
texto submetido e assim o aplicar.
Ocorre que, a própria noção de círculo hermenêutico (no interior do qual o
intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e onde a compreensão e
explicitação do ser já exige uma pré-compreensão) já incompatibiliza a autonomia de
tais métodos de interpretação e/ou seu desenvolvimento em partes e/ou fases. Se não
existe um método dos métodos, será arbitrária e, portanto, autoritária e voluntarista o
uso de um deles.
E além disso, conheva-se
Afinal, toda interpretação sempre será gramatical (porque, à evidência, deve
partir de um texto jurídico); será inexoravelmente teleológica (seria viável
pensar em uma interpretação que não fosse voltada à finalidade da lei, com a
conseqüente violação à firme determinação do art. 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil, que determina que o juiz, na aplicação da lei, atenderá aos fins
sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum?); será,
obrigatoriamente, sistemática (porque é impossível conceber que um texto
normativo represente a si mesmo, sem se relacionar com o todo (...)).
. A hermenêutica jurídica clássica concebe a interpretação da Constituição de
uma forma distinta daquela atinente aos preceitos infraconstitucionais. Lenio Streck é
contra por entender haver aqui uma objetificação da Constituição, porque não seria
possível falar de uma hermenêutica especificamente constitucional já ela não pode ser
regionalizada pós-giro-linguístico ou reviravolta linguística quando a filosofia percebeu
a impossibilidade de se chegar diretamente aos objetos.
365
“Posteriormente, Jhering – para muito o fundador intelectual da chamada jurisprudência dos
interesses – introduz o método teleológico, tão caro à instrumentalidade do processo” Ibidem, p. 394.
171
Aliás, Lenio Streck remete ainda a um giro ontológico-linguístico, pois além
do problema da linguagem refere-se ao deslocamento da questão ontológica para um
plano concreto e fático legado por Heidegger à filosofia no âmbito da hermenêutica
filosófica. Isto é, o giro ontológico supera a ontologia da coisa pela ontologia da
compreensão a partir do deslocamento do ser humano para o interior da problemática
ontológica366
. O acesso se dá pela linguagem, já que “temos acesso às coisas e
chegamos a conhecê-las porque temos palavras para mencioná-las”367
.
Aluno de Heidegger, Han-Georg Gadamer atravessou todo o século XX
(1900-2002) e teve por objetivo demonstrar o estado da arte que se encontrava a
hermenêutica neste século, propondo, então, um modelo de hermenêutica filosófica. O
autor critica a crença na racionalidade, a aposta no método como forma de chegar á
verdade, a radical reação iluminista à tradição e aos preconceitos (concebidos sempre
negativamente, à separação entre sujeito e objeto (que é conhecido pelo sujeito
cognoscente), concebendo a compreensão a partir dos juízo que já estão historicamente
no próprio intérprete, jamais afastando-o, como já mencionado, do próprio intérprete,
mergulhado que sempre está na tradição e na moralidade.
Como foi aluno de Martin Heidegger e, quando da elaboração de seu
modelo, sofreu enorme influência de seu professor, especificamente da fenomenologia
hermenêutica gadameriana, tanto que em sua obra “Verdade e Método” destina um item
sobre ela analisando a descoberta heideggeriana sobre a estrutura prévia da
compreensão e apresenta a descrição heideggeriana do círculo hermenêutico. Para
Gadamer, é em consideração à historicidade e à temporalidade que Heidegger constrói a
estrutura prévia e circular da compreensão. O autor questiona a possibilidade da
compreensão independentemente do querer do sujeito ou do que este deve fazer,
analisando o que é comum a todo compreender, generalizadamente.
É que Heidegger já se preocupava com a arbitrariedade na compreensão,
como Gadamer, pois para ambos “toda interpretação correta tem que proteger-se da
366
Heidegger denominou de Metafísica a tradição anterior, apontando ter investigado o ente algo que
seria do ser, pensado o ente ao invés do ser, ou seja, relegado a um plano ôntico algo ontológico. Pontua
que a metafísica não pensou o vinculo necessário entre homem e ser (Dasein). Ela pensava a ontologia
fora do homem, pois era uma ontologia do objeto, da coisa, do ente, e não dirigia-se ao ser. Heidegger
coloca o homem dentro da ontologia (ontologia da compreensão) designando de ontologia fundamental,
que recebe a forma de uma analítica existencial, a que possibilidade todas as demais ontologias por
compreender o ente que compreende o ser e se compreende. Cf. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma
Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,
Cap. 10 e 11. 367
ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à filosofia do direito, op. cit, p. 403.
172
arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar
imperceptíveis e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’”368
(noção
herideggeriana das coisa mesma, aparecendo em Gadamer no sentido de que a coisa já
antecipa o seu sentido, explicado anteriormente369
).
Veja: jamais se concebeu o afastamento das opiniões prévias e indevidas
como tarefa fácil. O afastamento dos mal-entendidos é claramente algo difícil. E é por
isso que Gadamer sequer aceita a possibilidade de se esquecer das opiniões prévias
pessoais, necessárias para a compreensão. O que o autor ensina é que para evitar o mal-
entendido deve-se abrir para a opinião do texto e colocá-la em conflito com as opiniões
do próprio intérprete. Isto é: a compreensão deve “elaborar os projetos corretos e
adequados às coisas, que como projetos são antecipações que só podem ser
confirmadas nas coisas”370
.
Gadamer concebe a “distância temporal” como elemento essencial de
compreensão. A distância temporal é necessária para avaliar criticamente os prejuízos
advindos da tradição e que recuperam a historicidade371
do sentido (que proporcionam a
compreensão) para que não se produza mal-entendidos.
Assim, os projetos prévios de sentido antecipados logo que se mostra um
primeiro sentido do texto é revisado na medida em que se aprofunda o sentido do texto
(círculo hermenêutico), ou seja, os sentidos produzidos pelo intérprete adquirem
validade na medida em que são compatíveis com a coisa ela mesma ou com a coisa em
si presente no texto. Se esta alteridade entre texto e intérprete se mostrar incompatível
368
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de um hermenêutica filosófica. 7ª
ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Enio Paulo Giachini.
Petrópolis/Bragança Paulista: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2014, p. 355. 369
Gadamer explica que “as coisas elas mesmas” é para os filólogos os textos com sentido que tratam, por
sua vez, de coisas: “Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o
intérprete uma decisão heroica, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente a tarefa primeira,
constante e última. Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa através de todos os seus desvios a
que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das ideias que lhe ocorrem.” Ibidem, p.
355/356. Note-se, então, que a coisa mesma não significa a coisa em si, até porque a hermenêutica
filosófica gadameriana não concebe a compreensão sem antecipação de sentidos, sem pré-compreensão,
de modo que um prejuízo ilegítimo só se retifica quando confrontado com outra antecipação de sentido,
não é confrontando com a coisa em si, perceba, mas com outra antecipação de sentido acerca da coisa
mesma, o texto, por exemplo: “Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo
apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o
sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na
perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente
na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base
no que se dá conforme se avança na penetração do sentido.” Ibidem, p. 356. 370
Ibidem, p. 356. 371
A historicidade do sentido, e que não se confunde com conhecimento dos eventos do passado (historie
é diferente de Geschichte, que é a história enquanto acontecer humano), se refere ao caráter de
acontecência que reveste a própria existência humana.
173
com a coisa em si, há a substituição dos sentidos atribuídos pelo intérprete por outros
mais autênticos, e, assim, sucessivamente.
Isso demonstra que a interpretação está desde sempre condicionada pelos
pré-juízos e pela pré-compreensão do intérprete decorrentes da tradição histórica na
qual ele – intérprete – está linguisticamente mergulhado. E portanto, o que guia o
intérprete hermenêuticamente são seus projetos de sentido que emanam do confronto de
seus pré-juízos/pré-compreensão com o texto. Não são métodos.
E então, como ensina Georges Abboud:
Com Heidegger e Gadamer, então, a hermenêutica deixa de ser
normativa/metodológica, constituída a partir de metafísicos esquemas
dedutivos-subsuntivos em que o objeto é construído pelo cogito ou refletido
na consciência; e passa a ser filosófica, na medida em que está estruturada na
antecipação de sentido presente na base do círculo hermenêutico acima
descrito. Desta forma, o caráter da interpretação será sempre produtivo. É
impossível reproduzir um sentido. A atividade criativa/produtiva do
intérprete no trabalho hermenêutico é parte inexorável do sentido da
compreensão e de sua estrutura prévia.372
Veja-se a hermenêutica jurídica de cunho produtivo em que a interpretação
da lei é uma tarefa eminentemente criativa. Com essas considerações a respeito da
questão da pré-compreensão e da antecipação de sentido, conclui-se que a hermenêutica
não pode ser método, mas sim filosofia. A hermenêutica com o objetivo de esclarecer as
condições o as quais surge a compreensão, condições que não se buscam no método,
mas dadas pelos preconceitos transmitidos pela tradição, diferentemente do que sugere o
garantismo que se baseia na crença de que o homem deveria afastar-se de suas
concepções prévias e usar criteriosamente a razão para atingir a verdade.
Com Gadamer:
(...) é certo que não existe compreensão que seja livre de todo preconceito,
por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar sempre
dirigida, no sentido de escapar de nossos preconceitos. No conjunto desta
investigação evidencia-se que, para garantir a verdade, não basta o gênero de
certeza, que o uso dos métodos científicos proporciona. Isso vale
especialmente para as ciências do espírito, mas não significa, de modo algum,
uma diminuição de sua cientificidade, mas, antes, a legitimação da pretensão
de um significado humano especial, que elas vêm reivindicando desde
antigamente. O fato de que, em seu conhecimento, opere também o ser
próprio daquele que conhece, designa certamente o limite do método(...)373
Para Gadamer, a aplicação (applicatio) e interpretação se dão no mesmo
processo. A interpretação passa a ser uma atividade criativa de atribuição de sentido,
372
ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, op. cit., p. 422 373
GADAMER, Hans-George. Verdade e método I. op. cit., p. 709.
174
não de reprodução do sentido unívoco presente no texto normativo, ou seja, rompe com
a interpretação reprodutiva.
Obviamente que essa contribuição não pode advir de um ato de vontade
subjetiva do intérprete, problema que é tematizado no âmbito de uma teoria da decisão.
Três autores procuram solucionar esta questão e são extremamente
debatidos na doutirna nacional, a teoria procedimental da decisão de Robert Alexy,
Ronald Dworkin e o princípio do direito como integridade, e a teoria de decisão de
Lenio Streck, que defende o direito fundamental da resposta correta ou adequada à
Constituição a partir de uma imbricação entre Gadamer e Dworkin.
4.2. O paradigma pós-positivista, a teoria das fontes do direito, a diferenciação
entre princípios e regras e a distinção entre princípios gerais do direito e princípios
constitucionais.
Uma breve abordagem sobre o pós-positivismo foi feita quando o
diferenciamos do neoconstitucionalismo no capítulo sobre o ativismo judicial. Foram
feitas as necessárias remissões à Friedrich Muller e sua Metódica Estruturante do direito
(constando o termo já na primeira edição de seu Juristiche Methodik em 1971) e
afirmou-o como um paradigma filosófico estruturado sob a base do giro linguístico e
ontológico-linguísitico374
, observando que o giro linguístico é utilizado como
fundamento para superação do positivismo.
Friedrich Muller teorizou um modelo para superar as deficiências do
positivismo conforme os avanços da filosofia da linguagem e da própria hermenêutica.
E para tanto, examina a norma jurídica numa perspectiva pós-positivista mediante a
qual não existe uma cisão entre o estudo do direito e a realidade375
.
Adotando a perspectiva de Friedrich Muller em sua teoria estruturante do
direito, norma jurídica e texto normativo são distintos. Como visto, teoriza que a norma
possui dois elementos: um programa e um âmbito. E assim, a prescrição literal
juspositivista é somente o início para se compreender a norma, até porque o texto
estabelece limites, de maneira que nem toda compreensão sobre determinado enunciado
pode ser realizado. Mais além, o âmbito normativo traz a realidade, o caso concreto e o
intérprete para a produção da norma.
374
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 85. 375
Ibidem, p. 55.
175
Assim, perceba-se, a normatividade “significa a propriedade dinâmica da
ordem jurídica de influenciar a realidade e de ser, ao mesmo tempo, influenciada e
estruturada por este aspecto da realidade”376
.
Relembre-se, aliás, que em Alexy, teorizador de uma diferença estrutural
entre regras e princípios, como a de Adolfo Alvarado Velloso, a realidade estava no
âmbito da argumentação, não no âmbito normativo.
É que Alexy filia-se à matriz teórica do racionalismo discursivo: ele divide
as normas de direito fundamental entre as diretamente estatuídas pela Constituição e que
são a estas adscritas conforme o direito, seja pela própria positivação ou pela
possibilidade de desenvolvimento de uma fundamentação jurídica correta. Perceba-se,
então, que os dados da realidade social estão no âmbito da argumentação, não no âmbito
normativo, explicando que é mais útil separar aquilo que o legislador impôs como
norma e as razões do intérprete em uma determinada aplicação. Ao distinguir a norma
semanticamente e os dados da realidade social que fornecem argumentos para sustentá-
la, Alexy cinde fato e Direito, o que já não se encontra no paradigma hermenêutico
filosófico.
Já Friedrich Muller ensina que o texto determina somente os limites
extremos das possíveis variantes em seu significado, e assim, interpretação jurídica de
todo texto legal conterá a historicidade de maneira que será alterada considerando o
momento histórico em que é realizada.
Ou seja, a atividade interpretativa será sempre histórica e sofrerá a
interferência das pré-compreensões do intérprete, porque o texto, quando abordado, o é
a partir dele, do seu momento histórico, da sua realidade.
Assim, conforme Müller, a norma não é prévia e abstrata, é concreta e
produzida perante um caso jurídica, real ou fictício:
Nesse novo paradigma, a norma deixa de ser um ente abstrato, ou seja, ela
passa a inexistir ante casum, uma vez que não se equipara mais ao texto
legal, consequentemente, a norma passa a ser coconstitutiva da formulação
do caso concreto. Essa nova concepção de norma jurídica demanda uma
visão do direito que abandone os dualismos irrealistas tais como norma/caso
e direito/realidade bem como o silogismo como mecanismo de aplicação do
direito.377
376
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito. op. cit., p. 349. 377
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit. p. 56.
176
Mas Friedrich Muller concebeu a distinção estrutural entre texto e norma, e
Lenio Streck, numa dimensão compreensiva, a tematiza na perspectiva da diferença
ontológica no sentido heideggeriano, já que norma será o sentido do texto, o sentido do
ente.
Como já dito, a filosofia de Heidegger colocou o homem dentro da
ontotologia, que antes era uma ontologia da coisa, de essências e objetos. A filosofia
heidegeriana, pretendendo responder à questão sobre o sentido do “ser” que é diferente
do “ente”, constitui a diferença ontológica, sobre o que Gadamer explica:
Nenhum homem sabe no fundo o que o conceito ‘o ser’ designa, e, apesar
disso, nós todos temos uma primeira pré-compreensão ao ouvirmos a palavra
‘ser’ e compreendermos que aqui o ser, que cabe a todo ente, é elevado desde
então ao nível do conceito. Com isso, ele é diferenciado de todo ente.
Entender a distinção entre texto e norma e a diferença ontológica é
fundamental para dar-se continuidade nas conclusões deste paradigma, pois:
Ignorar a diferença ontológica (diferença entre ente e ser) e todos seus
desdobramentos é condição para diversos equívocos que ainda permeiam
nossa dogmática jurídica, merecendo destaque alguns: não compreensão da
distinção entre vigência e validade; crença equivocada na possibilidade de se
descobrir vontade na lei ou no legislador; ingênua crença de que ainda há
silogismo; falsa suposição de que é possível decidir depois buscar o
fundamento; cisão pura entre questão de fato e questão de direito; ato de
decidir é ato de vontade etc.378
(grifos nossos)
A diferença ontológica e o círculo hermenêutico compõem
fundamentalmente a fenomenologia hermenêutica: “Sabemos, então, que o homem(Ser-aí)
compreende a si mesmo e compreende o ser (Círculo hermenêutico) na medida em que
pergunta pelos entes em seu ser (diferença ontológica)”379
. Nesse sentido, Heidegger demonstra
que se compreende para se interpretar, pois esta deriva daquela que se tem a respeito do ser dos
entes na medida em que “na interpretação procuramos manifestar onticamente aquilo que foi
resultado de uma compreensão ontológica. A interpretação é o momento discursivo-
argumentativo em que falamos dos entes pela compreensão que temos de seu ser”380
,
contrariando o paradigma anterior no qual primeiro se interpreta para depois compreender.
Nisto reside o vínculo entre homem e ser e uma cooriginariedade entre ser e mundo, não
havendo primeiro o Ser-aí e depois o mundo como uma ponte entre consciência e mundo. O
Ser-aí é Ser no mundo (rompendo-se com os dualismos da tradição metafísica de consciência e
mundo, palavras e coisas, conceitos e objetos etc.).
378
Ibidem, p. 61. 379
Idem. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, p. 415 380
Idem. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, p. 415.
177
Aliás, é de acordo com tais considerações que se conclui que o método não
funciona como elemento interpretativo, porque o que organiza o pensamento é a diferença
ontológica, não uma estrutura metodológica.
E não cair nesses equívocos é que faz situar uma teoria no paradigma pós-
positivista.
Então, se os textos não possuem um sentido íntimo que contenha as normas
prontas para aplicação, isto é, se texto e norma não se confundem, pois as normas são
construídas a cada caso a ser decidido, ainda que apenas ficcionalmente, a concepção de
decisão judicial como simples silogismo formulado a partir de um procedimento lógico-
formal apresenta-se defasada:
(...)um dos principais equívocos que o conceito de sentença como silogismo
proporciona é a confusão entre texto normativo e norma, porque, ao se
considerar a sentença como silogismo, o enunciado legislativo e a norma se
confundem, uma vez que a sentença passa a ser ato meramente declarativo, e
não criador do direito.381
De todo modo, não se fala em descobrir a norma, mas em produzir/atribuir
um sentido à norma diante da problematização de um caso concreto, de forma que a
concepção subsuntiva produto do positivismo mecanicista é algo irreal e inconcebível
num paradigma pós-positivista.
Os enunciados jurídicos, ou seja, os textos normativos, derivam, entre
muitos fatores, da interpretação existencial do intérprete, de maneira que tal enunciado
ou texto nunca está pronto para ser aplicado silogisticamente como solução para os
casos futuros, mas apenas um elemento constitutivo da norma para a solução desses
casos. “O dispositivo da sentença consistirá na norma, porque possui uma motivação e
uma fundametnação, derivada da compreensão histórica e fática do intérprete”382
.
Nesse sentido, então, se a norma não pode, como já referido, ser
considerada como entidade abstrata, separada de um caso (seja real ou fictício), não há
como ser representadora da vontade da lei ou do legislador, até porque, como dito, o
texto nunca está pronto para ser aplicado.
Coadunando com o exposto do tópico anterior, Georges Abboud menciona
três transformações na filosofia do século XX: o giro-linguístico que leva à superação
do esquema sujeito-objeto, o declínio de um modelo matemático de fundamentação e o
giro ontológico, transformando o que tradicionalmente se tinha de Hermenêutica (qual
381
Idem. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo, Ed. RT, 2011, p. 66. 382
Idem. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, op. cit.,
p. 63.
178
seja, a de teoria ou arte da interpretação de textos) ao tratar como objeto dela a
compreensão do ser, a faticidade (de onde viemos?), e para o que se encaminha o ser, a
existência (para onde vamos?). E assim, “aquilo que tinha um caráter ôntico, voltado
para textos, assume uma dimensão ontológica visando a compreensão do ser do Ser-
aí”383
(que em Heidegger é o ser humano, em alemão Dasein, o único ente que existe
porque compreende o ser). É que o homem compreende o ser na medida em que
pergunta pelo ente, ou seja, interroga-se o ente pelo seu ser, mas apesar de compreendê-
los numa unidade, claramente restam aqui distintos na diferença ontológica. Nota-se no
pensamento heideggeriano o círculo hermenêutico em que já se pressupõe uma
compreensão do ser ao dizer que algo é e só se relaciona com algo quando ao
compreendê-lo, na medida em que aquele que compreende o ser assim só o faz porque
em sua própria faticidade.
Isto é, como já referido aqui, a hermenêutica desde Heidegger deixa de ser
“arte da interpretação” e passa a relacionar-se com as condições prévias da interpretação
de textos e de todo pensamento e atividade humana. Ela deixa de ser uma técnica
interpretativa ou uma ferramenta metodológica para determinar a correta interpretação
da legislação, já que, no interior deste paradigma, a linguagem deixa de ser uma terceira
coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto e passa a ser condição de
possibilidade384
. A linguagem, constituinte e constituidora do mundo do homem, passa
a ser um modo de ser daquele que compreende o direito385
.
Diante disso, se linguagem e compreensão estão coimplicadas, pelo que se
chama de círculo hermenêutico, e que hermenêutica passa a ser um modo de ser daquele
que compreende o direito, a sentença deixa de ser um ato silogístico do sujeito que
pretensamente revela a norma presente na vontade do legislador ou na vontade da lei.
Essa reviravolta linguística já mencionada, como bem sintetiza Francisco
José Borges Motta
consiste em que a linguagem deixa, a partir da Filosofia Hermenêutica, de ser
relegada a uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito (o intérprete) e
um objeto (a realidade), para ser alçada à cimeira condição de possibilidade
do nosso modo-de-ser-no-mundo; supera-se, assim, a metafísica relação
cognitiva sujeito-objeto, desmistificando, consequentemente, a ideia de que a
383
Idem. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, p. 413. 384
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito, op. cit.,
p. 197. 385
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 62.
179
verdade possa ser produto de um procedimento cognitivo (quase sempre, um
método).386
Em outras palavras, a reviravolta linguística significou novo paradigma para
a filosofia em que a linguagem passa de objeto da reflexão filosófica para a esfera dos
fundamentos de todo pensar387
.
A doutrina aponta que a primeira metade do século XX produziu revoluções
importantes para a filosofia e para o direito. Pautou-se (i) o problema do conceito
absoluto de verdade e sua consequente implicação no fundamento e (ii) o problema do
método para a revelação da verdade388
.
O problema do fundamento (este apontado ou na coisa objeto do
conhecimento e que relaciona-se com a verdade como produto da correspondência da
coisa ao intelecto -paradigma da adequação, objetivista ou verdade correspondencial- ou
no sujeito cognoscente e que relaciona-se com a verdade como construção subjetiva
deste sujeito -paradigma subjetivista ou verdade subjetivista-, e que torna impossível a
noção de adequação entre a inteligência e a coisa baseada na concepção unitária da
verdade agora rompida) tentou ser resolvido pela filosofia no século XX com o giro
linguístico. Note-se: a questão do fundamento relaciona-se com o conceito de verdade
na medida em que admitir determinado fundamento deve estar de acordo com a opção
pelo conceito de verdade que se faz uso, como se viu ao situar as “verdades” de Luigi
Ferrajoli e de Adolfo Alvarado Velloso em paradigmas distintos, o primeiro objetivista
e o segundo subjetivista.
Assim, com o giro linguístico, a questão do fundamento da verdade389
é
deslocada para a linguagem, uma estrutura constituidora do mundo. Para Gadamer, a
linguagem não é um dos meios pelos quais a consciência se comunica com o mundo,
como um terceiro instrumento ao lado do signo e da ferramenta, em que pese estes doiz
façam parte da caracterização essencial do homem. Há a percepção de que a linguagem
386
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 42. 387
ARAÚJO DE OLIVEIRA, Manfredo. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea.
2. Ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 12-13. 388
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 57. 389
A ausência de fundamento na filosofia se inaugura com a subjetividade e se desenvolve como filosofia
transcendental. É através da filosofia transcendental que se mantém a ausência de fundamento para a
verdade: ela deixará de ser adequação com o real. Na ciência, na práxis, bem como na filosofia, verdade
será construção. É por isso que se introduz, nas três áreas, o niilismo, isto é, a perda do fundamento. A
verdade (formalização) nas ciências, a verdade (tecnocracia) na práxis e a verdade (transcendentalidade)
na filosofia, tornam-se três áreas interligadas, pois sua fonte é a mesma: a subjetividade. (...) Neste
quadro, a busca da verdade pode ser realizada somente como tarefa. Perdemos a convicção de que ela nos
foi dada como um todo. Cf. ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato
administrativo e a decisão judicial, op. cit., p. 57.
180
já está em tudo que pensamos, e não como ferramenta, como instrumento. Não é
possível guardar a linguagem como se guarda um instrumento porque jamais estamos
desprovidos de linguagem390
. E a compreensão do fenômeno jurídico não pode ignorar a
análise da linguagem. Ou seja, o direito, a partir de então, não pode ser
instrumentalizado como se pudéssemos fazer ele dizer apenas o que queremos.
O Direito visualizado como linguagem391
toma uma dimensão interpretativa
que obriga o intérprete a levar em consideração toda a dimensão histórico-interpretativa
que está por trás de cada conceito jurídico:
Quando se diz que a Constituição deve fundamentar todas as leis e
proposições jurídicas, que os princípios constitucionais devem sempre ser
observados, que os direitos fundamentais são limites intransponíveis para os
particulares e principalmente para o Estado, que no Estado Constitucional há
obrigação de se fundamentar as decisões da Administração e do Judiciário, há
toda uma estrutura de sentido que se antecipa e possibilita dizê-los.392
Observe-se: não se trata mais, portanto, de “perguntar pela essência das
coisas, tampouco por aquilo que o sujeito tem certeza de que sabe (no caso do conceito
subjetivista), mas, sim, perguntar pelas condições de acesso ao universo simbólico e
significativo produzido pela linguagem”393
.
O conhecimento já é tomado pela própria linguagem, e no caso do
conhecimento jurídico, a dimensão linguística do direito já toma o intérprete.
E se assim, se interpretação e compreensão são concomitantes, impossível
primeiro se decidir e depois se buscar o fundamento. Tal interpretação não seria
autêntica, pois o intuito de uma fundamentação dessas é tão somente a de preencher
formalmente um dos elementos da sentença, mas não a aplicação do direito ao caso sob
uma perspectiva hermenêutica. Decidir e depois buscar o fundamento consiste em
fórmula que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, haja vista se tratar
de uma forma de maquiar verdadeira arbitrariedade, porque decidir conforme o
intérprete quer e depois buscar o fundamento configura uma simples manobra para
disfarçar arbitrariedades.
Por todo o exposto, para que uma teoria situe-se no paradigma pós-
positivista, faz-se necessário (i) diferenciar texto e norma, (ii) afastar a concepção de
390
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II Complementos e Índice, op. cit, p. 174. 391
Como Castanheira Neves ensina, “o direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo
como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja (...) propõe-se sê-lo numa linguagem”.
NEVES, Antonio Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed.,
1993, p. 90. 392
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op.cit, p. 61. 393
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 59.
181
interpretação como revelação da vontade da lei e do legislador e (iii) também a via
silogística quando da aplicação do direito394
.
Essas considerações iniciais nos levam a revisitar sucintamente o tema da
teoria das fontes do direito, diferenciando positivismo e pós-positivismo, em razão,
também , do fenômeno do constitucionalismo.
Com fulcro em Castanheira Neves, podem ser considerados fontes os
processos, atos ou modos constitutivos de positivação do direito395
.
A tradicional classificação divide as fontes do direito em diretas, a lei e o
costume, e indiretas, a jurisprudência e a doutrina. Está alçada, perceba-se, no
paradigma positivista em que a lei é a fonte jurídica por excelência. Contudo, é preciso
questionar se no Brasil, e com clareza com o Novo Código de Processo Civil, esta
classificação não se encontra defasada ao considerar-se institutos como súmulas
vinculantes e precedentes judiciais.
Castanheira Neves identifica três mudanças que influenciaram na mudança
dessa classificação: (i) na concepção do direito, tendo em vista que o direito não deve
mais ser considerado puramente estatista (do positivismo legalista) já que com o pós-
guerra deu-se o constitucionalismo que, além de racionalizar o poder, inseriu nos
ordenamentos jurídicos os princípios constitucionais e os direitos fundamentais; (ii) na
realização do direito ao tornar-se instrumento de promoção de direitos e construção da
democracia, não podendo mais ser encarado como mera aplicação da legalidade vigente,
(iii) e no sentido do sistema jurídico, já que o direito precisa referir-se à realidade
histórico-social, não mais apenas ao sistema legislativo vigente396
.
Ensina Lenio Streck que essas alterações se fazem necessárias até mesmo
para que seja possível concretizar os ditames do Constitucionalismo Contemporâneo,
evitando decisionismos, arbitrariedades e discricionariedades interpretativas397
.
Conclui-se: “em função do surgimento e da evolução do constitucionalismo,
a teoria tradicional das fontes apresenta-se defasada. Isso porque ela estava assentada
na quase exclusividade do dogma da lei como sua fonte máxima”398
.
394
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 346-353. 395
NEVES, Antonio Castanheira. Fontes do direito. Digesta: escritos acerca do direito do pensamento
jurídico da sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Ed., 1995, vol. 2, p.53. 396
Ibidem, p 45/53. 397
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 69. 398
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op.cit., p. 239.
182
Assim, a teoria das fontes precisa ser atualizada para adequar-se ao ponto
atual da história, em que o direito possui a função de instrumento de proteção e de
promoção dos direitos fundamentais do cidadão, bem como da igualdade.
Aliás, por essas considerações abordamos anteriormente o sentido de lei
além do aspecto meramente formal, ao considerar sua dimensão material: enunciado de
caráter geral e abstrato advindo dos órgãos legislativos com observância da Constituição
a fim de promover a igualdade dos cidadãos. Nesse sentido, “a lei não pode ser
utilizada como instrumento em favor do governo, do contrário, a lei não assegurará a
liberdade, mas tão somente o regime absolutista”399
.
A evolução do constitucionalismo tem como uma de suas principais funções
a regulação do poder e a preservação dos direitos fundamentais. Afinal, nem todo
conteúdo legislativo pode ser considerado direito depois da segunda guerra mundial.
Por isso as brilhantes considerações de Luigi Ferrajoli no que tange a
inconstitucionalidade material das leis e a distinção entre vigência e validade.
A própria Constituição Federal em seu artigo 5º relata os direitos
fundamentais, enquanto seu §2º prevê a não exclusão de outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela estabelecidos, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. E ainda, seu §1º estabelece a aplicação imediata de tais
direitos, de maneira que asseguram ao cidadão uma posição jurídica subjetiva de buscá-
los junto ao Poder Público, independentemente de lei ordinária regulamentadora,
deficiente ou inadequada prevendo inclusive o mandado de injunção como garantia se
sua aplicabilidade direta quando da inexistência de lei infraconstitucional que o
regulamente.
Nesse sentido, os direitos fundamentais servem primordialmente como
limitação do Poder Público, tanto em sentido formal quanto substancial, e proteção
contra formação de eventuais maiorias, interpretação consoante com a perspectiva
garantista do Estado Democrático de Direito, pois constituem reservas de direitos que
não pode ser atingida nem pelo Poder Público (em nenhuma de suas esferas) nem pelos
próprios particulares.
Portanto, os direitos fundamentais possuem absoluta normatividade! Ocorre
que enquanto o constitucionalismo nasceu como fenômeno histórico-político cuja
função consistia em limitar e racionalizar o poder político por meio da previsão de
399
Ibidem, p. 274.
183
regras acerca da atividade do Estado, impondo limites ao poder soberano pela divisão de
poderes (afinal o direito constitucional não surgiu no século XX, mas se desenvolveu
por séculos visando coibir os excessos do Poder Público), a Constituição Federal
Brasileira de 1988 resulta do constitucionalismo democrático do século XX a partir de
Weimar, e nesse movimento histórico as Constituições foram além com o objetivo
primordial de assegurar a existência de alguns princípios constitucionais fundamentais.
Veja-se: o século XIX colheu os frutos do desenvolvimento do Estado
funcionalizado por meio de uma Administração Pública assentado do Estado
Absolutista do medievo em que as funções governamentais começaram a se
especificar400
tendo sido dominado pela ideia liberal de uma forma de governo
constitucional e parlamentar. Mas no século XX, parte dos modelos liberais da Europa
foram modificados, pois foram dados passos em direção ao Estado-providência como
consequência das fortes práticas constitucionais. E bem, o final da Segunda Guerra
Mundial marca a evolução para uma nova ordem social, política e jurídica.
Em sendo assim, os textos constitucionais estabelecem princípios e direitos
fundamentais a serem promovidos e respeitos pelos três poderes, sendo a lei um dos
principais instrumentos normativos para implementá-los.
Mas o que devemos considerar por princípios? Como já antecipado aqui, o
questionamento é complexo. Viu-se o conceito de Alexy, sua aproximação com Adolfo
Alvarado Velloso, e a teleologia de ambos no que concerne aos princípios.
Na doutrina brasileira, o termo é designado de diversas formas: como
normas fundantes e nucleares de um sistema, o ponto inicial dos estudos de uma
disciplina jurídica, normas de normas, utilizados para colmatar lacunas, etc.
Para não cairmos no mesmo erro recorrente daqueles que se utilizam da
linguagem jurídica sem precisá-los, far-se-á uma distinção entre os princípios gerais do
direito dos princípios constitucionais, pois os primeiros não podem ser considerados
como sucedâneo dos outros. Não é correto trabalhar com a tese da continuidade entre
princípios gerais do direito e princípios constitucionais401
.
A utilização dos princípios gerais do direito remonta ao século XIX e à
formação dos sistemas codificados de direito privado, mais especificamente, como
reforço ao ideal de completude dos sistemas codificados (codificação francesa e à
400
Surge a figura do funcionário e dos elementos do conceito moderno de Estado, quais sejam, povo,
território e soberania. 401
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 518.
184
fórmula dedutivista da pandectista alemã) nos casos das aparentes lacunas
legislativas402
.
Diferentemente, os princípios constitucionais remontam ao final da Segunda
Guerra Mundial e se associam à Constituição, com um forte elemento pragmático.
Para Nelson Nery Junior, os princípios gerais do direito são “regras de
conduta que norteiam o juiz na interpretação da norma, do ato ou negócio jurídico”403
.
Para Henrique Garbellini Carnio, Rafael Tomaz de Oliveira e Georges Abboud, os
mesmos são “topois argumetnativos e consistem em sistematização de métodos e regras
utilizadas para a solução de antinomias, em grande parte advindas da evolução do
próprio direito privado”404
.
Já no que tange aos princípios constitucionais, a Segunda Guerra Mundial
foi decisiva para o processo de ruptura mencionado por Lenio Streck, os princípios
agora atrelam-se ao contexto constitucional e histórico.
Para Castanheira Neves, princípios constitucionais “são agora princípios
normativamente materiais fundamentantes da própria juridicidade, expressões
normativas de ‘o direito’ em que o sistema jurídica cobra o seu sentido e não apenas a
sua racionalidade”405
.
O contexto das consequências nefastas da guerra e a percepção da
fragilidade do direito frente à política propiciaram a procura por uma solução para a
qual o âmbito jurídico fez-se importante. A superação dos aspectos formais positivistas
era necessária. E então, ganhou importância o contexto material do direito, o que
implicava a afirmação de um direito distinto da lei, ou seja, de elementos normativos
ademais da lei, constitutivos da normatividade. Note-se: aqui se dá a perda da
exclusividade da lei como fonte jurídica.
É que o discurso para superar o legalismo enfatizou os princípios como
componente libertário para a interpretação do direito, extremamente importante para a
402
Sobre o tema, veja-se que “O sistema seria sempre completo, uma vez que os princípios gerais do
direito seriam postulados racionais que estariam pressupostos pelo sistema codificado. Sua aplicação a
casos particulares, além de excepcionalíssima, obedeceria ainda às regras do método dedutivo-
axiomático. O apelo à razão é significativo aqui porque denota, de forma expressiva, como tais
“princípios gerais” representavam uma espécie de reminiscência jusnaturalista dentro do sistema
positivo de direito privado, plasmado nas codificações.” ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique
Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 283. 403
NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 9. Ed. São Paulo: Ed.
RT, 2012, p. 230. 404
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op.cit., p. 285. 405
Ibidem, p. 291.
185
decisão dos juízes. E nesse sentido, discursos que enfatizavam os princípios para que o
deixasse de ser a boca da lei revelava a consideração a eles como sucedâneo dos
princípios gerais do direito ou como positivação dos valores da sociedade.
Nesse contexto:
Os juízes são colocados perante tarefas de indagação de métodos racionais de
conhecimento de valores, a partir da problemática oferecida pelo caso que
será julgado, abrindo espaço para a chamada discricionariedade judicial. A
incorporação dessa nova tarefa jurisdicional e inserção de dimensões
valorativas no âmbito das questões jurídicas obriga a teoria do direito a
analisar reflexivamente seus próprios conceitos, mormente os princípios
jurídicos e o dever de motivação das decisões. Isso, por si só, começa a
demonstrar o esgotamento do modo tradicional de se olhar para o direito.406
–
(grifos nossos.)
Na Alemanha, a Lei Fundamental outorgada pelos Aliados com a aplicação
do Tribunal Constitucional Federal Alemão leva à conhecida Jurisprudência dos
Valores com argumentos axiológicos para legitimá-la frente à sociedade alemã e em
prol da demonstração de ruptura com o regime político do nazismo.
A aplicação do princípio geral do direito tempus regit actum envolvendo os
fatos ocorridos sobre a égide do nazismo significaria dar vigência às leis nazistas num
contexto já democrático. E então, para afastar as leis nazistas, o Tribunal construiu
argumentos fundados em princípios “axiológicos-materiais”. Advieram disso as
fundamentações “fora da lei” remetidas à cláusulas gerais, “enunciados abertos” e
também “princípios”.
É que o caráter aberto de textos principiológicos permitiu grande margem
interpretativa possibilitando a adequação das decisões à nova realidade histórica
concreta. Caiu-se no relativismo interpretativo-decisório.
No momento em que a jurisprudência dos valores procura construir
mecanismos para justificar o não relativismo dos valores e da discricionariedade do
Tribunal, a ponderação será o elemento decisivo para o significado do conceito de
princípio operado por Robert Alexy em sua teoria da argumentação, o qual busca criar
um procedimento para a aplicação dessas “cláusulas de abertura” a partir da crítica à
jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão baseado no discurso racional prático.
Mas note-se: Robert Alexy, como Luigi Ferrajoli, assume o elemento discricional como
inevitável.
406
Ibidem, p. 291.
186
Mas afinal, os princípios, como questiona Lenio Streck, fecham ou abrem a
interpretação? 407
Os princípios advém da vivência da comunidade política, e por isso são
deontológicos: “os princípios não são princípios porque a Constituição assim o diz,
mas a Constituição é principiológica porque há um conjunto de princípios que
conformam o paradigma constitucional, de onde exsurge o Estado Democrático de
Direito”408
por vezes, princípios são aplicados como regras, confusão já denunciada por
Adolfo Alvarado Velloso. Luigi Ferrajoli já afirmava que princípios não são valores,
porque sobre eles deve-se falar em deontologia, não em axiologia.
Em outras palavras, “a Constituição é considerada materialmente legítima
justamente porque fez constar em seu texto toda uma carga principiológica que já se
manifestou no mundo prático, no seio de nossa comum-unidade”409
.
No direito brasileiro, entretanto, os princípios gerais do direito constam no
artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, juntamente com a
analogia e os costumes, como critérios para solução de lacunas do ordenamento. Ora,
esses princípios, reminiscentes dos Códigos dos oitocentos em que eram chamados para
atuar quando as regras não eram suficientes não podem mais ser encarados como
continuidade na evolução constitucional.
Como demonstrado, no Constitucionalismo Contemporâneo os princípios
não são instrumentos de solução de lacunas da lei ou do ordenamento, pois assumem
uma dimensão de constituidores de normatividade.
E nesse sentido, grande é a influência de Lenio Streck (que tem na base de
sua teoria da decisão os pensamentos de Hans-George Gadamer, Ronald Dworkin,
Martin Heidegger e Friedrich Muller) na assunção de que toda decisão judicial
hermeneuticamente correta só será adequada à Constituição se dela for possível extrair
um princípio.
Mas os princípios constitucionais não precisam estar expressos na
Constituição para assumirem esse status, até mesmo em atenção aos direitos
fundamentais numa dimensão maior do que aquela expressa pelo texto constitucional,
no sentido aqui já atribuído, cujo caráter é deontológico e não axiológico (os princípios
não são valores! Como já abordado.).
407
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit. 408
Idem. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo, op. cit. p. 70. 409
Idem. Verdade e Consenso, op. cit., p. 495/496.
187
Habermas, como Dworkin, acredita na deontologia das normas e na
regência por uma lógica deôntica binária, ao passo que Adolfo Alvarado somente coloca
as regras dentro de um código binário, estando os princípios dentro de um código
gradual. Este autor argentino, relembre-se, define os princípios como ponto de partida
que depende do que se quer alcançar, pelo que se concluiu afirmar o autor seu caráter
teleológico, em prol de um objetivo, o que já criticou Habermas quando de seus
apontamentos à Alexy.
Dworkin, observando a atividade judicial, apontou componentes ademais
das regras (rules) que influenciavam as decisões dos tribunais, ou seja, os princípios
(general principles of Law). Mas note-se que o conceito de norma de Dworkin não
comporta enquadramento como gênero de regras e princípios:
(...) o fato de Dworkin não mencionar o gênero norma na distinção que ele
realiza entre regra e princípio também aponta para algo inquietante (...) isso
porque, a partir de Dworkin, poderíamos afirmar que essa dimensão deôntica
que reveste as regras e os princípios é sempre interpretação.
Para Dworkin, preocupado com as bases do dever judicial, princípio é “um
padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação
econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de
justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”410
.
Deve neste ponto já estar claro ao leitor que a distinção entre regras e
princípios reside num nível puramente semântico, não num nível pragmático-existencial
ou hermenêutico.
Como já dito, há doutrina sustentando a tese da justaposição entre as teorias
de Alexy e Dworkin apontando suas similaridades, mas os autores não trabalham com o
mesmo conceito de norma e o caráter deôntico são apresentados diferentemente em cada
um deles. Enquanto em Alexy o princípio é deôntico porque é norma, é mandado, em
Dworkin o princípio possui normatividade porque se manifesta concretamente na
prática interpretativa (nível pragmático), até porque neste autor não há conceito prévio e
abstrato de norma jurídica, a dimensão deôntica que reveste as regras e os princípios em
Dworkin é sempre interpretação. Aliás, o autor opõe-se à ideia de um número fixo de
padrões de algum tipo, seja regras ou princípios, pois concebe a formação de um
sistema jurídico como parte do problema interpretativo.
Como já exposto, Alexy divide as normas de direito fundamental entre as
diretamente estatuídas pela Constituição e que são a estas adscritas conforme o direito,
410
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2ª. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2003, p. 36.
188
seja pela própria positivação ou seja pela possibilidade de desenvolvimento de uma
fundamentação jurídica correta. Perceba-se, então, que os dados da realidade social
estão no âmbito da argumentação, não no âmbito normativo, explicando o autor que é
mais útil separar aquilo que o legislador impôs como norma e as razões do intérprete em
uma determinada aplicação.
Ao distinguir a norma semanticamente e os dados da realidade social que
fornecem argumentos para sustentá-la, Alexy cinde fato e Direito, o que já não se
encontra em Dworkin.
O conceito de regras de Alexy e Dworkin de fato assemelham-se pela
aplicação à moda do tudo ou nada, mas o conceito de princípios é absolutamente
distinto como aponta o próprio Alexy.
Quando Dworkin diz que o juiz deve decidir por argumentos de princípio e
não de políticas, está apontando os limites no ato de aplicação judicial para o que não
importam as convicções pessoais do juiz, o que passa pelo compromisso da
reconstrução da história institucional do direito e pelo momento de colocação do caso
julgado dentro da cadeia da integridade do direito de maneira que a decisão não seja
uma escolha, mas uma interpretação, aquela mais adequada, de acordo com o sentido do
direito projetado pela comunidade política.
É que Dworkin desenvolve a chamada “interpretação construtiva”. A atitude
interpretativa dworkiniana é marcada pela interação entre o “propósito” (projeto
compreensivo, um determinado sentido do objeto da interpretação, texto ou prática
social, pois interpretamos sempre) e o “objeto” da interpretação (relação sujeito-sujeito).
Nas palavras de Francisco José Borges Motta, a interpretação construtiva:
(...) trata-se, em última análise, da compreensão de algo (um texto, por
exemplo) que deve levar em conta fatores históricos (como a “intenção do
autor”), mas que, uma vez dirigida por um “interesse” (como a atribuição de
um sentido “jurídico” ao texto) do intérprete (também ele “situado”
historicamente), resultará na “construção de um “sentido” novo, mas ainda
assim “fiel” ao texto (ou seja, nem por isso deixará de ser uma interpretação
“correta”). Cuida-se de reconhecer a impossibilidade de reconstruir as
intenções históricas, e de ainda assim, mantermo-nos fiéis à tradição à qual
aderimos.411
As amarras do intérprete construtivo de Dworkin são vistas em Gadamer
como a “autoridade da tradição”
411
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 92.
189
Além disso, o tudo ou nada na regra de Dworkin não relaciona-se com a
subsunção na medida em que esta pressupõe silogismo e consequentemente pressupõe
também a distinção entre questão de fato e de direito, enquanto o autor refere-se a essa
característica das regras pelo modo de sua justificação argumentativa, não pela sua
aplicação. O que se quer dizer é que, o esforço argumentativo é menor quando se
argumenta por regras do que quando se argumento por princípios pois neste tipo se deve
demonstrar a coerência com o contexto e com a integridade do Direito. É que o
princípio é um padrão de julgamento ligado a uma justificativa moral que deve ser
aplicado na defesa de direito e que, diferentemente das regras, não determina
imediatamente um comportamento, apesar de ser perfil deontológico (pretensão de
eficácia), enquanto as regras retiram justificativas nos princípios que integram o Direito:
Colocando o problema de forma mais clara, a regra não subsiste sozinha, não
retira validade de si própria. Ela deve ter algum “sentido”, que não é prévio,
que não é fixo, que não pode ser aferido proceduralmente, chamamos
princípio! (...) os princípios trazem o mundo prático de volta para o Direito
(...) e nessa conjuntura, temos que, mais do que um campo de ponderação, o
decantado princípio da proporcionalidade melhor servirá ao projeto
democrático se for compreendido como o “nome a ser dado à necessidade de
coerência e integridade de qualquer decisão”.412
Dworkin fala em ponderar como refletir. Repita-se: Em Dworkin, a
diferença entre regra e princípio decorre do comportamento quando da argumentação
num caso jurídico, conforme demonstrado. E além disso, em Alexy os princípios
jurídicos fornecem uma abertura do sistema que lhe outorga discricionariedade por via
da ponderação (como técnica para equilibrar os valores), enquanto Dworkin utiliza-se
da integridade do ordenamento de maneira que não há conflito e a interpretação deve ser
conduzida para a resposta correta.
Francisco José Borges Motta afirma que o autor alemão acaba incorrendo
em muitos resvalos que serviram já para denunciar as insuficiências do positivismo
jurídico:
Em primeiro lugar, temos de ter presente que qualquer distinção a priori que
se faça entre regras e princípios (seja ela lógica ou estrutural, não importa)
assume o risco de dar mãos com a metafísica. Principalmente se esta
separação se der (como se dá em Alexy) com o escopo de distinguir a forma
de solucionar casos “jurídicos” (estes também divididos em fáceis ou
difíceis). Neste sentido, impressiona a naturalidade com que se afirma que
alguns (ou muitos) problemas (do Direito!) podem ser resolvidos mediante
“subsunção” da prescrição normativa (naturalmente abstrata) à realidade
social. Essa consideração, ao reconhecer um espaço próprio para (meras)
412
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao protagonismo
judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 160.
190
inferências lógico-dedutivas na prática do Direito, é visivelmente atrelada ao
paradigma representacional (pressupõe uma espécie de naturalismo, ou seja,
admite a possibilidade de explicações emergentes de raciocínio dedutivos),
exatamente aquele que sustentou, filosoficamente, o “sistema de regras”.
Encontramos então, nessa proposição, muito mais do positivismo jurídico de
Hart do que Alexy julga ter deixado para trás. (...) Apesar disso, o fato é que
as teorias da argumentação (dentre elas, a desenvolvida por Alexy), enquanto
projeto de superação do positivismo jurídico, não têm condições de avançar o
suficiente. Há uma barreira de impedi-las, não tanto de perfil normativo (ou
“jurídico”, em sentido estrito), mas, antes, de cariz filosófico. Alheios à
guinada linguístico-ontológica que conduz o nosso estudo, os
argumentativistas seguem reféns, como vimos, do paradigma
representacional (significando que não escapam da aposta ora numa espécie
de suficiência ôntica da regra, receptáculo dos sentidos, ora nas condições
subjetivistas privilegiadas do sujeito, que então assujeita o objeto conforme
as possibilidades de sua consciência).413
Nesse sentido, enquanto no positivismo na há direito quando as regras são
vagas e indeterminadas, implicando em novo elemento da legislação, para Dworkin os
direitos preexistem ao Estado cabendo aos juízes nos casos difíceis desenvolver uma
argumentação em prol dos direitos das partes entendendo o Direito como unidade
coerente, como “completeza” e “integridade”414
. É dizer: por trás das regras deve haver
um princípio. E assim, Dworkin recusa a discricionariedade “forte” de Hart sustentando
a existência de “única resposta correta”415
.
Dworkin trava um debate com a tradição do convencionalismo (positivistas)
e do pragmatismo (realistas), para concluir pelo afastamento da discricionariedade
judicial.
Para se opor a compreensão positivista do direito como um conjunto de
regras, Dworkin irá compreender os princípios jurídicos também como espécie do
gênero norma sustentatndo a diferença entre princípios e regras sob uma natureza
lógica-argumentativa:
Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da
obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à
natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do
tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é
413
Ibidem, p. 150. 414
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 202. 415
José Francisco Borges Motta dá preferência à expressão “boa resposta” a “resposta correta” aduzindo
aliviar a carga semântica que a noção de “incorreto” versus “incorreto”, “não raramente associada ao
logos matemático e ás ciência naturais, costuma carregar consigo. Uma decisão boa, para nós, terá
assumido a tentativa de ser a única correta de que nos falará Dworkin, devendo ser dito desde já que a
tese da resposta correta é uma teoria sobre a responsabilidade judicial, uma espécie de obrigação de meio,
e não, propriamente, de resultado. Mas deixemos dito com todas as letras: quando falamos em boas
respostas, não dizemos nada diferente do que as respostas corretas de Dworkin (se o juízo de correção for
hermeneuticamente compreendido ou que as respostas hermeneuticamente/ constitucionalmente
adequadas de Lenio Streck”. MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica
hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 65.
191
válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é
válida, e neste caso nada contribui para a decisão.416
Outra característica das regras é que, pelo menos em tese, “todas as
exceções podem ser arroladas e o quanto mais o forem, mais completo será o
enunciado da regra”417
. Se duas regras entram em conflito, uma delas será válido, e esta
decisão deve ser tomada recorrendo a considerações que estão além das próprias regras,
podendo um sistema jurídico regular esses conflitos por meio de outras regras por
critérios prévios como a hierarquia, especificidade, temporalidade e aquelas sustentadas
pelos princípios mais importantes, por exemplo. Elas não possuem a dimensão de peso
ou importância dos princípios, podendo-se dizer apenas que elas são funcionalmente
mais importantes no sentido de que uma é mais importante que outra na regulação do
comportamento, mas não que uma é mais importante que outra enquanto parte do
mesmo sistema de regras intentando a suplantação de uma pela outra418
.
Já os princípios possuem tal dimensão de peso ou importância e quando se
intercruzam o julgador vai levar em conta a força relativa de cada um, mensuração esta
que não pode ser exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política
particular é mais importante que outra seja frequentemente objeto de controvérsia, mas
é uma dimensão integrante do conceito de princípio que não se pode deixar de perguntar
por ela.
Os princípios jurídicos, diferentemente das regras, não apresentam as
conseqüências jurídicas que seguem quando as condições são dadas. Eles não
pretendem, nem mesmo, estabelecer as condições que tornam a sua aplicação
necessária. Ao contrário, eles enunciam uma razão que conduz a um argumento e a uma
determinada direção. Com relação aos princípios não há exceções, pois elas não são,
nem mesmo em teoria, susceptíveis de enumeração.
Dworkin ainda se preocupa em distinguir princípios e políticas, distinção
essa que é olvidada por Alexy. Sobre tal diferenciação, o princípio é aquele padrão que
contém uma exigência de justiça, eqüidade, devido processo legal ou aquele que resolve
o conflito deve levar em conta a força relativa de cada um ou qualquer outra dimensão
de moralidade. Por sua vez, o padrão denominado política estabelece um objetivo a ser
alcançado, que geralmente, consiste na melhoria de algum aspecto econômico, político
416
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 39. 417
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 40. 418
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 43.
192
ou social da comunidade, buscando promover ou assegurar uma situação econômica,
política ou social considerada desejável419
.
Outro problema que Dworkin visa superar frente à tradição do positivismo
jurídico é a afirmação de um espaço discricionário para aplicação do direito nos casos
difíceis, de modo que ao magistrado fosse permitir criar direito e aplicá-lo
retroativamente ao caso.
Como solução irá propor, em nítida influência gadameriana, que os direitos
são fruto tanto da história quanto da moralidade, utilizando-se argumentativamente da
metáfora do juiz Hércules e, posteriormente, do romance em cadeia.
No primeiro caso, Dworkin imagina um magistrado com capacidades e
paciência sobre-humanas que, de maneira criteriosa e metódica, seleciona as hipóteses
de interpretação dos casos concretos a partir do filtro da integridade. Assim, ele deverá
interpretar a história como um movimento constante, desprezando a vontade do
legislador como proposto pelo positivismo. Já no romance em cadeia, o que se propõe
consiste no seguinte exercício literário:
Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado
projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O número mais baixo
escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o
número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que
está acrescendo um capítulo a esse romance, não começando outro, e, manda
os dois capítulos para o seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a
não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois
precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido
interpretativista, o que é o romance criado até então.420
Nessa perspectiva, cada juiz será como um romancista na corrente, de modo
que deverá ler tudo o que os outros juízes escreveram no passado, buscando descobrir o
que disseram, bem como o estado de espírito quando disseram, objetivando chegar a
uma opinião do que desses juízes fizeram coletivamente. A cada caso o juiz que for
incumbido de decidir deverá se considerar como parte de um complexo
empreendimento em cadeia no qual as inúmeras decisões, convenções e práticas
representam a história, que será o seu limite. Seu trabalho consistirá na continuação
dessa história no futuro por meio do que ele faz no presente. Ele deverá interpretar o
que aconteceu no passado, porque será responsável por levar adiante o dever que tem
em mãos e não partir em uma nova direção.
419
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, op. cit., p. 36. 420
DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 235/236.
193
O dever do juiz consiste, para Dworkin421
(2001:239-240), em interpretar a
história jurídica que encontra e não, inventar uma história melhor. Desta forma, não
pode o juiz romper com o passado. A escolha de qual dos vários sentidos que o texto
legal possa ter não pode ser remetida à intenção de ninguém, devendo ser decidida pelo
juiz como uma questão de teoria política a luz do melhor princípio ou política que
justifica tal prática.
Outro ponto importante, é que Dworkin pressupõe a existência de uma
comunidade de princípios, ou seja, uma dada sociedade é formada por pessoas que
concordam que sua prática é governada por princípios comuns e não somente por regras
criadas em conformidade a um acordo político422
. Assim, o direito não está restrito ao
conjunto de decisões tomadas em âmbito institucional, mas transborda o mesmo,
devendo ser tomado em termos gerais, como um sistema de princípios que essas
decisões devem pressupor. Desta forma, tanto o juiz Hércules quanto os co-autores do
romance em cadeia representam membros dessa comunidade, tendo sua visão moldada
por esse mesmo “pano de fundo de silêncio compartilhado” que rege as práticas sociais.
Assim, tais atividades levarão o magistrado ao melhor argumento possível
do ponto de vista da moral política substantiva, mas ainda, a um argumento com
pretensões de ser correto.
Aliás, o juiz “Hércules” não se trata de um protagonista cujo bom-senso
individual resolve com justiça os casos, mas um juiz cuja compreensão abarca o Direito
em sua totalidade, ou seja, considera a produção legislativa e os casos já decididos.
Está-se buscando a demosntração das concepções dworkianas, mas não se
está, obviamente, a afastar certas críticas ao privilégio cognitivo do juiz Hércules
dworkiano e à tese da única resposta correta.
Certo é que cabe ao processo fornecer as condições de possibilidade para a
obtenção de uma resposta correta que se deve exigir de todo juiz democrático sempre
lembrando que o processo jurisdicional democratizante conta com a participação efetiva
das partes e que os princípios, atrás de cada regra, trazem a moral para o Direito
(compreendido como integridade – em Dworkin).
Essas considerações são importante para o estudo tendo em vista as
concepções ferrajolianas e alvaradianas, como a tese da separçaão entre direito e moral
421
Ibidem, p.239/240. 422
Idem. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.254.
194
e o entendimento de aplicação de texto sem interpretação. Mas, de toda sorte, não foram
o objetivo principal deste estudo.
4.3. “Questão de fato” e “questão de direito”: a distinção persiste na visão pós-
positivista?
Inquestionavelmente, esse é um tema fundamental para o desenvolvimento
do direito processual, afinal, é questão que envolve o princípio dispositivo e também a
máxima iura novit cúria. Ou seja, envolve a conclusão de que o juiz julga a questão de
fato com base nas alegações das partes e no que elas confirmam ou comprovam, mas
decide as questões de direito sem depender de suas manifestações.
Repise-se, pelo princípio dispositivo, somente os fatos são suscetíveis de
prova, a apreciação jurídica não, a qual é somente objeto da valoração normativa da
decisão judicial!423
Castanheira Neves, em estudo dedicado especificamente ao tema, afirma
que essa distinção é tão somente dogmática, e não metodológica, já que a questão de
direito não pode subsistir sem a influência da questão de fato, já que o fato ganha
relevância jurídica quando quanto a ele se aplica o direito424
.
Os advogados bem sabem que quando se pensa o fato já se visualiza, sobre
ele, a matéria do direito, e do inverso, quando pensa o direito já o reposiciona sobre o
fato.
Ocorre que, como ensina Georges Abboud, do ponto de vista metodológico,
a distinção entre questão de fato e questão de direito também não se sustenta porque
para ser operacionalizado um não prescinde do outro, ou seja, o fenômeno jurídico,
“não se apresenta puramente em abstrato, ele não pode prescindir do caso concreto.
Até porque sem o caso concreto, o direito passa a se limitar a simples regulador do
processo de estruturado do poder”425
. Se não há processo sem caso concreto, não há
porque se afirmar a aplicação de alguns institutos, por exemplo o julgamento antecipado
da lide e a teoria da causa madura, como se não contivessem questão fática e tão-só
matéria puramente de direito. Em realidade, o que se quer afirmar é que a dilação
probatória é desnecessária!
423
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit. p. 78. 424
NEVES, Antonio Castanheira. Questão de facto – Questão de direito: ou o problema metodológico da
juridicidade: ensaio de uma reposição crítica. Coimbra: Almedina, 1967, p. 55/56. 425
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op. cit., p. 80.
195
Ou também, como ensina Teresa Arruda Alvim Wambier426
, o mais correto
seria falar em questões que sejam predominantemente de fato e predominantemente de
direito, pois todo fenômeno jurídico tem sempre uma questão de fato e de direito, já
que, com Castanheira Neves427
, toda questão de direito é jurídica porque juridiciza um
fato, o qual somente é relevante por seus reflexos jurídicos.
Oportunas são as considerações de Luiz Guilherme Marinoni e Julio Cesar
Goulart Lanes428
que, em vendo a inseparabilidade entre as questões de fato e as
questões de direito conclui que o debate prévio sobre os elementos fático-jurídicos junto
à ideia de inseparabilidade entre fato e norma desautoriza a motivação que empregue a
máxima iura novit curia.
Isso muito se vê na jurisprudência ao considerar certas situações “tão
evidentes” na concepção (interna) do julgador.
Enfim, o que ser quer registrar é que a dicotomia objeto do presente tópico e
que apresenta eventos em todo o direito processual precisa ganhar uma dimensão pós-
positivista pois faz-se necessário ter em mente que como não há processo sem caso
concreto, de maneira que não existe “causa puramente de direito” e que não contenha
nenhuma questão fática. Elas não são independentes, havendo, em alguns casos,
desnecessidade de dilação probatória.
4.4. Afinal, e a verdade? O que diz sobre ela a hermenêutica filosófica?
Desde já deixa-se registrada a profunda dificuldade da doutrina brasileira
em tratar do tema. É que a questão da verdade está longe de ser algo a ser tratado apenas
dogmaticamente.
No âmbito da dogmática jurídica, a importância da viragem linguística para
a filosofia do século XX ainda não ganhou todo o seu prestígio, já abordada no presente
estudo. Em uma visão ligada ao processo em geral, utilizando a matriz teórica da
hermenêutica filosófica e da crítica hermenêutica do direito, ressalta-se Lenio Streck,
Rafael Tomaz de Oliveira, Georges Abboud, Francisco J. Borges Motta, Adalberto
Hommerding e Maurício Ramires.
426
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Distinção entre questão de fato e questão de direito para fins de
cabimento de recurso especial. Revista de Processo. Vol.92. São Paulo: Ed. RT, 1998, p.52. 427
NEVES, Antonio Castanheira. Digesta: escritos acerca do Pensamento Jurídico da sua Metodologia e
Outros, op. cit., p. 483/522. 428
MARINONI. Luiz Guilherme; LANES, Júlio Cesar Goulart. Fato e direito no processo civil
cooperativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 214.
196
Primeiramente, boa parte da doutrina processual - especialmente a penal,
ainda se prende à dicotomia da busca da verdade real na esfera criminal e da verdade
formal nos ramos não-penais.
Para outros, o juiz deve buscar sempre a “verdade real”, o que nos remete ao
socialismo processual e ao protagonismo judicial sendo traduzida como aquela capaz de
recompor os fatos tais como ocorreram em prol da justiça e da certeza. Em realidade, o
que aparenta é que a “verdade real” acaba sendo utilizada mais como artifício retórico
para justificar uma “verdade formal”, uma verdade da consciência do julgador que não
se dá ao trabalho ou na verdade não possui os fundamentos que lhe gostaria para sua
decisão. Fica clara essa conclusão especialmente diante de defesas, como a de Ada
Pelegrini Grinover, que sustentam a atividade investigativa por parte do juiz mesmo
quando os fatos forem incontroversos.
O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado
para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização dos poderes ilimitados na
busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza
próxima da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência
das partes pelos poderes instrutórios do juiz e uma verdade ética, processual e
constitucionalmente válida (…) e ainda agora exclusivamente para o
processo penal tradicional, indica uma verdade a ser pesquisada mesmo
quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade do juiz aplicar a
norma de direito material aos fatos realmente ocorridos, para poder pacificar
com justiça.429
Essa defesa encontra adeptos porque invoca um interesse maior, o público.
Mas esconde o que realmente ocorre:
Embora, no plano filosófico, não fique claro esse delineamento
paradigmático, tudo está a indicar que o sistema inquisitório é um corolário
da filosofia da consciência (não vejo a doutrina processual penal reconhecer
isso). E por quê? Porque a ideia de “sistema inquisitivo” representa uma
profissão de fé na tese de que o sujeito (do esquema S-O) é “senhor dos
sentidos”, de modo que esse sujeito - e não a sociedade - é que deve se
“convencer”, ter a “certeza” de seu julgamento etc.430
A indagação que se mostrou desde a introdução desta obra foi: como a
verdade é então real se com ela se tem o convencimento? Vale dizer: ora a verdade é
representada em um dado bruto (o fato em si?!) ao qual o sujeito cognoscente deve se
429
GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. In: Revista
Forense. vol. 347. Rio de Janeiro: Forense, jul.-set. 1999, p.7 e ss. 430
STRECK, Lenio. O que é isto – a verdade real? - Uma crítica ao sincretismo jusfilosófico de terrae
brasilis. Revista de Processo. Vol. 921. São Paulo: Editora RT, 2012, p. 359/392.
197
amoldar; ora a verdade é tida como uma construção, erguida - a partir de uma pseudo
“consciência metodológica” - pelo sujeito cognoscente, algo que aparece claramente no
conceito de “livre convencimento”.
Ou (i) há uma verdade real nos fatos (buscar a verdade nas essências das
“coisas”/fatos e que são verdades irrefutáveis, indiscutíveis e, portanto, não há
convencimento, uma vez que sequer há sujeito - metafísica clássica), ou, (ii) há, sim, um
livre convencimento, no qual é possível se deduzir, autônoma e racionalmente, através
do método construído pela subjetividade, o que é verdadeiro ou não (metafísica
moderna)431
.
Mas sabe-se que a primeira metade do século XX produziu revoluções
importantes para a filosofia e para o direito. Pautou-se (i) o problema do conceito
absoluto de verdade e sua consequente implicação no fundamento e (ii) o problema do
método para a revelação da verdade432
.
O fundamento estava apontado ou na coisa objeto do conhecimento e que
relaciona-se com a verdade como produto da correspondência da coisa ao intelecto -
paradigma da adequação, objetivista ou verdade correspondencial- ou no sujeito
cognoscente e que relaciona-se com a verdade como construção subjetiva deste sujeito -
paradigma subjetivista ou verdade subjetivista-, e que torna impossível a noção de
adequação entre a inteligência e a coisa baseada na concepção unitária da verdade agora
rompida.
Situando a dogmática jurídica, esta sustenta a identidade entre o
conhecimento e o seu objeto, o que faz manter no sentido comum teórico dos juristas a
identidade entre conceito e realidade, ou seja, refém do paradigma objetivista. E assim,
o julgador, inspirado em um interesse impessoal, afastando-se de sua ideologia,
reproduziria a verdade material, descomprometida, desinteressada, inquestionável. Mas
veja-se: não estar-se-ia a esperar uma boa vontade reivindicadora de práticas de
solidariedade e que tanto repudia o garantismo?433
431
Ibidem, p. 359/392. 432
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão
judicial, op.cit., p. 57. 433
Está-se referindo à crise de fundamento da metafísica que partiu a unidade do saber humano. A
concepção unitária da verdade perde seu fundamento possibilitava a definição da verdade como
adequação entre a inteligência e a coisa. A ausência de fundamento na filosofia se inaugura com a
subjetividade e se desenvolve como filosofia transcendental. É através da filosofia transcendental que se
mantém a ausência de fundamento para a verdade: ela deixará de ser adequação com o real. Na ciência,
na práxis, bem como na filosofia, verdade será construção. É por isso que se introduz, nas três áreas, o
niilismo, isto é, a perda do fundamento. A verdade (formalização) nas ciências, a verdade (tecnocracia) na
práxis e a verdade (transcendentalidade) na filosofia, tornam-se três áreas interligadas, pois sua fonte é a
198
O problema é que os juízes brasileiros parecem ainda se sentir responsáveis
por encontrar essa tal verdade real. Trata-se, como mencionado, do “objetivismo”
sustentado na ontologia clássica presente no positivismo exegético (sintático) do século
XIX consoante o qual o juiz era boca da lei que contém o direito.
O problema do fundamento tentou ser resolvido pela filosofia no século XX
com o giro linguístico, já repassado por diversas vezes em tópicos anteriores. Relembre-
se: a questão do fundamento relaciona-se com o conceito de verdade na medida em que
o posicionamento acerca do primeiro deve estar de acordo com o segundo. O que se
quer dizer é que com o giro linguístico, a questão do fundamento é deslocada para a
linguagem, uma estrutura constituidora do mundo. Em outras palavras, a reviravolta
linguística significou novo paradigma para a filosofia em que a linguagem passa de
objeto da reflexão filosófica para a esfera dos fundamentos de todo pensar.
Nesse sentido, a abordagem filosófica trazida por este estudo já demonstrou
que texto e norma não se confundem, por isso é tão importante o pós-positivismo.
Relembre-se que a hermenêutica jurídica clássica concebia a interpretação
como uma relação sujeito-objeto na qual o conjunto normativo é desprovido de sentido.
É a compreensão subjetiva que dará determinada significação ao conjunto normativo,
como se essa significação fosse determinada pelo sujeito, servindo a linguagem como
um meio pelo qual o sujeito conhece o sentido dos textos pois o intérprete só revela o
sentido do texto numa interpretação como ato de conhecimento “e toda preocupação
está voltada para que seja garantida a objetividade da interpretação ou um caráter de
neutralidade do intérprete em relação à lei (ou à vontade do legislador)”434
.
Como o sujeito se colocará diante do objeto para apreender a realidade, os
métodos se fazem necessários para essa apreensão e condicionarão a atividade do
sujeito perante o texto.
Mas estas afirmações restam fragilizadas com o advento da hermenêutica
filosófica. Como já expresso neste estudo, para este paradigma o intérprete não pode
operar o Direito como quem assujeita um objeto.
É que é possível dividir dois grandes grupos que levam a uma necessária
opção paradigmática entre um ou outro quando se está a falar sobre a tarefa da filosofia
mesma: a subjetividade. (...) Neste quadro, a busca da verdade pode ser realizada somente como tarefa.
Perdemos a convicção de que ela nos foi dada como um todo. Cf. ABBOUD, Georges. Discricionariedade
administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2015, p. 57. 434
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op.cit., p.395.
199
no processo de conhecimento, o analítico (ou semântico) e o continental (no qual se
situa a hermenêutica, sua corrente de maior privilégio). O primeiro reconhece a
polissemia dos significados produzidos pela linguagem (superada, portanto, a ideia da
pura sintática) sustentando reduzi-la por meio de uma análise lógica dos enunciados
linguísticos, mas tendo em conta seu uso denotativo, enquanto o segundo concebe o
papel e a tarefa da filosofia como superadora dessa análise lógica, não ignorando sua
importância.
Para a hermenêutica, há uma dimensão que vai além daquela comportada
pela linguagem humana, ou seja, esta não se esgota no que diz, pois para a hermenêutica
a linguagem está no seu aspecto teórico e prático: “o que é significado pela linguagem
aparece a partir dos contextos histórico-concretos a partir do qual estão envolvidos o
sujeito que conhece e o objeto que é conhecido”435.
Nesse contexto, a hermenêutica afirmaria que a concepção alvaradiana de
processo como “método” ou como uma “técnica” cuja obediência resulte em respostas
seguras desconsidera o Direito como integrante das ciências do espírito (ciências
humanas e sociais), pois, como Gadamer ensina, as produções destas ciências estão
distantes do ideal de verificabilidade e de seus padrões, pois a verdade, nelas, possui sua
própria historicidade e temporalidade436
.
A pré-compreensões vistas em Gadamer (que Heidegger437
assevera que a
interpretação advém de uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia), são
sentidos assumidos inconscientemente pelo intérprete por transmissão da própria
linguagem, considerando sentido como “a perspectiva na qual se estrutura o projeto de
posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna
compreensível como algo”438
.
É com a linguagem que se possibilita interpretar o compreendido:
E aqui chegamos ao (já antes anunciado) caráter circular da compreensão, na
exata medida em que a “interpretação já sempre se movimenta no já
compreendido e dele se deve alimentar”, o que não deve ser entendido como
“um vício”, mas, sim, como um reconhecimento das condições essenciais de
realização de qualquer interpretação possível; é no contexto destas reflexões
que Heidegger lança uma de suas máximas mais conhecidas: “o decisivo não
é sair do círculo mas entrar no círculo de modo adequado”, o que quer dizer
que a possibilidade positiva do conhecimento mais original só pode ser
apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que “sua
primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia,
435
Ibidem, p. 406. 436
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice, op.cit., p. 61-63. 437
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, op.cit., p. 211. 438
Ibidem, p. 212-213.
200
visão prévia e concepção prévia, por conceitos populares e inspirações”, ou
seja, na “elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia,
ela deve assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas”439
.
Está-se a falar do “método” fenomenológico e do círculo hermenêutico.
“Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições
repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e voltar seu olhar para
as coisas elas mesmas”, pois “o que importa é manter a vista atenta à coisa através de
todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das
ideias que lhe ocorrem”.
Francisco José Borges Motta sintetiza a fenomenologia como “método” não
como algo “exterior e puramente técnico, mas tanto mais ligado à discussão das coisas
em si mesmas (...) que não visa a caracterizar os conteúdos dos objetos da pesquisa
filosófica, mas que apenas caracteriza o como, a maneira de proceder da filosofia”440
.
Se a linguagem é constituinte e instituidora do saber, e, portanto, do nosso
modo-de-ser-no-mundo, que implica as condições de possibilidades que temos para
compreender e agir, ou seja, já que é com a linguagem que se pensa, ela possibilita
interpretar o compreendido, a relação entre a palavra e a coisa consiste em que aquela, a
palavra, é a própria relação, já que é a palavra que confere ser às coisas e o ser mora na
palavra.
Claro, contudo, que a linguagem não cria o mundo, pois este existe com
independência , mas a linguagem é analisada não num sistema fechado de referências,
mas sim no plano da historicidade, aproximada à práxis humana, como existência e
faticidade, em que o texto é ligado a uma existência concreta, a uma carga pré-
ontológica que na existência já vem antecipada441
.
Assim revoluciona-se o conceito de verdade pela percepção de inexistência
de separação entre o sujeito cognoscente e um objeto a ser conhecido, o que destrói a
verdade como representação do real.
Com Heidegger, deve-se deixar cada ente ser o que ele é entregando-se ao
ente para que este se manifeste naquilo que é e como é, e esta liberdade de deixar-ser o
ente é a essência da verdade, a verdade como “desvelamento”, como “des-ocultação”. E
439
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 49. 440
Ibidem, p. 46. 441
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (jurídica) e Estado Democrático de Direito: uma análise crítica.
In: Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito – Mestrado e Doutorado. São Leopoldo: Centro de
Ciências Jurídicas UNISINOS, 1999. p. 79-80.
201
se o desvelamento do ser é a verdade ontológica, pelo conceito já apresentado de
diferença ontológica, o desvelamento do ser é desvelamento do ser do ente. E então, o
desvelamento do ente implica na verdade ôntica. Assim percebe-se “a essência ôntico-
ontológica da verdade em geral, desta maneira necessariamente bifurcada, somente é
possível junto com a irrupção dessa diferença ontológica”.
Gadamer, a partir das lições de Heidegger, preocupado com a construção de
uma hermenêutica prática filosófica que reconhece o caráter universal da linguagem e
que o enfrenta numa batalha para a superação de arbitrariedades interpretativas, passou
a desenvolver uma filosofia com uma série de categorias hermenêuticas (pré-conceito,
applicatio, tradição, história efeitual, círculo hermenêutico, fusão de horizontes).
A hermenêutica filosófica Gadameriana, que foca no que acontece além do
querer e fazer (não no que se faz ou no que se deveria fazer), como já mencionado, não
procura estabelecer um método, mas sim descobrir e conhecer o que está ignorado e
encoberto pela disputa sobre os métodos, que percebe a ciência e a torna possível442
, e
por isso Lenio Streck alerta para a “Verdade contra o Método”, pois o fenômeno
hermenêutico não é um problema de método e compreender e interpretar textos pertence
ao todo da experiência do homem no mundo.
Deve-se ter em mente os ensinamentos de Gadamer para a compreensão nas
ciências do espírito: deve-se considerar que o Direito é interpretativo, hermenêutico e
filosófico. E assim, afirma ser possível construir verdades que não sejam matemáticas,
mas hermenêuticas, não menos verdadeiras do que aquelas. Afinal, como bem disse,
nem sempre a via da demonstração será a via correta para fazer com que outra pessoa
veja o verdadeiro443
. É que a tese da demonstrabilidade advém de uma metafísica que
adote a proposição verdadeira somente como decorrência de um fato verdadeiro.
Mas Dworkin afirma que há alguma coisa no mundo, além de fatos
concretos, afirmada pela hermenêutica gadameriana com os “fatos morais”444
. Dworkin
442
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 53. 443
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice, op. cit., p. 61-63. 444
Dworkin utiliza-se do exemplo da escravidão afirmando que ela é injusta em si, não porque se pensa
que ela é injusta ou nesse sentido convencionam. Não porque os valores morais estão à espera de captura
ou prova, mas porque para sustentar esta afirmação utiliza-se da moralidade, não da metafísica
aprisionadora do mundo em conceitos, na qual somem os casos concretos. Dirá que: “não existe diferença
importante de categoria ou posição filosófica entre a afirmação de que a escravidão é iníqua e a
afirmação de que existe uma resposta certa à questão da escravidão, isto é, que ela é iníqua. Não posso,
racionalmente, considerar a primeira dessas opiniões como uma opinião moral sem fazer o mesmo com
relação à segunda. Uma vez que o ceticismo exterior não oferece razões para repudiar ou modificar a
202
dirá que uma proposição de Direito pode ser considerada verdadeira se for mais
coerente do que a posição contrária, mas que há duas dimensões para sustentar que uma
justificativa é melhor do que a outra: a dimensão da adequação e a dimensão da
moralidade política. A distinção entre argumentos de política e argumentos de princípio
em Dworkin é providencial nesse tocante.
Para o jusfilósofo norte-americano, “os argumentos de política justificam
uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo
coletivo da comunidade como um todo”, já os “argumentos de princípio justificam uma
decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um
indivíduo ou de um grupo”445
, ambos constituindo argumentos políticos num sentido
mais amplo, mas um é argumento de princípio político e outro de procedimento político
(que exige que alguma decisão particular promova alguma concepção do bem-estar
geral ou do interesse público)446
.
Assim, enquanto o princípio favorece um direito, a política é um padrão que
estabelece uma meta, sendo argumentos de política aqueles em favor de um objeto
coletivo, relacionado ao bem comum.
No processo legislativo, ambas as modalidades de argumentação são
admitidas, e a lei transforma os argumentos de política em uma questão de princípio, de
maneira que as decisões judiciais devem ser geradas por princípio e não por políticas.
Ou seja:
O caso é que, a partir do momento que aceitamos que o Judiciário deve tomar
decisões política importantes, devemos refletir sobre quais motivos, em suas
mãos, são bons motivos; e a visão de Dworkin –fixemos pela repetição – é a
de que o tribunal deve tomar decisões de princípio, decisões sobre quais
direitos as pessoas têm sob determinado sistema constitucional, e não
decisões sobre como se promove o bem-estar geral; e mais: deve tomar essas
decisões elaborando e aplicando a “teoria substantiva da representação”,
extraída do princípio básico de que o governo deve tratar as pessoas como
iguais.447
E, portanto, Dworkin concebe seu juiz Hércules não como o juiz solipsista
ou protagonista. Recusando a discricionariedade “forte” atribuída aos juízes por Hart, o
autor sustenta a existência de “única resposta correta”, esta a ser produto do juiz
Hércules que compreende o Direito na sua totalidade (isto é, considera tanto a produção
primeira, também não oferece razões para repudiar ou modificar a segunda. As duas são afirmações
internas à moral, e não sobre ela.” DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, op. cit., p. 83. 445
Idem. Levando os Direitos a Sério, op. cit., p. 129. 446
Idem. Uma questão de princípio, op. cit., p.6. 447
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 133.
203
legislativa quanto o que fizeram e fazem acertadamente os demais juízes) prestando
contas ao conjunto principiológico a partir da Constituição.
Essa é, aliás, uma das maiores objeções às suas considerações dworkinianas.
Afinal, se não é provável que uma resposta seja mais correta que a de outro juiz, é inútil
exigir a busca judicial por essa resposta, até porque, poder-se-ia argumentar, não há
mesmo como provar que seja a resposta correta.
Outrossim, se não há respostas corretas e o juiz decide decisionisticamente,
então não há porque apostar numa resposta correta sobre os direitos dos cidadãos, de
maneira que deve-se aceitar que os juízes frequentemente errarão.
Como visto, para a hermenêutica gadameriana não existe compreensão sem
antecipação de sentido, ou seja, sem pré-compreensão. E assim, interpretar não pode ser
apontar o verdadeiro significado dos conceitos jurídicos. A hermenêutica jurídica não
pode ser extrair da norma o que ela já contém.
E em consideração ao Estado Democrático de Direito e ao
constitucionalismo democrático, a gestão da prova, que está ligada à questão da
verdade, deve ser pensada no contexto de um processo democraticamente gerido, o que
nos leva a questionar os limites do juiz. E assim, a gestão da prova recai numa teoria da
decisão.
É nesse contexto que este paradigma acredita ser possível falar em
“verdade” no direito, uma verdade hermeneuticamente construída (história institucional
do direito – método hermenêutico) e que não é nem uma essência do objeto, nem uma
construção da consciência, mas, sim, o produto de uma compreensão situada do ser-aí
(Dasein).
“A verdade não é o resultado da construção de um sujeito consciente, mas
sim, aquilo que emerge de uma compreensão, linguística e historicamente
situada. E é a linguisticidade da compreensão que permite à comunidade
política articular uma censura controladora do sentido das decisões dos
casos jurídicos”448
.
A verdade, no sentido hermenêutico, “não é uma questão de método, mas,
isso sim, uma questão relativa á manifestação do ser, para um ser cuja existência
consiste na compreensão do ser”449
, ou seja, “verdade, assim, é des-velamento, des-
ocultação, é retirar o ente do velamento, permitindo que este se revele”450
.
448
STRECK, Lenio. O que é isto – a verdade real? - Uma crítica ao sincretismo jusfilosófico de terrae
brasilis. Revista de Processo. Vol. 921. São Paulo: Editora RT, 2012, p. 359/392. 449
Idem. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito.
Porto Alegre, Livraria do Advogado, p. 199. 450
Ibidem, p. 199.
204
Ou seja, na experiência hermenêutica a verdade nada tem a ver com a
verdade como correspondência. A verdade hermenêutica se fundamenta na dialética, na
fusão de horizonte entre o contexto do sujeito e o contexto da tradição, acontece no
diálogo, insto é, na interação de perguntas e respostas em que os prejuízos ilegítimos
têm a chance de se tornarem legítimos.
4.5. O caminhar metodológico do processo civil
O processo civil que conhecemos atualmente resulta de paciente evolução, a
qual costuma ser estudada em fases metodológicas. O novo Código de Processo Civil
brasileiro trouxe ao contexto doutrinário a discussão a respeito do que se chama
“modelo cooperativo”, não reconhecido pelos garantistas mas que adiante se abordará
mais profundamente.
A doutrina que o sustenta, defende que as fases do processo civil trouxe-o
ao formalismo-valorativo, e portanto, faz-se necessário abordá-lo sempre na tentativa de
trazer os acertos das críticas garantistas à nossa doutrina, que desde o início criticou tal
modelo e inclusive inúmeras passagens do novo diploma.
Quatro linhas costumam ser destacadas no direito processual civil: o
praxismo, o processualismo, o instrumentalismo e o formalismo-valorativo.
O praxismo ou período sincretista refere-se à pré-história do direito
processual civil, tempo em que se aludia ao processo como “procedura” e não ainda
como “diritto processual civile”.
Evidentemente, não se vislumbrava o processo como um ramo autônomo do
direito, mas como mero apêndice do direito material, confundido-o inclusive com o
mero procedimento definido como sucessão de atos.
Os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer consciência de
princípios, sem conceitos próprios e sem a definição de um método.
Neste período inexistia qualquer menção à relação jurídica entre seus
sujeitos ou tampouco sobre a participação dos litigantes (contraditório). Em síntese, a
jurisdição era encarada como um sistema posto para a tutela dos direitos subjetivos
particulares, enquanto a ação era compreendida como um desdobramento do direito
subjetivo e o processo como simples procedimento.
Com Oskar von Bülow (Bülow) o processo deixa de ser tratado como mero
procedimento e passar a ser uma relação jurídica abstrata obediente a pressupostos
próprios de existência e validade.
205
Em 1868, Bülow publica na Alemanha uma obra intitulada A Teoria das Exceções
Processuais e os Pressupostos Processuais. A teoria basicamente trata da relação jurídica
processual ocorrente entre as partes e o juiz. Esta ideia já foi discutida por vários outros autores,
porém o mérito a Bülow se dá pela sistematização da relação processual e não propriamente
pela existência da relação processual.
É então que nasce, com o conceito de relação jurídica processual, a
autonomia do estudo do direito processual inaugurando o “processualismo científico”
no final do século XIX por Bülow, também conhecido como
conceitualismo/autonomismo.
A partir de então a doutrina cifra-se à racional construção do arcabouço de
conceitos do direito processual civil. Aliás, não por outro motivo as grandes linhas deste
ramo enquanto disciplina autônoma foram traçadas nesta fase.
A jurisdição assumiu a função de realizar o direito objetivo estatal e
pacificar a sociedade. Foi nesse contexto que a ação deixou de ser compreendida como
um apêndice do direito material, passando a representar um direito público subjetivo
autônomo de ir a juízo e poder lograr uma sentença.
Ao mesmo passo, passa-se de uma inspiração privatista (“procedura”), para
uma perspectiva publicística (“diritto processuale”). Ocorre que esse clima
processualista acabou por afastar o processo dos valores sociais.
E então, a ideia de processo como instrumento do direito material vem com
a perspectiva instrumentalista, constituindo uma superação da perspectiva puramente
técnica e como decorrência do realismo jurídico norte-americano451
, mérito aliás da obra
de Cândido Rangel Dinamarco intitulada “Instrumentalidade do Processo” publicada em
primeira edição em 1987.
A teoria de Dinamarco, sob a influência das teorias socializantes, enxerga o
processo civil dotado de escopos metajurídicos (sociais, políticos e econômicos) a
alcançar, “repetindo, todavia, as mesmas finalidades já sustentadas por Franz Klein em
sua célebre preleção em Dresden, em 1901”452
.
Socialmente, o processo serve para persecução da paz social e para a
educação do povo. Politicamente, o processo consagra a autoridade do Estado, a
liberdade dos cidadãos e a participação dos atores sociais. Juridicamente, o processo
visa a “vontade concreta do direito”.
451
NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora,
2012, p. 145. 452
Ibidem, p. 142.
206
Em síntese, o procedimento jurídico para Dinamarco funciona como mero
instrumento de aplicação de um ideal predefinido de bem viver, fruto dos sentimentos
da nação com conteúdos fixos atribuídos à sensibilidade do agente estatal, assumindo-se
uma realidade axiológica presumida.
E nesse sentido, a jurisdição ocupa o lugar de destaque por constituir uma
manifestação do poder estatal exercido pelos juízes para a consecução dos fins do
próprio Estado. A legitimidade constitucional do sistema jurídico dependeria, na ótica
do autor, de procedimentos vocacionados à ampla obediência pelos cidadãos dos
entendimentos encontrados pelos seus agentes estatais453
.
No que tange o binômio direito-processo, opta-se pela teoria dualista do
ordenamento jurídico (ou declarativa, liderada por Chiovenda) em detrimento da teoria
unitária (ou constitutiva, liderada por Canelutti)454
. Para aquela teoria, colocar o
instituto da ação como centro do estudo seria escolha individualista e isolada do
processo civil, por outro lado, também não se poderia colocar o processo como
instituto-chave do direito processual porque seria um formalismo exacerbado tê-lo como
ponto de convergência dos outros institutos455
.
Contudo, como poderia caber à jurisdição cumprir tão somente uma função
declaratória da ordem jurídica preestabelecida pelo legislador? Se texto e norma não se
confundem, então não é possível defender que jurisdição simplesmente declara a norma
dada pelo legislador, isto é, não há declaração da vontade concreta do direito material
456.
O processo caminhou para a busca de justiça no caso concreto. Vale o
processo agora do devido processo legal com as exigências do devido processo
constitucional, libertando o processo das apriorísticas e abstratas soluções legais
infraconstitucionais.
Além disso, o relacionamento entre o direito processual civil e o direito
constitucional ultrapassou a tutela constitucional do processo (constitucionalização das
normas jurídicas fundamentais de processo) e da jurisdição constitucional, pois o
453
Ibidem, p. 144. 454
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, op. cit., p. 189. 455
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit., p.
38 – 41. 456
Ibidem, p. 42 - 43.
207
pensamento constitucional irradiou para o processualismo civil, especialmente com uma
nova classificação das normas457
e com a preocupação sobre os direitos fundamentais:
Com efeito, enquanto a primeira constitucionalização do processo teve
por desiderato incorporar normas processuais na Constituição, a segunda,
própria de nosso tempo, visa atualizar o discurso processual civil com
normas tipo-princípios e tipo-postulados, além de empregar, como uma
constante, a eficácia dos direitos fundamentais para a solução dos mais
variegados problemas de ordem processual.458
Outro aporte do direito constitucional foi para a aplicação do processo civil
no que tange a teorização da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos
fundamentais, da interpretação com eles conforme, e da vinculação do Estado e dos
particulares aos direitos fundamentais.
Essa bagagem do direito constitucional junto ao direito processual civil,
concebendo-se a democracia participativa como um direito fundamental de quarta
dimensão, no bojo da qual o processo caracteriza-se como um espaço privilegiado de exercício
direto de poder pelo povo, e por consequência, o enfoque do processo nas posições dos
sujeitos processuais, transferiu o polo metodológico da jurisdição para o processo, o que
corresponde, em termos de lógica jurídica, à passagem da lógica apodítica à lógica
dialética, ou seja, do monólogo jurisdicional ao diálogo judiciário459
.
Potencializa-se o valor participação no processo, incrementando-se as posições
jurídicas das partes a fim de que o processo se constitua, firmemente, como um democrático
ponto de encontro de direitos fundamentais.
Nesse sentido, para Daniel Mitidiero e Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, o
instrumentalismo teria sido superado por três razões:
(...) uma, por assinalar função puramente declaratória à jurisdição; duas,
porque as relações entre processo e Constituição não se colocariam apenas no
plano das garantias, devendo ser pensadas a partir de uma nova teoria das
normas e dos direitos fundamentais; e três, porque a colocação da jurisdição
como centro do processo negligenciaria a dimensão participativa que a
democracia haveria conquistado no direito contemporâneo.460
457
Para Humberto Ávila, as normas podem ser divididas em princípios, que são normas de finalidade,
regras (normas de primeiro grau), que são normas de conduta, e postulados normativos (normas de
segundo grau), que são normas de método. 458
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit, p.
46. 459
Ibidem, p. 48/49. 460
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria geral do
processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. vol. 1, p. 15.
208
Nesse contexto, a doutrina afirma adentrar na fase metodológica do
formalismo-valorativo461
, proposta por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira em sua tese
de doutoramento462
. Primeiramente, importante explicar a semântica da expressão
formalismo na concepção de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
O formalismo, ou forma em sentido amplo, não se confunde com a forma do
ato processual individualmente considerado. Diz respeito à totalidade formal
do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas
especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos
processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e
organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades
primordiais. A forma em sentido amplo investe-se, assim, da tarefa de indicar
as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a
ser formado, e estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as
pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento. O formalismo
processual contém, portanto, a própria idéia do processo como organização
da desordem, emprestando previsibilidade a todo o procedimento463
.
O processualista gaúcho teoriza visando impedir que a realização do
procedimento fique deixa ao simples querer do juiz funcioanndo como uma garantia de
liberdade contra o arbítrio dos órgãos que exercem o poder do Estado464
Isto é, “o termo ‘formalismo’ não está sendo empregado na locução como
supervalorização da forma em sentido estrito (...) trata-se de conceito que visa a
abarcar a totalidade das posições jurídicas processuais objetivando seu equilíbrio” 465
.
Até porque não é possível defender um processo constitucionalizado sob
uma maior formalidade processual vez que uma das principais funções de qualquer
processo constitucionalizado é garantir a participação dos interessados na decisão.
Já a alusão ao valorativo significa “realçar que toda normatividade só se
justifica no Estado Constitucional se ancorada nos valores encarnados na
Constituição”466
.
Isso porque o formalismo, assim como o processo, é destinado a um fim.
Sendo o processo produto do homem, e portanto, de sua cultura, uma ligação entre os
461
Que Daniel Mitidiero “assume como um verdadeiro método de pensamento e programa de reforma de
nosso processo”. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e
éticos, op. cit., p. 50. 462
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira analisou em sua obra “Do formalismo no processo civil” a
antinomia existente entre formalismo e justiça, preocupando-se com a realização do direito material e dos
valores constitucionais. O autor conceitua formalismo para extremá-lo da concepção de formalismo-
valorativo, e então estabelece os principais valores e princípios com que, sob sua ótima, deve trabalhar o
processo. Cf. O formalismo-valorativo em confronto com o formalismo-excessivo, o autor refina as ideias
lá expostas e desenvolve os conceitos ali lançados. In: Revista de Processo, n. 137. 463
Ibidem, p. 57. 464
Ibidem, p.59. 465
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit.,
p. 52. 466
Ibidem.
209
mundos do ser e do dever-ser, torna-se natural falar aqui em valores. É exatamente em
virtude do fenômeno cultural que o formalismo não se confunde com a técnica, que é
neutra a respeito da questão axiológica. Até porque, não obstante a diversidade de
valores entre os povos, não há como se negar o aproveitamento de técnicas e soluções
para problemas comuns.
Nesse sentido, Carlos Alberto Álvaro ressalta:
Impõe-se, portanto, a análise dos valores mais importantes para o processo:
por um lado, a realização de justiça material e a paz social, por outro, a
efetividade, a segurança e a organização interna justa do próprio processo
(fair trial). Os dois primeiros estão mais vinculados aos fins do processo, os
três últimos ostentam uma face instrumental em relação àqueles. A par desses
valores específicos, mostram-se ainda significativos para o processo os
valores constitucionais e os valores culturais relacionados ao meio onde se
insere determinado sistema processual.467
Com efeito, da base axiológica apresentada por referido autor ressaem
princípios, regras e postulados para sua elaboração dogmática, organização,
interpretação e aplicação. Vale dizer: do plano axiológico, ligado a questões de
preferências subjetivas sobre determinada situação concreta, vai-se ao plano
deontológico, ligado à fixação de uma conduta de dever, típica das normas, isto é, que
trace uma conduta que possa ser avaliada pelo direito como proibida, permitida ou
obrigatória468
.
Em outras palavras, a proposta é que os valores essenciais efetividade e
segurança, que estão em permanente conflito, funcionem como sobreprincípios para
orientar na aplicação das regras e princípios. Nos casos não resolvidos pela norma, o
órgão judicial, com o emprego das técnicas hermenêuticas adequadas, deverá solucionar
aquele conflito permanente ponderando qual dos valores deverá prevalecer469
.
Assim, o processo civil cooperativo dar-se-ia nesta última fase
metodológica do processo civil, qual seja, a do formalismo-valorativo.
Inegavelmente é feliz Alvaro de Oliveira ao reconhecer a importância da
forma para a limitação do arbítrio e também o mal que é o formalismo excessivo. Mas o
autor, perceba-se, aposta na axiologia dos princípios semelhante à proposta alexyana. E
o que se questiona é: a deontologia da Constituição não resta enfraquecida exatamente
com sua compreensão axiológica?
467
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo em confronto com o formalismo-
excessivo. In: Revista da Ajuris. Porto Alegre: 2006. 468
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit., p.
51. 469
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo em confronto com o formalismo-
excessivo, op. cit., p.56.
210
É que, sob uma perspectiva garantista e histórica (refere-se ao período pós-
segunda guerra), na qual a democracia não deve ser vista sob uma concepção
majoritária somente, mas sim de consideração a todos os indivíduos em plena igualdade
na comunidade política, o processo deve ser visto contra os interesses coletivos, ou
ainda, sob uma axiologia que possa recair na negação do direito de quem efetivamente o
tem.
Mas perceba-se:o autor afirma que a ponderação entre o valor formalismo e
justiça deve ser feita mediante o recurso à equidade, que para ele é a justiça do caso
concreto, com o que sai-se da legalidade e ingressa-se no direito. Ou seja, a ponderação
é um exercício de equidade, um instrumento à disposição do juiz imbuído de um
sentimento de justiça.
Não estaria o autor apostando na subjetividade do juiz apesar de afirmar a
inconveniência da atribuição de ampla liberdade ao órgão judicial quando aposta na
equidade e em valores que estão fora do sistema?
4.4. O processo civil no Estado Democrático de Direito: a visão liberal do
garantismo processual e a materialidade da Constituição democrática.
O garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso, assumidamente,
pactua da filosofia política liberal470
. O Estado liberal está edificado pela liberdade
individual e se ressente de uma desconfiança da magistratura que estaria, atualmente,
radicalizando o princípio da separação dos poderes.
Ocorre que a noção de Estado Democrático de Direito pressupõe uma
valorização do jurídico e consequentemente uma redefinição dos Poderes do Estado
pela discussão sobre o papel destinado ao Poder Judiciário que leve em conta o
constitucionalismo pós-segunda guerra e que trouxe a Constituição como ponto de
encontro das dimensões democrática (formação da unidade política), liberal
(coordenação e limitação do poder estatal) e social (configuração social das condições
de vida).
Lenio Streck, abordando a crise de dupla face que acomete o direito e a
dogmática jurídica nos países de modernidade tardia, demonstrou que o pensamento
jurídico dominante continua lidando com o fenômeno jurídico consoante o paradigma
470
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Teoria General Del Proceso – Lecciones. Disponível em Academia
Virtual Iberoamericana de Derecho y de Altos Estudios Judiciales, p. 11.
211
liberal absenteísta próprio do legalismo econômico reinante ao tempo do Estado
Liberal-burguês.
É que nos quadros de um Estado Democrático de Direito, não se pode
ignorar o Direto como transformador da sociedade e do modo de composição de suas
relações: de um lado está o texto constitucional que estipula e aponta a necessidade da
realização dos direitos fundamentais-sociais e de outro a difícil vivência entre os
Poderes do Estado eleitos por uma maioria que pode, aliás, discordar dos próprios
mandamentos constitucionais471
.
No caso específico do Brasil, o processo constituinte de 1986-1988 luto não
apenas pela reconstrução do Estado de Direito, mas também pelo forte papel do Direito
que pela jurisdição guardaria o conteúdo material da Constituição, passando, o
Judiciário, a colocar-se no debate político.
E daqui extrai-se a discussão acerca da legitimidade do Poder Judiciário na
desconstituição de atos normativos do Poder Executivo e da declaração de
inconstitucionalidade das leis infraconstitucionais especialmente em países que preveem
o controle difuso de constitucionalidade.
De acordo com o atual entendimento do processualista argentino, a
declaração de inconstitucionalidade deve depender somente do requerimento da parte,
evitando-se toda atuação oficiosa do juiz, quando o objeto do litígio são direitos
transigíveis, pois, em tais casos, deve ser soberana a atuação das partes472
, relembrando
que a Argentina admite o controle de constitucionalidade difuso.
A discordância ou concordância com a afirmação do autor, ou seja, o
posicionamento acerca do papel exercido pela jurisdição constitucional relaciona-se
com uma discussão num contexto maior, qual seja, o papel do Poder Judiciário na
realização/efetivação dos direitos sociais-fundamentais no modelo de Estado
Democrático de Direito.
A intenção aqui é de se desfazer um equívoco: o debate sobre a efetividade
da Constituição e a atuação do Judiciário é muitas vezes remetida pela doutrina
brasileira (que discute o âmbito processual) à dicotomia entre garantistas e ativistas que
classifica aqueles como formalistas, até despreocupados com a concretização dos
direitos fundamentais e com a preservação da Constituição, e estes como defensores
árduos da Constituição. Ou ainda, ao que pretendem, por meio dos poderes instrutórios
471
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op.cit., p. 90. 472
VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I, op. cit., p. 485.
212
do juiz garantir a materialidade da Constituição justificando-os numa deplorável
desigualdade social.
Pelo exposto até aqui, o leito já deve ter se dado conta que o ativismo não é
democrático. E também que não se é a favor de atividades judiciais oficiosas como
forma de resguardar a efetividade constitucional. Pelo que se concorda com a doutrina
garantista processual. É que a conduta judicial de ofício pode esconder que o juiz esteja
buscando hipóteses por ele já formuladas. Aliás, o próprio Luigi Ferrajoli defende a
materialidade/substancialidade constitucional. E é claro que Adolfo Alvarado Velloso,
jamais, repisa-se, deixaria de defender a democracia ou os direitos fundamentais. Ocorre
que o garantismo situa-se, como já mencionado, no modelo liberal. Aliás, arrisca-se
apontar que são suas pré-compreensões liberais que o leva a concluir pela possibilidade
de declaração de inconstitucionalidade oficiosa somente quando a controvérsia judicial
dizer respeito a direitos indisponíveis. Essa sua parcial assunção do controle difuso de
constitucionalidade pelo Judiciário advém, primeiramente, da alteração de seu
posicionamento tendo em vista abusos gerados pelos juízes, e consequentemente, pela
sua defesa liberal como única forma de combater os decisionismos.
Ocorre que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o
Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos), mas passou-se pelo
Estado Social, em que a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de
realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia, e alcançou-
se o Estado Democrático de Direito, em que o foco de tensão se volta para o
Judiciário.473
Ou seja, no Estado Democrático de Direito efetiva-se o controle da
atividade legislativa no sentido desta ter que estar consoante os procedimentos e
também o conteúdo material previsto na Constituição, diploma dirigente que aponta
para um dever de legislar conforme os direitos fundamentais e sociais. Isto se diz
considerando ainda o próprio contexto brasileiro, no qual o controle de
constitucionalidade surgiu inicialmente com a República, mas foi a Constituição de
1988 que trouxe importantes inovações com repercussões práticas para efetivá-lo.
A Carta Cidadã de 1988 inaugurou o Estado Democrático (e Social) de
Direito, regulou a intervenção do Estado na economia e estabeleceu a obrigação da
realização de políticas públicas, além de prever um rol de direitos fundamentais-sociais.
Ela, aliás, reconhece a sua própria força normativa para a concretização do que nela se
473
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da
Construção do Direito, op. cit., p.55.
213
regula quando prevê que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata (art.5º, 1º).
Nos quadros de um Estado assim elaborado, o foco é deslocado para o
Poder Judiciário, observação já percebida por Mauro Cappeleti474
que apontou a ênfase
na atividade da Magistratura em 1999 como protetora dos tradicionais direitos
individuais e dos novos direitos difusos, coletivos e fragmentados.
As considerações que se faz à história brasileira se dá porque a discussão
sobre o papel do Direito e da justiça constitucional deve sempre ser contextualizada,
pois além do núcleo mínimo que pode ser considerado comum a todos os países que
adotam formas democrático-constitucionais de governo, há circunstâncias específicas de
cada Constituição e que vai levar em conta especificidades regionais e a identidade
nacional, importante até mesmo para que se interprete o texto constitucional.
No caso brasileiro, o Estado Social provedor que decorre da crítica ao
paradigma liberal nunca foi efetivamente implantado, de modo que o Direito como
transformador da sociedade é de extrema importância para que a Constituição não seja
simples texto, mera simbologia ou utopia.
Nesse contexto, a Constituição brasileira efetivamente aponta para a
transformações de um modelo de Estado Democrático em cujas bases econômicas está o
Estado Social, como se extrai do seu artigo 3º:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Esse dispositivo constitucional, somado à história do Estado brasileiro
claramente aponta pra a construção de um Estado Social Democrático intervencionista
em cujo bojo devem constar políticas públicas distributivistas, até porque o conceito-
chave do Estado Social está no papel “de promover a integração da sociedade nacional
(...) integração esta que, no caso brasileiro, deve-se dar tanto no nível social quanto no
econômico”475
. Dito de outro modo, o que acrescenta ao Estado no paradigma
474
CAPPELLETI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p.59-60. 475
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de
Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos - Volume 8 - Nº 2,
maio/ago. 2003, p. 278.
214
democrático é referida síntese nas fases anteriores agregando mecanismos para suprir
suas lacunas para a realização dos direitos fundamentais-sociais, além de outras
características.
Claro que não está aqui defendendo decisionismos, mas o efetivo
cumprimento da Constituição pelos mecanismos constitucionais e que envolvem o
Poder Judiciário, superando a concepção de Estado Social pela valorização do jurídico
que prevê diversos mecanismos de efetivação das promessas estabelecidas no próprio
texto constitucional. É nisso que as concepções se distanciam: o Estado Social
concentra suas forças no Executivo e seu caráter intervencionista advém das políticas
públicas (políticas de bem estar social) que mais refletem o interesse de grupos de poder
do que das necessidades da sociedade colocando em risco a realização dos direitos
sociais e fundamentais.
E é por isso que já se chamou a atenção quando o garantismo processual
ataca os decisionismos do ativismo apontando o descumprimento de uma tarefa
propriamente judicial em privilégio de uma prática de justiça distributiva sem quaisquer
elementos de legitimidade para fazê-lo, justificando-se inclusive na legitimidade
advinda da eleição pelos votos do povo476
.
Pelo exposto não há dúvidas em se dizer que o Judiciário não pode
continuar com uma postura passiva diante da sociedade mediante os ditames
constitucionais, que aliás prevalecem mesmo diante da legislação produzido por
maiores parlamentares: tanto porque a Constituição deve moldar uma postura contra-
majoritária, quanto porque a crise de representatividade brasileira vai desde um modelo
em que determinado estado da Federação não possui a representatividade na Câmara
dos Deputados conforme sua efetiva população477
, desde a exclusão social que retira
grande parte do eleitorado do debate político por carecimento da instrução necessária.
De fato, reconheça-se que, a tese substancialista que defende uma postura
intervencionista, longe da postura absenteísta do modelo liberal, clamando pelo
cumprimento dos direitos fundamentais e sociais da Constituição de 1988, de maneira
que onde o Legislativo e o Executivo falhe ou se omita na implementação das políticas
476
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 43. 477
São Paulo, por exemplo, possui uma população elevada, mas não é numericamente bem representado
na Câmara dos Deputados tendo em vista esbarrar no máximo de cadeiras (70) permitido pela
Constituição, enquanto um Estado de população pequena acaba por prevalecer com o mínimo de 8
cadeira sem atingir o quociente necessário, o que impossibilita falarmos em real maioria no contexto
nacional. Como o máximo de cadeira na Casa Parlamentar é de 513, um mesmo deputado por São Paulo
representa uma população maior, do que um deputado do Acre, por exemplo, que representa uma
população menor. Mas ambos tem o mesmo peso (de 1 voto) na votação da Casa.
215
públicos e dos objetivos sociais caberá a atividade do Poder Judiciário na prestação
desses serviços sociais faltantes, a ordem judicial pode esbarrar na impossibilidade
financeira do Estado.
Mas a conhecida cláusula da reserva do possível, que se entende estar
Adolfo Alvarado Velloso a se referir quando menciona que pode o juiz não ter
elementos para oferecer justiça distributiva, não pode conduzir à ineficácia jurídica de
um direito subjetivo público que se entende existir e ser devido pelo caráter dirigente e
compromissário do texto constitucional.
Outra consideração que se pode fazer ao garantismo processual relaciona-se
com o processo como “método” e a necessidade de uma adequada teoria da decisão
judicial, o que não se vê com ênfase nesta doutrina. É que nesse tocante, Adolfo
Alvarado Velloso aduz que como ato jurídico, a sentença não ostenta caráter processual
pois, o processo, como método, não pode integrar seu objeto, a sentença. Adriano
Calvinho também não considera a sentença um ato processual nem procedimental.
Aliás, essa despreocupação com uma teoria da decisão, ou seja, com as interpretações,
deve correr pela assunção do autor, como já expressa, de se aplicar um texto sem se
interpretar e de suas teorias preocuparem-se centralmente com as semânticas. São duas
as observações.
Primeiramente, na filosofia do conhecimento, o método é um procedimento
de regras pré-definidas, uma estrutura para que o homem conheça, intérprete, textos e
objetos, coisas em suas essências. Aliás, é matemático aquilo que se conhece por um
método. Nesse sentido, pelo método como o procedimento estruturado pela série lógica
proposta pelos autores, as significações jurídicas relacionadas com as afirmações
acoplariam os fatos e as respectivas confirmações, e produziriam “verdadeiramente” a
decisão judicial. Ocorre que esta legitimação da decisão por um raciocínio dedutivo
para que seja ela menos criticável (ou seja, esse racionalismo, herdado do cartesianismo,
no âmbito do direito) esconde a dimensão hermenêutica do fenômeno jurídico.
É que quando um intérprete se depara com um texto, os fatos, as provas, não
conseguirá desvincular-se de sua própria história e faticidade, mesmo que queira, pois
quando se acessa um objeto já se dá uma compreensão antecipadora do ser, e quando se
diz que algo é, já se pretende dizer como ele é.
O que, apesar dessas considerações, felizmente traz o garantismo
processual, é o processo como um ambiente de diálogo. E mais do que isso, ao fazer
suas considerações à prova oficiosa, acerta quando compreende que o intérprete já
216
antevê o resultado possível de sua pesquisa, de maneira que não poderá determinar
provas, ainda que adicionais, tendo em vista a impossibilidade de já não possuir
hipóteses acerca do resultado da prova.
Uma outra observação relaciona-se com a busca pela vontade da lei e do
legislador!
Para Adolfo Alvarado Velloso, em razão do mandamento do legislador nem
sempre ser claro e completo, já que o ordenamento não prevê todas as condutas
possíveis de acontecer na realidade da vida, a prática diária ensina, a seu ver, que:
1) A lei se aplica como está emitida pelo parlamento quando o juiz encontra
nela a solução que deseja aplicar ao caso concreto e, ademais, compreende
cabalmente e aceita as palavras do legislador; 2) quando o julgador entende
que a norma é obscura para os fins de poder cumprir a atividade de
subsunção dos fatos e provas aceitados, a interpreta em função de certas
regras de hermenêutica. E, agora, a aplica; 3) quando ao ingressar ao plexo
legislativo o julgador adverte que a norma é insuficiente para realizar a
subsunção já antes aludida, deve integrá-la a partir de sua comparação com
outras normas análogas; 4) finalmente, se o julgador não decide a norma que
necessita para resolver o caso judicial, deve criá-la a partir da aplicação ao
caso dos princípios gerais do direito e, então, subsumí-lo nela.478
Essa transcrição parece demonstrar muitas conclusões do autor, e que
merecem atenção neste trabalho: Consoante os ensinamentos já expostos, apenas para
situar a doutrina do autor, ele está a falar de hermenêutica como técnica de
interpretação, e assim, hermenêutica clássica, não estando, nesta específica passagem,
falando de hermenêutica filosófica, aquela que se preocupa com as condições prévias da
interpertação. Note que o autor só concebe a interpretação a partir do momento em que
o texto seria obscuro para o que seriam necessárias as técnicas hermenêuticas. A
obscuridade estaria impedindo a compreensão, para o que seria necessário interpretá-la
e se chegar à compreensão479
. Além disso, entende a sentença como ato de subsunção, e
consequentemente, a interpretação como busca pela vontade da lei e do legislador. Ao
aceitar, no item 2 transcrito, a interpretação em função de certas técnicas de
hermenêutica, o autor admite que a norma interpretada pelo julgador, para que seja
aplicada ao caso concreto, não é a mesma norma emitida pelo legislador. E é por isso
478
VELLOSO, Adolfo Alvarado. La terminación del proceso: La sentencia judicia. Las costas, op. cit.,
p.82-83. 479
Recorde-se passagem anterior em que o autor concebe a aplicação sem a interpretação do texto: “(...)
el juez siempre norma: ora aplicando em concreto la ley abstracta, con o sin interpretación de su texto;
ora integrando la norma abstracta mediante la emisión de uma norma concreta; ora creando la norma
concreta en caso de inexistencia de norma abstracta”. Ibidem, p.85.
217
que admite que a tarefa do julgador ao sentenciar é extraordinariamente subjetiva480
.
Arrisca-se a dizer que, assim como Ferrajoli, aceita a impossibilidade de se afastar a
discricionariedade. Esta necessidade advém, como disse o autor, da obscuridade da
“norma” produzida pelo legislativo, em realidade, obscuridade do texto com o qual se
depara o julgador, de maneira que é por isso que propõe a objetividade no texto legal,
com as semânticas.481
Ocorre que, a própria noção de círculo hermenêutico (no interior do qual o
intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e onde a compreensão e
explicitação do ser já exige uma pré-compreensão) já incompatibiliza a autonomia de
tais métodos de interpretação e/ou seu desenvolvimento em partes e/ou fases. Se não
existe um método dos métodos, será arbitrária e, portanto, autoritária e voluntarista o
uso de um deles.
Além disso, convenha-se:
Afinal, toda interpretação sempre será gramatical (porque, à evidência, deve
partir de um texto jurídico); será inexoravelmente teleológica (seria viável
pensar em uma interpretação que não fosse voltada à finalidade da lei, com a
conseqüente violação à firme determinação do art. 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil, que determina que o juiz, na aplicação da lei, atenderá aos fins
sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum?); será,
obrigatoriamente, sistemática (porque é impossível conceber que um texto
normativo represente a si mesmo, sem se relacionar com o todo (...))482
.
. Parece que essas técnicas de interpretação, aliás, exoneram o juiz da
responsabilidade por suas decisões ao atribuir ao legislador as injustiças de seu
provimento483
.
Destrinchando o questionamento semântico: se as palavras do texto legal
são mais naturalmente utilizadas por alguém que tomou uma decisão do que a outra,
então, pelo menos, prova que o legislativo tomou essa decisão. Ocorre que
simplesmente pode o legislativo não ter tomado decisão alguma sobre determinada
controvérsia.
480
Note-se: o autor, quando chega à conclusão que a norma do julgador será diferente da norma do
legislador, não está concebendo que toda interpretação é produtiva, mas sim que a norma do julgador será
específica ao caso concreto, por isso diferente da do legislador que é geral e abstrata. 481
VELLOSO, Adolfo Alvarado. La terminación del proceso: La sentencia judicia. Las costas, op. cit.,
p.83-85. 482
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 249 483
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, apud, STRECK, Lenio
Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, op.cit.,
2014, p. 246/249.
218
Problema da indefinição do direito é maior, pelo que se concebe da
exposição do autor, quando o julgador sequer encontra texto obscuro para o caso,
quando não conseguiria utilizar nem a hermenêutica nem a analogia e teria ele, então,
que criar a norma com base nos princípios gerais do direito. Recai-se aqui na
completude dos sistemas codificados de direito privado (século XIX) reforçada pelos
princípios gerais do direito nos casos de aparentes lacunas legislativas, relembrando-se
que os princípios gerais do direito que são postulados racionais pressupostos pelo sistema
codificado cuja aplicação restringia-se a casos particulares e obedeceria ainda às regras do
método dedutivo-axiomático484
.
De acordo com as concepções do autor, se a criação de direitos deve ser
tomada pelo Poder Legislativo, já que os legisladores é que são eleitos pela comunidade
como um todo, não haveria como conceber que um juiz o fizesse. Afinal, os juízes não
são eleitos nem reeleitos, devem somente aplicar a legislação tal como se encontra, até
porque suas decisões são imunes ao controle popular. Aliás, sequer podem declarar a
inconstitucionalidade de uma lei infraconstitucional se não requerido pela parte em
casos que envolvam direitos transigíveis.
Bem, assim, se o caso não encontra resposta no repertório legal do sistema,
a busca é pelo que teria o legislador inserido nele de acordo com os princípios gerais do
direito codificados. Isso seria uma busca pela vontade do legislador acaso ele tivesse
pensado acerca daquele caso, de maneira que o juiz decidiria com base no que o
legislador faria, não no que ele pensa que seja o melhor. Se todo o trabalho que se tem
em dado momento da instituição que deve fazer as leis não responde a um tal caso, é
mais justo, ou racional, tomar a decisão conforme o que estaria na legislação com base
nos princípios gerais de direito. Quando os juízes buscam trazer a vontade dos
legisladores responsáveis não estão lidando com decisões políticas? Certamente cada
julgador decidirá de uma maneira nessa busca do que estaria no texto legal, e então eis o
problema.
Ocorre que um juiz que esteja diante de um caso não previsto em lei, parece,
não está diante da pergunta do que o Poder Legislativo teria feito se estivesse tomando
uma decisão acerca de determinada hipótese, mas sim que o Legislativo teria tomado tal
decisão por tais fundamentos conforme o que ele já decidiu. Pois, é provável que sobre
certa questão o Legislativo não queira legislar em determinado sentido considerando,
484
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
teoria e à filosofia do direito, op. cit., p. 283.
219
por exemplo, que pode prejudicar uma categoria da sociedade, ou seja, que legislará por
razões políticas485
De outro modo, negando então que o texto seja a fonte exclusiva dos
direitos, ou se as palavras do texto são obscuras e admite-se, para tais casos, mais que
uma decisão possível, qual delas melhor se ajustaria aos direitos das partes
reconhecendo que o ideal da prestação jurisdicional é que os cidadãos os acessem no
Judiciário? Por meio dos princípios deve-se chegar à resposta. Mas supondo que possa
existir dois princípios que tragam resposta e que não sejam claramente incompatíveis
com o conjunto normativo, cada juiz fará o que a ele parecer mais correto. Se mais de
um é compatível, parece, a escolha entre maneiras de caracterizar a lei reflitirá a própria
moralidade política do juiz.486
Veja-se: A tese de única resposta correta e do privilégio cognitivo do juiz
Hércules dworkiniano de fato merecem suas críticas. Mas, reconheçamos: se sempre se
interpreta, e para se interpertar necessita-se compreender, para o que é preciso das pré-
compreensões constituídas em sentidos prévios, o processo hermenêutico será sempre
produtivo pelo intérprete que compreende o sentido do texto consoante sua própria e
específica existência e pré-compreensão. Ou seja, a norma que sai do texto será produto
da interpretação do intérprete, e por isso vigência e validade, além de texto e norma, não
se confundem, como afirmou Friedrich Muller explicado por Lenio Streck consoante a
diferença ontológica heideggeriana.
E assim, o texto só pode ser válido se em conformidade com a Constituição.
E novamente: a interpretação acerca da conformidade exigirá a pré-compreensão sobre
o sentido da Constituição. Se as pré-compreensões do intérprete estiverem corrompidas
dando pouco valor à Constituição, e à jurisdição constitucional estiver sendo mal
compreendida, a norma estará sendo mal aplicada porque baseada somente na
infraconstitucionalidade.
Nesse sentido, não se pode pactuar com a compreensão de que o juiz deve-
se omitir e aceitar a interpretação da parte no que tange a constitucionalidade da
legislação infraconstitucional. Se a parte não alega a inconstitucionalidade,
implicitamente está alegando a constitucionalidade, pelo que o magistrado não deve se
abster e acatar. Quando aplica a legislação infraconstitucional, está implicitamente
485
Ronald. Uma questão de princípio, op. cit., p.23. 486
Ibidem, p. 24-25.
220
reconhecendo a constitucionalidade. E isso, obviamente, independe dos direitos em jogo
no processo serem transigíveis ou não.
Nesse contexto, de acordo com o substancialismo de Dworkin, fala-se em
uma “leitura moral” da Constituição, uma postura interpretativa por meio da qual todos,
não apenas os juízes, mas todos interpretem e apliquem dispositivos da Constituição
norte-americana como referências a princípios morais abstratos, como limites aos
poderes do Estado487
.
Nesse sentido, o intérprete dos sentidos possíveis da Constituição está
obrigado a lidar com a história e a linguagem, partindo do que os autores disseram e do
contexto em que foram ditas. A hermenêutica aqui não está como método de extração
de sentidos do texto! Nas palavras de Francisco José Borges Motta:
(...) a leitura moral dworkiniana é uma boa tática para esse propósito, na
medida em que impede os juízes de afirmarem que a Constituição expresse
suas próprias convicções, equilibrando essa necessidade com a correta
afirmação de que somos governados pelo que nossos legisladores disseram –
pelos princípios que declararam – e não por quaisquer informações acerca de
como eles mesmos teriam interpretado esses princípios ou os teriam aplicado
em casos concretos. (...) A Constituição não é só um documento, mas
também uma tradição; assim, o operador do Direito (intérprete) deve ter a
disposição de entrar nessa tradição e ajudar a interpretá-la de maneira
condizente com a ciência do Direito, e não de questioná-la e substituí-la por
alguma (ou qualquer) visão política (ou jurídica) radical que não possa ser
objeto de argumentos.488
É dizer, os princípios abstratos previstos na Constituição devem ser
interpretados pelos juízes junto à história política a partir da assimilação de outros
trabalhos, da doutrina e de casos julgados anteriores, com os argumentos trazidos pelos
participantes do processo.
A leitura moral trata de estratégia hermenêutica que afasta o protagonismo
individual do julgador e se volta à compreensão do sentido do princípio constitucional
que esteja em questão no caso concreto como uma norma com dimensão moral a ser
compreendida como dever-ser, e por isso a importância e o peso se verifica no caso
particular.
E com essas considerações, deve-se perceber que o princípio político
fundamental que deve nortear todo processo democrático é o de que todo cidadão tem o
direito de ser julgado por um juiz que não se envolva com a acusação, o que é a síntese
487
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 24-26. 488
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial, op. cit., p. 37.
221
do sistema acusatório. A inquisição ficou para trás, como enfatiza Adolfo Alvarado
Velloso em todas as suas passagens.
O juiz, como necessidade democrática, tem que notar que não é mais aquela
figura que acusa, produz prova, julga e executa, porque o juiz democrático é o juiz que
decide. E por isso, aliás, o cuidado que precisa ter com o “princípio do livre
convencimento motivado”, que, se aceitar que princípios são deontológicos, o livre
convencimento motivado não pode ser concebido como princípio, porque princípios não
são construções dogmáticas como coisas que se colocam no texto da lei para encaixar
práticas judiciais tendo em vista a abertura de sentido causada pela principiologia. Os
princípios advém das práticas sociais, e no caso, da tradição democrática.
Note-se aqui não haver porque se sustentar poderes instrutórios oficiosos
mesmo quando se defende juízos de substancialidade da Constituição. É por meio do
processo que se pode efetivar a concretização dos direitos com uma decisão que foge da
consciência isolada do julgador e que é formada pela participação dos demais
interessados a partir da Constituição. Não se está diante de um Estado Liberal ou Social,
mas de um Estado Constitucional e Democrático de Direito em que a compreensão do
Direito a partir de um sentido da Constituição implica necessariamente numa postura
substancialista.
Mas reconheça-se: o Direito Processual Civil está em crise! A reconstrução
histórica do processo civil brasileiro e das fases metodológicas do processo nos põe a
par da convivência com traços do liberalismo processual com o protagonismo da parte e
passividade do juiz inspirado pelo princípio dispositivo, de um lado, e, de outro, a
socialização do processo cuja jurisdição possui perfil paternalístico e o processo é
publicizado para o renomado bem-estar social a ser proporcionado por um
protagonismo judicial (ironicamente).
222
CONCLUSÃO
É impossível negar que a expectativa criada em torno do advento do novo
Código de Processo Civil evidencia a necessidade de percepção entre temas
momentâneos e permanentes.
São diversas as preocupações quando a doutrina se dedica ao estudo dos
poderes do magistrado, Especialmente em momentos de alteração legislativa, pois são
nessas circunstâncias que os descontentes com a ordem vigente se preparam para
debater e propor soluções para o modelo aplicado, o que sempre gira em torno da
conduta dos sujeitos processuais e implica diretamente na atividade judicial.
A preocupação com a atividade judicial em um processo democrático levou ao estudo
do ativismo, do garantismo e da cooperação, com considerações hermenêuticas para o
engrandecimento da discussão.
1. Viu-se que a palavra “garantismo”, hoje de uso corrente nas principais línguas
neolatinas, é um neologismo do século XIX, tempo em que muito se utilizava os
“ismos” políticos como liberalismo, constitucionalismo, comunismo. O seu significado
originário do léxico político francês era muito distante daquele atual e utilizado.
2. Fourier utiliza o termo “garantisme” para designar um estado da evolução civil
que sinaliza a realização do ideal supremo de uma perfeita e harmônica sociedade
comunitária e que é também um objetivo intermediário e transitório do seu projeto
político. Nas aspirações fourierianas, o garantismo consagra um sistema de segurança
social que procura salvaguardar os sujeitos mais fracos, fornecendo a eles as garantias
dos direitos vitais por meio de um plano de reformas que diz respeito tanto à esfera
política quanto à privada.
3. Posteriormente, em 1925, Guido De Ruggiero em Storia Del liberalismo in
Europa fala do assim chamado garantismo. Este primeiro emprego da palavra foi
encontrado por Perfecto Andrés Ibañez notando que De Ruggiero entende por
garantismo a concepção da liberdade política como liberdade do indivíduo do Estado e
frente ao Estado, ou seja, ponto de vista das garantias da liberdade que começa a tomar
forma com Montesquieu em torno da análise da Constituição inglesa e da correlativa
223
teorização sobre as técnicas de limitação dos poderes públicos face à tutela dos
indivíduos.
4. O termo garantismo se radica na linguagem filosófico-jurídica italiana do
segundo pós-guerra como centralização das garantias constitucionais das liberdades
fundamentais. E obviamente, uma vez que seu uso se tornou habitual, o termo
“garantismo” aparece nos principais dicionários.
5. Como se viu, de acordo com o “Grande Dizionario della língua italiana” de
Salvatore Battaglia, há dois significados. O garantismo é, numa dimensão específica do
constitucionalismo rígido o (i) caráter próprio das constituições democrático-liberais
mais evoluídas, consistente no fato que essas estabelecem instrumentos jurídicos sempre
mais seguros e eficientes (como o controle de constitucionalidade das leis ordinárias)
com a finalidade de assegurar a observância das normas e dos ordenamentos por parte
do poder político (governo e parlamento) ou, como teoria normativa do
constitucionalismo rígido (ii) “doutrina político-constitucional que propor uma sempre
mais ampla elaboração e introdução de tais instrumentos”.
6. Então, garantismo se tornou o nome da teoria liberal do direito penal, ou seja, do
paradigma normativo de matriz iluministra do direito penal mínimo. Em tal obra o
garantismo se apresenta como uma teoria do direito penal compreendido como
instrumento de proteção dos direitos fundamentais tanto dos delitos quanto das penas
arbitrárias, ou seja, como sistema de garantias idôneo a minimizar a violência na
sociedade, fruto de uma reflexão iluminista sobre o fundamento, os escopos e os limites
da “justiça punitiva”.
7. Resumidamente, em “Direito e Razão”, Ferrajoli concebe um modelo processual
antitético por natureza e estruturado sob a presunção de inocência e a liberdade pessoal
do imputado, a publicidade e a oralidade do rito, a paridade e o contraditório entre as
partes, a imparcialidade do juiz e sua atuação como terceiro não interessado. Do que se
vê, o (por alguns chamados) “neo-iluminismo” penal de Ferrajoli insere este conjunto
de garantias processuais em um complexo paradigma normativo voltado à proteção dos
indivíduos mercê da regulação do poder punitivo do Estado, a qual perpassa por meio
de um sistema de limites e vínculos, impostos tanto à legislação penal quanto à
jurisdição penal, com o objetivo de restringir a primeira à tutela dos direitos e a segunda
a uma atividade tendencialmente cognitiva.
8. Nesse sentido, a Teoria do Garantismo foi a princípio considerada, de maneira
geral, como aquela que premia os anseios de todos os juristas democratas e libertários.
224
9. Após adentrar-se na teoria ferrajoliana, procurou-se abordar suas principais
heranças juspositivistas: a tese da separação entre direito e moral e o problema da
discricionariedade judicial.
10. Ocorre que, inicialmente, já se enfrenta um questionamento: Ferrajoli situa-se no
paradigma positivista, admite o controle material de constitucionalidade, assumindo o
que designa como juspositivismo crítico. Mas o fato de Ferrajoli assumir-se como um
positivista crítico já não relativiza a própria tese da separação entre direito e moral
enquanto que a incorporação de valorações e a dimensão crítica comprometem o
positivismo.
11. No que tange a tese da separação entre direito e moral: Ferrajoli, explicitamente,
defende essa cisão incisivamente. Afirma que o que a Constituição positivou não foi a
moralidade, mas alguns princípios morais fundamentais, de caráter liberal e
democrático, que nós compartilhamos. O autor tenta afastar-se inclusive da tendência de
relativização de uma relação necessária ou conceitual entre direito e moral. Por sua vez,
o garantismo alvaradiano se aproxima da tese da complementariedade entre direito e
moral, conclusão extraída da justificativa do autor ao sustentar o princípio da
moralidade processual, o qual consiste numa regra moral para o desenvolvimento do
processo, em que pese apreocupação do garantismo processual com o discurso
processual baseado em argumentações metajurídicas que leva ao arbítrio e ao
subjetivismo e permite ao poder judicial a tomada de decisões solipsistas com base nos
sentimentos próprios do julgador, como também preocupava-se Ferrajoli, apesar de
jamais negar os espaços de discricionariedades intrínsecos à função judicial.
12. Neste tocante, a discricionariedade judicial, entendendo-a como um espaço a
partir do qual o julgador estaria legitimado a criar a solução adequada para o caso que
lhe foi apresentado a julgamento, Ferrajoli pressupõe a existência de quatro dimensões
ao poder do juiz, colocados como quatro inevitáveis espaços de discricionariedade,
quais sejam, (i) o poder de denotação ou de verificação jurídica, (ii) o poder de
comprovação probatória ou de verificação fática, (iii) o poder de conotação ou de
discernimento equitativo e (iv) o poder de disposição ou de valoração ético-política, o
que é pormenorizadamente explicado conforme o entendimento de Direito e Razão.
Esses espaços são inevitáveis porque coexistem ainda que sob um grau de
irredutibilidade alcançável por meio da efetivação das garantias processuais e materiais.
13. Note-se que quando Ferrajoli discorre sobre o terceiro poder judicial, o de
conotação (que relaciona-se com o conjunto dos elementos que diferenciam um
225
comportamento do outro, dos elementos acidentais e especiais de cada prática delituosa
que a tornam única), o autor admite que essa tarefa é valorativa, já que lida com
conceitos imprecisos, como “motivo fútil”, apelando para a equidade do juiz. Esse juízo
de equidade deve fazer com que o juiz impeça suas ideologias pessoais, prejuízos e
inclinações para compreender aquelas da pessoa que está sob julgamento, acreditando
assim que a equidade é uma condição da imparcialidade do juiz. Isso explica, afinal, na
teoria do italiano, porque julgar com equidade acaba por conceber um juízo menos
rigoroso, a favor do imputado.
14. A crença na discricionariedade é um dos pontos que a teoria do garantismo como
opção para a democracia não satisfaz. A presença do ativismo judicial fortaleceu-se
como solução para a concretização dos direitos fundamentais diante da própria ideia de
um espaço discricionário à “vontade” do intérprete/julgador. Ocorre que a vontade
destes não configura permissão para uma atribuição arbitrária de sentidos nem
tampouco uma atribuição de sentidos arbitrária, consequência inafastável da
discricionariedade489
.
15. Como forma de reduzir o poder judicial e consequentemente a
discricionariedade, preocupa-se com uma precisão semântica a partir da filosofia
analítica, propondo uma manipulação formal da linguagem. Aqui mostra sua prisão na
filosofia da consciência e sua consequente relação sujeito-objeto: existiria um mundo a
ser apreendido e conhecido em sua essência, pela razão, e depois comunicado aos outros
pela linguagem, via sentença judicial.
16. Mas por mais precisa que seja linguagem, há espaços de indeterminação que
dependerão da discricionariedade, e por isso conclui esta como inafastável em absoluto.
17. E nesse contexto, Ferrajoli remonta seu pensamento ao positivismo, que já o
próprio Kelsen denunciava a inexistência de um método que possa dar garantia à
correção do processo interpretativo, e à Herbert Hart490
, no qual se precisa perceber que
os espaços da “zona de penumbra” do modelo de regras são preenchidos pelo juiz por
meio da discricionariedade em razão do poder arbitrário a ele delegado, e também, que a
489
STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 49. 490
Diga-se, aliás, que Herbert Hart figura como um dos maiores expositores dentre os positivistas do
Common Law. Sua teoria sobre o sistema jurídico ainda assim admite a possibilidade de se solucionar
questões jurídicas sem interpretação, pois, nos seus denominados “casos fáceis” o juiz limitar-se ia a
subsumir a aplicação da regra jurídica em seu núcleo duro, utilizando-se da discricionariedade no
julgamento nos chamados “casos difíceis”, e isso por estar no paradigma interpretativo do positivismo
(por meio do qual se concebe a solução das questões jurídicas pelo silogismo, sem interpretação).
226
“zona de incerteza” pode resultar de uma construção ideológica do intérprete/juiz
aumentando, consequentemente, o espaço de discricionariedade.
18. Nesse sentido, não negando margens de discricionariedade, Ferrajoli declara
ambas as posições, do mito iluminista da certeza jurídica objetiva e do decisionismo
subjetivista, como inaceitáveis, mas não proclama o abandono da busca da verdade no
processo. O autor utiliza-se da teoria de Tarski da verdade como correspondência. Mais
uma vez as grades da filosofia da consciência ficam claras: a verdade decorre do efetivo
alcance da realidade dos fatos, ou seja, da captação de uma essência das coisas.
19. Ademais, expõe quatro fatores limitantes à verdade processual, entendida esta
como uma conjunção da verdade fática com a verdade jurídica. Esses fatores limitantes
são abordados como razões que consistem em limites intrínsecos aos procedimentos de
controle tanto da verdade fática quanto da verdade jurídica e que fazem da verdade uma
verdade inevitavelmente aproximada em direção ao modelo ideal da correspondência
(verdade tarskiana).
20. A primeira razão para que a verdade processual seja uma verdade apenas
aproximada do ideal de correspondência e que a diferencia de uma verdade científica
relaciona-se com a não experimentação direta das proposições judiciais de fato, pois
ainda quando tanto as proposições judiciais de fato quanto as de direito sejam teses
empíricas de forma existencial ou singular, compartilham com as teses das teorias
científicas a não suscetibilidade a uma verificação experimental direta.
21. Enquanto a segunda razão ou limite intrínseco está nas distinções dos problemas
de verificação e verificabilidade das proposições judiciais de direito e de fato, pois
enquanto a verdade processual fática é um tipo particular de verdade histórica e cuja
verdade pode ser enunciada pelos efeitos produzidos, quais sejam, os sinais do passado,
a verdade processual jurídica resulta de um raciocínio comumente chamado
“subsunção” cuja natureza provém de um procedimento classificatório por referir-se à
classificação ou qualificação dos fatos históricos comprovados de acordo com o
vocábulo jurídico e sua interpretação.
22. Já como terceiro fator limitante a ser considerado que afasta ainda mais a
predicável certeza, está o caráter não impessoal deste investigador particular legalmente
qualificado que é o juiz por mais que tente se livrar de aspectos que influenciem sua
objetividade. Nesse tocante, viu-se que Ferrajoli prevê três elementos intensificadores
227
da subjetividade do: um extrínseco e dois intrínsecos à natureza da jurisdição491
. O
elemento extrínseco refere-se ao objeto da investigação judicial que se relaciona com o
aspecto moral e emocional repercutindo na decisão conforme as convicções morais e
políticas pessoais do julgador, bem como pelas imposições do ambiente externo como a
cultura. Por sua vez, os elementos intrínsecos dizem respeito, o primeiro, ao erro
judiciário que não podem ser corrigidos como são os erros historiográficos e cientistas
em razão da coisa julgada, e o segundo à (de)formação profissional própria do juiz, isto
é, ao (des)conhecimento que ele tem das normas. Isso porque, na interpretação
designada por Ferrajoli492
como “operativa”, as normas condicionam a linguagem do
juiz e sua aproximação aos fatos que devem ser julgados, selecionando os fatos
relevantes conforme as normas e ignorando os delmais, de maneira que o conhecimento
das normas dessa ou daquela maneira, fará com que os olhos do julgador saltem sobre
determinados fatos e provas e se fechem a outros. Aliás, na investigação judicial,
reconhece Ferrajoli que além da subjetividade do juiz, soma-se ainda a subjetividade de
muitas fontes de prova, como as testemunhas, especialmente porque a maioria das
fontes judiciais, ao revés, é produzida para a investigação dos fatos a que alude, e não
antes e independentemente dessa investigação493
.
23. O quarto e último fator (de natureza jurídica e normativa) é designado por
Ferrajoli como “método legal da comprovação processual”, específico do conhecimento
judicial, concluindo que no sistema informado pelo princípio da “livre apreciação do
juiz” há menos rigidez das regras de comprovação processual do que no sistema de
“provas legais”, em que pese ambos disciplinarem normativamente a investigação,
comprovação, formação da verdade processual, como são exemplos as preclusões, as
nulidades e os testemunhos inadmissíveis.
24. Não é que os fatores colocados por Ferrajoli não existam, afinal não há como retirar
o juiz de sua subjetividade ou tampouco desistir da normatização da investigação judicial
491
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 48. 492
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 48. 493
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 48. Nesse tocante, importante observar a diferenciação entre meios e fontes de prova.
William Santos Ferreira, de maneira clara, e em alusão à José Carlos Barbosa Moreira, explica que “Se a
pergunta for: onde podem ser obtidas informações? Estar-se-á tratando das fontes de prova. Se for:
como estas informações chegam ao julgador? Estão sendo procurados os meios de prova. A primeira é
objeto, a segunda e instrumento.” FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível,
op. cit., p. 57/58.
228
(porque indispensável ao procedimento), até mesmo porque o juiz tem o dever de
decidir mesmo nos casos de não confirmação de fatos.
25. O que a hermenêutica questiona é a premissa, que é também aquela encontrada em
Adolfo Alvarado Velloso: a verdade como correspondência, apesar de assumirem-na como
inalcançável ou ceticamente desnecessária.
26. Aliás, são distintas as compreensões sobre a verdade entre tais garantistas, pois
além de Ferrajoli conceber a verdade objetiva enquanto Alvarado admite a verdade
subjetivista no sentido de que cada um admitirá como verdadeiro uma versão, o
primeiro a busca e teoriza extensamente para tornar a sua captação a mais objetiva
possível, enquanto o segundo não a prioriza e considera inútil e contraproducente a
busca da verdade no processo, pois para ele, como visto, a finalidade fundamental do
processo é a solução das controvérsias, do contrário estar-se ia privilegiando a meta
sobre o método.
27. Notem que por mais que assumam a inalcançabilidade ou desnecessidade da
verdade na decisão final do processo, se distanciam das conclusões hermenêuticas
filosóficas. Suas conclusões decorrem do pensamento de que o sujeito, destacado de seu
objeto, não o alcança. Em Ferrajoli, por exemplo, o único significado da palavra
“verdadeiro” é a correspondência argumentada e aproximada das proposições para com
a realidade objetiva, constituída no processo pelos fatos julgados e pelas normas
aplicadas. Isto é, o julgador, ao destacar-se dos fatos, constata que as provas dos autos
ainda não atingiram os fatos que realmente aconteceram, ou seja, que aquele estado das
coisas no processo não corresponde com a realidade. E, além disso, porque, no processo, o
juiz deve decidir com base na regra do ônus da prova.
28. Tangente a isso, cabe explicar que a doutrina internacional tratou de aplicar as
bases do garantismo de Luigi Ferrajoli, reconhecendo desde sempre a originalidade da
obra do autor.
29. Nesse sentido, tal movimento jusfilosófico pretende o irrestrito respeito à
Constituição e aos Pactos internacionais hierarquicamente igualados, asseverando que o
juiz empenhe-se em favor das garantias constitucionais, jamais de pessoa ou coisa que
não a Constituição.
30. O garantismo processual civil sustenta que os louvores do garantismo de direito
ferrajoliano são pela legalidade, a qual, como visto, constitui sua teoria com dois
elementos, quais sejam, a estrita legalidade e a estrita jurisdicionariedade. Mas
229
obviamente, por constituir-se como aporte do Estado Constitucional, reclama por uma
legalidade constituída a partir dos valores introduzidos na Constituição.
31. O garantismo no processo civil sustenta um processo idealizado como método de
debate e dialogal entre as partes, condicionado às diligências destas na atividade
processual no qual se intenta assegurar, por meio do devido processo legal, uma ampla
participação que valoriza a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade judicial
com a máxima restrição dos poderes dos juízes.
32. Por essas linhas, o garantismo processual sustenta o sistema acusatório como o
adequado para um Estado Democrático de Direito. Ferrajoli também fazia correlação
entre o processo acusatório e seu modelo ideal garantista, entendendo que enquanto o
método inquisitório exprimia uma confiança ilimitada na bondade do poder e na sua
capacidade de alcançar o verdadeiro, o método acusatório se caracteriza por uma
confiança ilimitada no poder como autônoma fonte de verdade. Explica-se, quando o
modelo inquisitório confia a verdade e a tutela do inocente às presumidas virtudes do
poder do julgador, o modelo acusatório concebe a verdade como o resultado de uma
controvérsia entre partes contrapostas por serem portadoras, respectivamente, do
interesse na punição dos culpados e do interesse na tutela do acusado presumido
inocente até prova em contrário. Dito de outro modo, no acusatório há a verdade
controlada pela participação das partes.
33. Claro que Alvarado não pretende um processo verdadeiro ou injusto, mas sua
atenção é voltada para o procedimento, não para seu resultado, pois concebe o processo
como método, e assim, seu objetivo, a meta, a sentença, a declaração do juiz, não o
integra. O procedimento já a legitima.
34. Aliás, a concepção garantista processual é a de que cabe ao juiz a manutenção da
paz social fixando fatos para adequá-los a uma norma jurídica, tutelando, assim, o
cumprimento do mandato da lei. Nesse sentido, o objetivo do processo é alcançar uma
declaração do juiz diante de quem se apresenta o litígio ainda que, de fato, muitas vezes não se
chegue a isso, pois os interessados – em alguns casos – preferem soluções autocompositivas
(ver o capítulo anterior) que evitam a heterocomposição.
35. Perceba-se que a escolha ideológica deste autor é que a função do processo civil
é exclusivamente aquela de resolver controvérsias, pondo fim aos conflitos entre os
indivíduos privados, o que justifica a defesa do sistema acusatório e as afirmações do
Autor nos Congressos sobre a irrelevância da verdade no processo.
230
36. Este procedimento de regras pré-definidas é concebido pela observância de uma
série lógica: afirmação-negação-confirmação-conclusão. A inobservância a tal série, na
concepção do autor, geraria um mero procedimento, não um processo. Este é, aliás uma
instância (de instar) diferente das demais porque, em síntese, ocorre entre três sujeitos.
Procedimentos que não se deem entre três pessoas também não constituem processo, do
contrário, estar-se-ia por privilegiar a meta sobre o método.
37. Tanto Ferrajoli quanto Alvarado trabalham com uma espécie de lista de
princípios: o primeiro com 10 axiomas e o segundo com 5 princípios processuais,
formulados a priori e como forma de apontar a ilegitimidae do Direito e das práticas,
quais sejam, o princípio da igualdade dos litigantes, da imparcialidade do julgador, da
transitoriedade do processo, da eficácia da série procedimental e da moralidade no
debate.
38. O garantismo processual argentino utiliza-se de uma distinção estrutural e
semântica entre regras e princípios.
39. Esta distinção estrutural entre regras e princípios assemelha-se à teoria de Robert
Alexy, defensor da tese da complementariedade.
40. Segundo o autor, os discursos sobre o direito lida com a correção de enunciados
normativos, os quais comportam enunciados axiológicos (que se referem a valores) e
deônticos (quando está em jogo uma proibição, uma permissão ou um mandamento).
Nesse sentido, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático. Este é um
conjunto de enunciados produzidos sobre o dever-ser (que liga-se a formas deônticas e a
valores, veja-se), abrangente de todo o universo da cultura e do agir humano. Enquanto
o discurso jurídico é um caso especial dele porque sofre limitações internas do sistema,
de fatores derivados da legalidade, da conformidade com o ordenamento e da eficácia
social com o direito positivo.
41. Ou seja, para Alexy, a conexão com a moral faz-se necessária para a
argumentação jurídica, pois esta alcança até onde não são possíveis outros argumentos
jurídicos, quando então, unem-se estes aos argumentos do discurso prático em geral.
Aqui, o discurso jurídico é penetrado pelos valores, pelo discurso moral.
42. Assim, o autor alemão produz uma teoria da fundamentação racional do
ordenamento jurídico com marco na razão prática entendida numa dimensão axiológica
e o discurso normativo passa a comportar um sentido deôntico e axiológico.
43. Nesse sentido, classifica a norma deontológica como a composta por regras e
princípios, e a norma axiológica, que comporta as regras de valoração e os critérios de
231
valoração (propriamente os valores). Afirma, então, que os princípios são normas
deônticas aplicados pela ponderação por meio de um juízo valorativo que será onde o
discurso prático ingressa no discurso jurídico.
44. Veja-se, então, que na teoria alexyana a distinção estrutural entre as normas de
direito fundamental, bipartida em regras e princípios, os princípios são normas porque
ambas dizem aquilo que deve ser.
45. Como mandados de otimização, os princípios determinam a realização de algo
na maior medida possível (satisfação principiológica em diferentes graus), desde que
respeitadas as possibilidades e os limites fáticos e jurídicos, limites jurídicos estes
impostos pela existência tanto de regras quanto de princípios opostos. E assim, o caráter
oposicional dos princípios implica na aplicação deles por meio da ponderação. Ou seja,
as colisões de princípios se dão no âmbito do peso, não no âmbito da validade.
46. Já as regras, mandados de definição, ou são ou não são aplicadas
(impossibilidade de satisfação em diferentes graus = tudo ou nada), e para tanto,
implicam na subsunção. Isto é, regras são normas que somente admitem cumprimento
ou descumprimento, ou seja, se a regra é válida há de ser atendida, nem mais, nem
menos494
. O conflito entre regras somente pode ser solucionada por uma cláusula de
exceção que excepciona a sua incidência em um caso específico, pois se isso não
acontecer uma delas terá que ser declarada inválida implicando na sua exclusão do
ordenamento jurídico.
47. Por sua vez, para Adolfo Alvarado Velloso, conceitua o princípio como um
simples ponto de parte que deve ser visto em função do que se pretende alcançar,
ostentando um caráter unitário. São diretrizes mais importantes do que as regras, sendo
estas diretrizes binárias ou antinômicas.
48. Então, note que na Teoria Alexyana a distinção também é feita a priori e em
abstrato, pois a norma é configurada antes da problematização de um caso concreto, seja
ele real ou fictício, sendo uma teoria semântica. Ambas são, reconheça-se, abordagens
qualitativas, isto é, superam a abordagem quantitativa que se baseia na generalidade
como critério adequado para tal distinção, o que, em realidade, é uma conseqüência da
natureza dos princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial.
49. Estas distinções recaem numa concepção axiologizante do Direito, porque para
se poder preferir um princípio a outro precisa-se admitir que isso somente seria
494
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 86-87.
232
permitido se os princípios fossem considerados como valores, como critica Habermas a
ponderação alexyana. Nesse sentido, para Habermas, as normas, como princípios ou
como regras, são enunciados deontológicos, isto é, visam ao que é devido. Já os valores
são enunciados teleológicos, de modo que objetivam o que é bom, melhor ou preferível,
sendo condicionados a uma determinada cultura. Foi-se, aliás, o que se viu na
argumentação alvaradiana a respeito do princípio da moralidade processual.
50. Não se está aqui a valorar se as concepções são boas ou não, até porque a ideia
do estudo não foi superar teorias extensas e tão bem dispostas. Jamais se poderia, aliás,
superar as compreensões intelectuais dos autores aqui estudados. O que se pretendeu,
até aqui, foi compreender suas diferenças e situá-las num contexto jurídico de maior
debate, apenas como tentativa de enriquecer o debate.
51. De toda maneira, um ponto forte do garantismo no combate ao ativismo são as
suas conclusões práticas acerca da igualdade jurídica, basilar de um Estado Democrático
de Direito. Ela possibilita que o debate no processo ocorra sem preferências nem
privilégios que beneficiem uma das partes em detrimento de seu oponenente, pois o
objeto do processo é o debate, imprescindível para um processo acusatório e
dispositivo. Com essas premissas, condenam a retirada do princípio da igualdade do
contexto jurídico que leva ao entendimento desse princípio confundindo-o com a
igualdade real implicando na degeneração do processo como garantia, como ocorreu no
direito processual social.
52. O princípio da imparcialidade é também relevante, pois ressalta que ele significa
várias coisas diferentes da falta de interesse que habitualmente se menciona com o fim
de definir o trabalho diário de um juiz. Designa, por exemplo, ausência de prejuízos de
todo tipo (particularmente raciais ou religiosos); independência a qualquer opinião e,
consequentemente, ter ouvidos surdos ante a sugestão ou persuasão da parte interessada
que possa influir em seu ânimo; não identificação com alguma ideologia determinada;
completa alteridade frente à possibilidade de dádiva ou suborno; e a influência da
amizade, do ódio, de um sentimento caridoso, da vadiagem, dos desejos de brilho
pessoal, de figuração periodística, etc., não envolvimento pessoal nem emocional no
ponto crucial do assunto litigioso; evitar toda participação na investigação dos fatos ou
na formação dos elementos de convicção; decidir de acordo com seu próprio
233
conhecimento pessoal no assunto; não a desvinculação fundamentada dos precedentes
judiciais495
.
53. Afinal, se cada juiz obedecesse suas próprias paixões, ao fim e ao cabo tudo
dependeria daquilo que esse “senhor dos sentidos” decidisse, e cada processo teria a sua
própria verdade que é a daquela que o julga.
54. E exatamente por essas considerações que a hermenêutica filosófica pode
agregar a este estudo. Afinal, como diz Lenio Streck, a tarefa primordial da
hermenêutica é provocar os pré-juízos.
55. A hermenêutica filosófica vem dizer que não há como assumir a “neutralidade”
do intérprete, pois é de sua concepção de justiça, entendida por Dworkin como “uma
questão que remete à melhor (ou mais correta) teoria do que é justo, moral ou
politicamente”496
que provém sua interpretação.
56. O que se está a levantar é que o posicionamento individual do julgador, sobre a
política, a religião, não importa ao seu julgamento no processo. Pois neste o que deve
prevalecer é o Direito e a sua história. E a forma de se controlar o que levou o
magistrado a tomar determinada decisão é a sua motivação, o viés argumentativo que
tomará.
57. A hermenêutica filosófica reconhece que o intérprete não pode estar fora da
tradição e a autoridade desta é que permitirá verificar a legitimidade dos preconceitos.
“Escutar a tradição e situar-se nela é o caminho para a verdade que se deve encontrar
nas ciências do espírito”497
como ensina Gadamer. Até porque, com Dworkin, a
tradição é incontrolável, “os intérpretes pensam no âmbito de uma tradição
interpretativa à qual não podem escapar totalmente”498
.
58. A decisão correta ou boa seria, então, aquela construída pelas partes que
compartilham suas razões e provas por meio do processo em contraditório e que deve
ser exigida dos juízes mesmo que não esteja garantido que chegarão a uma mesma
resposta boa ou correta, pois, do contrário, estar-se-ia a admitir qualquer concepção
individual.
59. Em síntese, como afirmou-se ao abordar a tese da separação entre direito e
moral: para pré-compreender, o intérprete já está na moralidade, pois está na história, na
495
VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 243. 496
Ibidem, p. 103. 497
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice. 2 ed. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2002, p. 53. 498
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2003, p. 36.
234
tradição, nos costumes e nas orientações sociais, políticas, filosóficas e jurídicas, de
maneira que a moral, assim, é condição de possibilidade da compreensão, havendo a
pertença e não a cisão. Mas note-se que a hermenêutica não significa o aprisionamento
ao passado, mas a reflexão sobre este. Os pré-conceitos serão colocados em teste,
podendo confirmar-se ou não499
.
60. A preocupação da hermenêutica, de Luigi Ferrajoli e de Adolfo Alvarado
Velloso, convenha-se, é com os decisionismos, se distanciam nos caminhos para
combatê-lo.
61. Pode-se dizer que as maiores contribuições do garantismo processual dizem
respeito ao combate ao ativismo e ao debate probatório na seara democrática que
circundam profundamente o debate em solo brasileiro, especialmente diante de
alterações legislativas que ainda sustenta boa dose inquisitivista.
62. O que se notou é que a cultura jurídica brasileira é ativista e inquisitivista, e isso
se faz até imperceptivelmente. Exatamente por este motivo a atuação do Poder
Judiciário aparece como tema cada vez mais em destaque.
63. No pós-Constituição de 1988, o magistrado pareceu declarar sua independência
ao Direito e aos fatos do caso em prol do que lhe parecesse mais conveniente. E
respaldada em valores como critérios para fundamentar as decisões acabou-se recaindo
numa postura ativista que ultrapassa limites estabelecidos na própria Constituição para
sua atuação. A doutrina aponta a importação equivocada da jurisprudência dos Valores
(que objetivava romper com o modelo jurídico vigente no nazismo para que se
legitimasse a tomada de decisões em respeito à Constituição outorgada em 1949 pelos
aliados) e a teoria de Robert Alexy como contribuidores para o estágio ativista da
jurisprudência brasileira.
64. Veja-se que há no Brasil notórios juristas que atrelam à ideia de ativismo apenas
a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e
fins constitucionais, como a maior interferência nos outros Poderes, mas sem recair em
criação do direito500
.
499
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da
decisão penal, op. cit., p. 73. 500
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In:
COUTINHO, Jacinto N. de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.)
Constituição e ativismo judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 279.
235
65. Mas deve-se entender ativismo judicial como uma indevida invasão tanto na
esfera legislativa quanto na Administração Pública, ou seja, em funções
constitucionalmente estabelecidas a outros Poderes.
66. Em nosso país, a doutrina da instrumentalidade do processo enxergou como
natural e positiva o ativismo judicial. Esta doutrina defende um tratamento publicista do
processo com foco na jurisdição enquanto instrumento do Estado para perseguir seus
objetivos501
. Para tanto, o problema da efetividade do processo é resolvida pela redução
das formalidades que teoricamente impedem a realização do direito material em conflito
por meio do princípio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação
da técnica processual, reconhecendo ao julgador a capacidade para adequá-lo às
especificidades da situação.
67. O problema é que sob essa concepção, o juiz pode afastar os princípios
constitucionais. O juiz, sob o pretexto de concretizar os direitos fundamentais, utiliza-se
de suas convicções pessoais, o que configura alto grau de voluntarismo e insegurança
jurídica, relegando à interpretação da dogmática jurídica verdadeira escolha casuística
pela consciência do julgador um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir
de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas
convicções pessoais de cada magistrado.
68. Veja-se: o juiz substitui argumentos de princípio, por argumentos de política, o
que traz inúmeros prejuízos para a democracia. Nesse tocante, a distinção entre
argumentos de política e argumentos de princípio em Dworkin é providencial nesse
tocante.
69. Para o jusfilósofo norte-americano, “os argumentos de política justificam uma
decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo
da comunidade como um todo”, já os “argumentos de princípio justificam uma decisão
política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de
um grupo”502
, ambos constituindo argumentos políticos num sentido mais amplo, mas
um é argumento de princípio político e outro de procedimento político (que exige que
alguma decisão particular promova alguma concepção do bem-estar geral ou do
interesse público)503
.
501
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. Ed. São Paulo? Editora
Malheiros, 2005, p. 51-67. 502
Idem. Levando os Direitos a Sério, op. cit., p. 129. 503
Idem. Uma questão de princípio, op. cit., p.6.
236
70. Assim, enquanto o princípio favorece um direito, a política é um padrão que
estabelece uma meta, sendo argumentos de política aqueles em favor de um objeto
coletivo, relacionado ao bem comum.
71. No processo legislativo, ambas as modalidades de argumentação são admitidas,
e a lei transforma os argumentos de política em uma questão de princípio, de maneira
que as decisões judiciais devem ser geradas por princípio e não por políticas.
72. Dworkin concebe seu juiz Hércules não como o juiz solipsista ou protagonista.
Recusando a discricionariedade “forte” atribuída aos juízes por Hart, o autor sustenta a
existência de “única resposta correta”, esta a ser produto do juiz Hércules que
compreende o Direito na sua totalidade (isto é, considera tanto a produção legislativa
quanto o que fizeram e fazem acertadamente os demais juízes) prestando contas ao
conjunto principiológico a partir da Constituição.
73. Essa é, aliás, uma das maiores objeções às suas considerações dworkinianas.
Afinal, se não é provável que uma resposta seja mais correta que a de outro juiz, é inútil
exigir a busca judicial por essa resposta, até porque, poder-se-ia argumentar, não há
mesmo como provar que seja a resposta correta.
74. Outrossim, se não há respostas corretas e o juiz decide decisionisticamente,
então não há porque apostar numa resposta correta sobre os direitos dos cidadãos, de
maneira que deve-se aceitar que os juízes frequentemente errarão.
75. Buscou-se a demonstração das concepções dworkianas, mas não se afastou de
certas críticas ao privilégio cognitivo do juiz Hércules dworkiano e à tese da única
resposta correta.
76. De toda forma, inegavelmente, o ativismo fragiliza a autonomia do direito e a
democracia. É sempre patológico. E é por isso que se precisou enfrentar o tema.
77. É que em 1988 o Brasil recebeu uma nova Constituição cujo texto está repleto
de direitos fundamentais e sociais. Ora, o modelo anterior, assentado em um
pensamento liberal-individualista, operava com conceitos oriundos das experiências da
formação do direito privado germânico e francês, desprovido de direitos de segunda e
terceira dimensões além da falta de uma teoria constitucional adequada às demandas do
novo paradigma jurídico.
78. Nesse sentido, os operadores do direito têm visto um Judiciário ativista que
pretende basear-se na concretização do texto constitucional justificando-se em eventuais
valores da sociedade e que seriam os consolidadores do paradigma do Estado
Democrático de Direito.
237
79. Sugerindo um modelo adequado a este paradigma, adveio o Novo Código de
Processo Civil que propõe o que designa como modelo cooperativo, o que mereceu
diversas considerações garantistas.
80. A produção de prova de ofício pelo juiz, por exemplo, é prontamente rechaçada
pelo garantismo processual. Afirmam que quando o juiz busca provas, já possui uma
hipótese pré-concebida, de modo que ao investigar, além de assumir tarefa que, no
processo, cabe às partes, viola sua imparcialidade por sucumbir aos seus prejuízos em
relação a elas.
81. É por essa conclusão que Adolfo Alvarado Velloso afirma que o juiz só produz
prova para condenar, já que de outra forma não faz sentido ordenar sua produção se com
a dúvida já seria possível afastar a hipótese afirmada pela parte que alega. E é também
por isso que o autor afirma que não é necessário conhecer a verdade do acontecido para
resolver o caso e muito menos deve buscá-la, posto que quando não chega a conhecê-la
conta com os critérios jurídicos (o princípio da inocência e o in dubio pro reo) que lhe
dão as armas necessárias para decidir.
82. De outro modo, buscou-se na hermenêutica explicar a condenação da prova
oficiosa. A viragem linguística proporciona afirmar que a verdade real é inatingível
porque insustentável filosoficamente: a verdade não advém nem das essências, nem de
um sujeito cognoscente privilegiado, pois com o giro linguístico na Filosofia, o
processo interpretativo não gera a descoberta do verdadeiro, do correto ou do unívoco.
Do processo interpretativo decorrerá a produção de um sentido pela compreensão do
sujeito em sua própria situação hermenêutica, de sua própria “bagagem”.
83. Essa conclusão parece erradicar a dicotomia da verdade em verdade real e
verdade formal.
84. Veja-se: enquanto nas ciências formais e nas ciências da natureza pretende-se a
objetividade dos fatos, sem interferência subjetiva ou valorativa por parte do sujeito que
observa, nas ciências do espírito (humanas ou da cultura), o sujeito, pela sua carga
subjetiva e valorativa, é inseparável do objeto que interpreta.
85. A contribuição hermenêutica é de fundamental importância a partir da ideia de
que a verdade, no campo jurídico, é uma verdade hermenêutica: interpretar não conduz
ao conhecimento de algo que pertence a um texto intrinsecamente, em essência, pois o
objeto, o texto, é relacional por constituir-se num jogo hermenêutico em que o intérprete
possui objetivos e propósitos com ele e por meio dele, e que este sujeito parte de suas
próprias pré-compreensões.
238
86. Mas veja-se que as considerações da hermenêutica filosófica foram colocadas
neste estudo para trazer o debate a discussões atuais. Não se pretendeu desconstruir as
propostas teóricas ou aprimorá-las, corrigi-las ou emendá-las, até porque a hermenêutica
separa-se do garantismo por não propor uma técnica, mas um processo de compreensão
que se dá no diálogo considerando a tradição que determina o sujeito, não sendo
possível manipular a linguagem, o que leva à provisoriedade das respostas no tempo.
87. Elas foram primordiais para introduzir a diferença entre neoconstitucionalismo e
pós-positivismo, que às vezes a doutrina os coloca como sinônimos, razão pela qual
abordou-se (i) a diferença entre texto e norma, (ii) a interpretação do direito como ato
revelador da vontade da lei ou do legislador (especialmente porque a doutrina garantista
consagra a aplicação do texto sem necessidade de interpretação), (iii) o processo
silogístico da sentença, e (iv) o dualismo entre questão de fato e questão de direito.
88. Isto exposto, situando a história do Brasil, o estudo conduz para a necessidade de
enfrentamento da visão liberal garantista. É que olhar o Estado Social sob as lentes do
modelo liberal quando a Constituição de 1988 aponta para a construção de um Estado
Social intervencional e pautado por políticas públicas consoante o próprio art.3º da carta
magna não parece “constitucional”.
89. Sustentar juízos de substancialidade da Cosntituição não se traduzem na defesa
de poderes instrutórios oficiosos em busca de uma verdade real, que, por inatingível, se
resumirá sempre em uma verdade imaginada pelo próprio intérprete.
90. Deve-se perceber que o princípio político fundamental que deve nortear todo
processo democrático é o de que todo cidadão tem o direito de ser julgado por um juiz
que não se envolva com a acusação, o que é a síntese do sistema acusatório. A
inquisição ficou para trás, como enfatiza Adolfo Alvarado Velloso em todas as suas
passagens.
91. O juiz, como necessidade democrática, tem que notar que não é mais aquela
figura que acusa, produz prova, julga e executa, porque o juiz democrático é o juiz que
decide.
92. É por isso também que se prega o cuidado com o “princípio do livre
convencimento motivado”. Se se aceitar que princípios são deontológicos, o livre
convencimento motivado não pode ser concebido como princípio, porque princípios não
são construções dogmáticas como coisas que se colocam no texto da lei para encaixar
práticas judiciais. Os princípios advém das práticas sociais, e no caso, da tradição
democrática.
239
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