PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
SÃO PAULO
PUC-SP
Ludmila de Almeida Castanheira
A performance como ação midiática: os (não) limites entre arte e
comunicação.
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2011
Ludmila de Almeida Castanheira
A performance como ação midiática: os (não) limites entre arte e
comunicação
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Comunicação e Semiótica sob a
orientação da Prof ª. Doutora Christine
Greiner.
SÃO PAULO
2011
Banca Examinadora
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A performance como ação midiática: os (não) limites entre arte e comunicação
Lu
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ila C
astanh
eira
Orientação: Christine Greiner
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2011
Programa de Estudos Pós- Graduados em Comunicação e Semiótica
Para Pagú e Cartola, companheiros silentes.
I
A meu pai, José Carlos, e à minha mãe, Rosilda,
por, desde sempre, fazerem de mim um bicho
inquieto.
À Tia Lu e à Tia Cláudia, por todo cuidado e mimo
de que os Castanheira são capazes. À Tia Célia,
por acompanhar tudo, mesmo de longe, e rezar
sempre.
Á Dona Nilva e a “Seu” Artêmio, por fazerem
muito mais do que lhes cabia.
À Alexandre Ficagna, pela grandeza de manter os
dois pés colados à terra e, ainda assim, respeitar
minha flanada.
Ao Guigo, Lorde Velho, com cuja sensibilidade e
sabedoria eu tenho me beneficiado. Por ser o maior
e mais teimoso coração que já encontrei.
Á Thái, por nunca se conformar com o que está
posto e, assim, me fazer repensar as coisas mais
simples.
Ao Banderas, meu “fiínho” por sua disponibilidade
infinita.
Ao Flávio, Padrinho, por me deixar olhar de perto,
mesmo correndo o risco de estragar tudo no
processo de dissecação. Pelas gargalhadas, e pelo
sotaque que carrega a brisa do mar de Alagoas.
Mais uma vez, a Guigo, Thái, Banderas e Flávio,
por serem os melhores companheiros de sandices
esdrúxulas. Sua amizade, discórdia e afeto fazem
dos Festivais de Apartamento, antes de tudo, as
noites mais divertidas e prazerosas.
A todos os performers que participaram dos
Festivais de Apartamento, e em especial àqueles
que, por algum motivo, não puderam estar
conosco. Aos anfitriões, que abriram suas casas
para o desconhecido.
Ao professor Renato Ferracini, por me iniciar no
mundo das incertezas.
Ao professor Cassiano Quillici, por me contar que
numa universidade assim, havia uma linha de
pesquisa assim, com uma professora assim,
justinho com o meu projeto.
Á Cassi (minha Cassilda) pelas muitas portas
abertas, mas, mais ainda, por falar e permitir que
eu me ouça em suas palavras. Por ser tão
sinceramente Capricorniana.
À Dani, pelos socorros.
Ao Rafa Curci, pela paternidade postiça, mas não
menos adorável.
Ao Patrick, o puto semiótico, e ao Bu, que é lindo.
Ambos, também, pelos cabeções fofos que são.
02
II
Ao João de Ricardo, pela loucura potente.
A Rogério Lopes, pelo exercício da leveza.
A Rodrigo Scalari, pela partilha.
Ao Du, pelas diversas acolhidas na selva de
pedras.
Ao Sechi e ao Thiago, por terem começado.
À Amanda, Raquel, Mônica, Andréia, Marcinha e
Manoelle, minhas colegas de Departamento. Pelos
almoços, cafés, cigarros e sobremesas sempre
reconfortantes.
À Helena Katz, por ser um delicado e generoso
detonador de idéias, e à Wânia Storolli, pela
leitura atenta.
À minha orientadora, Christine Greiner, pela
dedicação, discussões, e perguntas que me fizeram
chegar a associações que eu não faria sozinha.
À Cida, pela paciência.
A Marcos Gallon, pela entrevista cedida.
Ao CNPq, por possibilitar a realização dessa
pesquisa.
III
Índice
Índice ....................................................................IV
Resumo ..................................................................V
Abstract ................................................................VI
Breve nota sobre a organização da dissertação....VII
Introdução..............................................................01
1.Festivais de Apartamento.................................. 05
I Festival de Apartamento Sechiisland .................08
II Festival de Apartamento Sechiisland ................10
III Festival de Apartamento Península Dran ........11
IV Festival de Apartamento Sechiisland (em
Campinas) .............................................................12
V Festival de Apartamento São Paulo/ Ipiranga...15
VI Festival de Apartamento Barão Geraldo/
Campinas ..............................................................18
VII Festival de Apartamento São José do Rio
Preto.......................................................................20
2.Estranho, um cara comum .................................23
2.1 Trajetória ........................................................25
2.2 Estranhas ações ...............................................27
2.3 A performance como ação midiática ..............30
Conclusão .............................................................33
Bibliografia ...........................................................36
Anexo I : Entrevista com Marcos Gallon..............40
Anexo II: Entrevista com Marina Abramovic
...............................................................................43
Anexo III : Marina em outros cadernos ...............52
Anexo IV: Relato do performer Flávio Rabelo,
durante uma das ações “Estranho, um cara
comum...................................................................58
Anexo V: Plantas com descrições de algumas ações
dos Festivais de Apartamento ...............................69
IV
Resumo
Resumo: O objetivo desta dissertação de mestrado
é analisar a relação cada vez mais estreita entre a
chamada performance art e os fenômenos
comunicacionais. Em alguns exemplos que fazem
parte do corpus da pesquisa – como o Festival de
Apartamento e a série "Estranho, um cara comum",
de Flavio Rabelo –, as clássicas dicotomias entre
artista e público, obra de arte e fato cotidiano
parecem cada vez mais hibridadas. Tendo em vista
a natureza muitas vezes inclassificável destas
manifestações, a sua presença no jornalismo
cultural é praticamente inexistente, assim como nos
editais de fomento à arte. Neste sentido, identifica-
se um outro tipo de fenômeno, diferente da clássica
definição de performance que a identificava como
um exemplo de hibridação entre diversas
linguagens artísticas. A hipótese desta pesquisa é a
de que a performance aproxima os campos da arte e
da comunicação, de modo a questionar os limites
entre estas duas áreas de conhecimento. Como
grade teórica, foram estudados autores como
Boaventura de Souza Santos (2008), Giorgio
Agamben (2009), Katz e Greiner (2005; 2010),
Schechner (1970), Cohen (2002; 2004) e Thompson
(2008). A metodologia consiste em uma pesquisa
bibliográfica e na análise dos exemplos que
constituem o corpus da pesquisa. O resultado
esperado é uma modesta colaboração com uma
ampla discussão teórica que vem sendo
amadurecida desde os anos 1970 em países como
os Estados Unidos e a Alemanha, mas ainda se
mostra bastante insuficiente no mercado editorial
brasileiro.
Palavras-chave: jornalismo cultural, curadoria,
performance, comunicação.
V
Abstract
Abstract: The objective of this master‟s
dissertation is to analyze the narrower and narrower
relation between the so-called performance art and
the communicational phenomena. In some
examples which are part of the corpus of this study
– such as the Apartment Festival and the series
“Estranho, um cara comum”, from Flávio Rabelo –
the classic dichotomies between the artist and the
public, object of art and daily fact appear more and
more hybridized. Considering the nature often
unclassifiable of these manifestations, their
presence on the cultural journalism is practically
inexistent, as well as in the edicts to stimulate art.
In this way, another type of hybridization is
identified, different from the classic definition of
performance which identified it as an example of
miscegenation among different artistic languages.
The hypothesis of the study is that the performance
crosses the areas of art and communication in such
a way as to question the limits between these two
areas of knowledge. For the theoretical grid authors
such as Boaventura de Souza Santos (2008),
Giorgio Agamben (2009), Katz e Greiner (2005;
2010), Schechner (1970), Cohen (2002; 2004) and
Thompson (2008) were studied. The methodology
is supported on the bibliographical research and on
the analysis of the examples mentioned above. The
expected result is a modest collaboration to the
theoretical discussion which has been maturing
since the 70s in countries such as the United States
and Germany, but is still incipient among us
Brazilians.
Key Words: cultural journalism, curatorship,
performance art, communication.
VI
Breve nota
sobre a
organizaçã
o da
dissertação
Em Maio de 2010, cumpri o meu exame de
qualificação no Programa de Estudos Pós-
Graduados em Comunicação e Semiótica. Foi um
presente generoso dado a mim pelas professoras
Wania Storolli e Helena Katz, com o qual
contribuiu de maneira não menos generosa minha
orientadora, Christine Greiner.
Entre muitas sugestões valiosas, uma delas tornou-
se tão instigante quanto aterradora: Helena Katz,
com a meiguice e sabedoria que lhe são próprias,
tratou de promover uma implosão das minhas
crenças acadêmicas de então.
A professora sugeriu a criação de uma escrita que
permitisse ao leitor experienciar, de alguma
maneira,uma imersão nas idéias que venho
discutindo. Uma forma mais afim à arte de
apresentar o conteúdo da dissertação. Eu não tinha
a menor idéia de como fazê-lo, mas decidi aceitar a
proposta instigante.
Depois de buscar por teses e dissertações com
maneiras próprias de apresentação, pedi ao
professor Amálio Pinheiro – a quem agradeço pela
abertura e confiança – que me permitisse realizar a
conclusão de sua disciplina (“Fundamentos da
comunicação: teorias culturalistas da
comunicação”) num formato-teste para a
dissertação.
A mobilidade de escrita e leitura, oferecida por
caixas de texto ao invés de notas de rodapé, foi uma
tentativa de contemplar os vaivens dessa pesquisa.
Os tópicos numerados abaixo são os bastidores da
escrita e a explicação para algumas escolhas de
diagramação.
1. As páginas estarão, quase sempre, dispostas
horizontalmente e o texto ocupa duas colunas com
um espaço entre elas a ser preenchido, quando
necessário, com caixas de texto.
2. As caixas de texto, sempre conectadas a
uma palavra, geralmente vêm complementar algo
que se tenha mencionado no corpo do texto, ou
oferecer links onde se buscar mais informações
sobre a palavra destacada em negrito. São como
notas de rodapé, com a diferença de estarem, quase
sempre, na mesma altura do texto. Por isso, trazem
a possibilidade de serem consultadas de modo
concomitante, além de provocar um exercício de
VII
leitura diferenciado, que insiste na simultaneidade e
efetiva as conexões.
3. A divisão dos capítulos está marcada por
faixas coloridas com o título de cada um.
4. As páginas dobradas são plantas baixas, nas
quais estão relatadas algumas ações das sete
edições dos Festivais de Apartamento.
VIII
Introdução
O tema desta pesquisa é a performance tratada
como meio de comunicação. Partimos da
constatação de que determinados circuitos artísticos
precisam se valer de algumas brechas
(comunicacionais, mercadológicas e curatoriais)
que coexistem com um modo de organização
hegemônico para se sustentar. Neste exercício, estes
circuitos acabam por estabelecer, eles mesmos, os
canais necessários à sua fruição
Este comportamento nas artes, além de implicar em
conseqüências políticas, parece dividir, senão
deslocar, a importância da obra de seu resultado
para o percurso, troca e alterações às quais está
sujeita em sua veiculação no meio.
As manifestações que realizam seus próprios canais
de veiculação e sustentabilidade não são sempre
artísticas. Desde já, é preciso esclarecer que nosso
discurso se firma na delimitação de
performatividade que, a nosso ver, apresentam
este caráter e, algumas vezes, escapam do campo
artístico.
O conjunto de práticas compreendidas como artes
presenciais (e que aqui estamos considerando
dança, performance e teatro) têm a propriedade de
acontecer em negociação com público, havendo
maior ou menor abertura para sua entrada. Porém,
por menor que sejam as separações entre obra e
público, não se pode repeti-la sem que sem que haja
modificações.
Ao menos nas primeiras experiências da
performance, o apelo e destaque ao “irrepetível”,
entre outras propostas de experimentação,
buscavam compreendê-la como acontecimento:
ação que faz algo (materiais, tempo, espaço,
público, performer) passar de um estado (material,
de humor) a outro.
Neste viés, a performance se apropriou das várias
contribuições das vanguardas, bem como retomou
antigos rituais. As informações advindas da própria
arte, do cotidiano e da biografia do artista foram
processadas e assim traçou-se o que viria a ser,
ainda hoje, uma arte em construção.
Esta disposição provocou mudanças nos parâmetros
comumente utilizados para situar e caracterizar a
arte: o modo de fazer, os locais de sua realização, a
mensura do valor da obra, não são realizados a a n
oção
de ação
perfo
rmativ
a é mais am
pla q
ue a d
e perfo
rman
ce artística: todo
s nó
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os m
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iana, relig
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siste em g
rand
e parte em
rotin
as, háb
itos e ritu
alizações e d
e recom
bin
ação d
e
com
po
rtamen
tos p
reviam
ente ex
ercido
s (Sh
echn
er, sem an
o, sem
pág
ina).
Em distintas bibliografias, situa-se o
happening (acontecimento) em oposição à
performance, sendo o primeiro uma versão
menos elaborada ou mais espontânea da
segunda. O happening, para alguns autores,
teria sido a forma de experimentação que,
decantada, daria lugar à performance,
resultado da maturação da obra e do artista.
Thaíse Nardim, em “Allan Kaprow,
performance e colaboração: estratégias para
abraçar a vida como potência
criativa”(2009), oferece uma interessante
visão sobre o happening como forma
artística autônoma e organizada.
o performer é um operador de
transformações entre inumeráveis códigos
móveis e um conjunto de mensagens
compostas por signos móveis baseados
nestes paradigmas. A atividade de artistas da
performance resulta, conseqüentemente,
numa verdadeira catálise de elementos, numa
transformação de códigos lábeis em
mensagens lábeis (GLUSBERG, 2003, p.78).
Ver anexo I, entrevista com Marcos Gallon, curador da Galeria
Vermelho, a primeira galeria brasileira com um espaço dedicado à
performance art.
01
contento senão caso a caso, de maneira relativa.
São vários os aspectos que contribuem para a
“indisciplinaridade” da performance no sentido
da ampliação das zonas de contágio. Dentre eles, o
fato de ela ser uma arte prioritariamente corporal.
E neste ponto, é necessário dizer com que
entendimento de corpo esta pesquisa lida.
A teoria corpomídia de Katz e Greiner (2003, 2004,
2005) traz uma importante contribuição para o
nosso enfoque da performance como meio de
comunicação. Já em seu título, há uma discussão
acerca da diferença entre as mídias comuns
(digitais, impressas, televisivas) para a mídia corpo.
Ao invés de grafar-se corpo e mídia de maneira
separada, a opção por dizer corpomídia numa só
palavra ressalta, justamente, que o corpo não é
mídia do mesmo modo que as mídias comuns. As
mídias comuns não se alteram devido à informação
processada aí (uma TV não muda de estado de
acordo com o teor da notícia), enquanto o corpo é
mídia pela possibilidade de trazer em si as
alterações produzidas (e que produz) pelo (no) meio
onde se insere.
Por esta razão, ao tratarmos a performance como
meio de comunicação, nos parece pertinente fazê-lo
em duas esferas: uma do âmbito do registro e
divulgação das ações performativas em questão, e
outra que diz respeito ao caráter comunicativo do
corpo nas performances selecionadas.
A abordagem do objeto artístico como transitório e
da arte como não tendo mais o local de sua
concretização, entra em acordo com uma concepção
de corpo também sem delimitações precisas. Um
corpo que circula entre situações de representação
artística (teatral, de dança) ao mesmo tempo em que
reinventa ações que compreendemos como
cotidianas, esmaece estes limites sem se apoiar
inteiramente de todo em nenhum dos aparatos.
Ainda assim, talvez como uma tentativa de
oferecer modos mais pragmáticos de lidar com a
arte, observa-se um determinado modo de fazê-la,
apreciá-la e difundi-la. Mesmo entre artistas,
elegem-se obras que são de "bom tom" prestigiar.
Este procedimento resvala, muitas vezes, também
para a imprensa na hora de optar pelos eventos que
"vale a pena" cobrir e criticar.
Como detectou Muniz Sodré em Antropológica do Espelho (2002),
quando a estratégia de pesquisa é da ordem da radicalidade do trans
(referindo-se às famosas redes transdisciplinares), acaba virando
“indisciplinar”. Um campo que é “propriamente um atrator ou
„buraco negro‟ para onde se projetam as substâncias originais da
História” (GREINER, 2005, p. 11).
qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a
remanejar (ou espremer para extrair a substância) a noção de
performance, encontraremos sempre aí um elemento irredutível,
a idéia de presença de um corpo. Recorrer à noção de
performance implica então a necessidade de reintroduzir a
consideração do corpo no estudo da obra. Ora, o corpo (que
existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao ser
físico) é da ordem do indizivelmente pessoal. A noção de
performance (quando os elementos se cristalizam em torno da
lembrança de uma presença) perde toda pertinência desde que a
façamos abarcar outra coisa que não o comprometimento
empírico, agora e neste momento, da integridade de um ser
particular numa situação dada (ZUMTHOR, 2000, pp.45-46).
O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente
passa, pois toda informação que chega entra em negociação com
as que já estão. O corpo é um resultado desses cruzamentos, e
não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com
essa noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não
com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A
mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo
evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o
corpo. A informação se transmite em processo de contaminação
(GREINER, 2005, p.131)
02
Nossa motivação ao realizar esta pesquisa é
destacar na pretensão de um modelo central e
totalizador, que conta com diversos canais de
manutenção, sua ineficácia em alcançar a
homogeneidade. Pretendemos sublinhar uma visão
que supõe outras formas de fruição da arte e do
pensamento crítico.
No interior de um sistema baseado em resoluções
que lidam com a arte de maneira pragmática,
“otimizada”, com características mais próximas de
um modelo industrial que artístico, surgem ações
que o desestabilizam sem afrontá-lo. Elas coabitam
com ele e dispensam o aval de "autoridades" da
cultura para validar a sua existência. Há iniciativas
em diversos lugares do mundo, burlando o
estabelecido. Estas iniciativas não buscam apoio ou
retorno financeiro de forma direta, apresentando-se
como contrárias à maioria das motivações que, num
regime capitalista, vem se tornando cada vez mais
naturais.
A fim de estabelecer um recorte condizente com a
dimensão de uma pesquisa de mestrado, optei por
estudar alguns trabalhos de Flávio Rabelo, por
identificar na série “Estranho, um cara comum”, um
exemplo deste tipo de organização não
institucionalizada. Nesta série, o performer instala-
se sob marquises de igrejas geralmente habitadas
por moradores de rua, denominando a si e a eles
como "estranhos". Através de um jogo de
perguntas e respostas (não necessariamente verbais)
travado com os moradores, o artista propõe
algumas inversões acerca dos elementos que os
separam de nós, ditos cidadãos comuns.
Outro exemplo analisado é o dos Festivais de
Apartamento, que ilustra o deslocamento de
algumas manifestações do campo das artes para o
campo comunicacional. Estes são exemplos de
performances que se organizam principalmente
através da internet. Sua premissa é realizar-se nas
casas de artistas que estejam dispostos a abrigá-los,
e acontecem sem que haja curadoria: a seleção dos
trabalhos é feita segundo a ordem de inscritos e de
acordo com o número de trabalhos comportados
pelo local de sua realização.
Os exemplos acima mencionados são amostras de
um comportamento que não deve ser classificado
Eugênio Bucci, em “A imprensa e o dever de
liberdade (2009) alerta para o modo
amalgamado como se dão o jornalismo e a
indústria do entretenimento. O jornalista
aponta ainda as consequências dessa amálgama
para a liberdade de cobertura dos eventos
culturais. Este é um ponto a que retornaremos.
03
exclusivamente com ações da performance (o
gênero artístico), mas como agenciadores de novas
redes dentro da rede mercado/arte/mídia,
congregando artistas e público das mais diversas
formações e objetivos, conectados, entretanto, por
algum propósito momentâneo, quase sempre
gerador de uma experiência de pico, onde o
controle sobre a vida se suspende por alguns
momentos.
Este tipo de rede acaba por configurar-se como um
modo de resistência possível numa época em que o
poder continua se instaurando de maneira imperial.
As redes de artistas, utilizadas com este objetivo,
configuram-se como importante agente na
formulação de um contexto pluralista.
A idéia de criar uma zona autônoma em que se
suspenda, mesmo que momentaneamente, o controle
sobre a vida, que fuja à égide do biopoder é uma
forma de resistência que tem sido largamente
utilizada. A desordem não prevista, a indisciplina
dos corpos, abala as estruturas da sociedade de
controle. „Os corpos estão se tornando por demais
indisciplinados‟, anota George Monbiot. A
oposição, tal como proposta, exige uma renovação
constante de táticas e ações já que o capitalismo
atual apresenta, como uma de suas características
mais latente, a capacidade de incorporação de suas
partes dissidentes (OLIVEIRA, 2007, p.34).
No Império já não existe mais lado de fora, o globo
foi subsumido em sua lógica. O poder imperial é
distribuído em redes, por meio de mecanismos
móveis e articulados de controle. O biopoder
descreve aspectos centrais do conceito de Império.
Caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de
fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem
limites. O Império difere do imperialismo que
exercia o domínio sobre o território, sobre suas
riquezas e sua administração a partir de um centro
territorial de poder. O Império constitui-se não com
base na força e sim na sua capacidade de mostrar a
força como algo a serviço do direito e da paz. O
objeto do seu governo é a vida social como um
todo, e assim o Império se apresenta como forma
paradigmática de biopoder (Ibid., p.46)
04
1. Festivais
de
Apartament
o
Os Festivais de Apartamento são uma apropriação
dos Apartament Festivals: eventos que tiveram sua
maior expressão na década de 80, quando foram
criados. Eles se estenderam até 1995, acontecendo
periodicamente em cidades do Canadá, Estados
Unidos, Alemanha, Inglaterra, Itália, França e
Holanda.
Idealizados pelos neoístas, os Apartment Festivals
eram reuniões feitas nas residências dos artistas
envolvidos, ou em prédios barbaramente tomados e
ocupados por vários dias, à revelia dos síndicos ou
moradores. Mais de uma vez, os neoístas foram
removidos apenas mediante a ação da polícia.
Estas reuniões transitavam entre festas e pequenas
mostras de trabalhos então mal vistos pelos órgãos
de arte considerados “sérios”. Entre outras
proposições que iam de anárquicas a bem-
humoradas ou infantis, os neoístas, eram
simpatizantes do plágio criativo, e foi nesse sentido
que, em 2008, um grupo de artistas do interior do
estado de São Paulo decidiu retomar algumas de
suas idéias. A retomada não poderia ser literal, uma
vez que a situação no Brasil hoje é diferente da
norte-americana e européia na da década de 80.
Os neoístas sustentavam uma imagem “sem
regras”, o que dificultava sua entrada em
determinados circuitos. Sua arte era vista como
pouco séria, ou ainda, como uma maneira de
ironizar a produção então vigente.
Os Festivais de Apartamento, como recriados em
2008, lidam com uma situação outra: em nosso
tempo existem os circuitos de arte que admitem,
por exemplo, performances irônicas, ou de cunho
denunciador. Há, inclusive, os lugares em que elas
são bem-vindas. Porém, através de diversos
mecanismos – entre os quais, curadorias e
coberturas jornalísticas duvidosas – também estes
circuitos estabeleceram os seus favoritos e os
modelos que um artista deve seguir para estar entre
eles. Perseguir estes modelos ou mesmo alcançá-
los, quase sempre, inclui o esvaziamento do
discurso do artista.
Não estamos afirmando que toda eleição curatorial
ou divulgação jornalísticas seja nociva à arte, nem
descreditando os profissionais destas áreas
indiscriminadamente. Compreendemos as
Movimento artístico nebuloso quanto aos seus propósitos e
do qual quase não se têm registros. Algumas informações
podem ser encontradas no livro “Assalto à Cultura: utopia,
subversão e guerrilha na (anti) arte do século XX” (Conrad
Editora, 1999), de Stewart Home, sob a perspectiva do
autor, que se inclui e satiriza o grupo.
05
diferenças e especificidades entre estas profissões.
A confluência entre elas está no fato de ambas
terem a possibilidade de escolher a que trabalhos
dar visibilidade, e este é um ponto crítico.
Os critérios de eleição de uma e de outra se dão,
comumente, por análises exteriores à obra ou
mesmo pela ausência de análise. Alguns
profissionais pautam-se no retorno imediato que
promover determinadas obras pode render a si ou
aos órgãos a que estão vinculados, ou, ainda, nos
afetos (positivos ou não) criados com os artistas,
obras ou discursos.
Por motivos que serão melhor explicados adiante, a
divulgação dos Festivais de Apartamento, embora
se dê prioritariamente através da internet, tem a
preocupação de se restringir a canais específicos.
Como mencionamos anteriormente, não há
curadoria em suas edições, o que contribui para que
tenhamos artistas das mais diversas formações,
incluindo aqueles que estão fazendo suas primeiras
incursões no campo da performance.
Na maioria dos editais, é pouco comum que artistas
iniciantes sejam admitidos: para receber apoio, é
preciso que o artista disponha de documentação de
seus trabalhos para certificar que os concretizou
outras vezes. Como os festivais não contam com
apoio financeiro, admitir artistas jovens ou
experientes não é uma premissa.
Os neoístas se mantiveram enquanto grupo, com
pouquíssimas alterações entre seus integrantes, e os
Apartment Festivals eram encontros deste grupo de
artistas, onde aconteciam as mostras de trabalhos.
Eles não estavam interessados em tecer redes para
que outros artistas se juntassem a eles.
Embora os Festivais de Apartamento tenham sido
retomados também a partir de um grupo de artistas,
eles estiveram, desde o início, interessados em
relacionar-se com outros artistas. Este é um fator
que delineia nossa postura enquanto artistas e
organizadores do evento.
Os encontros, realizados no estado de São Paulo,
faz seus acordos e comunicados, em sua maior
parte, através da internet. Muitos dos participantes
não nos conhecem (não há uma marca ou logotipo
fiador de nossa respeitabilidade), e se deslocam até
os festivais com seus próprios recursos.
Os jornalistas não buscam informações quando querem, mas
fazem parte do cronograma da indústria. Eles é que se
subordinam aos horários da indústria.
Quando vieram as fusões entre empresas de entretenimento e
empresas jornalísticas, essas relações promíscuas adquiriram um
significado material muito mais sólido. A maneira como o
marketing dos estúdios absorveu e incluiu em sua agenda
própria a agenda do jornalismo – ou, em outras palavras, o modo
pelo qual o marketing deixou de ser um objeto a mais no campo
abrangido pelo jornalismo e se transformou no campo dentro do
qual o jornalismo se insere.. o que se verifica não é o capital do
jornalismo englobando o capital do entretenimento, mas
exatamente o contrário. Há muito tempo a indústria do
entretenimento sabe que seus negócios não acabam onde começa
a imprensa, mas prosseguem para dentro dela, atravessam-na e
se realizam mais adiante, para além do jornalismo. Há, assim,
uma analogia entre o fluxo dessas velhas influências do
marketing sobre a imprensa e o fluxo dos capitais que se fundem
(BUCCI, 2009, pp. 38-39).
06
É natural que possa haver, entre os inscritos,
dúvidas quanto à realização do evento até que
esteja, de fato, acontecendo. Por esse motivo, assim
como os Apartment Festivals, as edições que
organizamos são numeradas: para que se explicite a
continuidade delas. Com isso, esperamos reforçar a
lógica tácita de que se houveram algumas edições
anteriores, aquela para que estamos abrindo
inscrições também se realizará. Em corroboração,
mantemos um cuidadoso registro com fotos, vídeos
e descrições das ações no blog do festival.
Embora posta em prática de modo bem menos
ousado (nós pedimos permissão, saímos no dia
seguinte pela manhã, e nos responsabilizamos em
devolver a residência tal como conhecida antes de
sediar um festival), a principal idéia neoísta
revisitada por nós é a de realizar ações artísticas
sem, necessariamente, estarmos amparados por
espaços que se consagraram como adequados à
arte (galerias, teatros, museus, etc.).
Não se trata de estar “contra” estes espaços ou de
querer superá-los, mas de abrir uma nova
possibilidade. Tudo começa pela falta de espaço:
antes de retomar os festivais, estávamos, de certo
modo, impedidos de trazer a público os trabalhos
que nos são caros. Até este momento, realizaram-se
sete edições do evento, e elas têm acontecido, em
média, a cada seis meses. Nossa proposta é realizá-
las a cada vez que um artista disponibiliza sua casa
para recebê-las. Por isso, o evento adquiriu caráter
itinerante, passando pelas cidades de Rio Claro
(2008), Campinas (2008, 2009), São Paulo (2009) e
São José do Rio Preto (2010).
Faremos novamente a trilha de cada uma de suas
edições, possivelmente aos saltos. Segui-la dessa
forma parece ser o modo mais honesto de traduzir o
que tem sido estas reuniões em seu característico
inacabamento.
Não vamos nos ater a definir o “lugar” da arte. O limiar entre o
público e o privado abrigou manifestações artísticas das mais
diversas, da Commedia dell´Arte, aos saraus do século XIX. A
menção às galerias, teatros e museus se faz apenas a título da
nuvem de especificidades que estes espaços trazem em torno de
si. Expor/apresentar-se neles significa ter passado por uma série
de procedimentos institucionais que, se não elaborados de
maneira idônea, redundam na manutenção de alguns modelos e,
conseqüentemente, inviabilizam a existência de outros.
07
I Festival
de
Apartament
o
Sechiisland
Em 2003, os artistas José Roberto Sechi e Thiago
Buoro criaram um nome pra servir como um
cabide. Eles e os artistas amigos que,
eventualmente, precisassem de um (para participar
de eventos artísticos, por exemplo), ou que
estivessem se reunindo ocasionalmente, podiam se
“dependurar” sobre o nome AcompanhiA.
AcompanhiA, no sentido de não-companhia
teatral, já que o teatro (e principalmente o teatro
local) trazia em si uma série de convenções que não
lhes interessavam. Servindo aos seus propósitos, o
AcompanhiA, abrigou diversas formações até o que
viria a ser o I Festival de Apartamento, assim
batizado posteriormente.
Era uma noite na qual a Sechiisland, a casa do
Sechi, seria ocupada com duas ações coligadas,
uma dele e outra de Rodrigo Emanoel Fernandes.
E, uma vez que a casa estivesse aberta e houvesse
público, também estavam convidados os amigos
com trabalhos a mostrar. A divulgação não foi
extensa, pois havia entre os conhecidos o hábito de
freqüentar a Sechiisland, ao menos nos dias de
inauguração das micro-exposições. Havia, desde
então uma lista de endereços eletrônicos, para onde
o convite foi enviado, sugerindo, como entrada,
uma garrafa de vinho que seria “bem-vinda, mas
não obrigatória”.
Da parte dos idealizadores dessa noite, a seqüência
em que as duas ações aconteceriam foi estabelecida,
antes de qualquer outro motivo, pelo desejo de
fazer com que o público (então formado por
freqüentadores da casa e, portanto, familiarizado
com ela) se deslocasse pelos cômodos numa
trajetória diferente da habitual.
O marco destas ações estaria no modo como
aconteceram mais do que nas proposições artísticas,
preponderância ou na filiação estética dos artistas:
elas se deram em festa, com suas propriedades
típicas (bebida, música, dança, encontro). Cada
ação, diluindo-se em maior ou menor grau, por
vezes, comportou-se como mais um evento próprio
da festa.
O nivelamento entre ação artística e festa cria certa
indistinção entre os atuantes e os demais
participantes. Esta característica acentuou-se
conforme as edições do festival, num nível tal que
A idéia e primeira
apresentação do AcompanhiA
foi em 2003. A princípio nos
inspiramos num grupo alemão
da rede de arte postal chamado
"No-Institut", então veio a
idéia de um grupo que não
fosse um grupo ou que negasse
a condição de grupo, uma
companhia negada pelo prefixo
A (Sechi, por e-mail, em 23 de
setembro de 2010).
O artista José Roberto Sechi converteu sua casa em um ponto
nodal de uma rede de artistas postais. Da Sechiisland – a Ilha
de Sechi, com a população de um só homem, conforme
declarado pelo artista –, chegam e partem correspondências de
todo o globo, contendo os mais diversos materiais. Atualmente,
a casa abriga também uma biblioteca formada por catálogos,
programas e livros de artistas, além de funcionar como espaço
de pequenas exposições, a Sechiisland´s Micro Galery.
Meio bastante utilizado pelos artistas postais,
estas edições são feitas artesanalmente com
materiais diversos, e contêm desde poemas
visuais a cópias reprográficas de retratos.
Também podem ser construídos sobre edições
industrializadas, através de interferências ou
aproveitando seu encadernamento.
Arte Postal existe
enquanto o objeto está
se movendo de um
ponto a outro. Pelos
correios, artistas
enviam e recebem
envelopes
customizados com
selos próprios. No
Brasil, Paulo Bruscky
foi um dos primeiros
artistas a participar
desta rede ainda ativa.
08
tornou-se bastante comum uma ação adquirir
contornos diferentes daqueles imaginados pelo
performer a partir da intervenção do público.
Uma importante conseqüência desta noite foi a
criação de um endereço on-line onde foram
dispostas as imagens (em fotografia e vídeo) do que
aconteceu: as motivações não eram outras além de
estarmos instigados pelo evento, pelas
possibilidades abertas por ele e por haver muito de
Narciso em nós. O blog ficou a cargo de Rodrigo,
que, entre nós, tinha maior habilidade com as
ferramentas da internet, e levou o nome do grupo
AcompanhiA. Pela vontade de que existissem
outros, o evento foi nomeado I Festival de
Apartamento Sechiisland (21/06/2007).
Tornando o Eu o alvo de todos os
investimentos, o narcisismo se dedica a
ajustar a personalidade à atomização
sorrateira engendrada pelos sistemas
personalizados. Para que o deserto seja
viável, o Eu deve se tornar a preocupação
central: a relação está destruída, mas pouco
importa, já que o indivíduo está apto a se
absorver em si mesmo. Assim, o
narcisismo, em uma circularidade perfeita,
adapta o Eu ao mundo que o gerou. O
adestramento social não se efetua mais pelo
constrangimento disciplinar e nem pela
sublimação, mas, sim, pela auto-sedução
(LIPOVETSKY, 2005. p.37).
09
II Festival
de
Apartament
o
Sechiisland
O blog criado para ser uma plataforma de registro
das ações que aconteceram no I Festival de
Apartamento, passou a desempenhar também o
papel de divulgação. A partir de sua inauguração, a
cada vez que uma edição se projetava, fazíamos um
post com o título de “Chamada/convocatória”, com
a intenção de atrair artistas e público.
Assim, o Festival de Apartamento sofreu uma fusão
com os meios comunicacionais: além de ser um
espaço efetivo de apresentações de trabalhos cuja
aceitação é restrita, o evento admitiu uma função
anterior de informar aos interessados sobre cada
nova edição. Algo como um expediente com data,
local e especificidades da mostra.
O blog atinge aos interesses não só dos performers,
mas do público, e em mais de uma vez, teve seu
post copiado para a agenda de outros canais
relativos à performance, constituindo-se num claro
exemplo de manifestação artística que subsiste a
partir da criação de seus próprios meios.
Sob influencia dos resultados positivos do primeiro
festival, organizou-se uma segunda noite festiva. A
Sechiisland receberia duas artistas que, de férias no
Brasil, decidiram conhecê-la.
A chilena Viviandran, a argentina Valéria
Coitamich haviam conhecido Sechi durante a
Bienal Deformes.
A presença das duas artistas, aliada à empolgação
diletante causada pelo evento anterior, nos motivou
a por em andamento o II Festival de Apartamento
Sechiisland (09/02/2008), utilizando mais uma vez
o espaço da micro-galeria.
A Bienal Internacional de Performance Deformes
acontece no Chile, sempre em outubro, e congrega artistas
e pesquisadores de áreas como filosofia, sociologia,
arquitetura. O evento está em sua terceira edição. Mais
informações em: http://bienaldeformes.blogspot.com.
10
III Festival
de
Apartament
o Península
Dran
A performer Viviandran, após ter participado da
segunda edição dos festivais, teve a iniciativa de
realizar, em sua casa, no Chile, o III Festival de
Apartamento Península Dran (10/06/2008). Esta foi
a primeira vez que o sufixo que comumente
acompanhava o título “Festival de Apartamento”
teve alterações. O motivo dessa mudança refletia
algumas diferenças de concepções entre nós a
artista que agora sediava o evento.
Viviandran defendia a idéia de que os festivais
tivessem, de algum modo, a assinatura de quem os
sediasse, mas, mesmo assim, mantivessem a
numeração seqüencial, tornando claro que se
tratava do mesmo evento. Enquanto que nós
gostaríamos que eles fossem algo viróticos.
Tínhamos, ma mesma intensidade, receio e vontade
de sermos “roubados” na idéia Festival, e não
assinassem a autoria do roubo, ou se, caso
assinassem, o fizessem somente indicando o lugar
em que aconteceriam.
Nenhum de nós conseguiu ir até o Chile, devido às
condições financeiras do grupo. Ainda assim,
dispusemos no blog do Grupo AcompanhiA as
únicas formas com que pudemos conhecê-lo: as
fotos que nos foram enviadas, e as descrições das
performances.
Este festival nos levou à discussão bastante
delicada no campo das artes, e mais
especificamente dos artistas, sobre autoria: a idéia
Festival de Apartamento não tem dono, e pode ser
posta em prática por quem se interessar em fazê-lo.
Embora seja algo bastante restrito se comparado a
outras manifestações, e por isso proporcionalmente
menos sujeito às alterações empreendidas por seus
interlocutores, a idéia Festival de Apartamento não
tem dono nem status acabado. Dentro de sua
particularidade, está sujeita ao uso que seus
praticantes fazem dela e, portanto, é passível de
transformações constantes. O modo como o Grupo
AcompanhiA resolveu fazê-lo é apenas uma
possibilidade, e o nome dado ao evento não é o que
singulariza a experiência: existem eventos
semelhantes por todo o globo nomeados de outra
forma e, as vezes, sem nomeação.
Estávamos então bastante influenciados por
idéias de nomes coletivos, como Monty Cantsin,
e conseqüente ausência de autoria. Para maiores
informações, ver “Assalto à cultura: Utopia
Subversão Guerrilha na (Anti) Arte do Século
XX”, de Stewart Home
11
IV Festival
de
Apartament
o
Sechiisland
(em
Campinas)
O IV Festival de Apartamento Sechiisland (em
Campinas) (09/08/2008) denota, desde o título,
algumas de nossas incongruências. É o primeiro
organizado por nós fora da Sechiisland, mas
mantém seu nome no título, ainda que tenhamos
aceitado a contragosto o nome “Península Dran”.
O fato é que acreditávamos a Ilha de Sechi pudesse
nos oferecer, alguma credibilidade através das
possíveis associações que os possíveis artistas
interessados fariam. Éramos bastante inseguros de
nosso trabalho e do próprio festival, e optávamos
por nos abrigar na extensa experiência de José
Roberto Sechi.
Porém, o argumento no qual quisemos acreditar era
de que, posto dessa maneira, o nome esclareceria
aos visitantes do blog que éramos os mesmos
envolvidos nos festivais anteriores, e que, do Chile
ele voltaria ao Brasil, mas migraria de casa e
cidade.
Se antes o Festival era feito entre artistas e
freqüentadores conhecidos, neste momento ele
passa a acontecer de maneira mais ampliada e, em
conseqüência, com uma formatação mais rígida.
Para a organização do IV Festival de Apartamento,
algumas questões, com as quais não tínhamos tido
de lidar nas edições anteriores, tornaram-se
importantes. Como desta vez ele seria sediado no
distrito de Barão Geraldo, em minha casa, o mais
provável seria que atraísse alguns de meus
conhecidos. Todavia, não se poderia desconsiderar
que a Unicamp situa-se neste distrito. A
universidade abriga diversos cursos e, entre eles,
um Instituto de Artes. Assim, certamente,
funcionaria como aglutinadora de pessoas dos mais
diversos lugares e formações.
Este quadro nos levou a supor que no momento em
que postássemos no blog a chamada/convocatória, e
espalhássemos esta informação por mala-direta, não
se poderiam prever quais pessoas se interessariam
em fazer parte dele e, menos ainda, de que formas.
A princípio, pela maneira como o evento aconteceu
até então, este deveria ser mais um divertido dado,
com o qual lidaríamos com a mesma
despreocupação, diletantismo (na acepção mais
positiva da palavra) e leveza dedicados a outros
impasses. Porém, esta era uma abertura maior do
12
que as nossas possibilidades de lidar com ela e, por
precaução, criamos uma ficha de inscrição cujo
link encontrava-se no corpo do texto feito para a
chamada/convocatória, disponível no blog.
Estas fichas deveriam preenchidas pelos performers
e enviadas a nós pelo endereço eletrônico do grupo
com até uma semana de antecedência da data
estabelecida para o festival. Elas seriam a maneira
que encontramos para estabelecer alguma ordem
para as apresentações, ainda que permanecesse o
propósito de que o festival fosse, por suas próprias
vias, uma grande festa.
Otimistas, e imaginando que o número de
performers interessados pudesse exceder a nossa
capacidade e a da casa para recebê-los, foi a
primeira vez que nos deparamos com a questão
curatorial: eleger ou não performers em detrimento
de outros? Em caso afirmativo, por que critérios?
À época, o único de nós razoavelmente confortável
no terreno da performance era Sechi, que há muito
participava de festivais internacionais, além de ter
leituras e extenso material filmogáfico a respeito.
Ainda assim, nenhum de nós estava interessado em
definir sequer o termo performance.
Mesmo hoje, tendo nos debruçado um pouco mais
sobre este universo, podemos concluir que,
conforme avançamos neste terreno, mais
encontramos ações muito diferentes entre si e que
se abrigam sob esta nomeação. De todo modo, a
questão das categorizações de gêneros artísticos
nunca foi uma prioridade para nós, e decidimos,
deliberadamente, não fazer curadoria. Havendo
maior número de inscritos, o critério para a
participação passaria a ser a ordem das inscrições.
A experiência de organizar os festivais nos ajudou a
perceber que o que define o quanto uma ação está
ou não adaptada ao festival não é o gênero ou a
classificação a que se presta, mas a versatilidade e,
sobretudo, as discussões que geram.
Por sermos um festival pequeno, não temos
técnicos e equipamentos à disposição. Entretanto,
mais do que restrições, estas condições abrem
possibilidades. Trata-se de uma escolha (prática,
mas também conceitual) não comportar propostas
dispendiosas e priorizar aquelas que se permitem
realizar com menos recursos.
A invocação do princípio da precaução – de que voltarei a falar
adiante – na relação com os fenômenos que não se conhece ou
se conhece mal e na ação sobre eles não constitui, por isso, uma
renúncia ao saber ou à intervenção, mas, pelo contrário, a
assunção de um risco específico, o de pôr à prova nossas
convicções e a nossa ignorância sem reduzir o que se
desconhece ao que já se sabe e sem proclamar a irrelevância do
que não podemos descrever por o desconhecermos (Santos,
2008, pp. 149-150).
A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos
coloca seus esforços em sinergia para realizar desejos
mútuos, seja por boa comida e alegria, por dança, conversa,
pelas artes da vida. Talvez até mesmo por prazer erótico ou
para criar uma obra de arte comunal, ou para alcançar o
arroubamento do êxtase. Em sua, uma “união de únicos” em
sua forma mais simples, ou então,... um básico impulso
biológico de ajuda mútua (BEY, 2004, sem página).
13
Ademais, o próprio festival, a combinação de
pessoas presentes em negociação com as ações
acaba por fazer sua curadoria. Em tempo: não há
um pleito no qual as ações estejam sujeitas à
análise. Mas existem aquelas que mobilizam mais
participantes, ou os mobilizam de maneira mais
significativa. Algumas ações se realizam em
intenso trânsito corpo-ambiente. Neste contexto, o
corpo do performer se evidencia, deixando que se
destaque justamente a comunicação daquele que
performa com o seu entorno, evidenciando a sua
condição de mídia.
O corpo não é um meio por onde a
informação simplesmente passa,
pois toda informação que chega
entra em negociação com as que já
estão. O corpo é um resultado
desses cruzamentos, e não um
lugar onde as informações são
apenas abrigadas. É com essa
noção de mídia de si mesmo que o
corpomídia lida, e não com a idéia
de mídia pensada como veículo de
transmissão. A mídia à qual o
corpomídia se refere diz respeito
ao processo evolutivo de selecionar
informações que vão constituindo
o corpo. A informação se transmite
em processo de contaminação
(GREINER, 2005, p.131)
14
O IV Festival teve doze inscritos, e nenhum
performer foi impedido de participar. Como
previsto, 50% deles estavam vinculados à Unicamp,
quase todos ao Programa de Pós-Graduação em
Artes. Os outros 50% éramos o Grupo
AcompanhiA, além de Gilio Mialichi, performer de
Araraquara e Viviandran, com uma participação em
vídeo.
Luana Muzille e José Carlos Pires formavam então
a produtora Fósforo Arte, e, gentilmente,
registraram o festival com equipamento
profissional. Sua intenção era produzir um
documentário a respeito, mas a proposta não
ganhou espaço entre nossos afazeres.
Posteriormente, este material foi editado por
Alexandre Sanches (Banderas) e disponibilizado no
blog.
Afora detalhes tão desinteressantes quanto
inexplicáveis e que não poderiam ser relatados sem
incorrer no deselegante tom de "mexerico", a partir
do IV Festival, o grupo AcompanhiA passou por
um violento racha, deixando de existir.
quaisquer relações.
15
V Festival
de
Apartament
o São
Paulo/Ipira
nga
Por seu interesse no funcionamento do festival,
Thaíse passou rapidamente de anfitriã a
organizadora, junto comigo e Rodrigo. Ela trouxe
novo fôlego e expandiu o alcance do festival para
os circuitos de arte ao enviar divulgação para canais
como Infodança, Artesquema e Coro.
Abandonamos o antigo blog do AcompanhiA,
refizemos todo o seu conteúdo sob o nome de
Festival de Apartamento, e seguimos organizando-
os, segundo a seqüência numérica. Agora
trabalhávamos de forma autônoma, receosos que
estávamos com a idéia sermos um grupo ou
coletivo.
O V Festival de Apartamento São Paulo/ Ipiranga
(14/03/2009) teve 23 performers que, sem as
condições ideais, decidimos acomodar, movidos
pelo desejo de não deixar artistas sem participar.
Porém, do ponto de vista da troca, facilitada pela
situação da festa, esta edição foi um tanto
frustrante.
Para dar conta de todas as apresentações, tivemos
que iniciar as apresentações às 16h. A este horário,
poucos dos performers haviam chegado, e havia
aqueles com necessidade de apresentar-se o quanto
antes, ocupados com outros afazeres fora dali.
Assim, os primeiros e os últimos trabalhos foram
vistos por poucas pessoas. Um número pequeno de
performers permaneceu durante todo o evento, e o
pouco público que compareceu esteve, via de regra,
acompanhando um amigo que se apresentaria, e foi
embora junto com ele ao término da apresentação.
A casa que sediou este festival, embora fosse uma
propriedade particular, era comumente utilizada
para ensaios teatrais. Por isso, dispunha de duas
salas com chão emborrachado, e este ar de
“ambiente preparado para a arte” nos levou a
acomodar a maioria das performances aí. Isso
dificultou a aproximação entre os presentes. Como
eram muitas ações, enquanto uma se realizava,
outra se preparava na sala oposta. De forma que o
público ia de uma sala a outra para acompanhá-las,
sem brechas.
O caráter festivo do festival ficou dificultado
também pelo modus operandi da cidade: como uma
maldição, a casa esvaziou-se quase que por
completo conforme se aproximava a meia-noite, já
http://www.infodanca.com
http://www.artesquema.com
http
://ww
w.co
roco
letivo
.org
http://festivaldeapartamento.blogspot.com
16
que muitos dos presentes dependiam de transporte
público e este é horário de fechamento do metrô.
Sob a ótica da indistinção entre performers e
público e da partilha, este foi um festival pouco
profícuo. Quase não houve quem tivesse levado sua
garrafa de vinho para dividir, o que também não
auxiliou na diluição entre artistas e participantes.
Sem que percebêssemos ou pudéssemos fazer algo
a respeito, o festival foi captado por dispositivos,
conforme entendido por Agamben (2009).
Os dispositivos cumpriram a função produzir
sujeitos orientados para o bem, no sentido de
funcionalidade. As pessoas, combinadas às
circunstâncias, optaram por permanecer dentro de
um modelo de festival que não oferecesse riscos, de
suposta preservação de suas identidades, ao invés
de diluir-se na idéia festival.
Isso não quer dizer, contudo, que a V edição não
teve qualquer aspecto positivo, nem a crítica se
dirige aos trabalhos apresentados então. Trata-se da
constatação dos revezes incluídos na realização
destes eventos, que exemplifica como o andamento
dos festivais independe dos propósitos de seus
organizadores e está fortemente vinculado aos
humores e disposições de quem os freqüenta.
Uma vez reunidos pela proposta dos Festivais de
Apartamento, seus participantes e as circunstâncias
que criam, adquirem uma vida própria. O objetivo é
diluir a relação entre público e performer, o que
nem sempre acontece.
os dispositivos visam, através de uma série de
práticas e de discursos, de saberes e de
exercícios, à criação de corpos dóceis, mas
livres, que assumem a sua identidade e a sua
“liberdade” de sujeitos no próprio processo do
seu assujeitamento. Isto é, o dispositivo é, antes
de tudo, uma máquina que produz subjetivações
e somente enquanto tal e também uma máquina
de governo (AGAMBEN, 2009, p. 46).
17
VI Festival
de
Apartament
o
Campinas/
Barão
Geraldo
O VI Festival de Apartamento Barão
Geraldo/Campinas (26/09/2009) voltou a ser
realizado em minha casa, e contou com a ajuda
expressiva de Alexandre Sanches, que passou a ser
outro integrante auxiliando na captação e edição
das imagens. Em consonância com a maneira
solidária como os festivais vinham acontecendo,
ele conseguiu o empréstimo de câmeras filmadoras
e operou-as.
Nos entremeios dessa e da edição anterior,
passamos a participar da plataforma de
performance Performacelogía, que repassa aos
performers associados cada um dos eventos que
recebe. Foi também a primeira vez que recebemos
performers de outros estados: Minas Gerais e
Alagoas.
Mary Vaz e Charlene Sadd se beneficiaram de
ajuda de custo para as passagens que as trouxeram a
São Paulo, de onde seria mais fácil chegar a
Campinas. A Secretaria Municipal de Ação Social
de Alagoas ofereceu-lhes o auxílio em troca do
qual, ambas fariam apresentações de seus trabalhos
em eventos da Prefeitura. Ainda que indiretamente,
trata-se da primeira inserção de um órgão oficial no
evento, o que nos levou a algumas discussões.
Após o festival, as duas performers nos propuseram
a escrita de um projeto conjunto para levá-lo a
Alagoas. A proposta nos pareceu interessante, e
logo o Ministério da Cultura abriu edital que
contemplaria, justamente, aos festivais. Isso
possibilitaria a compra de equipamentos, o
pagamento de ajuda de custo e, quiçá, de
hospedagem para os performers. Começamos a
escrever o projeto, mas não o levamos adiante por
nos dar conta do que representaria o fomento de um
edital.
Improvável, mas não impossível, poderíamos nos
deparar com as indicações, sutis ou não, sobre que
ações poderiam ser postas frente ao logotipo do
Ministério.
As mudanças pelas quais passaria o festival fariam
dele um evento parecido com qualquer outro. Seria,
sem dúvida, a sobreposição de um formato.
Qualquer suposto potencial do evento em
desestabilizar a realidade seria perdido em prol de
uma submissão inevitável ao mercado. Não se trata
Aq
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basta
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008
, p
.165
).
18
se enaltecer a falta de verba, mas de tomar um
cuidado especial para não deturpar os objetivos da
proposta em função de prioridades econômicas.
Essa orientação múltipla da realidade é algo caro a
nós e, por sua própria conformação mutável, traz
alguma dificuldade em propagar-se. Porém,
enquanto ainda parece possível, e cientes da
contradição deste ato, fizemos a escolha de manter
a informalidade da organização do festival, com o
que acreditamos fazer alguma força na direção de
exercitá-la.
a estratégia que devemos adotar no nosso corpo
a corpo com os dispositivos não pode ser
simples, já que se trata de liberar o que foi
capturado e separado por meio dos dispositivos e
restituí-los a um possível uso comum
(AGAMBEN, 2009, p. 44).
19
VII
Festival de
Apartament
o São José
do Rio
Preto
O VII Festival de Apartamento São José do Rio
Preto (20/02/2010) foi, a nosso contragosto,
divulgado no jornal local. Embora a redatora da
matéria tivesse as melhores intenções, o resultado
foi um texto confuso, que atraiu inscrições
duvidosas. Compareceram os “donos da cultura” da
cidade, exibindo números de DRT e sobrenomes,
preocupados em nos esclarecer sobre sua
importância e, conseqüentemente, indagando o
nosso papel.
A tensão estava claramente estabelecida por sua
compreensão de que a presença do festival tivesse o
propósito único de afrontar os cânones que
postulavam. Sua tentativa hipócrita de participação
serviu somente ao propósito de proclamarem sua
hierarquia.
O episódio está aqui relatado por funcionar
muitíssimo bem como argumento à restrição da
divulgação do festival a canais prioritariamente
acessados por artistas. Em tempo: não se trata de
imaginar esta parcela de pessoas como algo
superior, mas de ressaltar o aspecto de
compartilhamento de interesses supostamente
promovido pelos canais referidos, assente na
possibilidade de colocar os pares em contato.
O público de um jornal é atendido segundo sua
possibilidade de compra - porque atrelada à notícia
está o anunciante – se seu poder aquisitivo não for
suficiente, eles não estarão representados no jornal,
e as notícias não serão direcionadas aos seus
interesses.
Ainda assim, considerando-se a parcela “apta”, a
notícia se faz da maneira mais generalizante e
abrangente, de forma a alcançar o maior número de
clientes, com vistas a traçar relações entre o já
conhecido (ou mesmo o senso comum). Para tal,
guardam-se os níveis de redundância necessários à
aderência de uma notícia.
Assinaladas as devidas diferenças – uma vez que o
autor esteja se referindo aos agentes de movimentos
sociais, e nós às ações performativas –, vale
mencionar a segregação midiática pontuada por
Bucci (2009).
Os interessados em performance são poucos (se
posto em escala com o público geral), e com
interesses específicos. Como ocorre com a
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.77
-78
).
Os agentes dos movimentos sociais, quando pertencentes a camadas
sociais que não têm acesso aos bens de consumo, a despeito de
integrarem o amplo espectro de telespectadores, não fazem parte da
audiência com poder de compra mínimo. Como o consumo serve de
baliza para o modo como a publicidade na TV dialoga com o
telespectador, esse público que não chega a ser consumidor potencial
termina por se ver estigmatizado, diante da tela, como uma
subplateia: os mais pobres não são vistos como compradores pelo
anunciante. Por desdobramento quase que automático, por mais que
os editores de televisão creiam no contrário, esses segmentos não são
convidados a serem interlocutores do discurso jornalístico da TV.
(BUCCI, 2009, pp. 128-129).
20
produção artística em geral, a cobertura na grande
imprensa costuma ser tímida ou inexistente. Esta
postura corrobora com uma certa lógica mercantil,
segundo a qual, a existência de um fenômeno não
se atesta senão por sua exposição midiática.
Observa-se um exemplo dessa lógica mercantil na
crescente atenção que a mídia tem dedicado a
Marina Abramovic. Marina foi uma das primeiras
artistas a ser reconhecida como performer. Ela
ajudou a difundir a arte da performance pelo
mundo, a tal ponto de afirmar que deseja fundar um
Instituto de Performance e este levará seu nome
porque “Creio que sou uma marca, como jeans ou
coca-cola, e pelo meu nome, Marina Abramovic, as
pessoas vão saber que ele é sobre performance em
geral, seja vídeo, música, teatro ou dança”.
Através de inúmeras exposições, livros de registros,
artigos e pesquisas publicados sobre seu trabalho,
Marina adquiriu o “direito” de ser reportada pela
grande mídia. Ainda que as apresentações da artista
carreguem uma aura de “excentricidade”, seu
trabalho tem atravessado gerações, adquirindo
respeitabilidade e constância suficientes para ser
noticiado.
O coroamento dessa consagração se dá em sua
presença no MOMA – Museum of Modern Art
(NY). Situado numa região turística, o MOMA
nada tem a ver com o circuito de “iniciados”,
formado somente por pessoas ligadas à arte. Do
mesmo modo, a proposta da artista para este espaço
pode ser entendida pelo jornalismo cultural – e que
esse entendimento não seja tomado como sentença
absoluta – com o didatismo e a redundância que lhe
são caros: Marina selecionou jovens artistas para
refazer alguns trabalhos de sua trajetória.
Retrospectiva. Reperformance. Turismo. São
palavras que garantem a primeira página dos
cadernos culturais pelo mundo, além de algumas
notas em outros cadernos supostamente
relacionados.
Nos trabalhos que estamos pesquisando, a
mencionada taxa de redundância necessária à
saturação da rede é insuficiente. A segregação,
então, passa a ser de outra natureza, mas ainda
existente. Por isso é importante que se criem os
próprios canais.
Leia a entrevista
completa no Anexo II
Ver anexo III
21
As edições do festival indicam haver uma
comunidade produtora e consumidora (por falta de
melhores palavras) de performance, ainda que
localizá-la seja tarefa um tanto quanto difícil. Este
talvez seja o paradoxo que, ao mesmo, tempo lhe
confere ostracismo e marginalidade e a libera para
agir de maneiras singulares.
Por habitar os entremeios – das linguagens
artísticas, da visibilidade midiática –, a
performance acaba estabelecendo, ela mesma,
novas redes dentro da rede mercado/arte/mídia,
congregando artistas e público das mais diversas
formações e objetivos. Porém, é preciso que haja
afinidades ainda que momentâneas entre eles.
Como os Festivais de Apartamento, existem
diversas organizações semelhantes no mundo: a
Bienal Deformes, no Chile, o Zona de Arte, na
Argentina, Openart no Reino Unido, Platoon na
Alemanha são apenas alguns exemplos proliferação
de um saber que se auto-sustenta por contaminação.
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http://www.open-art.org.uk
http://blog.platoon.org
22
2.
Estranho,
um cara
comum
Há hoje um consenso sobre inserção dos meios de
comunicação de massa nos aspectos mais
generalizados da vida, incluindo aqueles que se
relacionam aos nossos valores e subjetividade. Os
media detém a disposição de toda produção sígnica
inerente ao homem. Eles passaram a regular a
veiculação, criação e a legitimação da cultura. Não,
claro, sem se expor a uma espécie de caos e
imprevisibilidade daqueles conteúdos que não se
deixam captar facilmente.
Conforme pontuado por Lypovetsky (2010), a
cultura tornou-se moeda, e seu valor de troca é algo
com que os Estados passam a se ocupar cada vez
mais, dado que, também dela, depende sua
hegemonia. Sob este ponto de vista, a cultura
travestiu-se em “cultura-mundo”.
Porém, longe de ser irreversível ou impossível de
transpor, mesmo lançando mão de mecanismos que
alcançam e saturam nossa percepção, a cultura-
mundo tem sofrido interferências substanciais ao
longo dos anos. Alguns exemplos estão na
autonomia dos artistas, na criação de redes
informais, e em sua resistência a um modo de
organização que congrega mídia, arte e mercado.
Estas são posturas que funcionam como uma
espécie de ruído paralelo e desestabilizador.
Tratam-se, segundo Santos (2010), de
emancipações sociais (no plural, porque diferentes
umas das outras), que prevêem igualdade em
operações cuja diferença pretende nos inferiorizar;
e diferença, quando a igualdade tem por objetivo
nos descaracterizar. O poder revolucionário da arte
residiria em sua colaboração com este projeto.
Neste panorama, passamos a entender a arte, e em
especial a performance, como um fenômeno
sobretudo comunicacional. Nos interessa sua
habilidade em tecer conexões entre seus pares e, a
partir destas conexões, produzir diferenças e
igualdades em lugares e lógicas estabelecidos.
A partir deste deslocamento, nos debruçamos sobre
o tema e, mais especificamente, sobre o trabalho de
Flávio Rabelo. A escolha por este artista passa,
inegavelmente, por alguma afinidade estética ou de
discurso. Todavia, estamos considerando também
as estratégias que seu trabalho utiliza para assegurar
sua subsistência. A série “Estranho, um cara
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23
comum”, tem indícios do tipo de comunicação cara
a esta pesquisa.
O performer utiliza-se de um modo de
comunicação não coercitiva e que se concretiza a
partir da disposição do outro em lhe dar espaço.
Este tipo de trabalho não se constitui senão entre
público e perfomer, que então se tornam pares.
24
2.1
Trajetória
Antonio Flávio Alves Rabelo inicia suas ações em
2004, junto aos Saudáveis Subversivos, coletivo
inspirado pelo livro “Diário de um corpo a corpo
pedagógico e outros elementos da Arte-Educação”
(1999) do arte-educador Marco Camarotti. Seu
livro postula que toda educação deveria ser “uma
saudável subversão”, e os Saudáveis Subversivos,
por acreditarem na arte como agente transformador,
pretendem provocar à reflexão através de suas
ações.
Membros deste grupo somaram-se a membros da
Cia. Sentidos/ NACE – Núcleo Transdisciplinar de
Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares, da
UFAL – e da Cia. Do Chapéu, formando o que
viria a ser a Cooperativa de Performance, núcleo
onde Flávio Rabelo passou a estudar elementos a
serem desenvolvidos em sua pesquisa artística e
acadêmica.
O trabalho no núcleo previa co-criação assim como
a troca entre as pesquisas individuais. Nos seus
encontros promoviam-se discussões sobre textos
relacionados à performance e à Arte
Contemporânea. Os integrantes se revezavam na
condução de treinamento de ator segundo a
pesquisa de cada um, e as elaborações práticas que
emergiam deste processo tinham a colaboração de
todos (Rabelo, 2009, pp.63-64).
Paralelamente aos encontros com a Cooperativa de
performance, o performer é convidado para criar
uma performance coletiva a ser apresentada numa
exposição em homenagem ao escritor alagoano
Graciliano Ramos. Neste trabalho, onde cuidou do
roteiro e encenação, a leitura de “Vidas Secas” do
mesmo autor, acabou definindo alguns rumos do
processo criativo.
Na busca pela tradução da obra literária para a ação
cênica, o “estado de solidão” (Ibid., p.62) dos
personagens de Graciliano Ramos direcionou a
pesquisa da Cooperativa de Performance. Para
investigar este estado, Flávio destacou algumas
características do livro, como, por exemplo, a
síntese dos diálogos.
A ausência de condições tão básicas quanto a
nutrição cria, nas personagens, uma falta de
habilidade para o diálogo e para a nomeação do
mundo ao redor. Desta maneira, elas constroem
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A performance “Chão de
Graça, ou poço da pedra”,
foi elaborada para a
exposição “O Chão de
Graciliano”, realizada pelo
SESC - SP, Governo do
Estado de Alagoas através da
Secretaria Executiva de
Cultura, na Fundação Pierre
Chalita, no ano de 2003
(Rabelo, 2009, p.65).
A solidão como contingência fatal da
condição humana é uma abordagem
marcante e recorrente em toda a obra desse
autor que em sua narrativa concisa, onde
só há espaço para o vocábulo exato, para a
frase curta e essencial, traça a luta do ser
humano pela afirmação de sua própria
individualidade. Os seus personagens são
guerreiros solitários contra os obstáculos
da vida; lutando isolados, ávidos de si
mesmo, num contexto social onde o
egoísmo decorre dessa impossibilidade de
comunhão com o próximo (RABELO,
2006, p. 36).
25
mundos próprios e autorreferenciados. Nestes
universos ensimesmados, os eventos mais
importantes, que serviriam para nortear sua análise
do outro, não passam pela troca. Isto contribui para
que a qualidade das relações travadas aí beirem à
escassez.
À procura dos equivalentes gracilianos no meio
urbano e contemporâneo, o coletivo passou a
observar os moradores de rua de Maceió, cuja
semelhança se estabelece pelo nomadismo, feridas,
fraqueza e silêncio (Ibid, pp.69-71), que também
redundam em estados solitários.
A aproximação com moradores das ruas leva o
artista a constatar a determinação do nosso olhar em
ignorar ou diluir os chamados mendigos como parte
da arquitetura ou quaisquer outros elementos
urbanos que tomamos o cuidado de evitar. Disso
decorre sua pesquisa feita de leituras e
especulações sobre a cegueira, sobre o estranho e o
comum, somado ao interesse em explorar “estados
de solidão”. Neste estágio da pesquisa, o performer
começa organizar tarefas a serem cumpridas
solitariamente e não dentro do coletivo, como vinha
sendo desde então. (Ibid, pp.71-73). Com estas
inquietações e este direcionamento, o performer
encontra ou se dá conta da presença de Coruripe,
morador de rua que, durante anos, “ocupou” a
marquise da Catedral Metropolitana Nossa Senhora
dos Prazeres, em Maceió.
Como a figura deste morador tivesse reunido ao
redor de si as diversas questões a serem deglutidas
pelo performer e incluídas em suas ações, podemos
compreendê-la como o detonador da série
“Estranho, um cara comum”.
Os desdobramentos da série “Estranho, um cara comum”,
bem como outras séries do artista, podem ser encontrados em
filmes, fotos e textos, nos seguintes links:
flickr: flickr.com/photos/flaviorabelo
picasa: picasaweb.google.com/flaurabelo e picasaweb.google.
com/estranhocorpoestranho
blogs: estranhocorpo.blogspot.com e flaviorabelo.wordpress.c
om
26
2.2
Estranhas
ações
Para esta ação, o performer instala-se frente a uma
igreja e inicia a primeira tarefa: trocar sua roupa
comum por peças que podem sugerir a
caracterização de um mendigo. Para isso, ele utiliza
peças que aderem à pele, semelhante às meias-
calças femininas. O performer usa estas peças
como blusa e como calça (sobre a qual veste outra,
de tecido). Em sua cabeça também é posta uma
destas peças, cujas mangas são dobradas como num
chapéu e, sobre ela é preso um saco plástico na cor
preta. Geralmente o performer usa luvas que
deixam à mostra as pontas dos dedos, e fita isolante
em algumas partes do corpo (dedos dos pés e
olhos).
Sentado, o performer traz consigo, entre outros
objetos, um velho relógio quebrado, um exemplar
de “Desobediência Civil”, um pedaço de carvão e
um espelho. A este espelho está relacionada outra
de suas tarefas, que é a de mostrá-lo a quem passa.
A ação causa estranheza não só porque o suposto
mendigo tem a mão estendida não para pedir, mas
para oferecer algo, mas porque, uma vez que
olhamos, vemos nossa imagem refletida nos
elementos que constroem a figura. Isso causa uma
curiosa inversão do nosso hábito de não ver,
desestabilizando momentaneamente alguns padrões
de comportamento a que estamos acostumados a
recorrer. Um breve, mas eficiente “levante”.
Durante a ação, (que nessa série é, em média, de
dez horas) o performer permanece sentado,
olhando em torno, oferecendo o espelho e
experimentando o ponto de vista de quem se torna
invisível ao habitar as calçadas e cantos da cidade.
Algumas vezes, o performer usa um pedaço de
carvão para desenhar no chão, lê trechos do livro ou
dorme.
São ações cotidianas que, estendidas no tempo e
deslocadas de contexto, transformam-se em ações
performativas “fetichizando a experiência
cotidiana, dando um recorte sublime ao
espaço/tempo diário” (Cohen, 2004, p. 04).
Para compreender a (in)diferenciação entre ações
performativas e ações cotidianas, vale retomar a
formulação de Schechner. Como mencionado no
capítulo anterior, este autor/ artista tem um
entendimento amplo do que seja performance. Para
conforme observado por Bey (2004) e retomado por Oliveira:
A sublevação temporária é o que se abre como possibilidade,
experiências de pico que se mostram, em rápidos momentos de
suspensão, como a vida pode ser vivida de forma diferente. O
levante é uma ação de independência cuja experiência gera uma
mudança substantiva no sujeito. O potencial da vida cotidiana está
em cena: a socialidade cotidiana é eminentemente cultural (Oliveira,
2007, p. 33).
Sem ano, sem página.
27
ele, todos somos performers: performamos nossas
profissões, nosso jantar em família, nossa conversa
ao telefone. Assim, ser performer tem a ver com
exercer um comportamento restaurado: algo que
não é inédito, que estamos reproduzindo, mesmo
quando não sabemos de quem o estamos copiando
ou em qual situação o aprendemos. Segundo ele,
todo comportamento é restaurado. Entretanto, ainda
há espaço para a criação, através da combinação de
“pedaços de comportamento”. Nisso consistem as
vanguardas e performances artísticas: combinar
comportamentos de modo inusual ou ainda não
experimentado (comportamento restaurado
restaurado).
Assim, uma ação performativa seria culturalmente
aceita como tal. Ou seja: não existe ação
performativa “em si”, ela está sempre relacionada
ao contexto. Consequentemente, pode deixar de sê-
lo conforme os valores e anseios da época.
Neste sentido, há uma relação intrínseca entre o
corpo, tal como entendido pela teoria corpomídia, e
o meio. O corpo (sua performance) e o ambiente (o
contexto em que se insere), são co-dependendes, e
os signos (culturais) que emanam dessa operação
são transitórios: estabelecem-se, desfazem-se,
recombinam-se.
Na série “Estranho, um cara comum”, a
recombinação de comportamentos passa pelo
descompasso causado pela figura bem nutrida do
performer, ocupando o lugar geralmente dedicado
ao morador de rua. Neste contexto, sentar-se, ler,
dormir – ações que realizamos cotidianamente –,
numa situação de partilha, oferecido pela rua,
tornam-se ações performativas.
A presença do performer não é impositiva, no
sentido de que não convoca à interação: por sua
passividade, existe apenas para quem lhe dirige o
olhar, ou para aqueles que, involuntariamente,
compõe uma comunidade que encontra seu sustento
na rua. Assim, o performer sublinha e revisita a
figura do “estranho”.
Os “estranhos”, via de regra, são aqueles que não
nos dão tempo ou meios para categorizá-los, e,
portanto, a quem devemos evitar. Caso não seja
possível, devemos estabelecer com eles um
encontro breve, no qual nos comprometamos o
Alguns eventos são performance e outros, não exatamente isso. Há
limites para que algo seja performance. Porém, virtualmente tudo
pode ser estudado como se fosse performance. Alguma coisa é
performance quando o contexto histórico-social, as convenções e a
tradição dizem que tal coisa é performance. Rituais, brincadeiras,
jogos e papéis do dia-a-dia são performances porque convenções,
contexto, uso e tradição dizem que são. Não podemos determinar
que alguma coisa seja performance a menos que nos refiramos a
circunstâncias culturais específicas. Não há nada inerente a uma
ação em si mesma, que a caracterize ou a desqualifique como sendo
performance. Pelo ângulo de observação do tipo de teoria da
performance que proponho, qualquer coisa é performance. Mas sob
o ângulo da prática cultural, algumas coisas serão vividas como
performances e outras não; e isto irá variar de uma cultura ou de um
período histórico para outro... Ser ou não ser performance
independe do evento em si mesmo, mas do modo como este é
recebido e localizado num determinado universo (SHECHNER,
sem ano, sem página).
Se o que apresenta valor não é a obra “objetivamente”
apreciável, mas um procedimento com o público, tal valor
depende da experiência dos próprios participantes, portanto de
um dado altamente efêmero e subjetivo em comparação com a
obra fixada de modo duradouro. Torna-se impossível até
mesmo definir a performance – por exemplo, o limite a partir
do qual haveria meramente um comportamento exibicionista e
extravagante. O último recurso não pode ser outro senão a
compreensão do próprio artista: a performance é aquilo
anunciado por aqueles que a apresentam. O posicionamento
performativo não se pauta por critérios prévios, mas por seu
êxito na comunicação (LEHMANN, 2004, p.227).
28
menos possível. São os bodes expiatórios de uma
época com aspiração ao controle e vigilância:
estrangeiros, potenciais perturbadores da ordem
(BAUMAN, 2001, p.48). Aqueles contra quem
esperamos a devida observância por parte do poder
público, para que não interfiram no nosso direito de
ir e vir, e se garanta a segurança de nossos corpos e
posses (op.cit: p.45).
É uma exigência social (genuína) que os estranhos
mantenham-se localizados e sob controle, para que
as “pessoas de bem” possam ir e ver sem o risco de
ter seus corpos e posses violados pelo tipo de ócio e
improdutibilidade que representam. O estranho é
um retrato do tempo perdido, não otimizado ou
convertido para o lucro. E, assim sendo, carrega a
possibilidade usurpar aquilo de que as “pessoas de
bem” conquistaram, através do emprego funcional
de seu tempo e corpo.
A característica ociosa que costuma ser considerada
preguiça ou depressão pelas “pessoas de bem”
encontra-se também na arte, e no tempo
diferenciado de que necessita para produzir um
objeto ou uma ação, obviamente não é pejorativa
mas criativa e fundamentada. A performance e as
artes presencias, no geral, lidam ainda com níveis
de permanência apenas da ordem do registro foto e
filmográfico – que, em si, são outros trabalhos,
diferentes daqueles que aconteceram imersos nas
circunstâncias do momento.
As maneiras de empregar o tempo na arte são mais
familiares ao comportamento dos estranhos da rua.
E se não se pode localizar e controlar os artistas por
sua propriedade de perturbação da ordem das coisas
pode-se, ao menos, buscar ignorar determinadas
ações ditas marginais, da mesma maneira como se
ignoram aqueles que habitam as calçadas.
No encontro de estranhos não há uma retomada a partir do
ponto em que o último encontro acabou, nem troca de
informações sobre as tentativas, atribulações ou alegrias desse
intervalo, nem lembranças compartilhadas: nada em que se
apoiar ou que sirva de guia para o presente encontro. O
encontro de estranhos é um evento sem passado (BAUMAN,
2001, p.48).
29
2.3 A
performanc
e como
ação
midiática
Este trabalho foi realizado nas cidades de Maceió
(AL), Salvador (BA), Penedo (AL) e Londres
(UK), entre os anos de 2005 e 2008. Em algumas
vezes houve encontros e diálogos com moradores
de rua ou com transeuntes registrados em um
caderno e num gravador de voz que o performer
mantinha nestas ocasiões. Todas estas ações
contaram com a presença de uma equipe
responsável por fazer fotos e vídeos.
Estas formas de registro, que são feitas por outras
pessoas, detonam uma reação diferente nos
passantes: o “Estranho” seria tão invisível quanto a
arquitetura ou os pombos. Porém, quando os
passantes percebem que a câmera está filmando ou
fotografando, sua figura desperta interesse e ganha
importância. A presença da câmera torna a situação
digna de uma atenção diferenciada.
É como se tal presença eliminasse a alteridade
própria ao “Estranho”, a quem se deve evitar e
legitimasse algum traço comum entre o público e
aquele que está sendo filmado; algum elemento que
certamente o interessa para o qual não seria perda
de tempo direcionar o olhar. Esta postura denuncia
o estabelecimento de uma imagem de urgência e de
assertividade construída pelos noticiários: para
onde se dirige uma câmera, certamente há algo a ser
destacado.
A performance utiliza-se de mecanismos
semelhantes aos da mídia comum, mas estabelece
outros tipos de comunicação. As ações
performativas acabam por denunciar seu contexto
cultural, social, econômico, ao mesmo tempo em
que admitem a mutabilidade inata deste contexto
agindo politicamente ao revisitá-lo e alterá-lo (e a
si) a cada vez um pouco, a cada vez estabelecendo
novos links para sua leitura e atualizando
informações no corpo do performer.
Neste trânsito, as conexões possíveis entre o
performer e o meio extrapolam o território próprio
da arte em direção a um esmaecimento também dos
limites arte/vida, ou de arte e comunicação,
estabelecendo um léxico próprio.
Ao se instalarem no cotidiano como fenômeno
social e comunicativo, as novas ações
performativas entram em negociação com as
habilidades e competências, criando conexões que
Ver an
exo
IV
O incremento vertiginoso dos mecanismos de comunicação não é mais
novidade. Cada vez mais sofisticados e numerosos, têm-se submetido
à competição internacional e passaram a funcionar com uma
necessidade social: estão encarregados de assegurar, ao mesmo tempo,
o nível tecnológico no qual se reconhece uma sociedade desenvolvida
e a unicidade dos grupos sociais em vias de desagregação. A
tecnologia se encarrega então de dois princípios essenciais: o do
progresso e o da identidade (Cauquelin, 2005, pp. 57-58).
É por intermédio da linguagem que se estruturam não somente os
grupos humanos, mas ainda a apreensão das realidades exteriores,
a visão do mundo, sua percepção e sua ordenação. Assim, apaga-
se pouco a pouco a presença positivada de uma realidade dada
pelos sentidos, os sense data, em favor de uma construção de
realidade de segundo grau, até mesmo de realidades no plural, da
qual a verdade ou a falsidade não são mais marcas distintivas. É o
mesmo que dizer que a rede de informações cujos princípios
esboçamos determina, constrói um mundo e a maneira como
podemos abordá-lo, tecido diretamente com a linguagem de
redes... Significa que as intenções dos sujeitos, a intencionalidade
– no sentido de vontades ou desejos próprios a um sujeito – cede
a vez à intenção única de utilizar a linguagem para comunicar,
pois a sintaxe, o léxico – em uma palavra, as regras da linguagem
– se encarregam do restante... O que significa, entre outras coisas,
que o desenvolvimento de linguagens artificiais e o uso cada vez
mais generalizado delas alteram nossa visão da realidade.
Constroem, pouco a pouco, um outro mundo (Ibid, pp.63-64)
30
não são mediadas pela grande mídia e, portanto,
não se validam ou se pautam por ela, mas
fortalecem o que Greiner (2009) tem chamado de
microcomunicações.
Estas micro-comunicações são as comunicações
que não se veiculam na grande mídia, mas nascem
do corpo e se organizam a partir de pequenas
reconfigurações sociais.
Performances como “Estranho, um cara comum”,
que se colocam entre transeuntes, têm um poder de
inserção subliminar e atuam como uma mídia cuja
ação parece invisível. Porém, assim como outras
mídias, podem causar pequenas alterações na nossa
visão da realidade. Estas alterações, antes de serem
positivas ou negativas, são importantes agentes na
formulação de um contexto pluralista onde estão
previstas diferenças e igualdades, de acordo com a
fruição da autonomia nas artes.
Do ponto de vista de Santos (2010), sobre o poder
revolucionário das artes, podemos dizer que a série
“Estranho, um cara comum”, conserva este viés ao
retomar o potencial artístico da rua.
Desde os Mistérios e Autos religiosos, passando
pela denúncia bufonesca, o artista e a rua sempre
estiveram em consonância. Porém, retomá-la,
contemporaneamente, quando a dividimos com
uma série de outros estímulos (visuais, sonoros,
táteis) cuja maior parte buscamos ignorar, é uma
maneira de prover diferenças iguais, ou de
igualdades diferentes.
Esta ação performática é paradoxal. Para um olhar
desatento, a figura do “estranho” pode ser posta em
igualdade entre aqueles que vivem ou obtém seu
sustento na rua. Porém, trata-se de uma ação
elaborada com função artística, e não de
subsistência, e, numa análise um pouco mais
elaborada, a figura se destacada do contexto e se
diferencia.
O resultado desse jogo de oposições converte-se
numa estratégia de emancipação social, promovido
por uma breve, mas relevante, desestabilização em
nossos parâmetros para a regulação de nosso
entorno. A cultura-mundo e sua tentativa de
homegeneização perde força nesses acordos, ao
esbarrar nas pequenas subjetividades expostas, que
singularizam lugares e pessoas.
considero que é a presença do corpo que dá visibilidade ao
pensamento e por isso torna-se cada vez mais valorizada nas
experiências de arte contemporânea cujo objetivo tem sido,
prioritariamente, expor pensamentos e não produtos ou resultados
estéticos a serem rapidamente consumidos ... Além disso,
proponho identificar a presença do corpo a partir do que chamarei
daqui em diante de “micromovimentos de interface”, ou seja, os
movimentos que se organizam na passagem entre o dentro e o
fora do corpo. Isso porque é justamente nesta passagem que
podem ganhar visibilidade, no momento intersticial quando
começam a se dar a ver mas, muitas vezes, ainda não são
reconhecíveis com clareza (GREINER, 2010, pp. 93-94).
31
Conclusão
A reconhecida definição da performance como a
arte de hibridar as outras artes parece ter caído por
terra. O que se convencionou chamar de
performance tem atravessado transversalmente as
áreas de conhecimento da comunicação e das artes,
evidenciando assim limites cada vez mais tênues
entre elas.
As ações performativas sofrem recortes, sínteses e
edições de todo o tipo, sendo traduzidas em meios
comunicacionais. Ações transformam-se em
postais, quadros, áudios, são analisadas em forma
de texto em jornais e revistas impressos ou
eletrônicos, blogs, sites. É infindável a quantidade e
a variedade de arquivos de vídeo e foto que se
encontram na internet.
Esta hibridação entre artes e comunicação cria
ainda uma terceira via de apreciação e difusão:
estes arquivos, quando descolados do contexto de
apresentação, carregam um pouco do
acontecimento que lhes gerou. Entretanto, não
poderiam deixar de considerar a atualização
promovida pelo novo contexto que os abriga. Tal
contexto acaba se reorganizando a partir do
momento em que uma versão da obra, agora virtual,
pode ser acessada por aparelhos fixos ou móveis,
não mais se restringindo a um local
(prédio/galeria/teatro) específico e com a função de
receber apresentações.
O espírito do nosso tempo está embebido de teor
comunicacional. É comum que se registrem e se
difundam imagens do banal ao sublime,
indiscriminadamente. Não seria diferente com a
performance, que parece ter encontrado na eterna
renovação da rede uma forma de sobrevivência.
Mas não há só benefícios nesta eterna renovação.
As informações duram pouco, e deixam atrás de si
uma quantidade significativa de resíduos. Porém, o
que se processa na rede, mesmo nas transmissões
em tempo real, são também resíduos performáticos-
comunicacionais. A força de comunicação da
performance está no encontro e o encontro, nas
artes, precede, por exemplo, a criação e inserção
das identidades nas redes sociais, que configuram a
chamada sociedade de mídia.
As manifestações que analisamos não fogem a isso.
O blog do Festival de Apartamento tem dupla
33
função: a de relato e a de chamariz. São funções
para algo posterior, e para algo anterior à sua
realização; mas as noites destes festivais se
efetivam na partilha entre aqueles que estão
presentes no momento de sua realização.
Assim também, a série “Estranho, um cara
comum”, tem sua maior conexão no encontro com
os que passam, os que moram ou os que se
sustentam da rua. Mesmo que tenha rendido
imagens e análises a seu respeito. Em ambos os
casos, o caráter comunicativo do corpo é que parece
ter maior eficácia.
Este tipo de comunicação é subversiva por
natureza. Vale lembrar que o corpo difere dos
meios de comunicação de massa por não ser uma
mídia que permanece intacta independente das
informações processadas aí. O corpo se afeta e afeta
seu entorno, continuamente. Só podemos supor que
as informações com que negociamos tendam a
ganhar complexidade de sentidos.
Uma vez que o corpo seja unidade integrada, e que
nem sempre tenhamos consciência das informações
que está processando, as possibilidades de
interpretação da mesma informação são múltiplas.
Muitos e mutáveis são os fatores que entram em
questão para determinar a escolha de uma faceta
dos acontecimentos.
Modelos que se pretendem unânimes não são
afeitos ao corpo. A eleição de fórmulas que atestam
ou descreditam notícias, cuja prática está em
estreita relação com a ética e responsabilidade do
jornalismo cultural, esmorecem em contato com a
mediação corpo-ambiente.
Por isso a opção pelo viés corporal para tratar de
questões políticas no campo da arte me atraiu. Há
outras maneiras de fruição da arte e do pensamento
crítico e elas são organizadas pelo corpo no trânsito
com o ambiente.
É possível usar os media como maneira de
encontrar pares e fortalecer circuitos restritos que
não teriam espaço de divulgação e cobertura. Não
me interessa incorrer numa perspectiva tradicional
e equivocada, na qual toda forma de arte cooptada
pelos meios de comunicação de massa fenece. Isso
porque, o espaço para as artes na mídia, de fato, não
se refere somente aquelas formas que admitem se
34
rotular como entretenimento, como é o caso da
performer Marina Abramovic que nunca produziu
entretenimento para o grande público mas está na
mídia. É preciso, portanto, reconhecer que o critério
de visibilidade é outro, ou seja, refere-se a
estratégias de visibilidade. A hipótese desta
dissertação é de que tudo pode se transformar em
objeto da comunicação. No caso específico de
Abramovic, a despeito da pesquisa desenvolvida
pela artista, os seus produtos artísticos tornaram-se
produtos midiáticos, por exemplo, ao serem citados
em vídeo de entrevista com a pop star Lady Gaga.
35
http://www.youtube.com/watch?v=EVY4Whayw0s
Acessado em 10 de Março de 2011;
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Festival de Apartamento: http://festivaldeapartamento.blogspot.com, acessado em 04 de fevereiro de 2011.
Saudáveis Subversivos: www.saudaveissubvesivos.org, acessado em 11 de fevereiro de 2010.
Nace: http://www.nucleo.ufal.br/nace, acessado em 11 de fevereiro de 2010.
Companhia do Chapéu: http://ciadochapeu.blogspot.com, acessado em 11 de fevereiro de 2010.
Imagens e documentos sobre o performer Flávio Rabelo:
flickr.com/photos/flaviorabelo, acessado em 04 de fevereiro de 2011.
picasaweb.google.com/flaurabelo, acessado em 04 de fevereiro de 2011.
picasaweb.google.com/estranhocorpoestranho, acessado em 04 de fevereiro de 2011.
estranhocorpo.blogspot.com, acessado em 04 de fevereiro de 2011
flaviorabelo.wordpress.com, acessado em 04 de fevereiro de 2011.
39
Anexo I
Entrevista com Marcos Gallon, curador da Galeria
Vermelho, gentilmente cedida por e-mail em
02/2010.
Ludmila Castanheira: Qual era o contexto em que
vocês julgaram importante fazer um espaço
dedicado à performance? Isso se deu por causa da
demanda dos artistas no Brasil, ou por observar o
crescimento de trabalhos de performance em outros
países?
Marcos Gallon: A Verbo surgiu, em 2005, como
uma plataforma para acomodar os trabalhos na área
de performance dos artistas representados pela
Vermelho, ou seja, a partir de uma necessidade
interna. Desde 2002, quando a galeria foi criada,
trabalhamos com artistas jovens cujos trabalhos se
desdobram em vários formatos e mídias. A
performance é um deles. É o caso de Maurício
Ianês, Lia Chaia, André Komatsu, Cris Bierrenbach
e Marco Paulo Rolla, entre outros. Razões como as
que você menciona acima contribuíram para a
criação do evento já que só faria sentido criá-lo
como um campo de encontro e de diálogo entre
artistas da mesma área ou com outros backgrounds,
estabelecendo uma rede de contatos.
Ludmila Castanheira:Vocês observam alguma
mudança nos trabalhos recebidos durante os
primeiros anos de existência da Galeria para hoje?
Quais seriam as mais substanciais?
Marcos Gallon: As duas primeiras edições do
evento contaram com ações de artistas convidados.
Apenas em 2007 abrimos um tipo de edital para
receber propostas do Brasil e de outros países. A
partir daí começamos receber um grande número de
projetos. Não creio que tenha ocorrido uma
transformação representativa no conteúdo dos
trabalhos. Acho que a maior diferença diz respeito
ao público. Nas primeiras edições, tenho a
impressão que o público não sabia muito bem como
se relacionar com os conteúdos.
Ludmila Castanheira: Em São Paulo, além da
Galeria Vermelho, há o curso de Artes do Corpo na
PUC-SP com especialização em Arte da
40
Performance como órgãos oficiais com foco nesta
linguagem artística. Este panorama de discussão
influencia de alguma maneira os trabalhos
recebidos?
Marcos Gallon: Sim. Como mencionado acima,
todas as instâncias influenciam na criação de uma
plataforma de discussão acerca da Arte da
Performance.
Ludmila Castanheira: De que nacionalidade é a
maior parte dos trabalhos inscritos?
Marcos Gallon: Brasileiros.
Ludmila Castanheira: Há algum teor político nos
trabalhos, ou sua proposição hoje está mais no
âmbito estético?
Marcos Gallon: A maior parte dos projetos tem
conteúdo político. Essa é uma característica que
está associada à história da performance. A meu
ver, a performance é um dos âmbitos onde a crítica
ao entorno ainda é possível. Isso ocorre por várias
razões, mas acho que a principal é o fato da
performance ainda não ter sido totalmente
absorvida pelo mercado.
Ludmila Castanheira: Pode-se falar num risco de
enquadramento dos trabalhos em modelos que
foram estabilizados ao longo da história?
Marcos Gallon: Enquadrar é sempre arriscado. Se
você se refere ao processo de criação, sim, ao lado
do artista, acho natural que jovens criadores se
espelhem em experiências anteriores. Nesse sentido
é possível perceber, a partir dos projetos que
recebemos, certas tendências, ou melhor, esferas de
discussão, como performances que partem de idéias
ancestrais, mitológicas para abordar o estatuto do
corpo na atualidade. Por outro lado, se você se
refere aos trabalhos apresentados, portanto, ao
processo que seleciona as ações posso te dizer que
essa não é uma questão que permeia nossas
escolhas. Trabalhamos com o material que chega
41
até nós. Nosso papel é apresentar um recorte das
criações na área, disponibilizar espaço para que elas
aconteçam. Não cabe a nós criar conceitos. Esse é o
papel da crítica.
42
Anexo II
Folha de São Paulo
17/11/2010 - 07h30
Leia a entrevista de Marina Abramovic na íntegra PUBLICIDADE
FABIO CYPRIANO
DE SÃO PAULO
Marina Abramovic possui uma energia contagiante. Após sua consagração na mostra "A artista está presente", no MoMA, ela segue cheia de projetos,
como a nova mostra "Back to Simplicity", que será aberta amanhã (18), na galeria Luciana Brito, a peça "The Life and Death of Marina Abramovic", com
estreia prevista em junho do próximo ano, e o Instituto de Arte da Performance, que será aberto em 2012, perto de Nova York.
Ela ainda quer trazer a retrospectiva do MoMA para o Brasil, assim como a nova peça. Leia sobre tudo isso a seguir:
Letícia Moreira/Folhapress
43
A performer Marina Abramovic, que abre a mostra "Back to Simplicity", posa para foto no Hotel Fasano, em SP
FOLHA - O que significa "Back to Simplicity", que é o título de sua mostra?
MARINA ABRAMOVIC - Porque isso foi simplesmente necessário! A exposição no MoMA foi uma retrospectiva de tudo que já fiz e, ao mesmo tempo,
uma nova performance. No começo havia duas cadeiras e uma mesa e, no final, decidi tirar a mesa e ficaram só as cadeiras. A performance durou três
meses e, após tanto tempo, ela criou vida própria. E eu comecei a pensar em tantas coisas da minha vida, e, você sabe, a gente faz tanta merda em
nossa vida, estamos cercados por tantos conceitos, tantos projetos e coisas desnecessárias, coisas que a gente coleciona, coisas que a gente quer, que
eu realmente senti uma imensa necessidade de voltar à natureza, isso é, retornar a uma certa ritualização do cotidiano, como aproveitar o ato de beber
um copo de água, segurar uma ovelha. Sabe, eu sempre me senti como uma ovelha negra, que não pertencia a nenhum lugar. E quando segurei a
ovelha negra foi ótimo, mas aí precisava de uma ovelha branca e acabei segurando também um bode. Aí eu quis dormir embaixo de uma árvore, ou
44
então descascar cebolas ou batatas. Esse tipo de coisa que nós esquecemos, porque estamos tão envolvidos com consumo, uma sociedade que nos faz
cada vez mais querer mais e mais, que agora eu quero menos.
Na abertura do catálogo de sua mostra em SP há um "Manifesto sobre a vida do artista" [Leia íntegra no final desta entrevista]. Ele é
recente?
Ele é muito importante. Eu já o escrevi há uns três anos. Manifestos são muito importantes para mim. Muitos artistas já produziram manifestos: os
futuristas, os dadaístas, os artistas do Fluxus. Mas, de certa forma, manifestos ficaram fora de moda. Eu realmente acho que manifestos de arte são
importante, porque de certa forma eles apontam para as novas gerações condições e perspectivas de questões morais que a arte deve respeitar como
não se tornar um ídolo, ou não superproduzir seu trabalho, ou não se comprometer, coisas que acredito.
Uma das facetas em sua carreira é que você não só produz obras, como se preocupa muito em refletir sobre a arte em geral.
Eu acredito que eu sempre estou pensando na função da arte, eu acredito que a arte é um serviço para a sociedade, com uma função muito mais ampla
que apenas produzir trabalhos de arte. Eu vejo isso como uma responsabilidade e, nesse século, mais que nunca. E uma dessas responsabilidades é
com as novas gerações de artistas. Quando se alcança um certo grau de conhecimento e experiência é importante transmitir esse conhecimento e essa
experiência. Ser egoísta não é uma forma de atuar, é preciso,
incondicionalmente, pensar nas novas gerações.
Essa é uma das razões porque agora penso em meu legado e quero criar esse Instituto de Arte da Performance. Mas ele não será uma fundação, porque
senão seria para glorificar meu próprio trabalho e esse instituto não é sobre meu trabalho, mas sobre artistas produzindo seus trabalhos. Ele só terá
meu nome porque eu creio que sou uma marca, como jeans ou coca-cola, e pelo meu nome, Marina Abramovic, as pessoas vão saber qual ele é sobre a
performance, em geral, seja vídeo, música, teatro ou dança...
É verdade que lá você só vai apresentar trabalhos com mais de seis horas de duração?
Sim! Existem muitos centros de performance no mundo e a especificidade do meu serão trabalhos de longa duração, porque eu realmente acredito que
apenas esse trabalhos têm a capacidade de mudar o artista ou quem o observa. Se você faz uma ação de uma hora, você ainda está atuando, mas
depois de seis horas, tudo desmorona, torna-se verdade essencial. E para mim, esse tipo de verdade é muito importante. Posso dar um exemplo muito
simples: pegue uma porta e abra ela constantemente, sem entrar ou sair. Se você faz isso por três, cinco minutos, isso não é nada. Mas se você faz isso
por três horas, essa porta não é mais uma porta, ela é um espaço, o Cosmos, se transforma em outra coisa, é transcendente. Em todas as culturas
arcaicas, rituais e cerimônias eram repetidas sempre da mesma forma e existe um tipo de energia que fica alocada nessa repetição que afeta também o
público. Isso só se consegue em performances de longa duração.
45
Esse seu raciocínio me faz lembras que muitos dos artefatos usados por essas antigas civilizações eram apenas utensílios ritualísticos,
religiosos, mas agora são denominados artísticos...
Acho que isso é um grande equívoco, porque acredito que o grande princípio da arte é que ela é uma ferramenta. Se arte é algo que só trata de um
objeto, ela perde sua função. A arte tem que ser uma ferramenta para conectar ou questionar ou criar consciência no público, como qualquer outra
coisa. Há uma ótima entrevista de André Malraux, quando ele era ministro da Cultura, na França, com Picasso, acho que nos anos 1950. Ele perguntou
a Picasso porque ele tinha tantas máscaras africanas e ele respondeu que as máscaras eram muito importantes porque elas eram a chave, a ferramenta
para os humanos se comunicarem com as forças divinas, com os espíritos, o desconhecido; e ele queria aprender a fazer o mesmo com suas pinturas.
Eu acredito que a performance também é uma ferramenta, e por isso os objetos, eles mesmos, não tenham valor. Quem tem valor é o processo e
quando você passa por uma experiência, existe a transformação. Então a arte está completa. Mas para mim, arte fora de contexto e sem propósito, arte
pela arte não alcança ninguém.
Em sua exposição em São Paulo há registros de trabalhos feitos nos anos 1970, reconstruídos agora. Como você os classifica?
Eu não os reconstruí, na verdade eu simplesmente nunca havia revelado esses negativos e eu tenho um imenso arquivo. Nos anos 1970, quando
fizemos nossas performances, nós a registramos como documentação, memórias. Mas nunca os vendi. Eu realmente acredito que a memória do público
precisa ser ativada, porque pouca gente viu aqueles trabalhos e agora eu os estou mostrando.
Na biografia que foi publicada recentemente, consta que você comprou todo esse arquivo do Ulay, é verdade?
Sim, é verdade. Quando nos separamos, ele ficou com tudo e isso foi um inferno! Então foram necessários seis anos para eu conseguir tudo de volta e
ainda não foi um bom acordo, porque de tudo que eu vendo, ele fica com 20%, e como as galerias ficam com 50%, eu só fico com 10% a mais. Só que
eu é quem trabalho um monte, em revelar, moldurar, organizar mostras...
No próximo ano você prepara uma peça com Robert Wilson, "The Life and Death of Marina Abramovic", certo?
Ela é a continuação de uma única peça que tenho feito e que é sobre minha vida, "Biografia". Comecei em 1989, com Charles Atlas, e a cada cinco ou
seis anos, eu a refaço com um novo diretor, e eu cedo todo meu material, sem nenhuma condição. Eles têm a liberdade de fazerem o que quiser com
minha história, alterar a cronologia, o que quiser. Eu não posso vetar nada. E uma coisa que estou exercitando muito em minha vida é abrir mão do
controle.
46
Isso faz parte, inclusive, de minha idéia de reperformance, que é dar a possibilidade a jovens artistas de refazerem minhas performances, como eu refiz
sete performances em "7 Easy Pieces", no Guggenheim, em 2005. Essa é a única forma da performance ter vida longa, senão elas são apenas matéria
morta nos livros. E abrir mão de controle não é algo fácil para um artista, porque sempre dizemos meu trabalho, minha obra.
Com a direção do Robert Wilson, o Willem Defoe será o narrador e o Antony, do Antony & The Johnsons, está fazendo a música.
Você quer mostrar essa peça no Brasil?
Sim. Se alguém me convidar, eu venho correndo! Meu maior sonho se divide em dois: trazer a retrospectiva do MoMA para cá e também essa peça. Eu
tenho a sensação que a jovem geração de artistas aqui realmente admira meu trabalho e eu adoro o Brasil, já vim muitas vezes, me sinto muito
emocionada e até já fiz muitos trabalhos aqui.
Como você avalia sua retrospectiva no MoMA? Houve algumas críticas por conta das reperformances. Você viu os vídeos delas com seus
estudantes, o que achou?
Sabe, eles não eram meus alunos. Meus estudantes europeus não puderam ir porque não conseguiram visto de trabalho para os EUA, lá eles são muito
rigorosos com isso. Tive que fazer um novo casting lá!
Mas eu sou totalmente contra às críticas à reperformance, porque é muito fácil criticar. As pessoas precisam ter uma nova visão sobre isso porque afinal
é algo novo mesmo e diferente do que eu fiz nos anos 1970. As pessoas são diferentes, as circunstâncias são diferentes. Muito gente tem nostalgia ou
apreço pelo vintage. Eu estou de saco-cheio do vintage! Eu quero fazer performance honestamente e ter sempre uma nova vida! E por isso estou
abrindo mão do controle.
Manifesto sobre a vida do artista
Marina Abramovic
1 a conduta de vida do artista:
- o artista nunca deve mentir a si próprio ou aos outros
- o artista não deve roubar idéias de outros artistas
- os artistas não devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte
- o artista não deve matar outros seres humanos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
47
2 a relação entre o artista e sua vida amorosa:
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
3 a relação entre o artista e o erotismo:
- o artista deve ter uma visão erótica do mundo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo
4 a relação entre o artista e o sofrimento:
- o artista deve sofrer
- o sofrimento cria as melhores obras
- o sofrimento traz transformação
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
5 a relação entre o artista e a depressão:
- o artista nunca deve estar deprimido
- a depressão é uma doença e deve ser curada
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas
6 a relação entre o artista e o suicídio:
- o suicídio é um crime contra a vida
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio
7 a relação entre o artista e a inspiração:
- os artistas devem procurar a inspiração no seu âmago
- Quanto mais se aprofundarem em seu âmago, mais universais serão
48
- o artista é um universo
- o artista é um universo
- o artista é um universo
8 a relação entre o artista e o autocontrole:
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra
9 a relação entre o artista e a transparência:
- o artista deve doar e receber ao mesmo tempo
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
10 a relação entre o artista e os símbolos:
- o artista cria seus próprios símbolos
- os símbolos são a língua do artista
- e a língua tem que ser traduzida
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
11 a relação entre o artista e o silêncio:
- o artista deve compreender o silêncio
- o artista deve criar um espaço para que o silêncio adentre sua obra
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
49
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
12 a relação entre o artista e a solidão:
- o artista deve reservar para si longos períodos de solidão
- a solidão é extremamente importante
- Longe de casa
- Longe do ateliê
- Longe da família
- Longe dos amigos
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de cachoeiras
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de vulcões em erupção
- o artista deve passar longos períodos de tempo olhando as corredeiras dos rios
- o artista deve passar longos períodos de tempo contemplando a linha do horizonte onde o oceano e o céu se encontram
- o artista deve passar longos períodos de tempo admirando as estrelas
no céu da noite
13 a conduta do artista com relação ao trabalho:
- o artista deve evitar ir para seu ateliê todos os dias
- o artista não deve considerar seu horário de trabalho como o de funcionário de um banco
- o artista deve explorar a vida, e trabalhar apenas quando uma idéia se revela no sonho, ou durante o dia, como uma visão que irrompe como uma
surpresa
- o artista não deve se repetir
- o artista não deve produzir em demasia
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
14 as posses do artista:
- os monges budistas entendem que o ideal na vida é possuir nove objetos:
1 roupão para o verão
1 roupão para o inverno
1 par de sapatos
1 pequena tigela para pedir alimentos
1 tela de proteção contra insetos
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1 livro de orações
1 guarda-chuva
1 colchonete para dormir
1 par de óculos se necessário
- o artista deve tomar sua própria decisão sobre os objetos pessoais que deve ter
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
15 a lista de amigos do artista:
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
16 os inimigos do artista:
- os inimigos são muito importantes
- o Dalai Lama afirmou que é fácil ter compaixão pelos amigos; porém, muito mais difícil é ter compaixão pelos inimigos
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar
17 a morte e seus diferentes contextos:
- o artista deve ter consciência de sua mortalidade
- Para o artista, como viver é tão importante quanto como morrer
- o artista deve encontrar nos símbolos da sua obra os sinais dos diferentes contextos da morte
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
18 o funeral e seus diferentes contextos:
- o artista deve deixar instruções para seu próprio funeral, para que tudo seja feito segundo sua vontade
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
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Anexo III
Folha de São Paulo
14/04/2010 - 17h55
Conheça programas para aproveitar Nova York na primavera MARTHA LOPES
da Reportagem Local
Em qualquer época do ano, Nova York oferece uma infinidade de passeios culturais e programas gastronômicos que entretém qualquer turista. A
estação da primavera, no entanto, pode ser uma opção bastante agradável para visitar a cidade norte-americana, que se apresenta tomada por árvores
floridas e menos fria. Para quem pretende dar uma voltinha por ali nos próximos meses, a jornalista Maria Luiza Porto, que visita Nova York em abril, dá
algumas dicas. Confira:
Divulgação
"O Menino com Pregos nos Olhos" (foto) está na
mostra que vai até 26 de abril no MoMA
52
Exposição
Até 26 de abril, o MoMA exibe a mostra sobre o cineasta Tim Burton. Segundo Maria Luiza, a procura pelos ingressos é tão grande que a fila começa a
se formar antes de a bilheteria abrir e chega a dar a volta no quarteirão. Para organizar a entrada, foram estabelecidos horários de visitação, assim a
jornalista adquiriu seu ticket às 11h e só pode conhecer a exposição às 15h. O passeio, no entanto, é "obrigatório", afirma. "O mais interessante são os
itens de arquivo, os desenhos e redações do colégio que já mostravam o humor negro afiadíssimo de Tim Burton. É uma verdadeira jornada através da
mente criativa do artista", conta.
Quem passar pelo local também pode desfrutar, até 31 de maio, da mostra "Marina Abramovic: The Artist Is Present" (Marina Abramovic: a artista está
presente). O acervo reúne registros de intervenções, vídeos, performances e fotografias da artista plástica. Com sorte, é possível se deparar com ações
da própria Marina por ali. Na tarde em que Maria Luiza esteve no MoMA, Abramovic ficava no pátio principal encarando os visitantes que se dispusessem
a sentar de frente a ela.
The Museum of Modern Art - 11 West 53 Street, Nova York, NY. (212) 708-9400. Seg., qua., qui., sáb. e dom.: 10h30 às 17h30. Sex.: 10h30 às 20h. Fechado às terças-feiras. Ingr.: até US$
20. www.moma.org
Gastronomia
O bairro do SoHo guarda alguns dos restaurantes mais charmosos de Nova York. A dica de Maria Luiza Porto é o italiano I Tre Merli, "que impressiona
por seu pé direito altíssimo, belas paredes com tijolos aparentes e iluminação indireta por conta de luminárias penduradas", conta. As mesas espaçadas
e os sofás de couro vermelho contribuem ainda para o estilo descolado e moderno do local.
Entre as bebidas, a carta de vinhos dispõe de opções de taça a uma média de US$ 9. Para a entrada, Maria Luiza recomenda a terrine de foie gras, a
US$ 10. Já para o prato principal, o visitante pode provar criações como o ravióli de cogumelos selvagens com molho de trufas, por US$ 14, ou o penne
à la vodca, pelo mesmo valor.
O restaurante tem outras unidades na Itália e na própria cidade de Nova York.
I Tre Merli - 463 West Broadway. (212) 254-8699. www.itremerli.com
53
Noite
Para quem não dispensa uma balada, a sugestão é a Happy Ending, em Chinatown. O letreiro da entrada, que diz "Xie He Health Club", mascara o
espaço, mas o interior revela um clube que ocupa uma antiga casa de massagem, com as salas de sauna aparentes. Para entrar na casa de iluminação
colorida e sofisticada, não é preciso pagar nem encarar a temida seleção de um "door" --figura que analisa, nas casas noturnas de Nova York, quem
pode entrar.
A música é dançante e mescla hits antigos a atuais, incluindo Michael Jackson, The Ting Tings e The Gossip. Os drinques ficam na faixa de US$ 9 e são
mais um motivo para que o público composto por jovens de vinte e tantos anos se joguem na pista de dança até as 4h.
54
Fale com o Folhateen ([email protected])
30/06/2010 - 12h50
Sentimentos de anônimos dão identidade a performance e blog artísticos PUBLICIDADE
DE SÃO PAULO
Até o fim do mês passado, Marina Abramovic fez o público do MoMA chorar. Em cartaz com a mostra "Marina Abramovic: A Artista Está Presente", a
eslava ora circulava pelo museu ora apresentava suas performances polêmicas.
Acomodada em uma cadeira, Marina recebia os espectadores, que podiam sentar à sua frente e engatar uma "conversa" em silêncio, com o olhar. A
maioria não segurava as lágrimas.
O fotógrafo Marco Anelli fez retratos dos anônimos emocionados, que podem ser vistos no blog marinaabramovicmademecry.tumblr.com. Ao lado de
cada foto está o tanto de tempo que cada um levou para derramar lágrimas.
Divulgação
55
Visitantes choram em performance da artista Marina Abramovic no MoMA
Outro site que expõe sentimentos de anônimos é o postsecret.com. Atualizada aos domingos, a página de Frank Warren mostra cartões postais
enviados por leitores.
56
Todos eles contam um segredo por meio de colagens e desenhos, entre outras estilizações. Revelações engraçadas --como a da foto abaixo-- ou mais
pesadas podem ser vistas por lá.
Reprodução
No site Post Secret, mãe de 33 anos revela amor pelo vampiro de "Crepúsculo"
57
Anexo IV
Abaixo, o relato do performer Flávio Rabelo em
uma das situações em que realizou a ação
“Estranho, um cara comum”, feito com o auxílio de
um pequeno gravador que o performer portava na
ocasião, e transcritos posteriormente.
1º caminho – Igreja Catedral Metropolitana de
Nossa Senhora dos Prazeres. Maceió, Alagoas.
Data: 04 de Maio de 2005
Não dormi do dia três para o dia quatro de Maio,
passei toda a noite chuvosa resolvendo detalhes do
figurino e objetos.
São quatro horas da manhã do dia quatro de maio
de 2005, estou começando a trocar de roupa para
fazer a apresentação da performance “Estranho, um
cara comum”, no centro da cidade de Maceió, em
frente à igreja da Catedral. O tempo está chuvoso,
agora deu uma parada, mas estava chovendo forte,
possivelmente vai chover durante o dia. Estou
calmo, estou cansado, algumas dores no corpo, é
isso.
(...)
Faz mais ou menos uns cinco minutos que eu
cheguei aqui na catedral; quando eu saí de casa tava
caindo uma chuva fina, eu fui pelo Salgadinho,
peguei a Avenida da Paz, dois carros da polícia
cruzaram, passaram por mim, diminuíram a
velocidade, olharam. Confesso que fiquei meio
apreensivo; não sei se sabia, se conseguia
identificar se eu queria que eles parassem ou
continuassem; não fizessem nada. Durante todo o
caminho eu tinha vontade de chegar logo aqui.
Estou sentado, está chovendo, só quem está
passando pela rua são trabalhadores. A maioria não
olha pra mim. E os que olham estranham, fazem
cara de quem não está entendendo. Teve um cara
que passou numa bicicleta e fez uma cara feia, me
senti mal. Muita gente passa de bicicleta, na
verdade. Mas a maioria das pessoas nem olha.
Vai ser um longo dia. Um longo e chuvoso dia.
Todas as pessoas caminham lentamente pro
trabalho, com seus guarda –chuvas e sombrinhas
abertos. Poucos carros passam, muitas bicicletas.
A igreja está fechada.
Muita gente passa e fica olhando, virando a cabeça,
olhando até dobrar a rua.
(...)
58
Acabou de passar um cara que fez “êêêêê” pra
mim; foi a primeira pessoa que se comunicou com
algum som. Eu fiz “êêêê” pra ele. Ficou me
olhando, tava carregando duas grandes sombrinhas,
parecia um vendedor, um ambulante.
(...)
Acabei de ... fazer xixi nas calças.
No começo foi difícil relaxar, mas depois, achei
interessante a ação, me diverti vendo o xixi
descendo pela ladeira. Espero que realmente não
me dê vontade de fazer coco, espero que meu corpo
não chegue a tanto, mesmo.
(...)
Ações bem típicas: um carro parou, uma besta
branca, com o vidro aberto, o cara olhou pra mim e
depois virou a cara e fechou o vidro.
(...)
Fiquei pensando quase agora sobre arte, sobre o que
a caracteriza. Mas não nos conceitos; assim: o que é
além dos conceitos, pra fora dos conceitos? O que
determina que uma coisa pode ser classificada
como arte ou não?
As pessoas me olham sempre muito desconfiadas...
muito desconfiadas...
(...)
Amarrei a cabeça com muita força, a meia; e a
minha cabeça ta começando a doer. Acho que daqui
para o final, com certeza, vai estar rolando uma
dorzinha, está meio que apertado. Vou agüentar o
tempo que der.
(...)
Resolvi folgar a meia; calmamente tirei a toca de
plástico, folguei a meia.
Enquanto eu estou falando, as pessoas passam e me
olham. Devem achar estranho; mesmo o gravador
disfarçado na minha mão, mas o fato de eu estar
falando; enfim, a cabeça deu uma aliviada. O
movimento de carro aumentou, continua passando
muita gente de bicicleta. Muitos trabalhadores.
(...)
Duas mulheres atravessaram a rua morrendo de
medo. Olharam pra mim.
Acabou de passar também um carro da TV
Pajussara, parou no sinal, o motorista percebeu
primeiro a minha presença, acho que ficou
59
intrigado e comentou com os outros. Todos do
carro ficaram olhando e conversando, acho que
cogitando possibilidades. Antes deles, passou o
dono da lanchonete lá perto de casa, onde eu
sempre como. Não olhei muito. Mas acho que ele
não me reconheceu, mas também não tenho certeza.
(...)
Acho que faz mais ou menos meia hora que eu
estou aqui e a situação já mudou muito. O número
de carros aumentou, o barulho também. Quando eu
cheguei estava tudo muito calmo; a cidade começa
realmente a se movimentar.
Acabei de sentir um cheiro de maconha, passou
uma fragrância de maconha; será que tem alguém
perto fumando?
(...)
Passou um pivete cheirando cola.
Ficou olhando pra mim.
Parou um tempo, depois foi embora.
(...)
Muita gente atravessa a rua pra não passar perto,
acho que com medo.
(...)
Tentei deitar um pouco, mas não consegui não ficar
muito tempo. Fiquei com medo que um carro viesse
por cima de mim, num acidente; sei lá... Realmente
são muitos perigos. Também alguém podia chegar
por trás, fazer alguma coisa, não sei.
Esse tipo de pensamento ficou passando pela minha
cabeça, sensação estranha mesmo de desproteção.
De perigo mesmo.
De muitas possibilidades.
Muitas coisas podem realmente acontecer quando
você está na rua.
Sozinho.
Olhando pras pessoas.
E elas não estão olhando para você.
(...)
Duas ricaças passaram num carro, ouvindo uma
música religiosa. Pararam bem na minha frente. Eu
fiquei mostrando o espelho pra elas; elas viraram a
cara. Foi bem interessante. Bem óbvio, na verdade.
(...)
Faz uns dez minutos que eu comecei a usar o
espelho. Quando as pessoas ficam olhando pra mim
eu mostro pra elas o espelho. Às vezes fico parado,
60
às vezes faço pequenos movimentos e fico
brincando também de ver o mundo através desse
espelho.
A igreja. A rua.
É muito bom quando inverte o plano, quando as
coisas ficam de cabeça pra baixo ou na lateral.
Eu acabei de fazer xixi nas calças de novo. Não faz
nem uma hora que estou aqui e já é a segunda vez.
Acho que com o tempo vai diminuir. Espero...
Dessa vez foi mais gostoso, me diverti mais em
estar fazendo isso, no meio da rua, nas calças.
O movimento continua aumentando. Agora passa
todo tipo de gente, muitos carros, muitas crianças,
muita gente indo pro trabalho, muita gente indo pra
escola.
(...)
Um taxista passou e falou comigo e logo depois – o
taxista, ele acenou, fez um sinal de legal - e logo
depois um senhor que vinha andando achou que eu
tava pedindo esmola, fez uma cara de caridoso e
disse: “Perdoe, eu não tenho”.
(...)
Continuo brincando com espelho. As reações têm
se diversificado mais. Passaram dois carros da
polícia, pararam, ficaram olhando. Um dos
motoristas, inclusive estancou o carro quando foi
sair, por que estava olhando pra cá.
(...)
Duas loiras passaram rindo, quase batem o carro.
(...)
Acabou de passar um ex - aluna minha, que fez a
oficina do CEFET, a off – sina com Thiago. Ela não
me reconheceu.
(...)
O tempo todo eu fico me lembrando da aula que eu
fiz com o Jorge há uns dois anos atrás:
A possibilidade de sentar na rua.
A arte como desculpa.
A possibilidade de fazer isso.
Queria realmente acreditar que eu estou sentado
aqui independente de eu estar fazendo uma
performance ou não.
E eu realmente estou aqui.
Sentado.
Na rua.
61
Sem desculpas.
(...)
Acabou de passar o menino que faz espetáculo com
o Gajuru, que é ator. Ele olhou pra cá, pra mim,
mas acho que não me reconheceu não.
(...)
Já faz mais de uma hora que eu estou aqui, estou
começando a ficar com fome.
(...)
São oito e vinte; eu achei que eram oito horas. Ou
seja, minha noção de tempo está mais ou menos
correta. O movimento aumentou, mas as lojas aqui
perto ainda não abriram. As reações têm sido bem
variadas, bem variadas. Existe sempre a
desconfiança, mas agora eu começo a achar que as
pessoas percebem que tem algo a mais
acontecendo. O fato de eu encará-las, de estar
olhando nos olhos, por mais que esteja numa
postura bem cotidiana, mas o fato de eu encarar
essas pessoas nos olhos as deixa em dúvida.
(...)
Duas coisas interessantíssimas acabaram de
acontecer:
Primeiro passou um menino do Espaço Cultural, ele
faz licenciatura, me reconheceu. Ele veio falar
comigo eu acabei respondendo. Ele perguntou: É o
tcc? E depois perguntou quando eu ia defender. E
depois, imediatamente depois, quando ele tava
saindo foi chegando uma mulher e me ofereceu um
chá. Disse que custava R$ 0,25, eu disse que não
tinha dinheiro, o nome dela é Josefa, Zefinha ou Jô.
Ela vende café, chá, bolo e leite pela rua. Quando
eu disse que não tinha dinheiro, ela parou, pensou e
me deu. Encheu um copo pra mim de chá de Capim
Santo. Quentinho. Tomei dois goles e guardei um
pouco. Passou uma desconfiança pela minha
cabeça. Engraçado isso ter acontecido; a primeira
pessoa que faz alguma coisa, alguma ação humana
de contato, de conversa com essa pessoa estranha e
mesmo assim eu fiquei desconfiado.
O que será que tem nesse chá?
A Josefa perguntou por que meus dedos estavam
enrolados do jeito que estão, por que meu olho estar
tapado; eu disse que estava machucado. O olho ela
não se convenceu muito, ficou com cara de quem
tava duvidando, insistiu.
62
(...)
Acabou de passar um cara num carro, o carro
estava parado, ele ficou com uma cara de quem está
paquerando, jogando charme. Quando o carro
passou, ele me cumprimentou. Ele era uma figura
super interessante, bonito, cabelos grandes.
Estranho, muito estranho.
(...)
Está começando a me dar muito sono. Um sono,
muito sono. E eu estou com vontade de fumar um
cigarro.
Sono e cigarro.
A fome já passou.
Quer dizer, está aqui, mas não é forte.
Agora, um sono, sono, sono, um sono, um sono,
uma vontade de fumar um cigarro.
(...)
Eu pedi um cigarro pro cara que tava fumando num
carro. Ele primeiro disse que não tinha, depois de
um tempo fez um barulho, quando eu olhei, ele
jogou um cigarro pra mim. Era um coroa, num
carro gol.
(...)
Estou com vontade de fazer xixi de novo. Meu
deus, eu vou passar o dia me mijando...
(...)
Silvio Sarmento passou por aqui e depois de uma
pausa longa disse: “Isso é laboratório, né bi?” parou
e disse: “Mas eu não vou dar esmola não”.
Depois passaram Jota e Eulina. Eulina ficou na
dúvida de quem era e disse: “É o Flávio? É o
Flávio? É o Flávio!!!” E o Jota saiu carregando,
puxando por ela.
(...)
São dez horas, está começando a chover de novo,
Jota e Eulina passaram de volta, pararam,
conversamos um pouco. Jota perguntou se eu era o
duble do outro, me ofereceu uma moeda de
cinqüenta centavos que eu não aceitei. Perguntei se
ele tinha um cigarro e ele disse que não. Eulina
perguntou pelo outro eu disse que ele não tinha
vindo. Eles riram e foram embora.
A chuvinha está fina, eu estou com muito sono e a
fome começando a apertar e ainda são dez horas,
ainda falta muito tempo.
63
A minha bunda ta começando a coçar por causa da
roupa molhada de xixi. Ta começando a me dar
agonia.
Um cara passou e gritou: “Olha o pirata!”
(...)
Já são mais de onze horas, está chovendo muito, já
está chovendo a mais ou menos uns quarenta
minutos, a chuva, na verdade agora está fina, mas
ela é constante. Estou com frio, bastante frio.
Aconteceram coisas bem interessantes: desde o
começo da manhã, tinha do outro lado da rua, um
senhor pedindo esmola. Ele estava em baixo de
uma marquise quando a chuva começou. Mais ou
menos há uns cinco minutos ele foi embora; eu
estava aqui de cabeça baixa, ele passou por aqui e
deixou dois sacos plásticos abertos comigo, pra me
cobrir. E depois disso, o Jota passou também e
trouxe pra mim um pastel de queijo e um suco de
goiaba. Foi bem reconfortante. Apesar de que eu
não sei se o Jota faria isso por outra pessoa ou se
ele fez só por que me conhecia, sabia, identificou
que era eu. A atitude do senhor me tocou bastante.
Eu estou todo coberto com o plástico, e eu coloquei
o espelho no meu pé que está pro lado de fora,
virado pra cima. Aí, acabou de passar uma senhora
com um menino dizendo que o espelhinho era pra
eu ver as saias das mulheres...
Parou de chover faz uns cinco minutos. Está
começando a esquentar, mas eu ainda estou com
frio, a roupa toda molhada.
É internamente aconteceram muitas coisas comigo;
a chuva foi um elemento surpresa decisivo, bastante
significativo. Mudou meu estado físico,
conseqüentemente mudou estado psicológico; me
perguntei o que eu estava fazendo aqui, por que eu
tava aqui, para que serve, enfim, se existe algum
sentido, se não tem sentido e se é isso mesmo sem
sentido e tudo bem. Encontrei alguns olhares que...
Enfim, passamos um tempo nos olhando, algumas
pessoas. Durante a chuva acabei me emocionando,
tive uma sensação mesmo de sair do meu estado
normal e alterar o meu estado de consciência
mesmo.
As coisas agora estão se acalmando um pouco, a
temperatura está mudando, estamos na metade,
deve ser aproximadamente meio dia, não tenho
64
certeza. Ainda faltam seis horas, vamos ver o que
vai acontecer.
Acho que são duas horas da tarde, a chuva já parou
faz um tempo, a minha roupa está úmida ainda, mas
já secou um pouco e eu não estou mais com frio.
O Glauber apareceu. Antes dele apareceu a Valéria,
me deu uma carteira de Hollywood com três
cigarros. Já fumei quatro cigarros; dois da Valéria,
um do Jota e um que eu pedi e o cara jogou. Ainda
tenho mais dois.
A Telma César também já passou por aqui, e o
Jorge Shutze também.
Nessa última uma hora, eu acabei fazendo um
processo mais racional a partir do que eu vivi na
manhã que foi bem mais solitário; tentando resgatar
as sensações que eu passei pela manhã.
Uma descoberta interessante é atrapalhar o
movimento natural da calçada, estendendo minhas
pernas, fazendo com que as pessoas tenham que
desviar ou passar por cima. Nesse desvio, elas são
obrigadas a descer pra pista. É isso que a maioria
prefere fazer, poucos são os que pulam ou passam
por cima de minha perna.
O Careca passou por aqui, perguntou se eu estava
precisando de alguma coisa. A Silvia e o Carlos, e
algumas outras pessoas também.
Acabei de receber vinte e cinco centavos, o cara
deixou em cima do espelho. Antes desse dinheiro,
já recebi um real de uma outra pessoa e cinco
centavos de uma outra.
Uma menina que trabalha no Teatro Deodoro
acabou de passar por aqui, ela ficou super em
dúvida achando que me conhecia, mas não me
reconheceu, só saiu dizendo: “ Eu conheço esse
menino, eu conheço esse menino.”
(...)
Várias pessoas que me conhecem passaram e não
me reconheceram. Várias. Acabou de passar o
César, coordenador do Marista. Passou uma ex-
aluna minha do Madalena, ex-aluna do Marista,
várias pessoas não reconheceram. Continuei
exercitando o congestionamento da calçada.
Diverti-me fazendo isso. Fazendo com que as
pessoas mudassem o seu trajeto natural.
Acho que agora não falta mais muito tempo.
Passou um cara e disse: “Gostei da performance”.
65
E passou outra mulher, os dois tipos bem simples, e
a mulher disse bem eufórica: “Está representando a
arte!!!”
(...)
São duas horas da tarde, eu achei que era mais
tarde. Na verdade, ainda falta muito tempo.
É interessante perceber como as pessoas estão
condicionadas, elas reagem automaticamente, sem
mesmo se dar conta do que se trata, sem nem se dar
ao trabalho de ver. Elas reagem sem ver.
(...)
As pessoas continuam fazendo comentários bem
interessantes. Acabaram de comentar: “Isso é
loucura pura”; um outro ficou gritando: “Money,
Money, Money, Money, Money”. Uma menina
pediu pra se olhar no espelho, começou a se olhar,
depois achou que tinha que pagar, riu e saiu. Disse
que tava lisa, sem dinheiro.
(...)
Alguém comentou: “Eu queria muito saber o que é
isso!”
São quase quatro horas, eu estou com muito sono,
estou deitado de lado, dando umas cochiladas, o
sono está brabo.
(...)
São mais ou menos umas quatro e meia da tarde, a
cidade está começando a se acalmar, não chegou a
fazer sol quente, mas esquentou um pouco, não
choveu mais. O clima está brando, as pessoas estão
saindo do centro, o movimento agora é de saída.
Eu estou com muito sono, e com fome. Muita coisa
eu não gravei, vou ter que escrever. Muitas
nuances, meu humor mudou muito, cheguei a ficar
irritado, cheguei a me divertir muito, cheguei a
ficar muito triste. Realmente foram muitas
mudanças de humor.
Queria que seis horas chegasse logo. Queria ir pra
casa, tomar banho tirar esse fedor de mijo, comer
alguma coisa.
(...)
A quantidade de carros diminuiu bastante; só
pessoas andando, andando. Quase não passa carro
mais. Acho que já são perto das cinco horas.
66
Ai, meu deus, como eu estou cansado. Meu
estômago chega está queimando... E esse cheiro de
mijo que eu já não agüento mais. Falta muito.
Ainda falta muito, mas foi muito bom.
Muitas coisas passaram pela minha cabeça, muitos
olhares diferentes, muitas formas de se estranhar
alguma coisa.
Estranhar como curiosidade.
Estranhar com desprezo.
Estranhar com afeto.
Estranhar com pena.
Estranhar com pânico.
Estranhar...
Muitos olhares diferentes; muita gente também não
notou. Mas acho que a maioria viu, a maioria das
pessoas que passou por aqui. As pessoas saem
andando pela rua e ficam olhando pra trás, olhando,
olhando, olhando.
E teve gente que passou mais de uma vez durante o
dia, e que voltou a olhar espantado.
Testei meus limites físicos e psicológicos, as cinco
da tarde o desgaste já era grande e eu não via a hora
de Glauber e / ou Renata aparecerem. Estava com
sono, a cabeça pesada, o estômago apertado e uma
vontade de urinar novamente, mas não queria fazê-
lo ali mais uma vez. Mas, como não podia terminar
sem registro imagético, tinha que esperar. Esperei.
Renata apareceu, se aproximou, tirou umas fotos
enquanto conversávamos, avisei que entraria na
Catedral. Lá, andei em direção do altar e deitei no
chão, olhando o teto-céu azul com estrelas
douradas. Tive vontade de urinar ali, no altar, mas
desisti por não considerar necessário. Ouvi vozes
vindas do interior, levantei e saí.
Voltei pra casa andando com a Renata,
conversamos um pouco, mas o silèncio
predominou. Assim que chequei, tirei a roupa e fui
tomar banho.
Estou escrevendo esse texto as vinte três horas do
dia do acontecimento, cinco horas após seu
término, e ainda me sinto alterado física e
emocionalmente. Não consigo dormir, já me
alonguei, fumei, mas não relaxo. Estou sentindo a
pressão no olho direito por conta do tampão de fita
isolante (não coloquei nenhuma proteção por não
ter feito nenhum teste), as maçãs do rosto
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endurecidas, costas doloridas, o pensamento
solto, muitas idéias e lembranças. Conversei sobre
o assunto compulsivamente com os amigos.
Trocamos nossas impressões, tenho escutado relatos
interessantes, que só atiçam mais minhas energias.
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Anexo V
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0
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