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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Joselene Gomes de Souza
A REINVENÇÃO DA EXISTÊNCIA: HISTÓRIAS DE VIDAS E O
CONFRONTO DA PROTEÇÃO E DESPROTEÇÃO SOCIAL NA
REALIDADE DE MANAUS/AM
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
São Paulo
2012
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Joselene Gomes de Souza
A REINVENÇÃO DA EXISTÊNCIA: HISTÓRIAS DE VIDAS E O
CONFRONTO DA PROTEÇÃO E DESPROTEÇÃO SOCIAL NA
REALIDADE DE MANAUS/AM
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
Dissertação apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Serviço Social sob a orientação da professora doutora Maria Carmelita Yazbek.
São Paulo
2012
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BANCA EXAMINADORA
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DEDICATÓRIA
À jovem que tive a honra de conhecer em 2010 quando fui sua professora.
Não tinha noção da sua história de vida, mas logo percebi o seu potencial. A vida
sempre colocou no meu caminho pessoas maravilhosas, como você. Temos tantas
coisas em comum, e muitos desafios a superar. Como mulheres cidadãs do
Amazonas, temos o compromisso de lutar para a efetivação dos direitos.
A você, minha linda guerreira Apurinã.
Semente do Amanhã
Ontem um menino que brincava me falou
que hoje é semente do amanhã...
Para não ter medo, que este tempo vai passar...
Não se desespere não, nem pare de sonhar
Nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs...
Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar!
Fé na vida, fé no homem, fé no que virá!
Nós podemos tudo,
Nós podemos mais
Vamos lá fazer o que será.
(Música de Gonzaguinha)
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AGRADECIMENTOS
À vida, que nunca permitiu que eu me acomodasse diante das situações
que, a meu ver, eram imutáveis.
À Fundação Ford e toda a equipe da Fundação Carlos Chagas. Vocês me
mostraram que, mesmo diante de uma realidade de exclusão, ainda era possível.
Quero que saibam que serão sempre muito importantes em minha vida. Tenho
orgulho de ser bolsista e da convivência de aprendizados que sempre me
proporcionaram.
À minha querida professora e orientadora, doutora Maria Carmelita Yazbek,
que, além do aprendizado transmitido, me presenteou com sua simplicidade digna
dos sábios. Obrigada pela paciência, incentivo e por fazer parte para sempre da
minha vida. E principalmente por ter me proporcionado conviver com tanta
dedicação.
À doutora Aldaíza Sposati. Antes de conhecê-la pessoalmente, a admirava
pelos livros, como escritora e colega de profissão. Durante o mestrado, tive a honra
de conviver com você durante as aulas e posso dizer: sempre será um exemplo a
ser seguido, não apenas como profissional, mas principalmente como pessoa.
À doutora Maria Lucia Martinelli. Eu a vi pela primeira vez no dia da minha
entrevista no programa, quando chegou cumprimentando a todos que ali estavam, e
eu pensei: Não pode ser a Martinelli do livro, ela não seria tão simples assim. E,
para minha felicidade, era você, linda e simples, exemplo que deve ser seguindo por
muitos profissionais da nossa área.
À doutora Marta Campos. Nunca vou esquecer a força e os ensinamentos
transmitidos.
Ao doutor Ademir Alves da Silva, pelo aprendizado.
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A toda a equipe do programa de pós-graduação da PUC-SP e,
especialmente, a Vânia. Realmente, vocês fazem a diferença.
À minha querida família do coração. Vocês sabem a importância de cada um
em minha vida.
À minha querida amiga, Janaína Pires Barbosa, que no momento em que
todas resolveram pensar individualmente, você pensou coletivamente. A vida sem
você, em São Paulo, não seria tão agradável.
Aos meus amigos, Alba dos Andrades e Emanuel Silva, que contribuíram
para a concretização deste trabalho.
Aos meus filhos, Thaynah, Thayanne e Lucas. Vocês são minha força,
minha alegria, e meu presente divino.
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SOUZA, Joselene Gomes de. A reinvenção da existência: histórias de vidas e o confronto da proteção e desproteção social na realidade de Manaus/AM. 2012. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
RESUMO
O presente trabalho é resultado de uma pesquisa qualitativa, que se apoia na história oral e na compreensão do contexto sócio-histórico brasileiro, suas complexidades e contrastes nas relações sociais observadas nas práticas cotidianas de resistência a dominação. Objetivou-se conhecer a versão dos sujeitos sobre períodos e fatos, que estão relacionados com a Proteção Social brasileira, durante o século XX, especialmente a partir da década de 1970. Buscou-se construir uma trajetória a partir da história oral, com narrativa de vida, mediada pela memória e pela subjetividade, tendo como base a realidade vivenciada por duas mulheres nascidas, em décadas diferentes, na cidade de Manaus. Apresentou-se um estudo desvinculado do discurso institucional, ao mesmo tempo em que foram valorizadas a memória, a fala, a individualidade e as subjetividades de sujeitos reais e suas formas de resistência cotidiana, com vistas à contribuição para o entendimento da condição da criança e do adolescente no Brasil e da importância da proteção social, especialmente em Manaus/AM, que caracteristicamente vivencia um processo de jogo político, assim como para importante reflexão sobre o sistema de proteção social brasileiro. Haja vista que se apresentou um cenário permeado de injustiças sociais, que constrói a história de milhares de pessoas, que lutam para validar o acesso à proteção social, com equidade. Revelou-se a inoperância do Estado e a segmentação imposta pela sociedade capitalista, mediante a exclusão do acesso a bens e serviços, constituindo-se como desafios para a efetivação do sistema de proteção social brasileiro frente aos seus recentes avanços.
Palavras-chave: História; Proteção Social; Pobreza.
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SOUZA, Joselene Gomes de. The reinvention of existence: life stories and the confrontation between social protection and helplessness in the reality of Manaus, AM. 2012. Dissertation (Master’s degree in Social Service) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
ABSTRACT
This work is the result of qualitative research, based in oral histories and the understanding of the Brazilian social-historical context, its complexities and contrasts in the social relationships observed in daily practices of resistance to domination. The research aims at coming to an understanding of the subjects’ versions of the time periods and facts related to the Brazilian social protections during the 20th century, especially since the 1970’s. The work seeks to construct a trajectory starting with oral histories, with life narratives, mediated by memory and subjectivity, based on the life experiences of two women born in the city of Manaus in different decades. It presents a study that is detached from institutional discourse while at the same time values the memory, speech, individuality and subjectivity of real subjects and their forms of daily resistance, with the intention of contributing to the comprehension of the daily lives of children and adolescents in Brazil and the importance of social protections, particularly in Manaus, AM, which by nature finds itself mired in a political game, as well as reflecting on the Brazilian social protection system. It can be seen that a scenario permeated by social injustices which have constructed the history of thousands of people who struggle to validate equitable access to social protections. The study reveals the inefficiency of the State and the segmentation imposed by a capitalist society, mediated by the exclusion of access to goods and services, which constitute the challenges to making the Brazilian system of social protection, even when faced with recent advances.
Key words: History, Social Protections, Poverty
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BPC - Benefício de Prestação Continuada
CF - Constituição Federal
CLT - Consolidação das Leis do Trabalho
CMM - Casa Mamãe Margarida
CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social
CNCC - Comissão Nacional Criança e Constituinte
CT - Conselho Tutelar
CUNL - Centro Universitário Nilton Lins
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
Enem - Exame Nacional do Ensino Médio
FCP - Fundação Casa Popular
FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
Fies - Fundo de Financiamento Estudantil
Fuam - Fundação Alfredo da Matta
Funabem - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
Funabem - Fundação Nacional do Bem-Estar Social
Funrural - Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
Iapas - Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social
IAPB - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários
IAPC - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários
Iape - Instituto de Aposentadoria e Pensão da Estiva
Iapetec - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em
Transporte e Cargas
Iapi - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários
IAPM - Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos
IBGE - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Inamps - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS - Instituto Nacional de Previdência Social
INSS - Instituto Nacional do Seguro Social
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Ipase - Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores do
Estado
LBA - Legião Brasileira de Assistência
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Lops - Lei Orgânica da Previdência Social
OIT - Organização Internacional do Trabalho
PBF - Programa Bolsa-Família
PDT - Partido Democrático Trabalhista
PIB - Produto Interno Bruto
PIM - Polo Industrial de Manaus
PJ - Pastoral da Juventude
Pnabem - Política Nacional do Bem-Estar do Menor
Prouni - Programa Universidade para Todos
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira
PSE - Proteção Social Especial
PUC-RIO - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
PUC-RS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SAM - Serviço de Assistência ao Menor
Sares - Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social
senac - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
Senai - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SUS - Sistema Único de Saúde
UEA - Universidade Estadual do Amazonas
Ufam - Universidade Federal do Amazonas
UNB - Universidade de Brasília
Uninorte - Centro Universitário do Norte
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Cidade flutuante que existiu em Manaus na década de 1960.............
Figura 2: Embarcação regional conhecida como recreio ou barco dos
regatões. Transporta pessoas e mercadorias pelos rios do Amazonas..............
Figura 3: Criança cuidadora................................................................................
Figura 4: Histórico escolar do ensino fundamental.............................................
Figura 5: Escada de acesso à parada de ônibus do Parque Florestal................
Figura 6: Margem do Rio Madeira, em Porto Velho............................................
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Leis previdenciárias, trabalhistas e sociais de 1923 a 1993..............
Quadro 2: Governadores do Amazonas e prefeitos de Manaus.........................
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Resumo do plano de governo do Presidente José Saney................... 81
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
1 A PROTEÇÃO SOCIAL E OS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL..................
2 MEMÓRIA, AUSÊNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO DA VIDA: O INÍCIO DA
MINHA HISTÓRIA...............................................................................................
2.1 Nascimento: Herança, Identidade e Continuidade?...................................
2.1.1 Mergulhando na minha história de vida...............................................
2.1.2 A “infância” e o lugar estabelecido ......................................................
2.2 De Casa em Casa......................................................................................
2.3 Adolescência/ Juventude...........................................................................
2.4 O Casamento.............................................................................................
2.5 A Universidade...........................................................................................
2.6 A Assistente Social....................................................................................
2.7 O Emprego.................................................................................................
2.8 O Mestrado................................................................................................
3 ESTADO DE DIREITOS: PERSONAGENS DIFERENTES E UMA
HISTÓRIA SEMELHANTE, 15 ANOS DEPOIS..................................................
3.1 A Origem: O Nascimento de uma Guerreira..............................................
3.2 A Infância em Porto Velho.........................................................................
3.3 O Retorno a Manaus..................................................................................
3.4 A Luz que Faltava......................................................................................
3.5 Direitos Protegidos e a Vida de Abrigada..................................................
3.6 A Universitária e a Vida Fora da Casa Mamãe Margarida.........................
3.7 A Vida Depois da Graduação.....................................................................
4 CONSIDERAÇOES FINAIS: O ENTRECRUZAR DAS HISTÓRIAS...............
REFERÊNCIAS....................................................................................................
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho é resultado de uma pesquisa qualitativa, que se apoia
na história oral. Segundo Lang (2000, p. 123), essa construção metodológica
permite conhecer as realidades passada e presente, pela experiência e voz
daqueles que a viveram.
Conforme Martinelli (1999, p. 24-25), importantes pressupostos
fundamentam o uso das metodologias qualitativas. Contidos no uso da história oral,
o primeiro refere-se ao reconhecimento da singularidade dos sujeitos; o segundo,
traz que essas pesquisas partem do reconhecimento da importância de conhecer a
experiência social dos sujeitos; e o último implica reconhecer que o modo de vida do
sujeito pressupõe saber como ele elabora sua experiência social cotidiana.
Desse modo, a história oral permite conhecer a realidade de sujeitos a partir
dos significados que lhes são atribuídos. (MARTINELLI,1999, p. 23). O relato oral e
a técnica de história de vida permite trazer fatos, sentimentos, registro de lembrança
pessoal privada, silenciosa, para converter-se em experiência social, quando sobre
eles se reflete politicamente. (ROJAS, 1999, p. 88).
Para tanto, faz-se necessário entender o contexto histórico brasileiro,
realidade esta repleta de incertezas, complexidades e contrastes, que dificultam a
compreensão das relações sociais contraditórias, observada nas práticas cotidianas
de resistência à dominação. A contribuição da história de vida, por esse motivo,
proporciona o conhecimento da vida social.
São realidades anônimas, repletas de experiências diversas, vivenciadas em
situações semelhantes, que podem identificar o pertencimento do sujeito, suas
representações, e os fatos, ricos de significados. Permitem compreender o
comportamento dos indivíduos em suas relações sociais, expressando o movimento
individual/coletivo (YAZBEK, 2007, p. 25).
Este trabalho foi elaborado no intuito de conhecer a versão dos sujeitos
sobre períodos e fatos relacionados com a Proteção Social brasileira, durante o
século XX, especialmente a partir da década de 1970. Buscou-se construir uma
trajetória a partir da história oral, com narrativa de vida, mediada pela memória e
pela subjetividade, tendo como base a realidade vivenciada por duas mulheres
nascidas em décadas diferentes, na cidade de Manaus/AM.
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Nesse sentido:
A história que se constrói no chão social é tão rica de meandros e significados que precisamos compreender um número cada vez maior de fatos para explicar em profundidade processos que envolvem subjetividades em confronto dentro do movimento geral da História. (WHITAKER, 2000, p.147).
Como locus deste estudo, foi escolhida a cidade de Manaus/AM, pois foi
nesse território que as histórias das personagens que dão voz a este trabalho se
entrecruzaram e apresentaram suas distintas relações com a proteção social.
Buscou-se apresentar um estudo desvinculado de um olhar pautado no discurso
institucional, ao mesmo tempo em que valoriza a memória, a fala, a individualidade e
as subjetividades de sujeitos reais e suas formas de resistência cotidiana.
A cidade de Manaus, de acordo com o Censo de 2010 (IBGE, 2010), possui
atualmente 1.802.014 habitantes. É sede do Distrito Industrial, que possui indústrias
modernas, com tecnologia de ponta, e a coloca no ranking das seis cidades
brasileiras com maior Produto Interno Bruto (PIB), e em primeiro lugar1 na Região
Norte (IBGE, 2008).
O município está classificado na 864a posição, entre todos os municípios
brasileiros, no que se refere à renda familiar per capita. A distribuição de renda em
Manaus expressa as contradições historicamente cristalizadas, variando de acordo
com as unidades espaciais locais. Desta forma, os 20% mais pobres ficam com
1,6% da renda produzida e os 20% mais ricos ficam com 68%. É importante
destacar que os 10% mais ricos são donos de 52% da renda, ou seja, mais da
metade de riqueza produzida (SCHERER, 2009, p.141).
O estudo foi realizado por meio da recuperação da memória expressada em
narrativa, pelo primeiro sujeito, e do relato oral, de outro sujeito, que foi denominado
aqui de Apurinã2 e é o personagem dessa história. O interesse pela temática surgiu
a partir da história de vida da autora, que, durante seu desenvolvimento, presenciou
diversas formas de aviltamento dos direitos da criança e do adolescente pobre na
cidade de Manaus, assumindo, desde os seis anos de idade, as responsabilidades
por seu próprio destino, suas formas de sobrevivência e resistência.
1Disponível em: <http://acritica.uol.com.br/manaus/PIB>. Acesso em: 27 ago. 2012
2 Apurinã significa “aquele que corre”.
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A opção pela história oral tem como perspectiva dar voz aos personagens,
deixar que os acontecimentos sejam contados por eles, mostrar suas memórias e a
forma de encarar uma realidade que os exclui. Assim como as formas de
desproteção da família, que, historicamente, vem sendo alvo do descaso e da
exploração, pois seus membros são individualmente obrigados a arquitetar diversas
formas de sobrevivência e resistência em um ambiente insalubre marcado pela
desigualdade e desproteção social.
Nesse sentido, Silva (2004, p. 44, apud Azevedo e Guerra) explica:
Refere-se às consequências da desigualdade social e da pobreza que teriam como resultado a “produção social de crianças vitimadas pela fome, por ausência de abrigo ou por morar em habitações precárias, por falta de escolas, por doenças contagiosas, por inexistência de saneamento básico”. Essa situação de vulnerabilidade é denominada vitimação de crianças, sendo que “a questão principal que consolida o argumento da vitimação é seu caráter desencadeador da agressão física ou sexual contra crianças, tendo em conta que a cronificação da pobreza da família contribui para a precarização e deterioração de suas relações afetivas e parentais. Nesse sentido, pequenos espaços, pouca ou nenhuma privacidade, falta de alimentos e problemas econômicos acabam gerando situações estressantes que, direta ou indiretamente, acarretam danos ao desenvolvimento infantil.
A realidade de pobreza material não explica com profundidade o fenômeno
da violação dos direitos da criança e do adolescente, pois nem todas as famílias
pobres vivenciam situações de violação dos direitos de seus membros, assim como
nem todas as famílias das classes detentoras de mais poder aquisitivo estão isentas
de maus-tratos e violação de direitos cometidos por seus familiares (SILVA, 2004, p.
44).
Não é intenção afirmar que a pobreza não tenha qualquer relação com a
violação dos direitos, mas é necessário destacar que existem inúmeros fatores de
risco que podem contribuir ou determinar situações de violação dos direitos da
criança e do adolescente e da família como um todo.
A pobreza é insuficiente para explicar todas as formas de manifestação da violência no âmbito da família. A relação entre pobreza e vitimação de crianças e adolescentes por parte de seus responsáveis não é direta, pois existem outras mediações que refutam o caráter natural e fatalista com frequência atribuído a essa associação. Entretanto, como bem observa Faleiros, não é possível
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dissociar o padrão de convivência familiar das questões mais amplas de frustração, humilhação, redução dos direitos sociais e privação causadas pelo desemprego e pela diminuição do papel do Estado na garantia da sobrevivência das famílias por meio da provisão de políticas sociais. A tese aqui defendida, portanto, é de que a pobreza, ao aumentar a vulnerabilidade social das famílias, pode potencializar outros fatores de risco, contribuindo para que crianças e adolescentes mais pobres tenham mais chances de ver incluídos na sua trajetória de vida episódios de abandono, violência e negligência. A condição socioeconômica precária das famílias, ao impor maiores dificuldades para a sobrevivência digna do grupo familiar, funcionaria como um elemento agravante e desencadeador de outros fatores de risco preexistentes. (SILVA, 2004, p. 45).
Mesmo que grande parte de crianças e adolescentes abrigadas seja oriunda
de famílias pobres, pois a pobreza também é falta de oportunidade, de sobrevivência
digna; é desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano, ou seja, de qualidade
de acesso a bens e serviços garantidos constitucionalmente (SILVA, 2004, p. 58).
A falta é que vai determinar o lugar dos sujeitos na sociedade. Viver sem o
básico necessário é remar contra a maré, pois sobreviver dignamente requer
garantias de acesso. É romper com a herança colonial e a escravidão prolongada,
que colocaram para os trabalhadores a responsabilidade por sua própria
sobrevivência. (YAZBEK, 2012, p. 08).
Diante do exposto, este trabalho objetivou realizar, pela mediação da análise
das histórias de vida de duas mulheres, uma reflexão sobre o sistema de proteção
social brasileiro, destacando os avanços constitucionais e retrocessos que
historicamente são evidenciados no Brasil. Mesmo diante de um cenário de
desmontes dos direitos sociais, é possível afirmar que a proteção social vem
ganhando espaços e concretizando os direitos sociais no Brasil.
Assim, foi escolhida, como categoria central norteadora deste estudo, a
noção de proteção social, que, segundo Sposati (2009, p. 21),
Supõe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruição, sua alteração. A ideia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida –, supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista é que exige tanto a noção de segurança social como a de direitos sociais. (SPOSATI, 2009, p.21).
Contém, ainda, um caráter de justiça, na perspectiva do enfrentamento das
desigualdades sociais. A proteção social é, inegavelmente, um fator de justiça social
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e, nesse sentido, também um fator de paz, conforme coloca o preâmbulo da
Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT). (EUZÉBY, 2004,
p.11).
A pobreza, outra categoria que se destaca, é abordada, nesta dissertação,
em uma perspectiva multidimensional. Conforme Yazbek (2012, p. 289):
A pobreza como uma das manifestações da questão social3, e dessa forma como expressão direta das relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito de relações constitutivas de um padrão de desenvolvimento capitalista, extremamente desigual, em que convivem acumulação e miséria. Os “pobres” são produtos dessas relações, que produzem e reproduzem a desigualdade no plano social, político, econômico e cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. Um lugar onde são desqualificados por suas crenças, seu modo de expressar-se e seu comportamento social, sinais de "qualidades negativas" e indesejáveis que lhes são conferidas por sua procedência de classe, por sua condição social. Este lugar tem contornos ligados à própria trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos valores culturais das classes subalternas e de seus interlocutores na vida social. Assim sendo, a pobreza, expressão direta das relações sociais, ‘certamente não se reduz às privações materiais’. É uma categoria multi-imensional, e, portanto, não se caracteriza apenas pelo não acesso a bens, mas é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de informações, de possibilidades e de esperanças. (MARTINS, 199, p.15).
Nessas configurações, este trabalho está dividido em três capítulos. O
primeiro capítulo traz o resgate histórico da constituição do sistema de proteção
social brasileiro, seus avanços e retrocessos.
O segundo capítulo trata da história de vida da primeira mulher, nascida em
1974, na cidade de Manaus/AM, filha de regatões. A princípio, perde o contato com
o pai e, a partir dos seis anos de idade, é deixada pela mãe, passa toda infância e
adolescência trabalhando como doméstica. Aos 16 anos de idade, consegue
matricular-se em uma escola pública para cursar Educação Integrada, e sua vida é
marcada pelo trabalho e a vontade de chegar a uma universidade.
3A questão social resulta da divisão da sociedade em classes e da disputa pela riqueza socialmente
gerada, cuja apropriação é extremamente desigual no capitalismo. Supõe, desse modo, a consciência da desigualdade e a resistência à opressão por parte dos que vivem de seu trabalho. Nos anos recentes, a questão social assume novas configurações e expressões e “as necessidades sociais das maiorias, as lutas dos trabalhadores organizados pelo reconhecimento de seus direitos e suas refrações nas políticas públicas, arenas privilegiadas do exercício da profissão sofrem a influência do neoliberalismo, em favor da economia política do capital”. (IAMAMOTO, 2007, p.107).
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Contudo, a necessidade de sobrevivência adiava a todo o momento o sonho
de estudar. Aos 20 anos de idade, casou-se e desistiu novamente da escola, para
cuidar dos filhos que chegavam. Aos 28 anos, terminou o ensino fundamental; um
ano depois, o ensino médio, na modalidade acelerado e, aos 30 anos de idade, com
três filhos pequenos ela, finalmente, vê seu sonho se tornar realidade, quando inicia
o curso de Serviço Social, em uma universidade privada, na cidade de Manaus.
Logo depois, finaliza um curso de especialização e ingressa, como docente
do curso de Serviço Social, no Centro Universitário do Norte. Diante das exigências
da profissão, o mestrado vai se tornando uma nova necessidade. E, no primeiro
semestre de 2011, inicia o mestrado em Serviço Social na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
O terceiro capítulo apresenta a história de vida da segunda mulher, Apurinã,
nascida em 1989, em Manaus/AM, filha de uma prostituta de 15 anos de idade, que
aos 16 anos vai morar em Porto Velho/RO para trabalhar no Garimpo de
Ariquenes/RO. Apurinã, mesmo nascida em uma década de conquistas e efetivação
dos direitos sociais, teve sua infância marcada por todas as formas de agressão e
desrespeito ao direito da criança e do adolescente.
Cedo, é obrigada a lutar pela sobrevivência e, como a maioria das crianças
pobres deste País, busca formas para se desenvolver e estudar, direitos esses
garantidos pela Constituição Federal de 1988. E diante de uma realidade
infelizmente ainda comum para grande parcela das crianças pobres do Brasil e
especialmente da cidade de Manaus, Apurinã, mesmo vivenciando situações de
violência, consegue a inclusão escolar logo em seus primeiros anos de vida, pois
tem acesso à escola infantil, depois ao ensino fundamental, sonhando, a cada dia,
chegar a uma universidade. E é na escola que conhece o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e, assim, percebe a situação de violação dos direitos da criança
e do adolescente que vivenciava.
Aos 10 anos, Apurinã resolve voltar para Manaus e inicia nova fase de
violação de seus direitos. Mas é o conhecimento dos mecanismos legais de
proteção à criança e ao adolescente que transforma a vida daquela pequena menina
desamparada.
Dessa forma, o trabalho será desenvolvido a partir da história real dessas
mulheres e as reinvenções das suas experiências cotidianas. Memórias contribuirão
para o entendimento da condição da criança e do adolescente no Brasil e da
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importância da proteção social, especialmente em Manaus, que caracteristicamente
vivencia um processo de jogo político, assim como para importante reflexão sobre o
sistema de proteção social brasileiro.
Entende-se que a relevância social deste estudo consiste na contribuição
para a discussão a respeito do sistema de proteção social brasileiro, ampliando o
debate e o conhecimento sobre as formas de enfrentamento da pobreza material,
diante das estratégias arquitetadas pelos sujeitos, na ausência do Estado.
A cientificidade deste estudo consiste na ampliação do conhecimento na
área do Serviço Social, possibilitando, dessa forma, o debate sobre a construção do
sistema de proteção social. Busca-se subsidiar novos conhecimentos basilares na
construção de propostas que atentem para as arestas contidas no processo histórico
de formulação da proteção social brasileira, a partir de vivências dos sujeitos, com
uma abordagem singular e ascendência ao genérico.
20
1 PROTEÇAO SOCIAL E OS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
Em todas as sociedades humanas foram desenvolvidas formas de proteção
aos seus membros mais vulneráveis, todas variáveis no tempo e no espaço.
(YAZBEK, 2009, p.2, apud GIOVANE, 1998, p. 9). O sistema de proteção social
brasileiro vem historicamente ganhando espaço, a partir da emergência dos
processos de industrialização e das lutas dos trabalhadores por melhores condições
de vida, de reprodução social, e econômica.
Esse processo vai culminar com a expansão da cidadania, requerendo
dessa forma uma abrangência maior, no que diz respeito aos direitos conquistados,
direitos estes que passam de civis e políticos, apenas, e adquirem abrangência no
âmbito da Proteção Social.
Acerca da emergência do sistema de proteção social no País, Yazbek (2009,
p. 3) destaca:
As desigualdades sociais não apenas são reconhecidas, como reclamam a intervenção dos poderes políticos na regulação pública das condições de vida e trabalho desses trabalhadores. Nesse contexto, e com o desenvolvimento da industrialização e urbanização são institucionalizados no âmbito do Estado mecanismos complementares ao aparato familiar, religioso e comunitário de proteção social, até então vigente, configurando a emergência da Política Social nas sociedades industrializadas.
Somente após a crise de 1929 é que, em meio às transformações de ordens
política, econômica e social, e de mudanças do modelo de produção, que o Estado
amplia seu grau de autonomia na tomada das decisões, passando a intervir mais
fortemente na economia. (SARTORI, 2012, p. 24). Nesse sentido, esta autora
destaca os anos de 1930, 1964, 1985 e 1994 como marcos relevante para as
transformações sociais ocorridas no País.
Ainda para Sartori (2012), depois da revolução de 1930, em meio às
transformações da economia agrária para urbano-industrial, o Estado passa a
participar da acumulação e centralização para resolver a independência dos Estados
da Federação.
A partir dessa década é que tem início, no Brasil, a construção da proteção
social, seguindo o modelo previdenciário, pois a questão social ganha visibilidade e
21
estatuto político. Estando, os trabalhadores formais, cada dia mais organizados para
lutar por seus direitos, aos pobres sem trabalho formal, segundo Sartori (2012, p. 26,
apud POCHMANN, 2004, p. 69-70), restava:
Aos despossuídos do regime do assalariamento formal foi disponibilizado o assistencialismo circunstancial e imediatista, que produziu a desigualdade e a tutela por meio da regulação de favores e da relação politico-eleitoral de tratar os excluídos como massa de manobra. O principio da subsidiariedade que se construiu entre o estatal e o privado possibilitou ao Estado repassar à rede de filantropia e benemerência a responsabilidade pela execução das ações emergenciais do assistencialismo regulado.
Conforme Silva (2008, p. 40), o sistema de proteção social no Brasil remonta
aos anos de 1930 e 1943, período de grande transformação socioeconômica,
mudança no modelo de produção e reordenamento nas funções do Estado. Este,
por sua vez, passa a gerir e prover diretamente a assistência. Porém, a base para a
proteção social e cidadania era marcada pelo trabalho e os trabalhadores deveriam
estar devidamente enquadrados no mercado formal.
Ser cidadão significava ter carteira assinada e pertencer a um sindicato, ou seja, forjou-se uma cidadania regulada, restrita ao meio urbano, numa sociedade marcada pela fragilidade de disputa entre interesses competitivos. (SANTOS, 1987, apud SILVA, 2008, p. 26).
Nessa mesma direção, Telles (2006, p. 89) afirma que foi a partir da década
de 1930 que se criou, no Brasil, o sistema de proteção social que retirou os
trabalhadores do arbítrio do patrão para o poder do Estado. Porém, a herança do
atraso social e do conservadorismo é característica marcante da formação do
mercado de trabalho brasileiro. Diante da abundância de mão de obra, em
competição, os salários desvalorizavam e contribuíam para a concentração de
renda.
Contudo, Yazbek (2012, p. 09) afirma que já é possível observar iniciativas
de proteção social no Brasil, em 1923, com a Lei Eloy Chaves, uma legislação
precursora de sistema protetivo, na esfera pública, com as Caixas de
Aposentadorias e Pensões (CAPs).
Em 1923, inspirado por indústrias com as quais mantinha contatos estreitos, segundo pertence à historia, o deputado paulista Eloy
22
Chaves apresenta projeto logo transformado, em 24 de janeiro, no Decreto-Lei n. 4.682, criando a Caixa de Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários. Tipicamente, ela se destinava à criação de um fundo, mediante a contribuição dos empregadores, dos empregados e do Estado (este através de recursos extraídos do público), com o objetivo de garantir parte do fluxo da renda normalmente auferida pelo empregado, no momento em que ele se desligasse da produção – por velhice, invalidez ou por tempo de serviço – ou a seus dependentes, em caso de morte, além da assistência médica. (SANTOS, 1998, p.78).
Porém, a Lei Eloy Chaves era um acordo realizado entre patrões e
empregados, em que estes poupavam, para reaver no futuro diante de uma
fragilidade; não se tratava de um direito de cidadania, inerente a todos os membros
da comunidade (SANTOS, 1998).
Sposati (1991, p. 15) acrescenta que:
É o contrato de trabalho que define, imediatamente, as condições de reprodução do trabalhador no mundo da previdência ou no da assistência, cabendo à última “como mecanismo econômico e político, cuidar daqueles que aparentemente ‘não existem para o capital’”.
Yazbek (2012) elenca que, somente na década de 1930, a questão social
ganha legitimidade, trazendo ao cenário político a classe trabalhadora e seu
reconhecimento enquanto tal, num contexto de industrialização e emergência de
problemas urbanos.
Nesse sentido, a autora destaca também que o sistema de proteção social
no Brasil desenvolve-se de forma diferente do europeu, haja vista as
particularidades da formação e a história da sociedade brasileira, que demonstra o
mix de elementos determinantes combinados com a repressão e a benemerência.
Sobre essa questão, Pereira (2008, p. 125) destaca:
Diferente, pois, das políticas sociais dos países capitalistas avançados, que nasceram livres da dependência econômica e do domínio colonialista, o sistema de bem-estar brasileiro sempre expressou as limitações decorrentes dessas injunções. (PEREIRA 2008, p.125).
Assim, a organização dos trabalhadores e a iminência da “desordem” da
sociedade salarial, no que diz respeito à luta pelos bens socialmente produzidos,
23
obriga ao reconhecimento da questão social e ao desenvolvimento de mecanismos
de amparo e proteção social para responder às demandas urbanas. Porém, esses
são fragmentados e desiguais, e objetivam estabelecer o controle do Estado e
defender a lucratividade do capital. De acordo com Yazbek (2012, p.10).
O Estado brasileiro desenvolvendo acordos de interesse do capital e
dos trabalhadores nos mais diversos setores da vida nacional, opta,
pela via do Seguro Social. O sistema de proteção nesse período é
seletivo e distante de um padrão universalista.
E, a partir do Estado Novo (Getúlio Vargas – 1937-1945), as políticas sociais
se desenvolvem, de forma crescente, como resposta às necessidades do processo
de industrialização e às pressões sociais.
Mas o Estado Protetivo expande-se a partir da contribuição dos
trabalhadores do mercado formal, restando aos informais, e aos pobres de modo
geral, a filantropia, a benemerência. Portanto, o que se observa é que,
historicamente, a Proteção Social no País vai se estruturando acoplada ao conjunto
de iniciativas benemerentes e filantrópicas da sociedade civil.
Cria-se, desse modo, uma dualidade entre os trabalhadores reconhecidos e
os desajustados na sociedade.
A inserção seletiva no sistema protetivo, segundo critério de mérito vai basear-se numa lógica de benemerência, dependente e caracterizada pela insuficiência e precariedade, moldando a cultura de que para pobre qualquer coisa basta. (YAZBEK, 2012, p.11).
Assim, é diante de um contexto de grandes transformações econômicas que as
pressões dos trabalhadores brasileiros são legitimadas pelo Estado brasileiro, originando as
políticas de proteção social, direcionadas ao trabalhador formal, pois, para o trabalhador
pobre, sem carteira assinada, ou desempregado, restou a benemerência e a filantropia.
(YAZBEK, 2012, p. 297).
Dessa forma, no Brasil, a partir da década de 1930, segundo Sartori, (2012, p. 27),
o sistema protetivo brasileiro inicia seu desenvolvimento com a “criação de vários órgãos,
como, por exemplo, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Departamento
Nacional do Trabalho”.
Jaccoud (2009, p. 58) acrescenta que:
24
A ideia da instituição de um sistema de proteção social público nasceu no século XIX com a industrialização e a constatação de que a vulnerabilidade e a insegurança social vinham se ampliando à medida que se expandiam as relações de trabalho assalariadas. Até então, as sociedades vinham garantindo a proteção social de seus membros por meio de solidariedades tradicionais de base familiar ou comunitária. Com a industrialização e a urbanização das sociedades modernas, ampliou-se o risco de as famílias de trabalhadores caírem na miséria em decorrência da impossibilidade de obter um salário no mercado de trabalho. As causas poderiam ser múltiplas − doença, velhice, desemprego, morte – e passaram a ser chamadas de “risco social”.
Contudo, a autora lembra, ainda, que a criação do Ministério do Trabalho
possibilitou também claro controle e repressão da classe trabalhadora e a busca do
atendimento das necessidades mais amplas da industrialização, que, diante das
transformações imediatas, outras regulamentações foram necessárias: do trabalho
feminino, dos menores na indústria, fixação da jornada de trabalho de oito horas
para o comerciário e industriário, criação das convenções coletivas, das férias, as
normas reguladoras dos acidentes de trabalho, além da instituição da carteira
profissional de uso obrigatório (Quadro 1).
Quadro 1: Legislações previdenciários, trabalhistas e sociais de 1923 a 1993
Legislações e programas previdenciários, trabalhistas e sociais de 1923 a 1993
1923 Caixas de Aposentadoria e Pensão. Lei Eloy Chaves. Conselho Nacional do Trabalho; Decreto 16.027.
1926 Estendeu-se o regime da Lei Eloy Chaves aos portuários e marítimos.
1927 Instituto de Previdência para os funcionários da União. Decreto legislativo 5.128.
1928 Código de Menores. Estendeu-se o regime da lei Eloy Chaves aos trabalhadores dos serviços de telégrafos e radiotelégrafos.
1930 Criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Início da discussão centralizada no Movimento Escola Nova.
1931 Criação do Departamento Nacional do Trabalho. Primeiro decreto sobre sindicalização.
1932
Decretada jornada de trabalho de 8 horas no comércio e na indústria. Regulamentação do trabalho feminino, proibição do trabalho noturno e estabelecimento de salário igual para homens e mulheres. Regulamentação do trabalho de menores. Criação da carteira de trabalho.
1933-1934 Regulamentado o direito a férias para comerciários e industriários. Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPM).
1934
Decreto que estabelece a autonomia dos sindicatos. Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC). Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários (IAPB). Constituição Federal de 1934 consagra o direito à previdência.
1936 Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (Iapi),
25
Lei 367, de 31/12/1936, em execução em janeiro de 1938.
1937-1945 Estado Novo, Getúlio Vargas.
1938
Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em Transportes e Cargas (Iapetec). Criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão da Estiva (Iape). Criação do Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores do Estado (Ipase). Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS).
1940 1o de maio – Lei fixa o salário-mínimo para todo o País.
1941 Criação da Justiça do Trabalho.
1942 Criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
1943 Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
1946
Constituição Federal manteve as conquistas sociais do período anterior e garantiu os tradicionais direitos civis e políticos. Criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac); Fundação Casa Popular (FCP).
1951-1954 Segundo mandato de Getúlio Vargas. Alteração da denominação do Ministério da Educação e Saúde Pública para Ministério de Educação e Cultura. Ministério da Saúde.
1955 Criação do Serviço Social Rural.
1956-1960
Governo de Juscelino Kubitscheck; Jânio Quadros e João Goulart – Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (Transporte, Energia, Comunicação, Petróleo, Saúde e Educação). Único setor abordado foi a educação. Crise Financeira. Promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social (Lops).
1961 Aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social (Lops). Ampliação da cobertura previdenciária dos profissionais liberais. Aprovação da Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB).
1963 Promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. Inclusão do trabalhador rural que não contribui diretamente para a Previdência Social – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural).
1964 Fundação Nacional do Bem-Estar Social (Funabem).
1966 Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Lops é transformada em Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
1968-1973 Milagre econômico. Governos de Costa e Silva e Médici.
1974 Criação do Ministério de Previdência e Assistência Social.
1977 O INPS é desmembrado em três órgãos: Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), Iapas e o Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (Inamps).
1988 Constituição Federal – Constituição Cidadã: Seguridade Social: Assistência Social, Previdência Social e Saúde.
1989 Criação do Ministério de Bem-Estar Social.
1990
O INPS foi refundido com o Iapas, passando a se chamar INSS e, no mesmo ano, o Inamps foi absorvido pelo Ministério da Saúde. A proteção social estendeu-se aos trabalhadores que não contribuíram diretamente com a Previdência Social. Institui-se o Beneficio de Prestação Continuada (BPC). Crise e reforma da Previdência Social. Primeira redação da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), vedada pelo Congresso Nacional. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
1993 Aprovação da Loas; Criação do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e extinção do CNSS.
Fonte: Esquematização nossa (2012), com base em levantamento bibliográfico.
26
Sartori (2012, p.27) afirma que, durante 34 anos (1930-1964), a base da
política social brasileira não sofreu grandes modificações, mesmo considerando o
contexto de luta social e da mudança de autoritarismo (1937-1945), para a chamada
democracia (1945-1964), caracterizando, assim, o período popular.
As modificações institucionais levadas a efeito pelo Estado a partir de 1930 estabeleceram fundamentalmente dois caminhos para conduzir o processo que havia sido deflagrado. De um lado, apresentam-se as medidas de centralização que – através da superação das taxas que incidiam sobre comercio inter-regional, do controle politico das unidades regionais e da criação de órgão que iriam traçar diretrizes centrais para as questões relativas á economia nacional – tiveram como objetivo a construção de um “espaço econômico integrado”. De outro lado, foi implementada uma politica de regulamentação dos fatores de produção: os institutos econômicos já mencionados atuaram no sentido de buscar uma maior racionalidade do fator capital; e a legislação trabalhista teve por objetivo disciplinar o fator trabalho. (SARTORI, 2012, apud BARCELLOS, 1983, p.85).
Até a década de 1970, prevaleceu o sistema de previdência social, em que
apenas os trabalhadores formais podiam contar com certa proteção do Estado. Mas
as lutas sociais vão impulsionar avanços democráticos progressivos.
Contudo, essa proteção não ocorreu de forma linear e desinteressada, pois
representava vários interesses, disputas e unificações conflituosas. Enfatizava,
dessa forma, as estratégias de atendimento e aplicação dos recursos em setores
específicos da produção, que liga o sistema previdenciário com a economia.
Restava aos trabalhadores não formais, desempregados e ao trabalhador rural a
benemerência e exclusão da proteção social.
Segundo Jaccoud (2009, p. 58):
A proteção social pode ser definida como um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e benefícios sociais visando enfrentar situações de risco social ou privações sociais. [...] Seus objetivos são amplos e complexos, podendo organizar-se não apenas para a cobertura de riscos sociais, mas também para a equalização de oportunidades, o enfrentamento das situações de destituição e pobreza, o combate às desigualdades sociais e a melhoria das condições sociais da população.
O que se percebe é que o Estado brasileiro esteve sempre preocupado com
a questão econômica e com o lucro, a qualquer preço, enquanto que o trabalhador,
mesmo resistindo, é visto apenas como mão de obra barata, força de trabalho que
27
se vende por qualquer bagatela, e ainda deve ser agradecido por ter essa força para
trabalhar, visto que a maioria não consegue essa forma de inclusão.
E é por causa de um Estado repressor, centralizador e populista, que os
trabalhadores são expulsos de suas terras e obrigados a superlotar os grandes
centros urbanos, habitar os mais insalubres lugares, em busca de melhores
condições de vida e de trabalho, sedentos por seus direitos que, historicamente, são
desrespeitados e/ou simplesmente ignorados, em nome do chamado
desenvolvimento.
No entanto, Pereira (2008, p. 144) mostra o movimento nacional da
sociedade organizada em torno dos pleitos por democracia, obrigando o governo a
reorganizar-se estrategicamente, fazendo da política social uma via de aproximação
entre Estado e Sociedade. Porém, a autora lembra que essa aproximação não era
coerente com as necessidades sociais, tornando a pobreza alvo prioritário, pois não
era mais possível negá-la.
Diante das questões apresentadas, é possível entender que a proteção
social brasileira resulta do movimento histórico da luta dos sujeitos sociais para
inclusão de suas demandas na agenda pública. Mas, como afirma Sposati (2007, p.
443), no Brasil, desde a década de 1930, o acesso do cidadão foi subordinado à
inclusão formal na legislação social do trabalho e não à condição genérica de ser
brasileiro.
Tornando visível a predominância do aspecto econômico sobre a condição
de cidadania, mostra o retardo no reconhecimento dos direitos e explicita que a
pobreza resulta de estruturação da emergente sociedade capitalista (YAZBEK, 2009,
p. 3). E para quem não consegue inserir-se no mercado formal de trabalho, resta
esperar as formas estigmatizantes e assistencialistas e de caridade da classe
detentora de poder aquisitivo.
Diante do exposto, destacam-se a complexidade e as incertezas que
envolvem a construção histórica do sistema de proteção social brasileiro,
configurando fortes características conservadoras e excludentes. Todavia, para
melhor exemplificar essa construção, no capítulo que segue, a história será contada
pelo colonizado, ou seja, este terá uma abordagem factual da realidade singular com
ascendência ao genérico.
28
2 MEMÓRIA, AUSÊNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO DA VIDA: O INÍCIO DA
MINHA HISTÓRIA
2.1 Nascimento: Herança, Identidade e Continuidade?
Nasci no dia 20, uma terça-feira qualquer do mês de agosto. O ano era
1974, em plena ditadura militar, momento de muita repressão e com todas as formas
de aviltamento dos direitos humanos, sociais, políticos e econômicos, no Brasil.
Sou natural do Estado do Amazonas4, fruto dos rios e da floresta
amazônicos, região que se encontrava em plena expansão migratória e integração
econômica, expressas nos grandes projetos historicamente trazidos para a região.
O Estado do Amazonas possui, atualmente, 62 municípios, totalizando uma
área de 25.335 quilômetros quadrados. Segundo a Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2012), na década de 1970, o Estado do Amazonas
era o segundo mais rico da Região Norte, com 314.197 habitantes. A capital,
Manaus, nessa década já abrigava o Distrito Industrial, segundo ciclo de
desenvolvimento e expansão implementado na região.
Contudo, a capital havia passado por outro período de grande
desenvolvimento econômico, a partir do comércio internacional, e do ciclo da
borracha (primeiro ciclo de desenvolvimento), no início do século XX. Momento de
grande êxodo rural, oriundo das transformações econômicas e da integração da
região.
A Região Amazônica registra dois importantes momentos econômico e social: o primeiro entre a última década do século XIX e a primeira do século XX e durante a 1ª Guerra Mundial, quando a borracha natural, principal produto da pauta de exportação do Estado do Amazonas, alcançou elevada cotação no mercado internacional; e o segundo, a partir de 1964, com a implementação da Zona Franca de Manaus. A riqueza gerada pela economia monoextrativista da borracha natural, fez de Manaus uma cidade cosmopolita, um grande centro de comércio internacional. Manaus foi a primeira cidade
4 O nome Amazonas foi originalmente dado ao rio, que banha o Estado, pelo capitão espanhol
Francisco de Orellana, quando o desceu em todo o seu comprimento, em 1541. Afirmando ter encontrado uma tribo de índias guerreiras, com a qual teria lutado, e associando-as às Amazonas da mitologia grega, deu-lhes o mesmo nome. Segundo etimologia alternativa defendida pelo historiador Karl Lokotsch, o nome Amazonas é de origem indígena, da palavra amassunu, que quer dizer "ruído de águas, água que retumba”.
29
brasileira a instalar um serviço de bondes elétricos e em 1896 inaugurou um teatro que surpreendeu o mundo com seu luxo, requinte e beleza. Em 1909, criou a primeira universidade brasileira – a Universidade Livre de Manaós. (BARBOSA, 2007, p. 54).
A partir de 1910, a borracha tem sua semente pirateada, iniciando, segundo
Barbosa (2007), um período de decadência na região, pois, com a economia em
declínio, como consequência, a cidade promissora torna-se uma cidade sem
horizontes. Com o início da Zona Franca de Manaus, em 1967, a capital do
Amazonas rompe com 50 anos de estagnação econômica.
A Zona Franca de Manaus é criada pelo Decreto-Lei 288, de 28/2/1964, e,
segundo Barbosa (2007, p. 55) objetivava formar uma zona de livre comércio de
importação e exportação e de incentivos fiscais que atraíram para a cidade mais de
300 empresas multinacionais e nacionais, atrás de mão de obra e que foram
responsáveis também pelo êxodo rural de toda a Região Amazônica. Nas décadas
de 1970 e 80, chegam a somar quase 90 mil trabalhadores.
A modernização capitalista chega, portanto, ao espaço regional afetando todas as esferas da vida social amazonense. Manaus deixou para trás a cidade porto de lenha e seu velho passado extrativista. Modificaram-se as relações de produção e as forças produtivas se desenvolvem. Formam e redefinem-se novas classes sociais e novas formas de sociabilidade configuram-se na nova dinâmica do capital na região. (SCHERER, 2004, p.129).
Essa Zona Franca, articulada à economia internacional, contribui para mais
um ciclo de mudanças significativas, crescimento tecnológico e populacional. Esse
processo teve grande contribuição da mídia, que difundia as possíveis facilidades de
uma nova vida a partir de um modelo de desenvolvimento promissor, ou seja, a
panaceia da pobreza, estratégias para atrair mão de obra barata e cativa.
A cidade de Manaus registrava momentos de pleno crescimento econômico,
com os produtos produzidos pela Zona Franca de Manaus divulgados em todo o
país, no intuito de atrair mais venda e investimentos, somados ao crescimento
populacional e à urbanização acelerada. Contudo, Scherer (2004, p. 127) destaca
que:
Nos anos dourados da Zona Franca de Manaus (1970-1980), ela absorveu um número expressivo de trabalhadores em seu parque industrial, mas deixou de fora outros tantos, que foram obrigados a
30
inserir-se no trabalho informal. Isso significa dizer que o desemprego e o trabalho precário não se constituem numa novidade histórica assim como sua interface com a exclusão.
Desse modo, em meio às transformações nacionais e às estratégias
políticas de dominação, que compreendem as práticas de mando historicamente
desenvolvidas na Região Amazônica, a cidade de Manaus, em curto espaço de
tempo, apresenta altos índices de crescimento desordenado.
E a pobreza material da maioria fica cada dia mais difícil de ser escondida
ou ignorada, pois a cidade de Manaus é originada do processo de ocupação
irregular ao qual estavam sujeitas as famílias de trabalhadores, pois necessitavam
estar nas proximidades do local de trabalho, como descrito abaixo.
A urbanização da cidade de Manaus, nos anos 60, o grande êxodo rural impulsionou a ocupação desordenada. Na expectativa do anunciado milagre econômico e sem casa, muitas famílias se fixaram na orla do Rio Negro, formando a Cidade Flutuante. Essas famílias foram retiradas da área a partir de 1964, pelo governador Arthur Cezar Ferreira Reis, O governo também entregou algumas casas, porém não abraçava nem 1/3 das pessoas. Elas então se dirigiram para as localidades mais próximas à orla do rio, como os bairros de Educandos, São Raimundo, Raiz, Petrópolis, mas principalmente para o terreno pertencente à família Borel. O bairro foi batizado primeiro como Vila de Sapé, porque as casinhas eram cobertas de palhas, depois passou a ser chamado de Cidade das Palhas, porque a ocupação já havia crescido bastante, e por último o atual nome de Compensa, referência a uma antiga serraria que produzia lâminas de compensado5.
5 Disponível em: <http://jmartinsrocha.blogspot.com.br/2008/09/bairro-da-compensa.html>. Acesso
em: 25 jul. 2012.
31
Figura 1: Cidade flutuante que existiu em Manaus na década de 1960
FONTE: <http://www.google.com.br/flutuante+manaus>.
Diante da realidade de urbanização acelerada, a cidade de Manaus e o
estado do Amazonas, de modo geral, apresentam particularidade histórica na
situação política e legitimidade do poder público, constituído a partir de arranjos
políticos e forças dominantes, caracterizadas pelo discurso populista, práticas
paternalistas e clientelistas com as classes subalternas. (PEREIRA, 2004, p.97).
Emerson (apud Scherer, 1989, p. 218) elenca que:
Particularmente no Amazonas, a dominação politica sobressai-se enquanto mecanismo utilitário da manutenção das elites no poder. Os governantes locais instituem relações de mando e buscam sua legitimidade junto as massas populares, sobretudo com a pratica do clientelismo tutelar. Essa forma de tratamento vulnera as classes dominadas e personifica as relações de poder, dificultando sua capacidade de organização politica, induzindo-as a se contentar com a ilusão do falso paternalismo. (PEREIRA, 2004 apud SCHERER, 1989, p. 218).
32
Manaus, na década de 1989, tinha, segundo a Fundação IBGE (2012)6 uma
população de 642.492 habitantes, era governada por Amazonino Mendes do Partido
Democrático Trabalhista (PDT) e o prefeito era Arthur Virgílio Neto do Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB) e, na época, José Sarney assume a
Presidência da República, sob o slogan: “Tudo pelo Social”. Para melhor
compreensão desse processo histórico da composição política do Estado do
Amazonas, ver Quadro 2.
Quadro 2: Governadores do Amazonas e prefeitos de Manaus
Governadores do Amazonas
Gilberto Mestrinho (PMDB) Vice: Manuel Ribeiro
1983 1987
Amazonino Mendes (PDT) Vice: Omar Aziz
1987 1990
Gilberto Mestrinho Vice: José Melo
1991 1995
Amazonino Mendes Vice: Alfredo Nascimento
1995 1999
Amazonino Mendes Vice: Eduardo Braga
1999 2003
Eduardo Braga (PMDB) Vice: Alfredo Nascimento
2003 2007
Eduardo Braga Vice: Omar Aziz
2007 2010
Omar Aziz (PSD) 2010 2011
Omar Aziz Vice: José Melo
2011 Atualidade
Prefeitos de Manaus
Amazonino Mendes (PDT) 1983 1986
Manuel Ribeiro (afastado) (PTB)
1986 1988
Alfredo Nascimento (interventor) (PR)
1988 1988
Manuel Ribeiro 1988 1989
Arthur Virgílio neto (PSDB) 1989 1993
Amazonino Mendes Vice: Eduardo Braga
1993 1994
Eduardo Braga Vice: Omar Aziz
1994 1997
Alfredo Nascimento (renunciou)
1997 2004
Luís Alberto Carijó (PFL) 2004 2005
6 Disponível em: <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=CD79>. Acesso em: 5 jun.
2012.
33
presidente da Câmara Municipal
Serafim Correa (PSB) 2005 2009
Amazonino Mendes (PDT) Vice: Carlos Souza
2009 Atualidade
Fonte: Organizado de acordo com referência bibliográfica pesquisada.
2.1.1 Mergulhando na minha história de vida
Nesse contexto de transformação, declínio e bonança, meus pais
trabalhavam como regatões7 e, por isso, moravam dentro de um barco, e eu
aproveitei que eles estavam passando pela cidade de Manaus/AM para vir ao
mundo.
Então, nesse exato momento, minha mãe sentiu as dores e meu pai atracou
o barco no bairro de Educando, zona sul de Manaus, e foi para terra buscar uma
parteira, porém, minha mãe conta que, quando ele voltou com a parteira, eu já
estava no mundo. Talvez não quisesse esperar para nascer e o barco foi a minha
maternidade.
Sou filha de Raimundo Miranda de Souza, do qual tenho o sobrenome em
registro, e, quando criança, tinha uma foto 3X4 sua, que guardei por muito tempo,
mas perdi. Não sei a sua naturalidade ou qualquer outra informação familiar. Sei
apenas que é negro, analfabeto e trabalhava como regatão, vendendo estivas pelos
7 O Regatão, herói atípico da Amazônia, no século XIV, já batia à porta dos consumidores medievais
da Europa oferecendo alimentos a retalho. Comprava no campo, mais barato, para vender em miúdo e caro na cidade. Era um comerciante ambulante, um mascate. Durante a colonização do Brasil, ele apareceu nas emergentes metrópoles brasileiras com a mesma atividade medieval. E no início do século XIX, a atividade foi dominada por jovens judeus marroquinos, que migravam para o País. Na segunda metade desse século, atraídos pela economia da borracha, os jovens mascates árabes migraram em massa para a Amazônia, onde passaram a ser chamados de regatões. Historicamente, o regatão da Amazônia é o pequeno comerciante que entra nos rios e igarapés com sua pequena embarcação carregada de miudezas, oferecendo esses produtos aos moradores dos rincões da região. Troca – mais do que vende – produtos industrializados por espécies valiosas da floresta. De fato, além de armas e munições, querosene, sal, açúcar, sabão e charque - essenciais para a subsistência do seringueiro, - o regatão oferecia deslumbramento para sua alma: eram cortes de lamê e tafetá, coloridos e macios, os perfumes baratos de cheiro ativo, as brilhantinas, as chitas estampadas e as rendas, as pulseiras e brincos, as linhas e agulhas, os cintos, os sapatos, os batons e pós de rosto, os biscoitos e bombons, os sabonetes, as anáguas. Impunham-se, através do regatão, um gosto e uma tolerância amazônicos por excelência, quebrando a lógica do capital e do lucro.
34
rios do Amazonas. Se não fosse o seu nome na minha certidão de nascimento,
poderia dizer que sou filha do boto8.
Minha mãe, Terezinha Gomes de Souza, é natural do Amazonas. Nasceu no
interior chamado Coari, no médio Amazonas, aproximadamente 360 quilômetros
distante de Manaus. Na década de 1980, eram aproximadamente 40 horas de barco,
atualmente, são 28 horas. Terezinha também é analfabeta, não conviveu com seus
pais e nem chegou a conhecer a própria mãe, que foi retirada do convívio familiar
porque tinha hanseníase; o pai dela casou-se novamente e entregou a filha para
parentes.
Terezinha sempre contava histórias de muito trabalho e espancamento em
sua infância. Na adolescência, resolveu trabalhar como empregada doméstica em
Manaus. Aos 18 anos, conheceu Raimundo, casaram-se e tiveram três filhas,
Rosimar, eu e Silvanes, respectivamente.
Viveram por dez anos juntos, sempre trabalhando como regatões nos
interiores do Amazonas. Terezinha dizia que a vida não era fácil, pois sempre teve
que trabalhar muito para ajudar o marido. Porém, depois de tantos anos juntos, ela o
flagrou com outra mulher, e mesmo com todas as dificuldades, que talvez nem
tivesse noção que passaria, por ser mulher, mãe e sem marido, ela não aceitou a
situação.
8 A lenda do boto tem sua origem na Região Amazônica (Norte do Brasil) e ainda hoje é muito popular
e faz parte do folclore amazônico e do brasileiro. De acordo com a lenda, um boto cor-de-rosa sai dos rios nas noites de festa junina. Com um poder especial, consegue se transformar num lindo jovem vestido com roupa social branca. Ele usa um chapéu branco para encobrir o rosto e disfarçar o nariz grande. Com seu jeito galanteador e falante, o boto aproxima-se das jovens desacompanhadas, seduzindo-as. Logo após, consegue convencer as mulheres para um passeio no fundo do rio, local onde costuma engravidá-las. Na manhã seguinte, volta a se transformar no boto. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/folclorebrasileiro/lenda_boto.htm>. Acesso em: 8 ago. 2012.
35
Figura 2: Embarcação regional conhecida como recreio ou barco dos regatões. Transporta pessoas e mercadorias pelos rios do Amazonas
Fonte: Valter Calheiros (2012).
Eles brigaram muito, partiram para a agressão física, pois minha mãe falava
com muito orgulho da coragem que tinha para enfrentar meu pai, e com essa briga
que, segundo ela, foi muito feia, se separam. Ela ficou em Manaus, sem parentes,
sem casa para morar, ou qualquer outra ajuda, apenas três filhas pequenas, pois
Silvanes havia acabado de nascer.
Como havia ficado extremamente decepcionada com o marido, resolveu se
vingar, impedindo que ele visse as filhas, então, Raimundo a procurou algumas
vezes, mas ela não quis saber de contato, e também não aceitou a ajuda oferecida
por ele, pois Raimundo chegou a levar mantimentos para as filhas, mas Terezinha
não recebia. Depois de alguns meses, Raimundo simplesmente não a procurou
mais, e sumiu sem deixar pistas.
2.1.2 A “Infância” e o Lugar Estabelecido
Depois da separação, minha mãe ficou com as três filhas para sustentar,
sem casa, emprego ou parente na cidade (Manaus). Analfabeta e sem condições
financeiras, teve que realizar trabalhos domésticos para manter as filhas e pagar o
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aluguel. Por causa das dificuldades, resolveu entregar a filha mais velha (Rosimar)
para morar com o avô materno em Coari/AM, ficando apenas com as duas filhas
mais novas, eu e Silvanes. Como eu era a mais velha, fiquei com a obrigação de
cuidar de tudo em casa e da minha irmã três anos mais nova.
Lembro-me perfeitamente do lugar onde morávamos, uma casa grande de
madeira, cujos cômodos são alugados para diversas pessoas (chamávamos de
estância). Era um quarto muito pequeno, com banheiro comum para todos os
moradores. Situado no bairro da Compensa II, zona oeste, região localizada próximo
ao Rio Negro, na cidade de Manaus, neste local tinha muitas crianças e famílias
pobres, como a minha, e todos participavam da vida um do outro. Mudávamos
constantemente, mas apenas de casa, o bairro sempre era o mesmo.
Tínhamos apenas algumas roupas, e dormíamos no chão debaixo de um
mosquiteiro, mas minha mãe estava cheia de esperança com a nova vida. Com o
tempo, ela conseguiu entregar almoço para os feirantes, pois morávamos perto de
uma feira, e com esse dinheiro ela foi conseguindo nos manter, tirou seus
documentos e iniciou a busca por trabalho no Distrito Industrial de Manaus.
A mulher era muito requisitada para trabalhar nas indústrias de montagens,
por causa da sua destreza manual, submissão e sensibilidade ao lidar com os
componentes. Essas características favoreciam o modelo japonês, implantado nas
fábricas, porém, elas também precisavam ter boa saúde e, às vezes, saber fazer as
quatro operações. Praticamente eram essas as exigências para serem admitidas
(BARBOSA, 2007, p. 20).
Acredito que, nesse momento, eu já deveria ter entre três e cinco anos de
idade, e consigo lembrar-me de alguns relatos feitos por minha mãe sobre a vida,
suas experiências e, entre elas, lembro-me perfeitamente quando ela falava: “Tu
pode ser preta, feia e pobre mais tem que ter estudo, com ele tu entra em qualquer
lugar e consegue ser respeitada”.
Lembro-me também das suas panelas. Ah! estas tinham que estar sempre
brilhando! E sabe quem era responsável por arear? Eu! Peguei muita panela na cara
para aprender a lavar direito. E ainda tinha o pote9! Esse eu não me esqueço! Era o
local onde ficava a água para beber. Certo dia, minha mãe me mandou lavá-lo, e
9 Consiste em uma vasilha de barro.
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como era muito grande, comparado com minha altura, eu não consegui lavá-lo
direito.
Nesse dia, ela esfregou meu rosto no pote, e só parou quando percebeu que
eu estava sangrando. Ainda tenho a cicatriz, acima da sobrancelha. Lembro-me
também que eu e minha irmã ficávamos trancadas em casa o dia todo, enquanto
Terezinha trabalhava. Às vezes, ela deixava alguma comida pronta, outras vezes, eu
tinha que fazer, cuidar da minha irmã e da limpeza do quarto onde morávamos.
Como eu era muito pequena, necessitava de um banco, para alcançar o
fogão, e tinha que fazer, principalmente, o mingau da Silvanes, porém, este era de
massa de macaxeira e quando começava a ferver as bolhas pulava em minha
barriga, por isso tenho várias cicatrizes de queimaduras nessa região.
Quando ela chegava do trabalho, as coisas tinham que estar sempre prontas
ou eu apanhava muito, na verdade, eu sempre apanhava por tudo, os vizinhos já
estavam acostumados a me ver invadindo suas casas para pedir ajuda. Tanto é que
tenho várias cicatrizes no corpo e no rosto, das surras que eu levava, toda vez que
ela me batia, eu ficava acamada, às vezes não conseguia andar, por causa dos
hematomas, ficava muito machucada mesmo, principalmente na alma.
Não me lembro de carinhos, de afeto, ou brincadeiras, contudo, lembro-me
de trabalho, este substituiu as brincadeiras e o estudo, assim como o
espancamento, sofrido praticamente todos os dias, substituía o carinho materno.
Hoje vejo que era a única forma conhecida por minha mãe para educar e
talvez me mostrar um caminho diferente do percorrido por ela. Lembro-me também
que minha mãe sempre falava de um irmão paterno que ela tinha e que também
morava em Coari.
Ela sempre dizia que ele era muito inteligente, estudioso, trabalhava nos
melhores lugares da cidade do interior onde morava. Mesmo não tendo muito
contato com a família, era perceptível o orgulho que ela sentia ao falar do meio-
irmão, e eu pensava: Um dia ela vai falar assim de mim, vou ser igual ao meu tio.
Então, conhecer esse tio era um dos meus sonhos, ele era o pai que sempre sonhei
em ter e um modelo a ser seguido.
Mas continuei cuidando da minha irmã e aguardando a chegada de mais um
irmão. Agora teria que cuidar de mais uma criança, e minha mãe já estava
trabalhando no Distrito Industrial de Manaus. Meu irmão chegou, mas Terezinha
38
havia brigado com o namorado e resolve vingar-se dele entregando a criança, na
hora em que nasceu, para adoção; não quis nem ver a criança.
Porém, logo depois, ela conheceu outro namorado, engravidou novamente,
e nove meses depois outro menino veio ao mundo. Recebeu o nome de David, e
como ela sempre trabalhou, eu cuidei da criança, praticamente desde a hora em que
nasceu, até o dia em que ela foi embora e o entregou para ser criado pela madrinha.
Terezinha é analfabeta, contudo, sabia assinar o nome com muita
dificuldade, mesmo assim, estava dento dos critérios para a contratação, pois, nessa
época não era tão exigido o grau de instrução, apenas deveria executar com
destreza o seu trabalho. Essa habilidade lhe garantia uma Carteira de Trabalho
assinada, direitos trabalhistas e reconhecimento de “cidadania”.
Porém, minha mãe não ganhava o suficiente para pagar uma pessoa que
ficasse com os filhos, então, nesse período, ela passou a trabalhar no turno da noite
e eu ficava sozinha em casa com meus irmãos. Tinha que cuidar durante a noite e
de dia, pois ela precisava dormir.
Lembro-me de uma vez em que um ladrão entrou no quarto em que
morávamos e roubou tudo o que tínhamos, enquanto eu dormia com meus irmãos.
Acordei com minha mãe chegando do trabalho e perguntando pelas coisas. Nossa,
que susto!
Na mesma hora, Terezinha passou a mão em uma faca e correu atrás de
mim, pois ela dizia que eu era irresponsável, que tinha culpa do roubo. Então, saí
correndo, pedindo socorro para os vizinhos, e eles, com muito custo, conseguiram
acalmá-la. Ela dizia que ia me matar, mas felizmente consegui escapar, muito
machucada, porque apanhei bastante.
Como nossa casa possuía apenas um cômodo, ou seja, um quarto alugado
em uma Estância, eu sempre presenciava a intimidade da minha mãe e seus
namorados, assim como todos eles me assediavam, me perseguiam durante a noite,
ou na ausência dela. Algumas vezes, cheguei a contar-lhe, mais não adiantava, ela
não acreditava.
Minha mãe também gostava de festas, bebidas e cigarros e nos fins de
semana ela chegava bêbada, junto com seu namorado, brigavam na rua, em casa e
eu e meus irmãos presenciávamos. Ela sempre sofria violência física e já estávamos
acostumados com aquela realidade.
39
Terezinha é uma mulher muito forte, trabalhadora, mas a vida não foi muito
generosa para com ela. Acredito que o sofrimento a fez uma mulher muito dura, pois
tinha uma vida de desencontros, de luta pela sobrevivência. Buscava sempre viver
melhor, queria condições dignas, contudo, infelizmente, seu salário não lhe garantia
sucesso e, às vezes, não tínhamos o que comer, vivíamos com muito pouco, sempre
com o salário dela, que mal dava para pagar o aluguel.
Porém, a pobreza, juntamente com a fé, designava a aceitação de sua
condição, fazendo um mix de força e conformismo, expressados assim: “Foi Deus
que quis assim, ele vai dar o jeito, ele sempre olha por nós. Os pobres devem
esperar em Deus”.
Quando não tínhamos perspectiva de obter alimentos para o dia seguinte,
ela sempre falava: “Não devemos nos preocupar com o dia de amanhã, Deus dará o
jeito, isso está na Bíblia”.
Terezinha também me apresentou este Deus que cuida e que protege, mas
pune, caso a escolha seja errada, ou não esteja dentro dos seus planos, ou seja, ela
dizia que às vezes queremos mais do que merecemos. Ela também esperava em
Deus um homem bom para dividir a vida tão complicada, desagregadora, queria
alguém para ajudá-la a sobreviver, e enfrentar a luta cotidiana.
O estigma de ser uma mulher com filhos e sem marido era forte e além de
tudo Terezinha também não tinha o apoio da família. Na verdade, também não tinha
família. Talvez por isso o marido fosse o apoio necessário. Mas suas escolhas
sempre a faziam sofrer muito. E sempre um namorado novo chegava à nossa casa.
Depois de algum tempo, ela conheceu outro namorado, que logo passou a
morar conosco, porém também não tinha estudo e trabalho formal, vivia de
pequenos “bicos”, mesmo assim, ele queria “assumi-la”, e passou a morar conosco.
E ela logo aceitou, pois não era fácil encontrar alguém que se interessasse por uma
mulher com três filhos.
Mas as coisas não eram bem assim, porque o homem, além de bater muito
em minha mãe, ele transformou minha vida num inferno, pois na madrugada ele
sempre vinha, e me passava a mão. Eu tentava me esconder, mas não conseguia.
Os outros namorados da minha mãe também faziam a mesma coisa, então,
eu acabava pensando que tinha culpa, e fazia de tudo para não ficar sozinha com
ele, tinha muito medo da falar, pensava na reação da minha mãe, mas, certo dia,
acabei contando.
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Ela, porém, não acreditou e disse que era para eu ficar longe dele. Eu sabia
que não tinha o direito de estragar a vida da minha mãe, por isso tentava de todas
as maneiras escapar daquele homem tão nojento, e minhas noites eram muito
difíceis, eu tinha muito nojo de tudo isso, mas o que eu poderia fazer, diante daquela
situação? E a vida seguia sem mais novidades.
Minha mãe engravidou novamente e teve uma menina. Eu já estava ali,
pronta para cuidar de mais uma criança e tinha mais um motivo para apanhar, caso
não desse conta de tudo, da melhor forma possível. Eu dizia que queria ir para a
escola e ela me respondia: “Eu nunca estudei e estou viva. Eu não tenho tempo para
dormir na porta da escola, é muito difícil conseguir uma vaga”.
E eu tinha que me conformar com alguns livros velhos que apareciam na
minha casa, gostava de olhar as figuras e tentar ler alguma coisa. Lembro-me de
uma vez em que estávamos, eu e meu irmão David, em frente da vila em que
morávamos. Ele deveria ter aproximadamente dois anos de idade, era um dia após a
noite de São João e ainda tinha uma fogueira com brasas, na rua, então, eu me
distraí vendo um livro chamado Caminho Suave, foi quando ouvi os gritos do meu
irmão, ele estava caminhando sobre as brasas.
Minha mãe veio louca de raiva. Eu saí correndo, entrei nas casas dos
vizinhos, pedindo socorro, mas não teve jeito, eu apanhei muito, tanto que, no outro
dia, não conseguia andar. Ela só parou de me bater quando percebeu que tinha me
furado com um espeto de churrasco. Às vezes, pensava que ela se arrependia da
violência cometida, mas não conseguia controlar a raiva.
Terezinha e seu companheiro sempre brigavam, chegavam a agressões
físicas. Certa vez, ele cortou os dedos da mão dela com uma garrafa. Às vezes, um
agredia o outro com faca, eram sempre brigas feias. Recordo-me de uma vez que
minha mãe quase foi cortada com um facão, e isso para mim era um terror, tinha
muito medo, chorava muito.
Esse homem também enganava a minha mãe, roubava dinheiro dela e
gastava com outras mulheres. Ele passava tempo sumido, minha mãe fazia de tudo
pra ele voltar, e eu sempre pedia a Deus para que ele desaparecesse, mas ele
voltava e começava tudo novamente.
Com aproximadamente seis anos de idade, com três irmãos para cuidar, e
uma realidade doméstica de muito sofrimento, trabalho, falta de alimentos, abuso
sexual, espancamento e infância roubada, eu ainda tinha sonhos. Entre eles, queria
41
estudar, sentia que era o certo a ser feito, visto que nossa vida estava sempre em
declínio. Mas que tempo eu teria para dedicar aos estudos, visto que trabalhava dia
e noite?
No início da década de 1980, minha mãe estava desempregada, agora não
era mais uma trabalhadora formal, com direitos garantidos em lei, porém, não podia
se dar ao luxo de escolher trabalho, e a necessidade a obrigou a vender frutas e
verduras na feira do bairro onde morávamos.
Minha irmã mais nova tinha meses de vida e, além de cuidar das crianças,
tinha também a função de fazer a comida e levar até a feira para minha mãe. Certa
vez, saí de casa para levar o almoço, uma mão com a panela e o prato, e, no outro
braço, minha irmã mais nova. Então, tropecei na rua e caímos no chão. A comida
estragou, eu cortei o joelho e a criança rasgou o rosto. Nossa, apanhei tanto!
Figura 3: Criança cuidadora
Fonte: Valter Calheiros (2012).
Nesse mesmo ano, Terezinha, já cansada da vida na cidade, de anos de
luta para não deixar faltar alimentos para os filhos, e fazendo malabarismo para
pagar aluguel, somava desilusões e fracassos e, sem perspectivas na cidade,
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chega o dia da sua grande decisão! Ela resolveu morar no interior do Estado, um
lugar bem distante, chamado Copear/AM. Para chegar nesse local, eram dias de
viagem, e lá estavam os familiares do seu atual marido.
Terezinha inicia o percurso de volta para o interior. Como não conhecia o
local, optou por não levar todos os filhos, e foi então que decidiu me deixar para
trabalhar como doméstica na casa de uma vizinha e meu irmão David com a
madrinha dele. Ela voltaria alguns anos depois, com muita história de sofrimento
para contar, mais filhos e mais pobre ainda.
Ficar, para mim, foi a melhor notícia que recebi na vida! Significava me
salvar dos assédios, dos espancamentos, e ter a possibilidade de estudar. Ou seja,
eu estava nascendo novamente, em outra década, cheia de esperanças e direito à
escola. Talvez não fosse tão ruim, ficar sem mãe, ou não teria diferença nenhuma.
Então, ela seguiu viagem com minha irmã Silvanes, e com a filha mais nova,
de aproximadamente 7 meses de idade. E fiquei com uma vizinha, sentindo grande
alívio, pois agora estava livre, não apanharia mais, porém continuaria trabalhando.
Eu acreditei que seria minha única chance de estudar, e estava livre dos assédios.
Fiquei com saudade da minha mãe e irmãos, mas pensava que um dia teria
condições para ajudá-los. E assim continuei minha vida de adulto em miniatura, mas
agora sem mãe, sozinha no mundo, naquele mundo tão restrito para mim, que
nunca tinha me apresentado alternativa de vida.
Acredito que minha mãe estava tentando fugir da pobreza que a cercava e,
mesmo trabalhando diariamente, ela não conseguia mudar aquele quadro de
necessidades econômicas. Mas minha família não era uma exceção de pobreza, no
Amazonas e principalmente no Brasil, que vinha de décadas de opressão e altos
índices de desigualdade social. Essa pobreza também obrigava o rompimento dos
poucos vínculos que tinham sido construídos até aquele momento.
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2.2 De Casa em Casa
De que são feitos os dias?
De pequenos desejos, vagarosas saudades,
silenciosas lembranças. Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos: vagas felicidades, inatuais
esperanças.
(Cecília Meireles)
Depois que minha mãe foi embora, passei a morar na casa da dona Lúcia,
que tinha apenas uma filha pequena. Em princípio, eu teria que cuidar da criança e
de algumas coisas da casa. Mas minha alegria durou pouco. O tempo passou,
minhas tarefas aumentaram, ela me cobrava mais responsabilidade, e como não
consegui corresponder fui muito espancada, então comecei a perceber que o
período de sofrimento não tinha acabado, ou seja, agora é que estava se iniciando.
Como não era minha mãe, resolvi fugir. Aproveitei que ela assistia tevê,
peguei algumas roupas e saí pelas ruas em busca de lugar para morar. Cheguei à
casa de uma senhora que tinha conhecido minha mãe e me acolheu, levando-me
para trabalhar na casa do filho dela. Lá, apanhei novamente, pois não tinha a
responsabilidade necessária para cuidar das coisas da forma que era exigido. E
também aprontava algumas travessuras.
Então, resolvi sair de lá também. Encontrei outra senhora, de mais ou menos
60 anos, chamada Tiúca, e fui morar com ela. Esta senhora vivia com um homem
bem mais novo, que trabalhava como pedreiro. Eles eram muito pobres e eu, às
vezes, ia trabalhar com ele, como ajudante de pedreiro.
Quando não tinha dinheiro para comprar comida, eu acompanhava dona
Tiúca à feira, para pedir peixe. Nessa casa não apanhei, a violência era outra, pois
passei muita fome. Em alguns dias, nós tínhamos apenas um pão francês que era
dividido para três pessoas.
Não sei ao certo quanto tempo morei nessa casa; acredito que uns dois
anos, aproximadamente. E, mais uma vez, tive que sair. Além da fome, lá eu
também sofria com as investidas do marido dela; as perseguições ficaram mais
fortes, à medida que eu ia crescendo. Quase não conseguia dormir as noites
tentando me esconder dele.
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Sei que, em 1985, novamente fui às ruas, em busca de trabalho. Foi quando
encontrei uma mulher, que morava no mesmo bairro e tinha oito filhos; a mais nova
com dois meses de idade. Fui contratada para cuidar ela. Nessa casa nunca tive
problemas com assédio ou espancamento, a violência novamente se modificou.
A casa era uma “boca de fumo”, ou seja, vendiam drogas, e descobri quando
a policia passou a invadir a casa constantemente, quebrando tudo. Durante o tempo
que passei nessa casa, tive muito medo, convivi de perto com as drogas, os via
fazendo os papelotes, vendendo ou trocando droga por roubo, também presenciava
a vida dupla da minha patroa, sabia de seus amantes.
Nessa casa comecei a assistir tevê e programas próprios para crianças.
Lembro-me do Balão Mágico, de alguns desenhos como os super-heróis e outros
que me mostravam que o bem sempre vence e renovava as minhas esperanças.
Lembro-me quando Xuxa iniciou seu programa, eu era apaixonada por ela,
foi com a Xuxa que aprendi várias coisas. Ela era minha educadora, pois todos os
dias me dizia que valia a pena acreditar nos sonhos, que eu ia conseguir. Ouvir isso
era a força que eu necessitava.
Foram essas pequenas grandes coisas que me faziam continuar e acreditar
em tempos melhores. Sempre sonhei com o futuro, mas o importante era sobreviver
aquele presente tão difícil. Nessa época fiquei sabendo pela tevê as notícias sobre a
morte de Tancredo Neves. Lembro-me da decepção nas pessoas que queriam um
País melhor, mas não sabia por que aquele homem era tão importante.
Lembro-me do Hino Nacional cantado pela Fafá de Belém, e do luto que
envolveu o País. Contudo, não fazia ideia do movimento nacional, das diretas já, e
toda a efervescência do momento. Meu mundo era tão mais urgente e restrito que
se resumia à rua em que eu morava. Não tinha noção dos acontecimentos daquela
década e muito menos das anteriores. Mas a luz um dia chegaria.
O bairro em que eu morava ainda era o Compensa II, o mesmo do passado
com minha mãe. Nesse tempo, era um local considerado muito perigoso, com muito
tráfico de drogas, furtos e violência de modo geral. Foi durante o tempo em que
morei nessa casa que iniciei minha vida na igreja católica, frequentando a catequese
aos domingos, e conheci vários amigos.
De loucuras, de crimes, de pecados, de glórias - do medo que encadeia todas essas mudanças. Dentro deles vivemos, dentro
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deles choramos, em duros desenlaces e em sinistras alianças...
Conheci na igreja um catequista que me chamava a atenção; gostava de vê-
lo palestrando, participando das coisas da igreja, achava bonito falar em publico,
saber palestrar, falar corretamente. E ele passou a ser o homem dos meus sonhos.
Eu já deveria ter uns 11 ou 12 anos e ele foi meu primeiro “amor”. Fiz a
primeira eucaristia e não fui mais à igreja, mas sempre via o rapaz bonito passar à
tarde na frente da casa em que eu morava, às vezes ficava na janela só pra vê-lo
passar. Tinha vontade de frequentar a igreja só para ficar perto dele.
O tempo passou e a constância de policia na casa só aumentava, até o dia
em que meus patrões foram pegos em flagrante e presos. Tive que encontrar outra
casa. Morei em vários bairros, na cidade de Manaus, sempre trabalhando em casa
de família. Como diz a musica do Legião Urbana, Já morei em tanta casa que nem
me lembro mais...
Com o tempo, fui aprendendo a cozinhar e fazer os trabalhos domésticos,
porém, na grande maioria das casas, trabalhava só pela comida e moradia. Por ser
muito pequena, sofri várias queimaduras, ao lidar com fogão, mas continuava
trabalhando. O assédio sexual dos patrões continuava.
Brincadeiras de forma alguma, estudar continuava sendo apenas um dos
meus sonhos. Na verdade, eu sempre tive muitos sonhos, queria conhecer meu pai,
reencontrar minha mãe e irmãos, queria muito encontrar meu avô materno e minha
irmã que era criada por ele, e também conhecer meu tio. Nunca esqueci esse tio.
Ah! Queria me casar com o rapaz da igreja; queria pelo menos que ele
percebesse a minha presença. Tinha muita vontade de voltar para a igreja, queria
participar dos grupos de jovens, queria ser vista pelo rapaz. Mas como tive que
mudar de bairro várias vezes, a igreja ficava distante, mas ele estava presente nos
meus sonhos de menina.
Nunca gostei de festas, mas adorava ouvir rádio, gostava muito de músicas
nacionais e internacionais, passava as noites ouvindo essas músicas e sonhando
com uma vida melhor, em ser uma pessoa melhor, para ser vista e respeitada, ou
seja, eu me encontrava dentro de um contexto de invisibilidade social. Tinha
vergonha de ser empregada doméstica, de ser comparada com índia, de não ter
família, de ser canhota, ou seja, de ser ninguém.
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Quanto mais eu crescia e ganhava corpo de mulher, mais eu ficava
preocupada, porque sabia como os homens me viam e o que eles queriam de mim.
Talvez por isso sempre sentisse muita vergonha de mim mesma.
Adorava olhar os livros e, aos poucos, fui conhecendo as letras e
conseguindo juntar as sílabas, com aproximadamente 12 anos de idade já sabia ler
muito pouco. Como não tinha muito tempo livre, pois o trabalho doméstico me
consumia, eu pegava os livros de literatura dos filhos dos patrões, escondia na
descarga do meu banheiro e sempre que tinha um tempo livre corria para o banheiro
e tentava ler.
Só tinha uma certeza: estava só no mundo, não sabia da minha mãe e meu
pai simplesmente desapareceu. Não tinha direito a saúde, educação, moradia, a
família e, principalmente, a ser criança, ou seja, a ter direito. Acredito que, todos os
dias, me lembrava da minha mãe e irmãos, e tentava imaginar o que tinha
acontecido com eles.
Será que estaria melhor com minha mãe? E inúmeras perguntas me faziam
refletir sobre a minha vida. E outra fala da minha mãe me fazia de certa forma
aceitar muitas coisas e pensar que estava destinada àquele sofrimento, ou que a
vida era só isso mesmo: “Quem nasce no mês de agosto, só tem, ou causa,
desgosto, e ainda é canhota! Nossa, é contra Deus”. Demo (2005, p. 174) afirma
que:
Há diferença entre ver-se pobre e “saber-se” pobre. Para saber-se pobre, o pobre precisa de consciência crítica capaz de desconstruir sua exclusão e entendê-la como dinâmica histórica cultivada, mantida, manipulada, não como sina ou desígnio. Precisa portar-se como sujeito, não como objeto.
Sentia-me um ser diferente, talvez destinada ao sofrimento, a cuidar das
coisas dos outros. Ficava muito feliz e agradecida quando minhas patroas diziam
que eu era quase da família. O mínimo de atenção era tudo, ou seja, queria ter uma
família, ser alguém que não servisse apenas para obedecer, queria fazer as
refeições na sala de jantar, com todos, mas sempre ficava na mesa da cozinha. Em
algumas casas, eu já recebia meu prato feito, às vezes com a comida do dia
anterior. Mas era melhor do que passar fome.
Enquanto minha rotina de trabalho e patrões diferentes seguia, o amor pelo
rapaz ficava mais forte. Consegui coragem para participar da igreja, do grupo de
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jovens. Queria muito participar, mais tinha medo/vergonha de me apresentar para os
demais. Eu já estava com 14 anos, a cada dia me transformava numa linda jovem, e
isso não era bom, pois eu chamava a atenção dos meus patrões e muitas vezes tive
que sair do trabalho porque estava sendo perseguida por eles.
Nunca tive acesso a dentista ou qualquer tipo de tratamento odontológico
preventivo, e talvez por isso, com 13 anos de idade (1987), por causa das inúmeras
dores, infecções e problemas dentários de modo geral, minha patroa me levou ao
dentista e mandou extrair todos os meus dentes superiores, pois as dores me
atrapalhavam no trabalho. Como diz a música do Zé Ramalho: “Essa dor doeu mais
forte...” (cidadão). E ainda dói, pois acredito que, de todas as minhas cicatrizes, essa
é a maior.
2.3 Adolescência /Juventude
Ainda com 14 anos de idade (1988), com uma gripe muito forte, necessitei
de atendimento médico. Busquei no Sistema Único de Saúde (SUS) e, no momento
da consulta, me lembrei de uma mancha dormente que sempre tive no joelho, mas
nunca tinha falado a respeito.
Então, mostrei para o médico e vi a preocupação em seu rosto. Logo me
pediu vários exames e os resultados confirmaram que eu tinha hanseníase e deveria
fazer tratamento em um hospital especializado durante um ano. Nesse período, o
governador de Manaus era Amazonino Mendes e o prefeito era Manuel Ribeiro10.
A notícia me deixou sem chão, pois não sabia ao certo do que se tratava,
mas já tinha visto pessoas sem membros e excluídas do convívio coletivo por serem
vítimas da hanseníase (em Manaus, na década de 1940, as pessoas eram isoladas
no leprosário, no interior do Estado, e hoje existe um bairro na capital habitado, na
sua maioria, por hansenianos). Como não tinha família, logo entendi que não
poderia contar para ninguém, ou com alguém, além da vergonha, do medo de ficar
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Manoel Henriques Ribeiro, mais conhecido como Manoel Pracinha, é um político brasileiro que foi eleito vice-governador do Amazonas (PMDB), em 1982, na chapa de Gilberto Mestrinho e prefeito de Manaus em 1985, porém, uma intervenção decretada em junho de 1988, pelo governador Amazonino Mendes, o afastou e, em seu lugar, assumiu interinamente Alfredo Nascimento, por seis meses. Terminado o mandato, foi morar no Rio de Janeiro, onde trabalhou durante a administração de César Maia, retornando ao Amazonas apenas em 2009. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_Henriques_Ribeiro>. Acesso em: 30 ago. 2012.)
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sem os membros e impossibilitada de trabalhar, então tinha que fazer o tratamento e
não podia falar da doença.
Fiz tudo escondido, tomava remédios diários e, uma vez por mês, teria que
tomar um medicamento no próprio hospital. Lembrei-me que Terezinha havia
contado que sua mãe tinha sido isolada do convívio familiar, logo que ela nascera,
por causa da hanseníase11.
Então, fui encaminhada para a Fundação Alfredo da Matta (Fuam), lá o
atendimento era específico e fui acompanhada por uma assistente social, que me
explicou quais cuidados deveria tomar durante o tratamento. Orientou-me de modo
geral e disse-me que a doença já tinha cura. Essa era a parte boa.
O tratamento também envolve os familiares, mas onde estavam os meus?
Como eu saberia se na minha família teria a doença? Consegui fazer o tratamento,
contudo, sempre inventava algo para sair da casa onde trabalhava, pois não podia
falar para meus patrões a respeito da doença, fui orientada sobre o preconceito que
a envolvia, etc.
Assim, como não tinha documentos, durante o tempo em que estava
fazendo o tratamento médico, aproveitei para tirá-los e, de posse deles, queria
procurar emprego nas empresas do Polo Industrial de Manaus (PIM). Tinha o
objetivo de trabalhar com Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS)
assinada; queria ser cidadã.
No dia 1o de agosto de 1989, faltando 20 dias para o meu aniversario de 15
anos, consegui trabalhar em uma fábrica do PIM. Nossa! Como fiquei feliz e
11
Lepra, hanseníase, morfeia, mal de Hansen ou mal de Lázaro é uma doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae (também conhecida como bacilo-de-hansen) que afeta os nervos e a pele e provoca danos severos. O nome hanseníase é devido ao descobridor do microrganismo causador da doença, Gerhard Hansen. O termo hanseníase foi introduzido no Brasil pelo professor titular da Universidade Federal de São Paulo, Abrahão Rotberg. É chamada de "a doença mais antiga do mundo", afetando a humanidade há pelo menos 4 mil anos e sendo os primeiros registros escritos conhecidos encontrados no Egito, datando de 1350 a.C. É endêmica (específica de uma região) em certos países tropicais, em particular na Ásia. O Brasil inclui-se entre os países de média endemicidade de lepra, no mundo. Isso significa que apresenta um coeficiente de prevalência médio superior a um caso por mil habitantes (dado desatualizado) (MS, 1989). Os doentes são chamados leprosos, apesar de que este termo tende a desaparecer, com a diminuição do número de casos e dada a conotação pejorativa a ele associada. A lepra é uma doença contagiosa, que passa de uma pessoa doente, que não esteja em tratamento, para outra. Demora de 2 a 5 anos, em geral, para aparecerem os primeiros sintomas. O portador de hanseníase apresenta sinais e sintomas dermatológicos e neurológicos que facilitam o diagnóstico. Pode atingir crianças, adultos e idosos de todas as classes sociais, desde que tenham um contato intenso e prolongado com bacilo. Pode causar incapacidade ou deformidades, quando não tratada ou tratada tardiamente, mas tem cura. O tratamento geralmente é fornecido por sistemas públicos de saúde. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lepra>. Acesso em: 23 mar. 2012.)
49
orgulhosa. Agora não passaria mais por tantas humilhações, tinha um emprego
valorizado. Era cidadã! E o processo de invisibilidade social em que me considerava
inserida.
Essa situação reforça os dados das pesquisas realizadas:
82% das mulheres do Polo Industrial de Manaus vêm do interior do Estado e seus primeiros empregos são como empregada doméstica, trabalhando sem carteira assinada. Geralmente trabalham durante o dia e estudam à noite. O PIM é o grande sonho. (BARBOSA, 2007, p. 86).
Trabalhar em uma fábrica, naquele momento, também me fez, de certa
forma, esquecer um pouco do meu aniversario de 15 anos, que passei sozinha em
casa, chorando porque ninguém sabia daquele dia tão importante para mim. Nessa
época, eu já estava participando ativamente do grupo de jovens, a Pastoral da
Juventude (PJ), e tinha contato com o rapaz tão querido.
Mas, para ele, meu aniversário não tinha importância. Sempre ouvi minha
mãe falar da importância do trabalho, percebia o orgulho que ela demonstrava de
trabalhar em uma fábrica, porém via também seu desgaste físico provocado pelo
trabalho.
Então, com meu primeiro salário, eu aluguei um quarto, em uma vila, no
bairro da Compensa II, e fui morar sozinha. Só tinha meus objetos pessoais, (uma
mala pequena, uma rede e um rádio relógio), mesmo assim, estava firme e forte.
Acordava todos os dias as 5 horas da manhã, pegava o ônibus da empresa e só
voltava as 17 horas, para meu quartinho. Quando eu tinha dinheiro, comprava
comida pronta para jantar, quando não, dormia para passar a fome. Às vezes, eu
comprava enlatado e farinha, comia frio mesmo, pois eu não tinha fogão.
Nesse período, eu continuava participando do grupo de jovens e ficava mais
próxima do rapaz que me encantava tanto, até o dia em que ele se aproximou de
mim, o homem dos meus sonhos me viu em um baile da igreja, e me beijou. Nossa,
aquele momento foi muito especial, porém, logo ele me convidou para ir à casa dele,
queria o que sempre queriam de mim: sexo! E eu falei que era virgem, ele disse:
“Virgem?”.
Uma menina sem família, que mora sozinha, nunca! E riu da minha cara.
Essa foi a minha primeira decepção amorosa. Nossa, chorei a noite toda, ouvindo as
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minhas músicas no meu rádio relógio, mas a vida continuava. E com o coração
partido continuei trabalhando.
No mesmo ano, no grupo de jovens conheci três irmãs e logo a família toda.
Eles me ajudavam com comida, nos fins de semana, visto que não tinha fogão e só
comia quando estava na fábrica. Era uma família muito grande, todos vindo do
interior do Estado.
A casa era de madeira em estado precário, tinha três cômodos, para 11
pessoas, a mãe dona Nena (analfabeta) é doméstica, o pai Joaquim (analfabeto),
por coincidência, trabalhava na mesma fábrica que eu, ele era jardineiro. As filhas
mais velhas trabalhavam em fábricas e/ou como domésticas para garantir as
despesas da casa. Era uma família muito unida e me sentia bem convivendo com
eles.
E assim fui seguindo minha vida. Continuei morando sozinha, e em 1990 fiz
minha matrícula na Educação Integrada, iniciando meus estudos a noite. Estava
encantada com as aulas, queria aprender tudo ao mesmo tempo, mas logo vi que
era difícil trabalhar o dia todo e estudar a noite. Às vezes, dormia preocupada em
acordar na hora determinada para o trabalho, pois não poderia perder o ônibus.
Muitas vezes, cheguei a acordar no meio da noite, pensando que estava na hora do
ônibus da empresa e saía na rua até perceber que ainda era cedo.
51
Figura 4: Histórico escolar do ensino fundamental
Fonte: documento pessoal.
A década de 1990 foi marcada, na história do Brasil, pois, de acordo com
Scherer (2004, p.128)
O esgotamento do pacto desenvolvimentista e com a reestruturação do capitalismo brasileiro na economia global, ocorreu uma retração no emprego formal, bem como ampliou o desemprego e o subproletariado no mercado informal. A Zona Franca de Manaus, neste contexto, é profundamente afetada, sobretudo pela política de liberação comercial para o exterior e pelos limites de importação de insumos impostos pelo governo Collor de Mello.
O contexto amazônico sofre diretamente os impactos da recessão e crise
econômica e das novas formas de flexibilização produtiva que se instalam em todo o
País a partir da efetivação da ideologia neoliberal, sendo, o PIM o termômetro para a
medição desse processo (IBGE, 2012).
Contudo, o governador do Amazonas, Amazonino Mendes, como o grande
gestor “preocupado” com as classes subalternas, acredita que é chegada a hora de
um novo ciclo de desenvolvimento a ser implementado na região. E, assim, nascia o
Terceiro Ciclo de Desenvolvimento. Nessa década, a população de Manaus somava
1.010.544 habitantes (IBGE, 2012).
52
Justamente por causa dessas transformações, fui demitida da empresa e
novamente tive que trabalhar e morar em casa de família. Consegui trabalhar na
casa de uma amiga da igreja, mas não deu certo e ela me mandou embora depois
de aproximadamente dez meses de muito trabalho, mesmo sabendo que eu não
teria lugar para morar.
Então, um amigo do grupo de jovens me acolheu, mas a família dele era
muito pobre, não tinha comida, estavam todos desempregados, e eu era mais uma
boca na casa. Também fiquei pouco tempo com eles, pois certo dia um pessoal
invadiu a casa e bateu em todos, esfaqueou meu amigo, foi muito feio e tive muito
medo.
Depois desse episódio, encontrei um novo emprego em casa de família, e só
vinha no bairro da Compensa II nos fins de semana para participar do grupo de
jovens. Minha maior alegria era quando, no domingo, encontrava meus amigos do
grupo. Amava participar da PJ12.
Porém, essa relação com os outros jovens, no início, não foi muito tranquila
para mim. Eu tinha dificuldade de convivência, vergonha, não sei ao certo, mas não
era fácil, principalmente quando necessitava desenvolver atividades exigidas dentro
e fora dos grupos, ou seja, falar em público para mim era impossível, explicar uma
passagem da bíblia, fazer a leitura na missa eram outras coisas difíceis. Mas com o
tempo e a paciência dos meus amigos, fui perdendo o medo e aceitando a
convivência.
12
A história da Pastoral da Juventude começa pelos anos 70 ou, até, com a Ação Católica Especializada (JAC, JEC, JOC, JUC), nos anos 60. Não podemos negar que aprendemos muito da Ação Católica, da Teologia da Libertação, da Pedagogia do Oprimido. No final da década de 70 e no início dos anos 80, a Igreja vivia um período de grandes expectativas, pois Medellín e Puebla trouxeram novos ares para a ação pastoral com a opção concreta pelos pobres e pelos jovens. Esta opção possibilitou ampliar o trabalho que vinha sendo desenvolvido com a juventude em movimento, para a construção de uma proposta mais orgânica. As dioceses passaram, então, a organizar a evangelização dos jovens em pequenos grupos (entre 12 a 25 jovens) e, para melhor acompanhar a organização e formação dos jovens, iniciou-se a articulação de encontros nacionais com o propósito de melhorar a comunicação e proporcionar o intercâmbio e a sistematização de experiências. A PJ, no seu todo, foi valorizando e incluindo em sua caminhada novas experiências de trabalho com a juventude, a partir de seu meio específico: juventude rural, juventude estudantil, juventude universitária e juventude dos meios populares – o que lhe foi exigindo uma nova forma de se articular e se organizar. Os encontros e assembleias tornaram-se momentos ricos de refletir sobre o acompanhamento dos jovens para a vida em grupo. Aí a Pastoral da Juventude iniciava seus famosos Seminários para Assessores, que serviram como laboratório e espaços de reflexões importantes como: o Processo de Formação na Fé, a Metodologia de Trabalho com Jovens, o mundo do trabalho, a cultura, as Políticas Públicas de Juventude, o Planejamento da Ação Pastoral, a Missão, e tantas outras discussões. (Disponível em: <www.pj.org.br/historia-da-pastoral-da-juventude>. Acesso em: 20 jul. 2012.)
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Nesse período, comecei a passar os fins de semana com a família de
amigos, mas não tinha lugar para mim, gostava de todos da casa, mas ficava muito
incomodada por não ter meu próprio lugar, não ter basicamente lugar para dormir.
Dividia uma cama de casal com mais duas pessoas, mas fui muito feliz nesse
período. Dentro das possibilidades, tinha um lugar para morar, porém sentia que
deveria construir algo meu.
Mesmo sendo querida pelos amigos, sentia grande necessidade de construir
minha própria família, já estava cansada de fazer tudo sozinha. Minha vida
doméstica continuava, era demitida de um lugar, conseguia outro. O local em que
era permitido estudar eu fazia a transferência, quando não era, eu desistia. Tive
alguns namoricos, mas quando eu me interessava, o rapaz não me queria, e assim
eu vivi a minha juventude.
A pastoral foi meu refúgio, o grupo de jovens, o teatro, foi lá que eu me senti
valorizada, realizava-me no teatro, lá colocava para fora minhas emoções mais
ocultas, vivia situações diferentes, tirava de dentro de mim aquela menina
envergonhada. Na igreja, tive conhecimento dos movimentos sociais e a cada dia
sentia que aquele era o meu mundo.
Minha vida agora era voltada para estudar a noite, trabalhar durante o dia e
sonhar, quando tinha um momento só meu na casa. Ainda pensava naquele rapaz,
mas ele casou-se com uma “moça de família”, também participante da igreja
católica. Eu sofri muito por isso, tinha a ilusão de obter a felicidade a partir do
casamento, a imagem da família perfeita, ou seja, queria ser incluída socialmente
por meio do casamento.
Depois de casado, esse rapaz resolveu me procurar, percebi que, como
esposa, eu não servia, porém seria uma amante ideal, mas nunca tivemos nada
além de um beijo, eu sabia que ele não prestava, mas não conseguia finalizar
aquela história - finalizar esse ciclo. Certo dia, a esposa dele quase nos flagrou
juntos. Mesmo não tendo visto nada além de uma conversa, ela me esperou na rua
da igreja da qual eu participava e tentou me bater. Nossa, foi uma grande confusão.
Fiquei com muita vergonha, pois toda a rua ficava comentando e me
chamando de “puta”. Era muito fácil falar mal de mim, eu não era ninguém e estava
errada, pois ele é homem. Nesse dia, tomei uma decisão: nunca mais chegaria perto
dele e daquelas pessoas que falaram mal, acusaram-me e me fizeram sentir tão mal.
Prometi para mim que gostaria de outra pessoa, casaria e teria a minha família.
54
No mesmo ano, conheci um rapaz também da PJ. Vou chamá-lo aqui de
FV. Ele também me chamou a atenção, ficamos juntos acredito que um mês, mas
logo me falou que não dava pra continuar. Sofri novamente com a rejeição, não
conseguia entender a situação e meus conflitos pessoais se tornavam uma
constante na minha vida cotidiana.
Pois eu sempre chamava muito a atenção dos homens, as pessoas me
diziam que eu era bonita, mas eles não queriam nada sério comigo, e essa situação
repetiu-se algumas vezes, a ponto de me fazer desistir de namorar ou continuar
tentando encontrar alguém legal.
Nesse período, eu já participava de alguns desfiles, organizados pela escola
onde eu estudava e a associação de moradores do bairro em que eu morava. Essa
atividade me deixava muito feliz, pois eu adorava desfilar e relembrar dos meus
sonhos de criança. Adorava assistir os programas de miss Brasil, ficava me
imaginando. Na verdade, eu tinha, apesar de tudo, grande vontade de viver e de ser
feliz.
Com 18 anos de idade, conheci outro rapaz da PJ. Esse foi meu namorado
e me apresentou para a família dele. Mesmo sentindo que eles não gostavam de
mim, ou simplesmente não queriam na família uma empregada doméstica. A irmã
dele me chamava de “criança esperança”. Eu sempre ouvia uma gracinha nesse
sentido.
Nesse mesmo ano, 1992, durante meu horário de trabalho, (estava
passando roupas), como eu sempre gostei muito de música, sempre fazia as coisas
ouvindo um walkman, porém, nesse dia, eu estava sem pilhas e resolvi ligar uma
tevê muito velha que tinha no meu quarto, então, coloquei num programa local,
chamado Horário do Povo, e fiquei ouvindo e passando roupas, quando ouvi o
apresentador perguntar o nome de um senhor que estava procurando emprego.
E o senhor falou: “Eu me chamo Raimundo Gomes” E então, eu fiquei louca,
comecei a gritar pela minha patroa e dizia: “Dona Suely, o meu avô está na tevê,
corre, liga para lá, é meu avô, eu sei, é ele!”. Dona Suely não acreditava, falava para
eu me acalmar, dizia que era só um nome, que poderia ser qualquer outro Raimundo
Gomes. Mas eu sabia que era ele, então, insisti muito e ela ligou para o programa.
Depois de um tempo, ele retornou, e era meu avô, pai da minha mãe e do tio que eu
sempre quis conhecer e que criou Rosimar.
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E foi aí que eu marquei um encontro para conhecê-los. Ele me levou à casa
da minha irmã, ela era casada, já tinha três filhas. Fui também à casa do meu avô,
conheci meu tio mais novo, mas não cheguei a conhecer o tio que tanto queria, pois
ele era casado e morava em outro bairro, mas fiquei sabendo também que ele
sempre quis me conhecer. Minha irmã me contou que meu tio tão adorado não era
bem o que minha mãe falava.
Na verdade, ela também não sabia da vida dele, depois que a família passou
a morar em Manaus. E fiquei sabendo que meu tio tinha assassinado um homem,
que foi preso por muitos anos, que ele, na cadeia, passou a usar drogas e etc.
Soube também que meu avô vendia picolé na rua e vendeu tudo que tinha para
pagar o advogado para tirar meu tio da cadeia, e, mais uma vez, eu me decepcionei.
Fiquei dias tentando entender onde estava aquele homem que eu queria ser igual,
porque a vida dele tinha chegado a esse ponto?
Mas não o conheci ainda. Meu tio mais novo também não tinha no seu perfil
indicação de boa conduta, minha irmã vivia com um traficante e foi só decepção.
Depois de um ano, meu avô faleceu e, no velório dele, eu conheci meu tio, mas já
estava desencantada. Depois da morte do meu avô, eu não tive mais contato com
ele, e mais uma vez percebi que estava sozinha no mundo. Não tinha mesmo com
quem contar e, às vezes, me perguntava o sentido da vida. Meu avô morreu tão
cedo, nem tive tempo de ser neta, não tinha sido filha, irmã, sobrinha, prima, ou seja,
quem eu era?
No mesmo ano (final de 1994), encontrei dentro de um ônibus a minha irmã
Silvanes, que tinha ido para o interior com minha mãe. Ela estava grávida, falamos
rapidamente, e ela também estava trabalhando em casa de família e não sabia da
minha mãe. Dei o número do telefone do meu trabalho para ela. Em seguida, saí
dessa casa porque consegui um emprego, novamente, em uma fábrica do PIM.
Continuei namorando e queria casar, mas um casamento tradicional. Ele
estava desempregado, eu ganhava muito pouco, R$ 0,56 por hora, então, não dava
pra fazer o casamento dos meus sonhos. A mãe dele não queria casamento
nenhum.
No ano de 1994, voltei a trabalhar no PIM, e passei a morar direto com
aquela família de amigos que me ajudavam anteriormente, mesmo não tendo
estrutura física para comportar mais uma pessoa na casa, eles me acolheram e me
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possibilitaram convivência família, passei a participar da rotina daquela família, seus
problemas, alegrias, etc..
Contudo, sempre ouvia uma crítica aqui e outra ali sobre minha presença na
casa, mas sabia que seria temporário, que eu conseguiria minha própria casa. Sabia
também que aquela família tinha sido escolhida por mim, eu quis fazer parte dela, e
hoje, com muito orgulho, é a minha família do coração.
2.4 O Casamento
No dia 2 de dezembro de 1994, casei-me no civil com Lúcio. Ele com 23
anos de idade, desempregado, e cursando o ultimo ano do ensino médio, e eu com
20 anos, cursando a 8a série do ensino fundamental, e nesse momento trabalhando
em um fábrica do PIM.
Então, passei a morar na casa da mãe do meu esposo, e a dormir no quarto
junto com a avó dele. Na casa, moravam os avós maternos, a mãe e o padrasto.
Lúcio é filho de pais separados, tem apenas uma irmã mais nova, que na época já
era casada. Ele foi criado com os avós maternos, pois sua mãe trabalhava como
costureira. Sua família é muito grande e unida, oriundos do Município de
Eirunepé/AM.
E aí se inicia a minha vida de mulher casada. Estava muito feliz, via nesse
casamento a solução da minha vida. A construção da minha família, a possibilidade
de fazer o diferente, ou seja, eu estava finalmente protegida. Em fevereiro de 1995,
fiquei sabendo que estava grávida. Naquele momento, era tudo o que eu queria,
mas a gravidez foi interrompida e com 3 meses tive um aborto espontâneo. Fiquei
muito triste, mas a vida continuava e talvez soubesse o porquê do aborto.
No dia 21 de junho desse mesmo ano, recebi um telefonema, na fábrica em
que eu trabalhava. Era a Silvanes, e ela estava prestes a dar à luz no meio da rua,
então, peguei um táxi e fui ao encontro dela. Levei-a para a maternidade Ana Nery,
mas como não tinha feito o pré-natal, encontrei dificuldades para conseguir a
internação. A médica que a atendeu suspeitou que ela tinha doença sexualmente
transmissível e me informou a respeito.
Então, nesse mesmo dia, às 21 horas, nasceu, com quase 2 quilos, a
Thaynah, nome escolhido pela mãe. Naquele momento, queria cuidar daquela
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criança tão desnutrida e sem proteção alguma. Minha irmã não tinha uma camisola,
e consegui comprar algumas coisas para ela e a criança.
Também fiquei sabendo que Silvanes não tinha lugar para morar, que
minha mãe já estava em Manaus, morava em um sítio, trabalhava como caseira,
mas as duas estavam brigadas, por causa do meu padrasto, que tinha vida dupla
entre minha mãe e minha irmã, entre outras coisas.
Como eu trabalhava o dia todo, não podia ficar com a criança. Contudo,
Silvanes também falou, na maternidade, que não daria a criança para ninguém, pois
algumas famílias a queriam. Ela conseguiu um lugar para passar o pós-parto.
Depois de aproximadamente 15 dias, ela voltou a ligar, disse que a criança estava
doente, fui até lá, levei ao médico, comprei a medicação e voltei para casa.
Continuei trabalhando. Mais ou menos um mês e meio, eu cheguei em casa
e a criança estava em cima da minha cama. Então, a Silvanes disse que não podia
cuidar da criança, que não daria para ninguém, só pra mim! Por mim eu ficaria, mas
meu marido e minha sogra não a queriam.
Então, depois de pensar muito e acreditar que eu poderia oferecer uma vida
melhor para aquela criança tão indefesa, tão vítima de tudo, resolvi ficar com a
menina. Minha irmã sumiu no mundo, e a criança apresentava vários problemas de
saúde, além da falta de documentação, ou seja, registro de nascimento. Dentro
desse contexto, senti a necessidade de registrá-la para vinculá-la à cobertura do
meu plano de saúde empresarial.
Como Silvanes tinha sumido, eu resolvi ir ao cartório e dizer que a criança
tinha nascido em casa, para poder registrar e não foi difícil. Eu consegui levá-la ao
médico, descobri que tinha uma criança cheia de problemas de saúde e que teria
muito trabalho pela frente. Como nunca tive medo de trabalho!
Mas estava gostando de ser mãe. Aí se inicia a minha vida de mãe, Thaynah
chorava a noite toda, eu trabalhava durante o dia, minha sogra tentava ficar com ela
para eu trabalhar, mas não conseguiu cuidar de tudo sozinha. Pedi apoio à minha
mãe e ela me mandou uma irmã mais nova para me ajudar, mas também não deu
certo. Eu estudava a noite, estava na 8a série do ensino fundamental e mais uma
vez tive que desistir.
Minha vida mudou novamente, parei de trabalhar, estudar, passei a viver
com apenas R$ 0,77 por hora, do salário do meu marido. Thaynah tinha vários
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problemas de saúde e necessitava cuidados especiais, mesmo assim sempre o
ajudava em casa com alguns trabalhos informais.
E o sonho de concluir o ensino médio, para me possibilitar o ingresso em
uma universidade, ficava cada vez mais impossível. A busca dessa realização, em
alguns momentos, parecia estar adormecida. Eu não era mais alegre, a rotina me
excluía das necessidades do universo feminino, minha vaidade estava sendo
esquecida, diante dos problemas domésticos.
Toda dedicação estava voltada para atender às necessidades da minha filha
e do meu marido. Meus sonhos pessoais, minha juventude e alegria deram lugar à
mãe de família, que se desdobrava para consegui contornar as dificuldades.
Lúcio, meu marido, era um homem “bom” (dava casa comida e sabão para
lavar roupas). O tempo codificado em convivência demonstrava que aquela relação
não me fazia bem, não me sentia amada e respeitada, pois ele me agredia
verbalmente todos os dias. Fiquei tão desnorteada que não percebia que estava
dentro de um ciclo de violência. Acredito que perdi a vontade de ser feliz ou até de
continuar a minha luta.
Tudo contribuía para a minha entrada em um estágio vegetativo. Até hoje
não sei explicar com exatidão aquele período. Na verdade, não entendo porque
consigo lembrar coisas da minha infância, mas apaguei completamente momentos
da vida conjugal.
Minha vida seguia de forma rotineira, já não tinha perspectivas. Cuidava da
minha filha, do marido e da casa. Em 1996, exatamente no dia do aniversário de um
ano da Thaynah, descobri que estava grávida de 3 meses.
Aquele momento foi uma mistura de alegria e apreensão, pois já tinha uma
filha pequena, que necessitava de muitos cuidados, e as despesas eram muitas.
Acima de tudo isso, existia um grande desejo de ter o meu primeiro filho biológico,
mas a gravidez foi muito conturbada, devido ao acúmulo de tarefas.
Em 1997, um domingo, às 10 horas da manhã, veio ao mundo uma menina,
com quatro quilos, linda, cheia de saúde, nascida de parto cesáreo na maternidade
Beneficência Portuguesa, em Manaus. Era minha primeira filha biológica, chamei-a
de Thayanne, que hoje tem 15 anos. Minha filha nasceu exatamente como eu
imaginei: em um momento de muita felicidade.
Após um mês do nascimento da minha filha, voltei a trabalhar como
empregada doméstica. Minha rotina consistia em deixar Thaynah na escola e levar
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Thayanne para o trabalho comigo, durante um ano. Para além das dificuldades no
transporte público, tinha que me desdobrar para cumprir as atividades domésticas, e
também cuidar de Thayanne, que exigia atenção.
Essa realidade, a cada dia, me fragilizava, gerando a impossibilidade de
cumprir diversas obrigações impostas. Não estava conseguindo sobreviver à rotina.
Agora, estudar, para mim, era apenas uma vaga lembrança. Tinha desistido na 8a
serie do ensino fundamental e a cada dia ficava mais distante o retorno.
Sabia que não podia mais, pois agora a vida apresentava-me outras
prioridades, e, entre elas, tinha o sonho da casa própria, visto que passava por
várias situações conflituosas com a família do meu esposo, o qual demonstrava
imparcialidade diante dos acontecimentos.
Para continuar no trabalho como doméstica, convidei uma moça, vinda do
interior do Estado, para morar comigo e cuidar das crianças. Thayanne estava com
um ano e Thaynah ainda apresentava diversos problemas de saúde, que exigiam
muito cuidado.
Contudo, em 1998, novamente sou surpreendida com outra gravidez, já
estava com dois meses, e descobri na mesma semana em que Lúcio foi demitido da
empresa em que trabalhava. Fiquei muito triste, pensei em fazer um aborto, mas não
tive coragem. Então, peguei R$ 1.500,00 da indenização dele e aproveitei para
comprar um terreno em uma ocupação irregular, distante do centro da cidade, na
zona norte de Manaus.
Apesar das dificuldades, foi um momento de muita felicidade, pois teria
minha própria casa, porém, Lúcio não queria sair da casa de sua mãe, e mesmo
grávida, tomei a frente de todo o processo de construção. Como o dinheiro era
pouco, só foi possível levantar dois cômodos, e o local não possuía saneamento
básico, energia elétrica, água encanada e apresentava difícil acesso, devido ao
desnivelamento do território.
Esse período está no âmago da minha memória, pois recordo-me da luta
para conseguir água potável. Tínhamos que carregar da casa dos vizinhos mais
antigos, que tinham poço artesiano, a energia era obtida por “gato” (ligação
clandestina). Comprávamos rolos de fios, para ligar a casa com o ponto mais
próximo de energia, localizado a um quilômetro de distância.
Para pegar um ônibus, tínhamos que subir por um barranco no meio da
mata. Era tudo muito difícil, mas havia uma linda visão da mata e dos macacos
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Sauim de Coleira que habitam aquele local, estando hoje em iminência de extinção,
devido ao crescimento desordenado, bem como ao processo de urbanização da
cidade.
E assim, no dia 13 de junho de 1999, mudei para a minha casa. Estava com
sete meses de gravidez, com aquele barrigão, e já tinha caído do barranco13 várias
vezes, pois, quando chovia, o solo (barro) ficava escorregadio.
Para construir os dois cômodos ficamos completamente endividados. Lúcio
conseguiu outro emprego, ganhava pouco, mas estava trabalhando. Thaynah ainda
exigia muitos cuidados, mas melhorava a cada dia. Agora eu estava na minha casa,
e orgulhosa por ter participado daquela construção. É difícil descrever o sentimento
de realização de um sonho, e de, pela primeira vez, construir algo meu.
Naquele momento, estava muito preocupada com o nascimento do meu
filho, pois não tinha dinheiro para comprar as coisas necessárias para a chegada de
uma criança, porém, acabei ganhando enxoval das pessoas que trabalhavam com
meu marido, e meu filho veio cheio de saúde.
Nasceu de parto cesáreo, com quase 5 quilos, numa sexta-feira, às 19 horas
do dia 13 de agosto de 1999, numa noite linda de lua cheia. Lucas veio ao mundo
para me fazer voltar para a realidade. Ele era a luz que eu estava necessitando.
Sempre fiz de tudo para cuidar muito bem dos meus filhos, tinha plano de
saúde, por causa da empresa em que Lúcio trabalhava, e eles sempre foram ao
médico/pediatra, dentista e iniciaram a vida escolar no tempo certo, mesmo com
todas as dificuldades cotidianas.
Logo depois do nascimento do Lucas, iniciei um processo de
adoecimento. Tinha um problema na garganta que só piorava, cheguei a ficar várias
vezes internada, pois não conseguia engolir nada. E passei por consultas com vários
otorrinolaringologistas.
No dia do nascimento do Lucas, decidi que seria meu último filho, então, aos
24 anos de idade, fiz uma laqueadura. Continuei o tratamento com o
otorrinolaringologista, entre melhoras e recaídas. Estava cada dia mais estressada,
com meus filhos e as obrigações conjugais; não via mais motivos para continuar
casada.
13
Ribanceira de rio. Encosta íngreme não coberta de vegetação; escarpa. Despenhadeiro, precipício. Ravina entalhada em certos cones vulcânicos. (Disponível em: <http://www.dicio.com.br>. Acesso em: 24 jul. 2012.)
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Era constantemente agredida verbalmente por Lúcio, que nunca me ajudava
com as crianças ou qualquer serviço doméstico. Percebi que continuava sozinha,
não tinha com quem contar. Às vezes, me sentia cansada de lutar, tinha a sensação
de que estava carregando um fardo muito pesado.
Tinha desistido de muitas coisas, principalmente de ser mulher, de ser feliz,
de amar e ser amada, de viver. Estava gorda, doente, envelhecida e cansada. Em
consultas ao médico, fui diagnosticada com um problema de origem emocional, que
necessitava urgentemente de um psicólogo.
Então, não falei nada em casa e fui em busca da cura. Tinha medo do
preconceito das pessoas, de pensarem que eu estava “louca”. Entretanto, encontrei
dificuldade de iniciar o tratamento, devido ao plano de saúde empresarial na época
não ter cobertura para tratamento psicológico.
Mais uma vez, recorri aos amigos e ao conversar sobre o problema com
uma cliente do salão de beleza em que estava trabalhando como manicure e
pedicuro, ela se disponibilizou a me atender em seu consultório psicológico.
Quando cheguei ao consultório, não sabia o que falar, não entendia o motivo
do encaminhamento do médico, para o tratamento psicológico, se meu problema de
saúde era na garganta. Fui apenas a quatro sessões e desisti, pois tinha que
trabalhar.
A partir daí, consegui voltar pra vida. Pois, na verdade, com o tratamento
psicológico, eu desvendei minhas reais dificuldades, mas talvez, pela primeira vez
na vida, eu não tinha coragem para encarar os fatos e mudar a situação que me
fazia muito mal. Tinha meus filhos, que influenciavam as minhas escolhas, pois os
colocava acima de tudo.
Aquela vida não me satisfazia, tinha direito de buscar a minha felicidade.
Contudo, meus filhos tinham o direito de conviver com o pai. Eu sabia muito bem
como era a vida sem referências, sem pai e mãe, sem família. Além de toda a carga
religiosa que me fazia acreditar em parte na perseverança, no perdão e na família
“tradicional”.
Esse foi o grande conflito que perdurou por muito tempo, fazendo com que
ocorresse um adiamento da minha vida como mulher livre e com direito de buscar
melhores condições de existência. E aí iniciei uma briga interna a superar.
Ao chegar ao meu limite, percebi que voltar a estudar e trabalhar poderia
possibilitar uma vida melhor para mim e meus filhos. Nesta busca, deparei-me com
62
uma nova exigência do mercado de trabalho, o ensino médio completo, a exigência
mínima para trabalhar nas empresas do PIM.
Voltei a pensar nos estudos e, no início do ano de 2001, resolvi voltar a
estudar, matriculei-me para terminar a 8a série do ensino fundamental, e quiçá o
ensino médio, para conseguir trabalho em uma fábrica e ajudar nas despesas da
casa.
Nesse período, eu não tinha roupas para sair de casa, andava sempre com
a mesma roupa e um chinelo de dedo, por causa do excesso de peso e da falta de
dinheiro. Mesmo assim, fui buscando estratégias de sobrevivência, além de
manicure, vendia cosméticos, fazia bolos para vender na porta da minha casa, etc..
Minha vida começou a mudar, em todos os sentidos; parte do problema de
saúde sumiu, voltei a cuidar de mim. Aquela menina alegre e vaidosa começou a ser
chamada à vida novamente, agora uma mulher, que tinha esquecido como é bom
viver, sentir-se viva.
E, aos 27 anos, terminei o ensino fundamental e me matriculei no ensino
médio, porém, por causa da idade, não fui aceita no ensino regular. Novamente, só
me restou o ensino na modalidade acelerado. Aos 28 anos, conclui o ensino médio.
Nesse período, eu também já estava separada de Lúcio, pois a família dele não
acreditava que eu estivesse realmente estudando e começaram as críticas e
calúnias.
Até um dia em que minha sogra me disse: “Papagaio velho não aprende a
falar, tu tá querendo é encontrar homem pra te comer, quando meu filho descobrir e
encher tua cara de pancada, e tu for para a delegacia das mulheres, eu vou abrir a
minha boca...”.
Fiquei muito chocada com a situação, pois ela falou na frente de várias
pessoas. Meu marido ficou calado e quando chegamos em nossa casa, ele quebrou
minhas coisas. Ele preocupava-se com o que as pessoas iriam comentar e, em
momento algum, me defendeu das calúnias de sua família.
Naquele dia, confirmei que não possuía um marido, um companheiro, vi que
ele não entendia a importância que os estudos tinham na minha vida. Ele não me
conhecia, não acreditava em mim, não valorizava todo o esforço que tinha feito até
aquele momento para ajudá-lo. Na verdade, eu continuava sozinha, e não tinha
mesmo com quem contar. Então, pedi que ele saísse da minha casa, e continuei
sozinha, com meus filhos. Optei por continuar estudando e pedi a separação.
63
No ano de 2002, terminei o ensino médio com 28 anos. O difícil era, tarde da
noite, descer a escada que dava acesso à minha casa. O barranco no meio da mata,
que mencionei anteriormente, foi se transformando em uma escada de 76 degraus e
continuou na mata, já tinha luz elétrica, mas insuficiente para realizar a cobertura do
território. Era um lugar perigoso e sem policiamento. A escada era ponto de venda e
consumo de drogas, “a boca”.
Em 2004, uma equipe da Prefeitura de Manaus foi até a minha casa para
realizar cadastramento para o Programa Bolsa-Família14. Como eu não estava,
minha vizinha informou à equipe a situação em que eu vivia: trabalhadora informal e
separada, três filhos, com vacinação em dia, matriculados e frequentando a escola
pública. Ou seja, tinha o perfil e atendia às condicionalidades do programa.
A equipe, então, deixou a lista de documentos necessários para o
cadastramento com a própria vizinha. Como eu estava dentro dos critérios
necessários para ser beneficiária do Programa Bolsa-Família, deixei cópia dos
documentos e ela mesma realizou o cadastro.
Pela primeira vez, fui incluída em um programa social do governo federal, e
depois de alguns meses passei a receber R$ 120,00 por mês. Naquele momento,
era a minha única renda fixa. O dinheiro me ajudava com as despesas de
alimentação, pois, mesmo trabalhando como manicure, não auferia o suficiente para
a minha sobrevivência.
Sabia da existência desse programa e até mesmo de outros, do governo
estadual e do municipal, mas nunca tinha ido a uma secretaria para inscrever-me
para receber qualquer outro benefício. Sempre pensei que era um desrespeito para
com as pessoas terem que ficar noites em filas para conseguir “ajuda” do governo.
14
O maior e mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil. O Bolsa-Família nasce para enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que é o de combater a fome e a miséria, e promover a emancipação das famílias mais pobres do País. Através do Bolsa-Família, o governo federal concede mensalmente benefícios em dinheiro para famílias mais necessitadas. Bolsa-Família pauta-se na articulação de três dimensões essenciais à superação da fome e da pobreza: promoção do alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda à família; reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de Saúde e Educação, por meio do cumprimento das condicionalidades, o que contribui para que as famílias consigam romper o ciclo da pobreza entre gerações; coordenação de programas complementares, que têm por objetivo o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários do Bolsa-Família consigam superar a situação de vulnerabilidade e pobreza. São exemplos de programas complementares: programas de geração de trabalho e renda, de alfabetização de adultos, de fornecimento de registro civil e demais documentos. O Bolsa-Família integra o Fome Zero, que visa assegurar o direito humano à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome. (Disponível em: <www.mds.gov.br/programas/transferencia-derenda/>. Acesso em: 25 maio 2012.)
64
Às vezes, não conseguia trabalhar, pois não tinha com quem deixar meus
filhos, não podia pagar alguém e não havia creches públicas para deixá-los. No
bairro, a escola mais próxima ficava há aproximadamente 30 minutos da minha casa
e cada criança era matriculada em um horário: Lucas pela manhã, Thayanne no
intermediário e Thaynah à tarde, ou seja, era o dia todo levando e pegando criança
na escola.
E, assim, manter meus filhos na escola pública era um verdadeiro sacrifício.
Além da distância, sempre tive problemas relacionada à qualidade do ensino
recebido, principalmente por meus dois filhos menores, pois eles eram
considerados, pelos professores, crianças com índice de aprendizagem superior ao
dos colegas, e por isso estavam sempre repetindo o conteúdo.
A turma não acompanhava o desenvolvimento deles, e a escola não podia
fazer nada, por causa da idade. Minha filha mais velha tem, até hoje, problemas de
aprendizagem e, na época, a escola também não podia fazer nada. Ela sempre foi
encaminhada para a série seguinte, devido à escola não reprovar, por exigência do
Ministério da Educação e Cultura.
Mesmo assim, cumpria com as condicionalidades, pois elas já faziam parte
da minha rotina e me transformei em estatística de atendimento do programa.
Como não tinha dinheiro para pagar uma pessoa para me ajudar com as
crianças, pensei em pedir a ajuda para minha mãe, mas ela não aceitou cuidar dos
meus filhos. Porém, na tentativa de ajudar, pediu para minhas duas irmãs mais
novas que viessem morar comigo e cuidassem dos meus filhos, enquanto eu
trabalhava e estudava. Como elas também não tinham onde morar, eu aceitei e,
mesmo sem condições, pagava para elas, pois era também, uma forma de ajudar
minhas irmãs.
Porém, depois de um tempo, fiquei sabendo que elas batiam em meus
filhos, faziam várias coisas escondidas, em minha casa; levavam bebidas, drogas,
homens, torturavam meus filhos para que não me contassem nada. Meus vizinhos
sabiam e, um dia, acabei descobrindo, então pedi que as duas fossem embora da
minha casa, e voltei a ficar sozinha com meus filhos.
Então, saí do salão e comecei a fazer manicure em domicílio, pois teria
autonomia nos meus horários, para conciliar com a escola das crianças. Pedia ajuda
para minha vizinha e aos amigos, pois descobri que jamais poderia contar com
minha família. Mas, na verdade, que família?
65
Meus irmãos têm uma vida de sofrimentos, e ainda passam por diversas
dificuldades. Silvanes é analfabeta, tem quatro filhos criados por terceiros. Depois
que minha mãe foi para o interior, Silvanes passou a ser violentada constantemente
por meu padrasto. Ela nunca foi à escola, assumiu meu lugar nos trabalhos
domésticos e no cuidado com as outras filhas que minha mãe teve no interior.
Rosimar tem quatro filhas, vive uma vida de brigas, violência doméstica e
tráfico de drogas. Nunca tive muito contato com ela, mas sei das suas dificuldades.
Terezinha, minha mãe, também não tem casa própria, de tempos em tempos, com
os filhos, ou sozinha, às vezes, trabalha como doméstica, em outras, com vendas.
Sei que ela se sente desprezada por mim, mas infelizmente não tenho
condições financeiras para ajudá-la, como ela acredita que eu deveria. Também não
me sinto obrigada a ter que subsidiá-la.
Os outros irmãos vivem na linha da pobreza e da criminalidade. Os dois
irmãos homens estavam presos por tráfico de drogas. As três irmãs mais novas só
estudaram até a 5a série do ensino fundamental, tiveram filhos, e as crianças sofrem
com a realidade de violência doméstica, prostituição e drogas. Algumas crianças
foram entregues a outras famílias.
Mesmo Terezinha não tendo casa própria, ela nunca quis morar comigo
porque não gostava da forma como eu entendia as coisas, pois discordava de
muitas escolhas dela. Conforme estudava, mais percebia que não pertencia àquela
realidade, e que, de alguma forma, o abandono foi uma forma de me proteger da
violência social que sobrepujava aquela família.
O tempo passou, eu terminei o ensino médio e voltei a trabalhar como
manicure em atendimento domiciliar. Lúcio me ajudava com muito pouco, se antes
eu tinha R$ 500,00 do salário dele, agora ele me dava R$ 100,00, R$ 200,00. Tal
situação pressionava-me a trabalhar muito.
Um dia, em sala de aula, ainda no ensino médio, o professor perguntou se
alguém tinha vontade de fazer um curso superior. Falei que queria ser assistente
social e ele perguntou: Por quê? E eu disse: Quero ter conhecimento, quero
conhecer, aprender e contribuir com as pessoas que necessitam de orientações de
uma assistente social. No momento não tinha noção da grandiosidade dessa
profissão, apenas recordava da profissional que me atendeu quando fiquei doente.
Um ano depois, uma amiga que estudou comigo no ensino médio e estava
na sala de aula, quando falei do meu sonho, me encontrou por acaso na rua e me
66
convidou para fazer Serviço Social, em uma universidade particular, curso que ela já
frequentava. Sem dinheiro, com uma realidade de muita luta, cansada, não queria
mais ilusões, não queria mais arriscar, me encontrava ferida e mergulhada em
sofrimentos. Mas ela insistiu bastante, e resolvi tentar.
2.5 A Universidade
No mistério do sem-fim equilibra-se um
planeta. E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um
canteiro; no canteiro uma violeta, e, sobre ela, o dia
inteiro, entre o planeta e o sem-fim, a asa de uma
borboleta.
(Cecília Meireles)
Em 2004, com muito esforço e com a ajuda da minha amiga (Rocineia), fiz o
processo seletivo do Centro Universitário Nilton Lins, mas, quando vi meu nome na
listra dos aprovados, senti que tudo estava tão próximo e, ao mesmo tempo, tão
distante. Não tinha dinheiro para fazer a matrícula e pagar as mensalidades. Então,
lembrei-me de um dinheiro que minha mãe havia recebido e mandado guardar no
banco, mas ela iria necessitar desse dinheiro, em breve.
Eram aproximadamente R$ 400,00, que estavam numa poupança. Peguei o
dinheiro e fiz a matrícula, minha amiga continuou me ajudando, me deu roupas,
sapatos e carona de moto (estava com 30 anos de idade).
Todos os dias, andava aproximadamente 30 minutos para chegar à casa
dela, e de lá íamos juntas para a universidade. Rocineia também me ajudava com as
cópias do material didático, e me repassava os textos já usados. Paguei o dinheiro,
para minha mãe, depois que terminei o curso de Bacharelado em Serviço Social.
Nunca vou me esquecer do primeiro dia de aula (primeiro semestre de
2004), pois fiquei muito emocionada. Porém, tinha a certeza de que jamais teria
condições financeira e intelectual para continuar e romper com o ciclo da pobreza e
do analfabetismo enraizado em minha família.
Porém, um mês em sala da aula foi o suficiente para entender que não podia
abrir mão, mais uma vez, do meu sonho. A cada dia de aula me apaixonava pela
67
profissão e a vontade de continuar me fez distribuir panfletos nos semáforos para
conseguir custear o primeiro semestre. Cheguei a levar para a universidade os meus
três filhos. Tinha que pegar três ônibus, para ir e para voltar, mas não me importava
com isso.
Minha amiga já estava no segundo semestre e eu conseguia ajudá-la em
alguns trabalhos. E ela sempre me dizia: “Você é inteligente, você vai longe”. Mas eu
não acreditava nisso, porém queria continuar a qualquer custo. Às vezes, deixava
meus filhos sozinhos em casa. Outras vezes, pedia para uma vizinha cuidar.
Como eu não tinha computador, era muito difícil fazer os trabalhos, visto que
não podia passar o dia inteiro na biblioteca da universidade e, às vezes, eu escrevia
a mão e pedia para um rapaz que conheci no ensino médio para digitar.
Esse rapaz me ajudou muito, foi quem me apresentou um computador, criou
meu primeiro e-mail, ensinou-me a utilizar a Internet. Às vezes, ele ficava até tarde
da noite, digitando os meus trabalhos, que ditava pelo telefone. Então, ele levava
para o seu trabalho e imprimia, escondido do seu chefe, assim como copiava e
encadernava livros da biblioteca, tudo isso escondido.
Foi esse amigo que me apresentou, no segundo semestre, ao Fundo de
Financiamento Estudantil (Fies)15, pela Caixa Econômica Federal. Essa seria a única
condição de concluir o curso de Serviço Social. Consegui o financiamento parcial de
70%, mesmo assim ficava difícil pagar a outra parte, que correspondia, naquele ano,
a R$ 80,00. Às vezes, usava o dinheiro do Bolsa-Família para pagar esse valor.
Esse empréstimo será pago até setembro de 2013.
No período em que consegui o financiamento, a Caixa Econômica não
estava exigindo o fiador, mediante uma liminar, por isso consegui com mais
facilidade, mas logo depois voltou a ser necessário. Como não conhecia ninguém
que ganhasse, no mínimo, o dobro do valor da mensalidade da faculdade, pouco
15
O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) é um programa do Ministério da Educação destinado a financiar prioritariamente estudantes de cursos de graduação. Para candidatar-se ao Fies, os estudantes devem estar regularmente matriculados em instituições de ensino não gratuitas cadastradas no programa, em cursos com avaliação positiva no Sinaes. O Fies é operacionalizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Todas as operações de adesão das instituições de ensino, bem como de inscrição dos estudantes, são realizadas pela Internet, o que traz comodidade e facilidade para os participantes, assim como garante a confiabilidade de todo o processo. (Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=198&Itemid =303>. Acesso em: 16 jul. 2012)
68
mais de R$ 400,00, esse amigo conseguiu falsificar o contracheque dele e foi meu
fiador.
Então, continuei sendo manicure e vendendo cosméticos. No 4o período, já
tinha certeza da dimensão e importância da profissão, mas estava muito preocupada
com a qualidade do ensino que estava recebendo. Resolvi mudar de universidade, e
fui para o Centro Universitário do Norte (Uninorte). Porém, por causa da diferença de
grade curricular, estudei no período da tarde e da noite, para completar os créditos e
concluir o mais rápido possível.
Nesse mesmo período, consegui um estágio remunerado (R$ 300,00), em
um projeto do governo do estado (Projeto Cidadão), no período da manhã, das 8 às
12 horas. Então, para conseguir conciliar toda essa nova rotina, acordava às 4 horas
da manhã, para fazer todas as minhas tarefas domésticas e deixar tudo pronto para
meus filhos. Sabia que eles sentiam a minha ausência e sofriam muito com esse
processo, mas eu não tinha escolhas. Era a nossa sobrevivência.
Como não tinha computador, aproveitei para comprar um, parcelado em seis
vezes. No dia em que iniciei o estágio, percebi que não seria fácil continuar. A
assistente social, que seria minha supervisora de campo, não quis ficar comigo,
porque não tinha prática em digitação, então, ela me encaminhou para outra. Logo
depois, passei a ser estagiária de uma psicóloga maravilhosa, chamada América.
Nossa, ela me ensinou tanto!
Naquele momento, percebi que o mercado de trabalho é cruel com quem
não tem a qualificação exigida, por isso procurei fazer um curso básico de
informática, pois precisava garantir espaço de trabalho.
Fiquei no estágio até o último período e foi uma sólida experiência, tanto
profissional como pessoal. No campo de estágio comecei a entender que, às vezes,
o discurso não condiz com a prática de muitos profissionais e isso me deixa muito
revoltada, pois via profissionais atendendo mal as famílias; fazendo vistoria nas
casas para saber com que a família gastou o dinheiro recebido do projeto. Sentia o
distanciamento entre os profissionais e as famílias, estas eram tão próximas a mim,
e não sabia ao certo por quê.
Nesse período, tinha uma amiga, que morava no mesmo bairro, era
dependente química, vivia sozinha e quando não estava drogada, ajudava-me nas
atividades domésticas. O semestre foi de muita luta, assim como os seguintes.
Apesar de todos os obstáculos e contratempos consegui finalizar minha graduação.
69
Durante o curso, conheci várias pessoas maravilhosas, que também
contribuíram de forma positiva na minha vida. Foi na instituição que tive a honra de
conhecer Sara, Amanda, Joelma e a professora Lilian Gomes. Essas pessoas
acreditavam que eu tinha um potencial e me premiaram com sua amizade. Elas me
fizeram entender que, se não cheguei antes ali, foi por falta de oportunidade.
Às vezes, penso que a vida tentou me compensar, de alguma forma, quando
colocou pessoas maravilhosas no meu convívio. Sempre fui muito agradecida por
isso. Também acredito que a própria vida tentou acelerar alguns processos vividos,
pois uns dos motivos que me fizeram trocar de universidade foi justamente o tempo
do curso, troquei três anos e meio por quatro anos.
Naquele momento, havia discussões a respeito da graduação com um
semestre a menos. Então, na nova faculdade, eu não teria mais essa preocupação.
Enganei-me! No último ano de curso, o Centro Universitário do Norte resolve
diminuir o tempo de curso e acabei ficando com os três anos e meio, novamente.
2.6 A Assistente Social
No dia 9 de agosto de 2007, aos 33 anos de idade, consegui chegar à minha
colação de grau. Aquele momento, para mim, deveria ser muito festejado, mas, sem
condições financeiras, paguei apenas a colação de grau, pois não tinha dinheiro
para custear o baile, as fotos e comprar roupas adequadas para que meus filhos
participassem.
Terezinha, minha mãe, estava em Manaus e com o pouco dinheiro que
tinha, priorizei a participação dela. Levei-a para minha colação de grau. Descrever
aquele momento não é fácil, ela chorou do início ao fim, não teve condição alguma
de me entregar o diploma.
Encontrava-me em estágio de felicidade plena. Era a concretização de um
sonho e da oportunidade de crescimento qualitativo. Nesse momento, no meu
entorno, estava a minha família do coração representada por Cilene, que já era
formada em pedagogia, e Gracineia, estudante de ensino médio.
Na família biológica, de oito irmãos, sou a única, até a presente data, a
concluir o ensino fundamental. Acredito que sou a única, de toda a minha família
biológica/desconhecida, a sentar-me na cadeira de uma universidade. Talvez jamais
70
consiga explicar com exatidão o que isso significa para mim e como tudo isso mudou
a minha vida. Percebi que não foi apenas o grau de instrução que mudou.
No final de 2007, agora devidamente registrada no conselho, sou assistente
social. Juntamente com a graduação, surgiram inúmeras dúvidas e inseguranças.
Uma delas consistia em como conseguir emprego, visto que não é tão fácil para
alguém sem experiência, sem sobrenome e/ou indicação. A outra pairava sobre a
minha habilidade/competência para desenvolver a prática profissional da melhor
forma possível.
Durante toda a graduação, sempre fiquei muito preocupada com a qualidade
do ensino recebido, pois ouvia comentários negativos sobre o ensino superior
privado em Manaus. Diante dessa realidade, a cada dia, meus questionamentos
tornavam-se mais densos, e superavam as dúvidas iniciais.
Assim, só me restava uma certeza: Mesmo que não conseguisse um
emprego, ou que não pagasse a Caixa Econômica Federal, meu sonho estava
realizado, e de certa forma é mais do que um sonho.
2.7 O Emprego
Meu primeiro emprego como assistente social veio praticamente um mês
após a conclusão da graduação, pois fui contratada pelo mesmo projeto em que
estagiei. Aprovada na entrevista passei a ser assistente social do Projeto Cidadão,
criado pelo governo do Estado do Amazonas. O trabalho tinha como objetivo atender
famílias em situação de vulnerabilidade social residentes em áreas de risco na
cidade de Manaus/AM.
Recebia salário de R$ 2.300,00, por mês, para trabalhar das 8 às 18 horas.
Minha conta bancária nunca tinha recebido um terço desse valor e senti uma grande
alegria, pois isso gerou sementes de mudança. Percebi que estava entrando em
outro estágio de minha vida e esse seria bem diferente. Com esse salário, fiz parte
do acabamento e o banheiro da minha casa; busquei oferecer melhor qualidade de
vida e educação para meus filhos.
Porém, eles ainda tinham que conviver com minha ausência diária, pois,
muitas vezes, quando eu chegava em casa, já estavam dormindo e, quando eu saía,
ainda não estavam acordados. Assim, controlava tudo pelo telefone. Contudo, na
71
medida do possível, pagava uma pessoa para me ajudar com as atividades
domésticas; mesmo assim a vida ainda era muito difícil. A vontade de mudar a
infância dos meus filhos fortalecia-me a cada momento.
Nesse projeto, tive a oportunidade de conhecer e aprender muitas coisas
importantes e necessárias, que talvez só a prática profissional pudesse me
possibilitar. Foi nesse cotidiano de trabalho que questionamentos diversos sobre o
fazer profissional passaram a me inquietar.
Nesse local, a correlação de forças, de poder e, infelizmente, a cultura do
favor, eram predominantes e me fazia entender na prática as contradições do
sistema e da própria profissão, o que me instigava a buscar mais conhecimento
histórico, teórico, metodológico e prático para responder efetivamente às demandas.
Em 2008, no turno noturno, iniciei um curso de Pós-graduação Lato Sensu,
com Especialização em Ética e Política, no Serviço de Ação, Reflexão e Educação
Social (Sares). Essa pós é direcionada para as pessoas que fazem parte dos
movimentos sociais. É uma parceria entre a igreja católica, a Universidade Federal
do Amazonas e a Universidade Federal de Pernambuco.
Em 2009, devido a problemas de saúde fiz uma cirurgia (histerectomia
abdominal total), e por causa de complicação na cirurgia, necessitava de três meses
de repouso, segundo prescrito pela médica. Porém, tinha plena consciência de que
não poderia ficar muito tempo sem trabalhar, devido ao meu enquadramento na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e as ameaças advindas do coordenador
do projeto. Por causa dessa realidade desumana, voltei a trabalhar com 15 dias de
convalescência, colocando minha saúde em risco.
Nesse período, uma grande amiga da faculdade (Sara), informou que a
universidade onde concluímos a graduação estava selecionando professores para
seu quadro de docência. Então, Sara incentivou-me a levar meu curriculum e
concorrer à vaga de professora universitária, mas eu não acreditei que minha amiga
estava pensando que eu poderia ser professora de ensino superior. Ela dizia que
sim, e eu que não! Mas reconheço que fiquei tentada com a ideia.
Depois de muitas dúvidas, coloquei duas cintas, para proteger bem a cirurgia
e, contrariando as orientações médicas, resolvi ir à faculdade. Mas, para tomar o
ônibus, teria que subir a escada de 76 degraus (Figura 5) que me dava acesso ao
bairro. Então, levei horas pra conseguir realizar essa proeza. Morava na zona norte
e a universidade estava localizada na zona sul.
72
Figura 5: Escada de acesso à parada de ônibus do Parque Florestal
Fonte: Sousa, J. G., 2011.
Submeti-me ao processo seletivo e foi aprovada pela banca avaliadora, que
me agraciou, ao dizer que eu tinha o dom para a docência, e, assim, passei a
desempenhar, também, a docência. Nunca imaginara que chegaria tão longe, mas
cada degrau alcançado me mostrava que a responsabilidade aumentava
gradativamente, juntamente com a vontade e a necessidade de mais conhecimento.
Quando adentrei na sala de aula, pela primeira vez, na turma do 4o período
do curso de Serviço Social. A disciplina de Política Social, pensei: “Não sou capaz,
não tive uma formação que me possibilitasse chegar até aqui, ainda tenho muito
para aprender. O que eu poderia ensinar àquela turma? ”.
Minha sorte foi que sempre gostei muito dessa disciplina, mesmo assim,
“matava um leão por dia”. Cada dia eu vencia uma luta interna; passava quase a
noite toda buscando livros e me preparando para as aulas, pois ainda trabalhava o
dia inteiro no Projeto Cidadão, e, mais uma vez, estava inserida na rotina tripla de
trabalho.
O exercício diário na docência levou-me a refletir sobre a necessidade de
manter a qualificação profissional, mesmo sem ter planejado estar professora,
incorporei e trouxe essa vivência como prioridade na minha formação. Cada dia que
73
materializava minhas aulas sentia-me uma pessoa completa; a possibilidade de
trocar conhecimento, mesmo que fosse o mínimo possível, me encantava a cada
momento.
E o mestrado foi se tornando minha mais nova necessidade, porém, no meu
entendimento, isso poderia demorar muito tempo, visto que não podia deixar de
trabalhar para estudar. Sabia que não seria fácil, principalmente pelo fato de ter
estudado em universidade privada (sem experiência em pesquisa, etc.). Mas a vida
novamente me mostrou alternativas.
2.8 O Mestrado
Em 2009, por um amigo (Josafá), fiquei sabendo da existência da Fundação
Ford16, busquei informações no site da instituição, observei que teria que elaborar
um projeto de pesquisa, bem como outros pré-requisitos. Não sabia, ao certo, como
iniciar a produção desse documento. Não disponibilizava de tempo durante o dia,
então, passei a acordar todos os dias às 4 horas da manhã e tentava ler e escrever
alguma coisa para o projeto de pesquisa.
Encontrar um tema não foi difícil, pois já havia pensado na questão da
assistência social desenvolvida pelo Estado do Amazonas direcionada às famílias
16
A Fundação Ford é uma organização privada, sem fins lucrativos, criada nos Estados Unidos para ser fonte de apoio a pessoas e instituições inovadoras em todo o mundo, comprometidas com a consolidação da democracia, a redução da pobreza e da injustiça social e com o desenvolvimento humano. Criada em 1936, a Fundação Ford já contribuiu com US$ 13,3 bilhões em doações e empréstimos para auxiliar a produção e divulgação do conhecimento, apoiando a experimentação e promovendo o aprimoramento de indivíduos e organizações. Atualmente, não possui ações da Companhia Ford e sua diversificada carteira de investimentos é administrada para ser uma fonte permanente de recursos para custear seus programas e suas atividades. O Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford foi introduzido no Brasil, em 2001, após estudo preliminar encomendado pelo Escritório do Brasil da Fundação Ford aos professores Luiz Alberto Oliveira Gonçalves (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e Marco Antonio Rocha (Fulbright do Brasil), que indicaram a Fundação Carlos Chagas como instituição brasileira a ser parceira do International Fellowships Program (IFP). O Programa IFP foi lançado, no Brasil, em contexto bastante peculiar, quando comparado ao cenário dos parceiros internacionais: intenso debate sobre ação afirmativa no ensino superior (graduação); pós-graduação brasileira institucionalizada, em expansão e adotando procedimentos de seleção e avaliação formalizados. Porém, enfrentamos, como os demais parceiros internacionais, os desafios de um sistema de pós-graduação que também privilegia segmentos sociais identificados com as elites nacionais, sejam elas econômicas, regionais ou étnico-raciais. Essas características contextuais orientaram a adequação do design e dos recursos na implementação do programa. (Disponível em: <http://www.programabolsa.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2012.)
74
consideradas em situação de vulnerabilidade social; o difícil foi sistematizar as ideias
e fundamentá-las.
A partir da minha experiência profissional e dos meus questionamentos a
respeito dos objetivos estabelecidos na proposta do Projeto Cidadão e do governo
estadual, que desenvolvia ação assistencialista e repressora às famílias atendidas,
uma vez que, na maioria das vezes, são usadas como população-alvo de políticas
eleitoreiras e massa de manobra.
Depois que consegui escrever sobre o assunto do meu interesse, fiz o
projeto e o enviei, junto com a documentação necessária, para a Fundação Carlos
Chagas, representante, no Brasil, da Fundação Ford. No mesmo período, fui
dispensada do Projeto Cidadão, pois o coordenador, ao saber que eu estava
trabalhando como professora universitária, concretizou a minha demissão.
Assim, fiquei trabalhando apenas na universidade. Como estava no meu
primeiro semestre, repassaram-me apenas duas turmas e o salário diminuiu de
forma considerável, chegando a auferir R$ 800,00 mensais.
Como decorrência dos acontecimentos, fui levada a tomar algumas
providências, no intuito de adequar-me à nova realidade. Continuei ministrando
aulas e esperando a resposta do processo seletivo da Ford. Tinha plena consciência
de que não seria facilmente selecionada, considerando o número de inscritos em
todo o território nacional.
Nessa conjuntura, pensei em um plano B e fiz inscrição como aluna especial
na disciplina do mestrado em Sociedade e Cultura, na Universidade Federal do
Amazonas (Ufam), no período da tarde e cursei.
Em setembro de 2010, durantes as aulas do mestrado, na Ufam, reencontro,
depois de 20 anos, uma pessoa que tinha sido muito importante para mim, no
passado (FV).
E nesse período de espera pela resposta da Ford, a correria do meu
trabalho, a disciplina do mestrado e a educação dos meus filhos, a vida resolveu me
mostrar que, às vezes, ela pode ser mais bonita, quando estamos ao lado de
pessoas especiais. Talvez existam anjos, e eles sempre estiveram ao meu lado, e
eu percebi apenas essa presença.
Em dezembro de 2009, recebi a resposta da Ford e, para minha total
perplexidade, eu estava entre os 77 selecionados e teria que viajar a São Paulo para
participar da segunda etapa eliminatória da seleção. Comecei a perceber que minha
75
vida poderia dar um grande giro, e que isso mudaria tudo para sempre. Eu sabia que
o esforço e risco eram imensos, mas resolvi tentar.
Cheguei a São Paulo, pela primeira vez, participei de todas as atividades
propostas pela Fundação Carlos Chagas e retornei a Manaus para aguardar a
resposta definitiva, que chegou no dia 24 de dezembro de 2009. A emoção tomou
conta de mim, completamente, pois assim estava escrito no meu e-mail: VOCÊ É
BOLSISTA ELEITA DA FORD FOUNDATION FELLOWSHIPS PROGRAM! Pela
primeira vez, na vida, eu realmente tive a certeza de que tudo valera a pena.
No início de 2010, necessitava estudar para conseguir um bom resultado
nos processos seletivos de que participaria. Foi aí que resolvi alugar minha casa
para morar mais perto da faculdade onde trabalhava, pois precisava ganhar tempo,
visto que só seria bolsista plena da Ford se fosse aprovada em um programa de
pós-graduação. Teria que me submeter a quatro seleções, que correspondem ao
número de oportunidades no decorrer do ano.
A Ford também ajudaria, no processo denominado pré-acadêmico. Isso me
garantia livros, aulas de inglês e português, as viagens e estadas nas cidades onde
faria as provas. Escolhi as universidades e comecei a estudar as bibliografias
sugeridas.
Na universidade em que trabalhava, fui chamada para assumir 40 horas
semanais, em sala de aula, (já estava ganhando quase R$ 4 mil). Como ainda não
podia parar de trabalhar, tentei conciliar tudo e minha rotina tornou-se: estudar
Inglês, português e as literaturas indicadas para os processos seletivo da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do SUL (PUC-RS), da PUC-RIO, PUC-SP e
Universidade de Brasília (UNB) (todas escolhidas por mim), cuidar dos meus filhos,
ajudá-los com as tarefas escolares, fazer o trabalho de casa, e trabalhar na
universidade no período da tarde e da noite. A carga estava pesada, mas a vontade
de passar foi maior.
Na verdade, acredito que não tinha a noção exata da mudança que estava
prestes a acontecer em minha vida. Sabia que era uma oportunidade única e que,
por isso, teria que me esforçar, pois muitas pessoas gostariam de estar no meu
lugar. Aquela seria a minha especial oportunidade para cursar o mestrado.
Tive muito apoio de amigos próximos, porém, fui muito criticada, por pensar
na possibilidade de deixar meus filhos com o pai, algumas pessoas me diziam que
estava louca, que meus filhos, na fase da adolescência, necessitavam da minha
76
presença em suas vidas, que essa presença era mais importante do que qualquer
outra coisa.
Mas, em nenhum segundo pensei em desistir; no fundo sabia que meus
filhos poderiam sofrer muito com a mudança, contudo, acreditava na força individual
de cada um, sabia que eles, no futuro, entenderiam a minha opção.
E, assim, fiz a primeira prova na PUC-RS e fui aprovada. Não acreditei no
resultado. Foi uma mistura de alegria, autoconfiança e alívio que demorei bastante
tempo para me recuperar da explosão de emoções. Depois, passei na PUC-SP,
minha primeira opção. Então, a felicidade estava completa.
O ano de 2010 trouxe-me muitas alegrias e emoções. Estava com o coração
transbordando e minha vida pessoal, pela primeira vez estava maravilhosa. Depois
de tantos desencontros, aquele anjo ora reencontrado me apresentava a cada dia à
felicidade, e, em aproximadamente cinco meses de convivência, passei por todas as
fases nunca antes vividas, fui criança, adolescente, jovem e uma mulher adulta
muito feliz, estado que nunca pensei que chegaria a conhecer um dia.
Mas, como nem só de alegrias vive o homem, logo vieram às renúncias: na
universidade em que trabalhava, fui vítima de assédio moral, e obrigada a pedir
minha conta, mas não tive medo, e assim o fiz. Vendi todas as minhas coisas e
como minha casa já estava alugada, só me restava entregar o apartamento onde
morava com meus filhos, depois que eles fossem para a casa do pai.
E, nesse momento, o mais difícil seria deixá-los. Quem cuidaria deles? Meu
filho Lucas é asmático e muito alérgico, necessitando de muitos cuidados. Como
ficaria a escola deles, as tarefas e todos os cuidados tão necessários ao bem-estar
de cada um?
Na semana em que estive em São Paulo/SP, para fazer a prova da PUC,
perdi a primeira eucaristia da minha filha, e ela me disse assim: Mãe, tu não vai estar
presente no momento mais importante da minha vida? Eu tentava disfarçar de todas
as formas e naturalizar a situação; não queria que ela percebesse que meu coração
estava em pedaços e, de certa forma, muito culpado.
Eu, mais do que ninguém, sei o que é não ter a mãe por perto para
compartilhar esses momentos importantes, e não queria fazer o mesmo com meus
filhos. No entanto, sabia que os próximos dois anos mudariam para sempre as
nossas vidas.
77
Assim como também sabia a falta que faria aquela pessoa que alegrou a
minha vida tão intensamente. Mais uma vez a vida estava nos separando. E a
distância o tirou de mim. Tentava obter forças de onde não havia para enfrentar a
situação e sofrer menos.
Sabia que, ao retornar para Manaus/AM, seria necessário recomeçar, ou
seja, minha vida, em qualquer território, seria retomada após o mestrado. Meus
filhos poderiam ser os mais prejudicados com minha ausência, porém, à vontade e a
necessidade de enfrentar mais esse desafio foram maiores do que o medo.
Fiz muita força para não deixar transparecer minha aflição e tentei
demonstrar para meus filhos que estava bem, firme e forte, mas meu coração estava
tão desprotegido e abandonado que evitava falar sobre o assunto com medo de
fraquejar.
E, assim, saí de Manaus no dia 1o de fevereiro de 2011, depois de uma
semana de muito choro, durante as noites, quando estava sozinha, com o coração
do tamanho de um grão de areia, cheia de saudade, mas com muita vontade de
continuar e começar tudo novo de novo. Entendi que recomeçar é simplesmente
acordar todas as manhãs disposta a enfrentar um novo dia.
Cheguei a São Paulo para ingressar no Programa de Pós-graduação em
Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dei início ao
primeiro semestre do mestrado, ainda sem muita noção da mudança ocorrida e com
bastante expectativa a respeito da nova vida que se iniciava. Logo, percebi que
poucas assistentes sociais de Manaus haviam chegado a essa universidade, e
entendi a importância do momento e a transformação do meu futuro, a partir da
oportunidade.
Durante os semestres de 2011, com o apoio da minha orientadora (doutora
Maria Carmelita Yazbek), fiz as disciplinas obrigatórias, me preparei para a
qualificação e para ouvir as observações sobre o meu projeto de pesquisa.
No entanto, no momento da qualificação, em março de 2012, a banca,
composta pelas professoras doutoras Aldaíza Sposati e Maria Lúcia Martinelli,
direcionou-me para um novo estudo. A partir do memorial apresentado, nesse novo
estudo, eu seria meu objeto da pesquisa.
E novamente estava diante de mais um desafio: trabalhar com história oral e
escrever detalhadamente a minha história de vida, intitulando, assim, a minha
dissertação. E aí era tudo novo de novo.
78
O desafio foi aceito, por isso estou aqui, com muito orgulho, finalizando, até
este momento, a história de vida tão real e comum, a milhões de brasileiros(as),
desconhecida ou desvalorizada.
Diante do exposto, acredito que minha identidade já seja conhecida, mesmo
que não a tenha revelado explicitamente durante os relatos. E, assim, acredito que é
chegada a hora de confirmar o nome da personagem protagonista desta história
real, que, com muita alegria e medo, aceitou mais esse novo desafio.
Contudo, penso que é importante falar um pouco de sobre a minha pessoa
na atualidade, exatamente no momento em que finalizo esta parte da minha história,
pois ainda terei muita história de vida para contar.
Joselene Gomes de Souza. Considero-me uma pessoa muito feliz e
abençoada, extremamente responsável, amiga e muito enjoada, além da
personalidade forte e, devido a essa característica, alguns problemas de
relacionamento são frequentes, pois muitas pessoas não estão acostumadas a
conviver com indivíduos de personalidade forte.
Acredito também que minha experiência de vida contribui imensuravelmente,
de forma benéfica ou não, para tudo o que faço. Sei também que consigo enganar
muito bem as pessoas, pois elas sempre dizem que sou uma mulher forte e
corajosa, mas, na verdade, acredito que sou apenas uma sobrevivente.
E para sobreviver, tenho que prosseguir, apesar do medo, da insegurança e
da falta, pois, como diz o poema de Cecília Meireles: “A vida só é possível
reinventada”, e foi reinventando essa vida de exclusão, vulnerabilidade e carência de
tudo que consegui buscar alternativas e enxergar nos lugares mais improváveis
oportunidades de crescimento.
Para me reinventar, precisei entender que tudo dependia das minhas
escolhas, e errei muito, porém acertei também, no entanto, quando acertei, perdi, e
quando ganhei fiquei sem, mas hoje sei que, diante de todas as perdas, sempre
ganhei muito e posso dizer que, mesmo com as incertezas e desafios, viver é
arriscar e o risco é o cotidiano.
Mas escrever minha história de vida foi apenas a primeira parte do desafio,
pois, para completar os objetivos deste trabalho, foi me dado uma segunda missão.
Deveria encontrar outra mulher amazonense, nascida depois de mim, para conhecer
sua história de vida, narrá-la e apresentar-lhes. E assim segue a história de Apurinã.
79
3 ESTADO DE DIREITOS: PERSONAGENS DIFERENTES E UMA HISTÓRIA
SEMELHANTE, 15 ANOS DEPOIS
3.1 A Origem: O Nascimento de uma Guerreira
Todas as famílias felizes se parecem entre
si; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.
(L. Tolstoi)
A década de 1980 foi marcada por profundas transformações, momentos de
avanços, retrocessos e lutas sociais. Década importante no que diz respeito às
conquistas de direitos e das lutas sociais em todo o País. Decênio marcado também
pelo recrudescimento da pobreza e piora dos índices de desigualdades sociais no
Brasil. (SARTORI, 2012, p. 61).
Com a estagnação econômica e a alta da infração, o emprego formal tem
quedas alarmantes, motivado pela desvalorização dos salários e aumento da
informalidade, resultando em altos índices de pobreza, analfabetismo e trabalho
infantil, em nível nacional, como informa Sartori (2012, p. 61 apud HENRIQUE,
1998, p. 85):
Com a deterioração das condições de emprego e renda, houve um crescimento absoluto e relativo da pobreza nessa década, especialmente no meio urbano. Foram expressivos os custos sociais associados à crise e ao ajuste econômico. Menor dinamismo econômico, piores condições ocupacionais e queda da renda passaram a condicionar a reprodução da pobreza, dificultando o recurso à utilização do trabalho de vários membros da família para a ampliação da renda e ampliando as demandas sociais.
Nesse processo de transformação, Sartori (2012) elenca que as discussões
sobre a política social ganham espaço, em todo o País, pois a população pobre e os
novos agentes sociais, politicamente organizados, representados pelos movimentos
sociais e sindicais, fazem ecoar a voz e as lutas por melhores condições de vida,
trabalho e democracia.
No entanto, a autora lembra que, paradoxalmente, existem outras lutas
urgentes, que podem deixar à margem a questão da política social, visto que outros
80
temas ganham mais visibilidade nesse período; entre eles, se destaca a discussão
sobre reforma agrária e dívida externa. Contudo, os novos movimentos sociais
(classe média, funcionalismo público, os profissionais autônomos), ajudam na
difusão dos valores democráticos.
Ainda segundo essa autora, é nesse momento que eclodem os movimentos
sociais ligados à igreja católica, os movimentos por demandas específicas, que
pressionam os governos eleitos em 1982, para efetivar as demandas emergentes,
sedentas de justiça social. Sartori (2012, p. 62) acrescenta que os partidos de
oposição, em um contexto de grandes lutas travadas, articulam as diretas já, que
validavam a democracia e o Estado de direitos sociais.
Com uma maior participação da população na área política, difundiu-se uma visão das políticas sociais como elemento estratégico na construção de uma sociedade democrática e justa. Estava colocada a nova agenda social – de transição – com um forte viés democrático, tendo como enfoque a descentralização e a melhor adequação dos gastos sociais. A partir de então, apostava-se numa nova estrutura e regime que combinassem desenvolvimento, expansão do emprego, aumento do nível salarial e políticas sociais universais e mais efetivas. (SARTORI, 2012, p. 62).
E é diante desse processo de transformação, e reivindicação pelas diretas
já, que, em 21 de abril de 1985, José Sarney foi confirmado como Presidente da
República, porém as propostas e os desafios para o novo presidente foram bem
maiores do que realmente conseguiu se efetivar, pois foram criados programas
emergenciais de combate à fome e à pobreza (SARTORI, 2012), para fazer “tudo
pelo social”, como mostra a Tabela 1, que traz um resumo do plano de governo do
Presidente José Sarney.
81
Tabela 1: Resumo do plano de governo do Presidente José Saney
Biênio 1985-1986
Plano Real
Plano de metas, concebido como
sustentação do crescimento e de
combate à fome
Política emergencial de alimentação
Desenvolvimento por meio do
programa nacional de alimentação
escolar (Programa de Suplementação
Alimentar - Pnae)
Criação do Ministério de Reforma e
Desenvolvimento Agrário (MIRAD)
Instituição do seguro-desemprego
1986-1987
Plano de Controle
Macroeconômico, conhecido como
Plano Bresser
Redução do poder de compra dos
trabalhadores Reprodução das
desigualdades
Política do arroz com feijão Seguia a ortodoxia liberal, operando
cortes nos gastos públicos,
especialmente sociais
Fonte: Organizado para estudo a partir de pesquisa bibliográfica.
Naquele momento, o País passava por uma reorganização constitucional
que teve como consequência a instalação da Assembleia Nacional Constituinte
(1986), culminando com a aprovação da Constituição Federal de 1988, que,
historicamente, renova as esperanças de dias melhores para o povo brasileiro,
agora em um país democrático.
A Constituição Federal brasileira de 1988, ao afiançar os direitos humanos e sociais como responsabilidade pública e estatal, operou, ainda que conceitualmente, fundamentais mudanças, pois acrescentou na agenda dos entes públicos um conjunto de necessidades até então consideradas de âmbito pessoal ou individual. Nesse caminho, inaugurou uma mudança para a sociedade brasileira ao introduzir a seguridade como um guarda-chuva que abriga três políticas de proteção social: a saúde, a previdência e a assistência social. (SPOSATI, 2009, p. 13).
82
A Constituição Federal de 1988 rompe com anos de repressão e, em seu
artigo 6o, estabelece os direitos sociais, que é sabido de sua evolução a partir dos
direitos dos homens, dos direitos civis e políticos. Assim, os direitos sociais são
distintos dos direitos jurídicos, pois, estes, buscam estabelecer e garantir uma
igualdade real e o bem-estar das pessoas, e estabelecem a obrigatoriedade do
poder público a desenvolver ações políticas públicas para sua efetivação numa nova
relação entre o Estado e a sociedade civil. Agora, a democracia é participativa e não
apenas representativa (FERREIRA, 2001, p.7).
E, assim, acrescenta em seu artigo 6o, são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a participação, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. E no artigo 1o da CF 88, estabelece que: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição. (FERREIRA, 2011, p. 07).
Nessa perspectiva, é importante não esquecer o contexto brasileiro e o da
América Latina, dentro de suas especificidades, pois, a partir da década de 1990, o
Brasil sede às pressões neoliberais e aos mandos do Consenso de Washington.
Com isso, os princípios efetivados e defendidos na CF de 1988 ganham novas
roupagens, esvaziam-se e precarizam-se cotidianamente.
O Brasil possui uma particularidade que o caracteriza como país que apresenta um dos maiores índices de desigualdade social do mundo, quaisquer que sejam as medidas utilizadas. A desigualdade social ganha expressão concreta nas relações sociais cotidianas nas diferentes regiões do país e nos territórios internos das cidades, nos quais as condições de desigualdade se reproduzem. (SIQUEIRA, 2007, p.19).
Dessa forma, a implantação da ideologia neoliberal data-se a partir da
primeira eleição presidencial da nova República, em 1989, no contexto de pressão
internacional e sucateamento do Estado brasileiro advindo do processo de ditadura
militar. O neoliberalismo já era visto, nas economias ditas desenvolvidas, como a
panaceia da pobreza.
Segundo Pereira (2004, p.185),
83
O Plano de Reconstrução Nacional, instituído no governo de Fernando Collor (1990-92), delineia a forma como irão se caracterizar as relações com o Estado e as políticas sociais nos anos 90. Nesse plano os governos assumiu com rigor o ideário neoliberal, promovendo uma redução drástica no orçamento destinado a essas políticas, além de realizar alterações e reformas de conteúdo claramente regressivo em relação aos direitos sociais formalmente assegurados na Constituição recentemente promulgada.
E, com isso, o Brasil, além da instabilidade econômica, passa a viver o
momento dos desmontes dos direitos, conservando a redução das políticas sociais,
a sustentação das privatizações e da responsabilidade social. O sistema de proteção
social brasileiro que, até a década de 1980, era direcionada a partir de seguros
sociais para pessoas formalmente empregadas pertencentes a algumas
corporações.
E é nesse cenário de muitas transformações, construção e efetivação dos
direitos sociais, pós-ditadura militar, momentos de muita expectativa e avanços e
também de retrocessos em níveis local e nacional, que vinha ao mundo o segundo
personagem desta história.
É uma menina e nasceu aos 26 dias do mês de março, no ano de 1989, no
Bairro da Betânia, em Manaus/Am. Vou chamá-la aqui de Apurinã17. É filha de
Cunhã-Porãe18 e Cauré19, ambos naturais do Amazonas.
Mas Cunhã-Porãe era uma prostituta, de 15 anos de idade, nascida em
Manaus, em 1973. Cauré era casado e ganhava a vida cantando músicas brega no
Estado do Amazonas. A jovem mãe era filha caçula de uma família de migrantes do
interior do Amazonas, e desde muito nova sofria assédio sexual por parte do irmão
mais velho.
Seu pai morreu muito cedo e sua mãe casou-se novamente com um
alcoólatra, que passou a abusar sexualmente da moça. Cunhã-Porãe chegou a
contar, a respeito do abuso, para a mãe, mas não obteve confiança e ainda chegou
a apanhar por causa da denúncia.
Por causa dessa situação, Cunhã-Porãe saiu de casa para se livrar do
padrasto e das desconfianças de sua mãe, que não acreditava que o marido fosse
17
Apurinã significa “aquele que corre”. 18
Cunhã-Porãe, em Guarani, significa “mulher bonita”. 19
Cauré, em Nheengatu, significa “espécie de gavião”.
84
capaz de fazer o que a moça relatava. Com 14 anos, a moça tinha algumas amigas,
e estas a apresentaram à prostituição.
E assim, com 16 anos de idade, ela tem a primeira filha, Apurinã, que não
chega a ser registrada pelo pai. Cauré já tinha seus filhos com a esposa e não quis
assumir a filha de uma prostituta, além do mais, ele não tinha certeza da
paternidade.
Cunha-Porãe, portanto, continua com sua vida de prostituição e em 1990,
para esconder Apurinã do pai, ela resolve morar em Porto Velho/Ro, levando a filha
com um ano de idade.
3.2 A Infância em Porto Velho
É importante destacar que, falar de infância no Brasil é também falar das
formas como a proteção social da sociedade brasileira é efetivada. E
especificamente a proteção à criança e ao adolescente, que não pode ser
esquecida.
Prestada pela igreja, por meio das Santas Casas de Misericórdias, sem a
participação do Estado, apenas em 1922 surge o primeiro local público para
atendimento ás crianças e aos adolescentes. Logo depois, em 1942, tem início o
Serviço de Assistência ao Menor (SAM), ligado ao Ministério da Justiça, como um
modelo de penitenciária para o menor. (SILVA e MELLO, 2004, p.23).
Ainda de acordo com esses autores, o SAM perdura por 30 anos. Durante o
regime militar, em 1964, é instituída a Política Nacional do Bem-Estar do Menor
(Pnabem), pela Lei 4.513/64. Com proposta assistencialista, deveria ser executada
pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), integrante do
Ministério da Justiça, e transferida depois para a Previdência Social (1972 a 1986),
objetivando nacionalizar a política de bem-estar da criança e do adolescente.
No entanto, em 1979, é aprovado o Código de Menores, Lei 6.697/1979,
que, segundo Silva e Mello (2004, p. 24),
[...] tratava da proteção e da vigilância ás crianças e aos adolescentes considerados em situação irregular e se constituía num único conjunto de medidas destinadas, indiferentemente, a menores de 18 anos autores de ato infracional, carentes ou abandonadas.
85
Ainda no final dessa década surgem movimentos sociais que buscam
mostrar uma nova visão da criança e do adolescente, considerando-os sujeitos de
direitos e de sua história, vítimas do processo de perversidade e confinamentos
ineficazes, tendo em vista os maus-tratos sofridos historicamente.
Contudo, a década de 1980, como já citado, é um marco histórico no que diz
respeito aos avanços constitucionais, em nosso país, e, assim, a legislação
direcionada aos “menores” passa a ser vista como representativa do arcabouço
autoritário do período anterior. Ao mesmo tempo, meninos e meninas de rua tornam-
se a figura emblemática da situação da criança e do adolescente no Brasil (SILVA e
MELLO, 2004, p. 24).
A luta da sociedade organizada e as discussões em nível nacional avançam
para a criação, em 1986, da Comissão Nacional Criança e Constituinte, e, em 1988,
essa luta ganha força com a CF de 88, que representa a garantia dos direitos da
criança e do adolescente, ao estabelecer, em seu Artigo 227, que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CF, 1988).
Rompendo com as várias concepções a respeito do entendimento dos
direitos da criança e do adolescente, que variava de correcional, irregular, à
proteção da sociedade contra essas crianças, que se apresentavam como ameaças.
Alheia às transformações nacionais, a vida de Cunhã-Porãe segue sem
grandes novidades e com a intenção de esconder Apurinã do pai, que chega a
procurá-la. Além do instinto de sobrevivência, ela toma uma séria decisão em sua
vida.
Vai trabalhar como prostituta em um garimpo, na cidade de Ariquemes/Ro. E
assim tem início a infância de Apurinã, em Porto Velho. A jovem mãe passava
meses no garimpo, e durante esse tempo deixava a filha com famílias vizinhas e
evangélicas. Ela se comprometia a mandar alimentação e dinheiro, mas isso não
acontecia sempre.
86
No entanto, felizmente, as duas, mãe e filha, já podiam contar com seus
direitos garantidos em lei, pois, em 13 de julho 1990, no Brasil, era editada a Lei
8.069, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Essa lei é fruto da luta organizada da sociedade em movimentos nacional e
internacional para fazer valer os artigos 227 e 228 da CF de 88 que, pela primeira
vez no Brasil, contempla a proteção integral e garante o direito da criança e do
adolescente. “Além de introduzir no arcabouço legal brasileiro o conceito de
seguridade social, agrupando as políticas de assistência, previdência social e
saúde.” (SILVA e MELLO, 2004, p.24).
O ECA é fruto da luta histórica para fazer valer o direito da criança, que até
esse momento não era vista como sujeito de direitos. Rompe com o Código de
Menores e moderniza a legislação, marcando profundamente a mudança da política
pública voltada para esse segmento, ao assim apresentar:
Art. 1o Dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Art. 3o A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (ECA, 1990).
Assegura que todas as crianças e os adolescentes, independentemente de
cor, etnia ou classe social, sejam tratados como pessoas que precisam de proteção,
atenção e cuidados especiais para que se desenvolvam e sejam adultos saudáveis.
Mas Cunhã-Porãe não conhecia os mecanismos de proteção social e os
avanços constitucionais, e muito menos a luta para concretizá-los diante da nova
realidade brasileira; ela estava preocupada em trabalhar e ganhar o dinheiro para
seu sustento. E, dessa forma, seguia vivendo. Às vezes, ficava meses; outras, ficava
mais tempo no garimpo; aí voltava para Porto Velho, entregava a filha para outra
família e seguia novamente.
Como nem sempre cumpria o acordo de mandar dinheiro e alimento para a
família cuidadora, esta se recusava a ficar com a criança. Em 1992, Apurinã ganha
uma irmã para dividir a saga (vou chamá-la aqui de Potyra20). Esta também não
20
Em Tupi, significa “flor”.
87
obteve o reconhecimento civil do pai e, às vezes, as duas irmãs ficavam na mesma
família, outras vezes não. E assim o tempo vai passando para essas crianças.
O Art. 4o do ECA enfatiza que:
[...] é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (ECA, 1990).
A mãe, quando voltava, ficava dois ou três meses, no máximo, com elas, e
seguia novamente para o garimpo, deixando-as para serem cuidadas por outra
família. Porém, Apurinã também realizava alguns serviços domésticos, aprendera
muito cedo a fazer café, entre outras tarefas.
Em 1993, o Brasil, depois de muita luta social, presencia a chegada ao
mundo de outra menina21 que, como as meninas desta história, busca formas para
sobreviver e espaço para se desenvolver. Vem ao mundo concretizar os direitos
sociais historicamente conquistados, reforçando os artigos 203 e 204 da CF de
1988.
Contudo, esses direitos, amiúde, são negados, e ela já tinha sido abortada
uma vez, pois não havia interesse político em elevar seu status de política pública, o
que supõe controle social, equidade e universalização dos serviços sociais.
(SPOSATI, 2010;TORRES, 2002, p.100).
Estou me referindo aqui à Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), que é
aprovada pelo Congresso Nacional, em 1989, e vetada pelo então Presidente da
República, Fernando Collor de Melo.
Sposati (2010, p.08) destaca que:
A assistência social não nasce como política no mesmo dia do nascimento da Loas. Ela é bem mais velha. É mais um caso de atraso de registro de nascimento. [...] Fazer o registro de nascimento em data atrasada pode ser vontade de fazer coincidir com o dia de padroeiro mas, em geral, é situação de mãe solteira que fica esperando a coragem do pai, em pôr seu nome no registro da criança já nascida e crescida. É bom lembrar que o pai da Loas é o Estado brasileiro.
21
Termo criado por Sposati (2010).
88
Mesmo tendo essa linhagem, foi muito difícil para a Loas se estabelecer e
efetivar os direitos sociais e a proteção social na realidade brasileira. Nesse
contexto, o País passava por momentos de avanços e retrocessos, que incitam a
luta dos movimentos sociais sedentos pela efetivação dos direitos.
Esses defenderam nas ruas o direito da pequena, para que ela crescesse e
aparecesse. No entanto, é apenas mais uma menina, desse imenso Brasil de
contrastes históricos, de desrespeito aos direitos sociais. E a Loas estabelece a
Assistência Social como direito do cidadão e dever do Estado.
O Art. 5o, que trata da organização da assistência social, tem como base as
seguintes diretrizes:
I - descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; III - primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo. (FERREIRA, 2011, p. 246).
Todavia, a década de 1990 também é marcada pela crise fiscal e pela opção
de aceite, por parte do governo brasileiro, do projeto neoliberal. Essa realidade
impõe limites à efetiva universalização dos direitos sociais, seguida ao desmonte
dos direitos conquistados a partir da CF de 1988. (SILVA, 2008, p.20).
Em 1994, Apurinã contava apenas com a compaixão das famílias cuidadoras
a quem sua mãe a direcionava, e, nesse momento, estava sendo cuidada por uma
família de classe média, que matriculou a menina, com cinco anos de idade, em uma
escola particular chamada Gente Inteligente, e cuidou dela por um período.
Estas famílias cuidadoras também se preocupavam com a parte religiosa,
pois Apurinã e a irmã foram inseridas brevemente na igreja evangélica, com a qual
elas sempre contaram, nesse período. Mesmo estando estabelecido no ECA (1990)
que:
Art. 7o A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
89
A vida dessas crianças era vivida por períodos, pois sempre mudavam de
casa e de família cuidadora. Assim como também ora estavam com a mãe, ora sem
ela. Em 1995, Cunhã-Porãe retorna do garimpo, dá à luz outra criança sem pai (uma
menina que será chamada aqui de Jassy22), e passa a morar de aluguel em Porto
Velho com as três filhas.
Apurinã estava com seis anos de idade e se sentia totalmente responsável
pelas irmãs; cuidava da casa e das irmãs, enquanto a mãe continuava a vida de
prostituição e iniciava a venda de drogas. A família da Cunhã-Porãe já tinha um
histórico de venda de drogas, e ela também passou a frequentar lugares de venda e
consumo de drogas na cidade.
Ela conhecia os fornecedores, comprava a droga e levava para casa, para
fazer as embalagens com a ajuda das duas filhas mais velhas. As crianças eram
responsáveis pelo processo de secagem e embalagem da cocaína. Apurinã, por ser
a mais velha, sempre ajudou mais, e participava de tudo, além de cuidar das irmãs.
A pequena menina sempre foi uma garota esperta e toda vez que a mãe era
presa, pegava toda a droga que estava em casa e enterrava no quintal, sabia que
tinha que cavar um buraco bem fundo, pois a polícia levava cães para procurar o
esconderijo. Quando não dava para enterrar a droga, ela subia nas pernas mancas
da casa para esconder em local seguro, pois sabia da importância desse trabalho.
Sua mãe poderia ser presa em flagrante, caso a droga fosse encontrada. Mas o
ECA (1990) elenca que:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
Contudo, como assegurar esse direito, visto que toda a família tem histórico
de envolvimento com entorpecentes? Porém, não era só a droga que preocupava
aquela pequena, ainda tinha uma arma, que deveria também ser escondida em local
seguro. Recaía sobre essa criança a responsabilidade de manter sua mãe em
liberdade, pois, sem flagrante, Cunhã-Porãe era solta e Apurinã desenvolvia bem o
trabalho de sua responsabilidade. Mas ela relata muito emocionada que:
22
Em Tupi, significa “lua”.
90
Eu recordo-me bem que sempre fiz a associação do trabalho como algo digno e honesto... Daí a minha revolta, já na infância, com a forma que minha mãe, e também toda a minha família, utilizava para sustentar a si e seus filhos. Eu lembro que, em vários momentos, eu questionava a minha mãe, porque ela não trabalhava como todas as nossas vizinhas, vendendo alimentos nas ruas, como domésticas, como lavadeiras, que, naquela época, em Porto Velho, muitas mulheres que não tinham formação ou alguma especialização para o trabalho, ganhavam a vida “lavando roupas para fora”. Eu cheguei a dizer à minha mãe que, se ela fizesse salgados, bolos, pastéis, eu a ajudava a vender na rua; era muito comum as pessoas andarem nas ruas com bacias de alumínio ou outros vasilhames, vendendo algo, pamonha, salgados ou doces. E todas as vezes em que eu via a minha vizinha saindo de casa com suas duas filhas para ir vender pamonha na rua, eu me perguntava: Por que minha mãe não faz o mesmo? (Pesquisa de campo, 2012).
Como afirma Eduardo Galeano (2012), o convite ao consumo é um convite
ao delito. E, por absoluta falta de alternativa, pessoas pobres, sem trabalho e sem
renda, ficam à mercê das várias formas de exploração, especialmente pelo chamado
crime organizado.
Quanto aos questionamentos que eu fazia à minha mãe, por que ela não procurava um trabalho honesto, digno... ela me dava a seguinte resposta: Não podia conseguir um emprego formal, porque não tinha os seus documentos, visto que ela havia perdido todos num naufrágio de um barco em que ela viajava de Manaus para Porto Velho, quando era muito nova. E dizia que vender comida na rua não dava dinheiro suficiente para sustentar nós, as filhas, como ela queria. Confesso que essas respostas nunca me convenceram, ao contrario, só me indignavam ainda mais. Porque, no fundo, eu sabia que eram só desculpas. Para mim, ela sempre gostou de vida fácil, sem pessoas que a controlassem, ganhar dinheiro rápido. Hoje sei que, de vida fácil, a venda de drogas e a prostituição não têm nada. Mas sei que esse tipo de trabalho dá à pessoa a sensação de poder, de superioridade. Porque, de certa forma, brinca com a vida de outras pessoas, e detém a vida delas sob o seu “domínio”. Mesmo minha mãe dizendo que não gostava de se prostituir, eu não conseguia acreditar nela... Pois muitas vezes a presenciei conversando com uma amiga, que também fazia programas, dizendo que tinha deixado o homem “assado, cozido e frito”, mas... contando com prazer, com satisfação. Não sei bem o que ela sentia, mas devia fazer bem a ela aquela sensação. (Pesquisa de campo, 2012).
Com o dinheiro do tráfico, Cunhã-Porãe conseguiu comprar uma casa, onde
passou a morar com as filhas. Nessa rotina, ia presa várias vezes, e saía em
seguida. Apurinã lembra que, às vezes, a mãe passava de três dias com seus
91
amantes, deixava as crianças sem dinheiro e sem comida, e elas pediam ovo fiado
na venda para não morrer de fome.
Porém, assim está disposto no ECA (1990):
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Apurinã vive essa maternidade e luta para proteger as irmãs. Mas era difícil
conseguir proteger-se, porque essas crianças estavam entregues à própria sorte,
mesmo com um arcabouço de direitos garantidos em lei. Estando sob a “proteção da
própria mãe”, elas viviam uma realidade de pobreza e violação de direitos, e a
situação ainda podia ficar pior.
Em 1998, Cunhã-Porãe é pega em flagrante com entorpecentes e usando
um nome falso. Ela vai para a cadeia feminina de Porto Velho, tendo sido julgada e
condenada a 8 anos de detenção. Agora, as crianças estavam novamente sem a
mãe, e a rotina de abandono estava apenas se iniciando. Pois o Estado, que serviu
para punir um crime, não foi capaz de proteger inocentes de uma vida de violência.
E Apurinã desabafa:
Não posso ser hipócrita e dizer que não sentia vergonha da minha mãe, quando era criança, pela forma como ela ganhava a vida. É claro que sentia vergonha, mas eu lembro que esse era um sentimento que eu guardava comigo, pois para as pessoas eu a defendia, dizia que ao menos ela não estava roubando ninguém. Mas, no fundo, era apenas uma forma de defesa que eu tinha. Porque eu morria de vergonha na escola, quando havia atividades em que a professora perguntava qual a profissão dos nossos pais. Porque eu nunca sabia o que dizer e, claro, acabava mentindo. Todo esse sentimento de vergonha e raiva do que minha mãe fazia só veio realmente me atingir com toda a força na adolescência, quando comecei a ter mais noção do que realmente significava vender drogas, como ela fazia mal a muitas pessoas, e mesmo a nós, filhas. Porque eu, que era a filha mais velha, ajudava diretamente no processo da secagem e embalagem da droga. Comecei a lembrar de quantas vezes eu fui dormir drogada, anestesiada com o cheiro da droga. Isso me causava nojo, raiva, revolta da minha mãe. (Pesquisa de campo, 2012).
92
E Jurema23, também traficante, Irmã de Cunhã-Porãe, assume a casa e as
crianças. Porém, esta era dependente química, e foi com essa tia que Apurinã viveu
momentos de muita violência doméstica, exploração do trabalho infantil, assédio
sexual e todas as formas de desrespeito aos direitos da criança.
Diante do exposto, partimos da seguinte questão norteadora: O que
acontece com uma criança que tem seus pais ou, no casa acima elencado, a mãe
presa? Qual providência deveria ser tomada, com base no ECA, para acolher, de
forma segura, as crianças inseridas nesse ciclo de violência?
Apurinã era muito espancada, por qualquer travessura de criança.
Presenciava a tia e os amigos usando drogas. Ficava até às 23 horas lavando
louças na chuva. Além da responsabilidade de cuidar das irmãs, e agora das primas
gêmeas, de 3 anos de idade, filhas da Jurema.
Além da obrigação de fazer o processo de embalagem da droga. Assim ela
lembra: “A gente fazia todo o processo de dentro de casa, (secagem e etc.), em
Porto Velho, é conhecido como mela, que é a pasta de cocaína mesmo”.
Na realidade, a maior parte de violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziram esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que conhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. (COUTO, 2012, p.01).
Foi com essa tia, também, que Apurinã e Potyra viveram um dos piores
momentos de suas vidas. Num dia de domingo, quando a tia estava usando drogas
com vários amigos e o namorado, as crianças chegam da igreja e encontram o
amigo de Jurema no quarto da casa, então, muito emocionada, ao lembrar-se dos
momentos de horror, relata:
[...] Esse cara abaixou a calcinha da minha irmã e começou alisando
a vagina dela (choro...), aí eu empurrei ele (ele era muito grande e forte), e saí correndo do quarto, fui para o outro quarto e comecei a chorar... Meu primo foi lá, me deu um tapa e disse que era pra eu voltar para o quarto, que era para eu ficar lá que ele queria ver até onde ia, então eu voltei para o quarto (choro, silêncio), então, eu cheguei no quarto, a minha prima Patrícia tinha saído já do quarto e
23
Jurema, em Tupi, significa “espécie de planta”.
93
depois eu fiquei sabendo que ela tinha ido contar para o meu tio que estava na sala; aí, quando eu entrei no quarto, ele deixou a minha irmã de lado e mandou eu deitar na cama (silêncio, choro), aí, eu olhava lá para cima, onde meu primo estava (choro...) para ver se ele ia intervir, se ele ia chamar a polícia; eu estava esperando que a polícia estivesse lá, porque ele disse assim: “A gente vai chamar a polícia, ele vai ser pego em flagrante”, aí eu olhava lá para cima e meu primo fazia sinal para eu ficar calada, como quem diz assim: “Deixa ele fazer, né?”. Aí eu fiquei lá, deitada, e ele começou a me beijar (choro) nas costas, ele tinha uma barba grande, começou a dar aquela coceira (repúdio), aquele mal-estar, ele me beijava no pescoço, aí ele continuou, ficou me alisando, passando a mão pelo meu corpo, aí eu não aguentei, eu saí correndo do quarto, eu gritei e saí correndo. (choro..). (Pesquisa de campo, 2012).
Apurinã ainda teve forças para procurar uma delegacia e prestar queixa.
Nesse dia, as crianças ficaram horas nessa delegacia esperando o delegado
encontrar a tia responsável por elas, o homem foi preso e elas o viram apanhando
dos policiais.
Porém, quando a responsável pelas crianças foi encontrada, ela
simplesmente retirou a queixa. Jurema não queria prejudicar a irmã, que já estava
presa. Depois do acontecido, as crianças voltam para casa, com a tia, e o agressor é
solto. Mas os Arts. 5o e 13 do ECA (1990) enfatizam que:
Art. 5o Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
Depois dessa situação, Apurinã sabia que não podia mais permanecer
naquele lugar; temia coisa pior, mas ela não sabia o que fazer, não tinha outro lugar
e era apenas uma menina de seis anos de idade que se sentia completamente
responsável pelas irmãs.
Jurema, depois de uns dias, em uma briga, deu várias facadas em um
homem e foi presa. E as crianças, novamente, ficaram sozinhas, mas elas tinham
outra tia na cidade e foram em busca de abrigo na casa da tia Moema24, outra irmã
24
Moema, em Guarani, significa “aurora”.
94
da Cunhã-Porãe, que também vendia drogas. O tempo foi passando, as meninas
crescendo, e Apurinã sempre cuidando das irmãs.
A infância dessas crianças foi marcada por um ambiente de drogas,
prostituição e violência. Ou seja, o direito delas, a todo o momento, era violado.
Apurinã ainda morou com Zeneide (mulher de um tio alcoólatra). Zeneide tinha
muitos filhos, morava numa ocupação, tudo muito precário. A família passava muita
fome, e o tio trocava o leite das crianças por bebida alcoólica.
Mas, mesmo assim, aceitaram ficar com mais crianças. Apurinã lembra-se
da fome, e relata: “Quando a gente começou a ter que catar resto de banana do
lixão para ter o que comer, eu disse que eu não ficava mais em Porto Velho”.
Mesmo com todas as dificuldades vivenciadas, a menina nunca deixou de ir à
escola. Com sete anos de idade, iniciou a vida escolar no ensino público e enfatiza,
emocionada: “Escola, para mim, sempre foi um refúgio”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro em atribuir, como valor universal, a proteção integral a toda criança e adolescente como seres em desenvolvimento. É preciso estender essa noção aos diferentes momentos do ciclo de vida e às contingências que neles ocorrem. Sob essa perspectiva a proteção social não é demandada pelo fato de serem essas crianças e adolescentes, pobres ou ricas, mas como valor de uma sociedade que se quer justa, solidária e voltada para o avanço social em seu futuro. (SPOSATI, 2007, p. 28).
Mas o futuro pode ser apenas uma utopia, diante da realidade de pobreza e
miséria, de toda a desproteção social que, historicamente, se evidencia para a
maioria das crianças, em nosso país. Mas a escola era o lugar em que Apurinã se
sentia livre, protegida, respeitada; era a esperança de dias melhores, a luz que
mudaria para sempre sua realidade.
Essa criança que estava sendo violada em seus direitos fundamentais
conseguia ver e acreditar na importância da escola e na mudança em sua vida a
partir da educação; conseguiu acreditar em um mundo melhor e, acima de tudo, teve
forças para resistir e romper com o ciclo de violência que se estendia em sua família.
95
3.3 O Retorno a Manaus
Com 10 anos de idade e uma realidade de muita violência, cansada de lutar
contra tudo, Apurinã toma uma decisão. Queria voltar para Manaus, e só tinha uma
saída; ligar para outra irmã da Cunhã-Porãe, e assim fez; ligou para a tia Itacira25.
Pediu socorro, mas a tia que morava em Manaus disse que não poderia
cuidar das irmãs mais novas. E então, com toda sua coragem e instinto de
sobrevivência, a pequena menina assustada se comprometeu a cuidar das irmãs
para não atrapalhar o trabalho da tia. E assim o fez.
Do tempo que passou em Porto Velho, ela guarda várias lembranças, mas
pretende esquecer as que lhe trazem muito sofrimento, porém, também se lembra
dos poucos momentos felizes, em que conseguia ser criança e fazer algumas
travessuras; lembra-se do pôr do sol de Porto Velho e relata a beleza que lhe é
peculiar. Como segue a Figura 6, no intuito de reforçar sua memória.
Figura 6: Margem do Rio Madeira, em Porto Velho
Foto: Valter Calheiros, 2011.
E, em 1999, Apurinã chega a Manaus com suas duas irmãs. Itacira
providenciou os registros de nascimento das crianças mais novas e foi em busca de
25
“itá-syra”, em Tupi, significa “pedra cortante, afiada”.
96
escola para elas. Então, finalmente, as crianças estavam a salvo de toda a violência
vivida até aquele momento.
Apurinã também gostava muito dessa tia, pois sentia que elas tinham uma
melhor aproximação. Era a mãe que ela tanto necessitava. Mas a vida mostra que a
luta ainda estava no início. E muito decepcionada relata:
No primeiro ano em que nós chegamos em Manaus, era tudo muito perfeito, muito maravilhoso, né? Roupa nova, calçado novo, não faltava nada, nós tínhamos uma vida muito boa, não apanhávamos, mais depois de um ano tudo mudou, o problema com a bebida (todo mundo da minha família tem problemas com bebidas), e aí minha tia quando bebia ficava louca, louca! E aí ela começou a espancar, não era bater não, ela espancava mesmo! (Pesquisa de campo, 2012).
Então, inicia-se outra fase, na vida das três irmãs. Elas mudam de bairro e
de escola. A tia também era traficante de cigarros importados, possuía um depósito
onde armazenava o produto traficado e trabalhava revendendo-o. Apurinã agora
tinha a função de cuidar da casa e arrumar o depósito de cigarros e só era liberada
do trabalho no horário da escola.
E assim sua vida é envolvida com trabalhos domésticos e várias
responsabilidades extras, além de zelar pelas irmãs. Todos os dias deixava as duas
pequenas no ponto do ônibus, transporte coletivo que as levava para a escola
integral Casa Mamãe Margarida (CMM)26, onde foram matriculadas.
Aí foi quando eu comecei a ser explorada, porque não tinha uma pessoa para arrumar o depósito, eu arrumava o depósito, carregava
26
A Casa Mamãe Margarida nasceu com uma proposta educativa e formativa para favorecer a cidadania a meninas em situação de risco pessoal e social, através do protagonismo juvenil, segundo o estilo salesiano. É uma instituição de caráter filantrópico, social, educacional e religioso, sem fins lucrativos, dirigida pelas Filhas de Maria Auxiliadora (Irmãs Salesianas) e mantida através de convênios e/ou doação de benfeitores. As meninas atendidas são provenientes de famílias com problemas econômicos e sociais que refletem diretamente em sua formação, uma vez que, não tendo alimentação básica, educação e orientação familiar, saem às ruas em busca de alternativas de vida, onde, muitas vezes, são induzidas ao vício e à marginalidade. A nossa ação educativa coloca a menina como centro de atenção e de respeito, favorecendo a redescoberta de valores humanos e morais para que possa protagonizar uma nova história pessoal, reencontrando sua autoestima, bem como paradigmas que a levem a uma opção de vida digna, madura e consciente, além de oferecer uma ação socioeducativa baseada no Sistema Preventivo de Dom Bosco. Proporciona atendimento a 400 crianças e adolescentes vitimizadas, do sexo feminino, oferecendo educação integral, que favoreça o desenvolvimento cognitivo, artístico e manual, garantindo o acompanhamento escolar; oferece oportunidade de atendimento biopsicossocial (médico, odontológico e psicológico); acompanha a menina dentro do laço familiar e, se necessário, reconstruir este laço nos locais onde ele inexiste, denunciando e acompanhando os casos de violação e ameaça de direitos. Garante abrigo em caso de ameaça ou violação de Direitos para 25 crianças/adolescentes do sexo feminino. (Pesquisa documental.)
97
caixas, eu tinha minhas funções: arrumar o depósito, cuidar dos cachorros, cuidar da casa, fazer comida, deixar minhas irmãs na parada do ônibus e buscar na parada do ônibus depois da escola delas. Eu tinha 11 anos de idade, na época, mas a minha vida era uma rotina de adulto, eu tinha que dar conta de tudo em uma casa, eu era a pessoa que tinha que ficar em casa, a polícia podia aparecer a qualquer momento. Eu apanhava muito, muito mesmo, de palmatória, chutes e tapas, tudo sempre quando ela estava bêbada. (Pesquisa de campo, 2012).
Apurinã só tinha o direito de ir à escola; em casa, ela não podia perder
tempo fazendo os trabalhos escolares; então, a menina, que sempre foi muito
esperta, esperava a madrugada, quando todos estavam dormindo, para fazer suas
tarefas da escola, e assim relata:
Eu me sentava na janela pra pegar a iluminação da varanda e não ter que ligar a luz do quarto para ela não perceber, porque, se ela percebesse, eu apanhava, então, eu sentava na janela e ficava estudando, fazendo minhas tarefas; ela acordava de madrugada, morta de bêbada, o único tempo que eu tinha para estudar era de madrugada, então ela ía no quarto, me via estudando e botava para me bater, me jogava na cama e espancava! E foi um acúmulo, teve uma hora que eu não aguentei! (Pesquisa de campo, 2012).
A menina só acumulava marcas profundas, mas continuava estudando e
cuidando das coisas da tia e das irmãs. Porém, agora ela já conhecia bem a CMM,
sabia que lá também era um abrigo para meninas, e que as irmãs foram para lá
porque já tinham um histórico de violência, mas continuou na casa da tia. “Eu não fui
para a CMM, porque eu tinha que estudar perto de casa, para dar conta das coisas.
Mas eu conhecia a casa, sabia que tinha um abrigo”.
3.4 A Luz que Faltava
Contudo, diante daquele cenário de violência e desrespeito, Apurinã
esperava mudar a situação. Mas como uma criança abusada, fragilizada, de modo
geral, poderia reverter sua história? A violência também neutraliza, a partir do medo
gerado.
O medo do abandono, das surras e da vida de pobreza, que até aquele
momento tinha sido tão cruel com a criança, tomava conta daquele coração tão
98
carente de carinho, família, amor e oportunidade. Apurinã só tinha um desejo: queria
a oportunidade de estudar.
Mas foi com 13 anos de idade, quando Apurinã estava cursando a 6a série
do ensino fundamental, que um dia, na escola, é apresentada pela primeira vez ao
ECA e ao Conselho Tutelar. Ela já não era mais ignorante. Sabia, a partir daquele
momento, que era uma cidadã de direitos.
E suas palavras revelam: “A visão vai ampliando, tu vai percebendo, foi
quando eu soube o que era um Conselho Tutelar, qual era a função, foi quando eu
fui enxergando que eu vivia uma situação de violência e que podia buscar ajuda”.
O desconhecimento dos nossos direitos é a total escuridão; viver sem saber
que podemos buscar na lei a solução para determinada situação, que temos amparo
e proteção legal, é simplesmente não viver, é vegetar, pois essa escuridão nos
neutraliza, nos domestica e nos faz aceitar a condição de explorado, violentado, com
naturalidade imutável. Saber, e ter com quem contar, pode nos libertar da escuridão.
A menina sabia, agora, que vivia uma situação de violência, de trabalho
infantil, e que existiam mecanismos de proteção. Apurinã também conhecia a Keyte
(ex-abrigada da CMM). Keyte sempre mandava a menina fugir e buscar a CMM, mas
ela ainda não estava preparada.
Certo dia, Apurinã pegou dinheiro da tia para comprar duas pilhas do
walkman, ela gostava muito de ouvir músicas, mas estava proibida de fazê-lo,
porque a tia achava que atrapalhava o serviço doméstico. Então, Itacira ficou
sabendo da compra das pilhas e da desobediência de Apurinã e, como sempre, a tia
mostrou quem mandava. Chorando, ela conta:
Eu que estava proibida de ouvir o walkman, porque, segundo ela, a música atrapalhava eu arrumar a casa, e uma vizinha fofoqueira, desgraçada, ligou para minha tia para dizer que eu tinha saído de casa e que eu estava escutando música. Imediatamente, ela chegou em casa, que nem um mostro, e me perguntou: “O que tu foi comprar na taberna?”. Aí eu menti, disse que fui comprar alho, na verdade, eu também fui comprar alho, mas fui para comprar as pilhas, aí, ela disse assim: “Só alho?”. Eu falei: Só, só o alho. Ela disse: “Mentira que eu vim da dona Nete (a dona da taberna) agora e eu estou sabendo que tu comprou duas pilhas”. Aí, nesse dia, ela me bateu muito, muito! Espancou os meus dedos com a ripa, me jogou no chão, me chutava, chutava minha cara, chutava, chutava, ela me bate, sabe, quando tu vê querendo matar um cachorro? Nesse dia ela me bateu assim! Ela me bateu muito, ela me chutou até a beira da escada, acho que quando eu estava na beira da escada, ela acordou da crise de violência, quando ela viu que ia me chutar
99
daquela escada e eu ia morrer (choro), acho que ela acordou, assim, ela parou, eu estava sangrando. Aí, para mim, esse foi o estopim, eu já pensava há muito tempo em fugir, ir embora e tal, mas ainda não tinha tido coragem por causa das minhas irmãs. (Pesquisa de campo, 2012).
Então, Apurinã, muito machucada, se arrumou e foi para escola preparada
para fugir.
Sempre apanhei por mim e por elas, porque ela dizia que eu era muito atrevida, muito audaciosa. Aí, nesse dia, eu fui para a aula com a cara todo vermelha, toda espancada, ela disse que não era para eu ir para a aula! Eu desobedeci, me arrumei, vesti duas calcinhas, uma por cima da outra, eu não podia sair de casa com uma bolsa porque ela ia perceber que eu estava fugindo, né, peguei R$ 3,00 e pouco, que era para minha passagem, coloquei uma peça de roupa na minha mochila, o dinheiro eu consegui porque eu menti para ela, eu disse assim: Tia, eu preciso comprar uma cartolina e coisas para fazer um trabalho na escola, ela me deu o dinheiro, e perguntou: “Tu vai mesmo para a aula?”. Eu menti! Disse que tinha uma coisa muito importante lá. Então, fui para a aula decidida que eu não voltava mais para casa. (Pesquisa de campo, 2012).
Chegando lá, contou o acontecido para um professor, que falou com a
diretora e pedagoga, e os profissionais aconselharam-na a voltar para casa, ficar
mais uma semana, para que eles observassem o comportamento da tia, e
garantiram que iam fazer a denúncia ao Conselho Tutelar.
Prometeram também que acompanhariam a história durante aquela semana
para ver se a violência continuaria. Mas ela sabia que continuaria. “Eu falei: Claro
que vai continuar! Eu apanho todo dia; quando não era de dia era de madrugada, é
sempre isso, ela dizia: ‘Mas a gente precisa acompanhar para ter certeza’”.
A menina voltou para casa, e na outra semana, a diretora chamou-a e disse
assim: “Amanhã, às 14 horas, o conselheiro tutelar vai lá na tua casa fazer uma
visita, para conversar com tua tia”. E esse momento decisivo, ela conta, muito
angustiada.
Tu não sabe o que é isso, dizer para uma criança que é violentada que o conselheiro tutelar vai à casa dela! Isso é a sua certidão de óbito, tu sabe quem é a tua tia, que ela jamais aceitaria isso, e que quando o conselheiro sair da casa tu vai morrer de tanto apanhar. (Pesquisa de campo, 2012).
100
Nesse dia, Apurinã só pensava em sobreviver e fez de tudo para sair de
casa antes de o conselheiro chegar e, com muito medo, foi para a escola preparada
para não voltar mais, e assim aconteceu. Ela conseguiu que o professor de inglês a
levasse para a casa de uma advogada (irmã do professor).
Chegando lá, Apurinã, assustada, fica sabendo que a tia já estava louca, à
sua procura, que o conselheiro tutelar não tinha ido na casa, como prometido, mas
ela já não estava mais lá, conseguiu uma esperança de mudar de vida. E, assim,
ligou para a tia para informar que não voltava mais:
Aí, eu falei com o meu primo, e disse assim: Olha, diz para a tia que eu não vou voltar para casa, foi nessa hora que perguntei pelo conselheiro e fiquei sabendo que ele não foi lá, aí eu fiquei com ódio profundo, porque eu tinha fugido de casa com medo de morrer e ele não foi.
A advogada queria ficar com a menina para cuidar dos filhos recém-
nascidos, mas Apurinã tinha um objetivo, chegar à CMM. Ela sabia que lá teria a
possibilidade de estudar, como sempre quis.
Na mesma semana, o conselheiro ligou para a advogada e disse que a
menina podia ficar lá até ele conseguir um local para ela, e prometeu buscá-la no
sábado seguinte, e assim fez. Nesse dia, a advogada fez a proposta de ficar com
Apurinã, e disse: “Você quer ficar comigo? Sou advogada, consigo tua guarda até
tua mãe sair da prisão, vou te pagar um salário, tu vai ter o teu quarto, vai poder
estudar, vou te colocar numa escola aqui perto”.
Mas Apurinã já estava esperta com essa situação e respondeu: “Eu quero ir
pra um abrigo!”. A advogada tentou argumentar dizendo: “Tu não sabe o que é um
abrigo!”.
Mas a menina já estava decidida e enfatizou: “Eu quero ir para um abrigo!”.
E assim ela destaca o porquê da sua escolha tão incisiva:
Porque a visão que me passavam do abrigo é que eu ia poder estudar, que as irmãs conseguiam bolsa em escolas particulares, escolas boas e tudo o mais. Então, meu foco era o abrigo e eu estando no abrigo, era mais fácil consegui levar minhas irmãs para lá. (Pesquisa de campo, 2012).
101
Porém, Apurinã não imaginava que sua mãe poderia atrapalhar seus planos.
Então, o conselheiro ligou para o presídio e falou com Cunhã-Porãe; esta tinha o
poder de decisão, mais ela não sabia o que a filha havia passado, durante os cinco
anos com essa tia. E então, a menina contou tudo e muito revoltada disse à mãe:
Se a senhora disser para o conselheiro tutelar que é para eu ir para Porto Velho, eu nunca mais na minha vida te reconheço como mãe. Não vou nem te visitar, porque em Porto Velho eu não vou ter a oportunidade de estudar, de ter um emprego, eu vou ser prostituta, eu vou ser vagabunda, vou ser tudo aquilo que falavam que eu seria, porque eu sei muito bem qual é família que vou ficar, aí, a mesma miséria de antes, é isso que a senhora quer para mim? (Pesquisa de campo, 2012).
Então, Cunhã-Porãe disse que a filha podia seguir para um abrigo. E
Apurinã foi levada para o abrigo das Irmãs Carmelitas, onde ficou um mês, mas ela
estava com um objetivo: queria ser acolhida pela CMM, porém, lá estava sem vagas
e ela teve que apelar para uma conhecida (Keyte), e esta entrou em contato com a
direção da casa e conseguiu uma vaga. Mas as duas irmãs de Apurinã, Potyra e
Jassy, permaneceram com a tia agressora. Contudo, as duas meninas continuaram
estudado na CMM.
A CMM faz parte da rede de proteção à criança e adolescentes. É um abrigo
(Art. 95), executor de uma das medidas de proteção previstas no ECA: a medida de
abrigamento (art. 101, inciso VII, do ECA), que somente deverá ser aplicada após se
esgotarem as demais medidas de proteção ali previstas. O abrigo é uma medida
provisória e excepcional e transitória que não implica privação da liberdade. (Art. 101
do ECA). A CMM oferece a Proteção Social Especial (PSE), de alta complexidade,
que se volta:
A indivíduos e grupos que se encontram em situação de alta vulnerabilidade pessoal e social, decorrente do abandono, privação, perda de vínculos, exploração, violência, entre outras. Destinam-se ao enfrentamento de situações de risco em famílias e indivíduos cujos direitos tenham sido violadas e/ ou em situações nas quais já tenha ocorrido o rompimento dos laços familiares e comunitários. (YAZBEK, 2010, p.42).
102
Apurinã entendia que, na CMM, teria proteção integral, moradia, convívio
com outras meninas que estavam na mesma situação, possibilitando-a uma gama
de conhecimento e novos horizontes de crescimento.
3.5 Direitos Protegidos e a Vida de Abrigada
Garantir o direito à sobrevivência é fundamental, mas é
só o primeiro passo. Ninguém quer apenas sobreviver.
(Pedro Demo, 2000)
E, dessa forma, Apurinã finalmente consegue chegar à CMM no dia 2 de
novembro de 2002, para iniciar uma nova fase da sua vida. E ela observa com muita
convicção:
A aí começa a minha história de abrigada, que, comparado com a minha infância, eu acho que foi o melhor período da minha vida. Porque lá eu tive o que realmente queria, que era estudar. Em todo momento da minha infância, eu tive que trabalhar, que cuidar das minhas irmãs, eu tinha que fazer tudo, menos estudar mesmo, o pouco que eu conseguia era porque eu era teimosa. Então lá na casa eu realmente tive a oportunidade de estudar. (Pesquisa de campo, 2012).
Apurinã chegou à casa, foi bem recebida, finalizou o ano letivo, passou a
estudar perto da CMM, e começou a viver de verdade. Agora, ela possuía casa,
comida, proteção e várias oportunidades.
E na CMM foi outra história mesmo, de verdade, começaram assim as oportunidades de inserção nos movimentos sociais, no teatro, na escola, eu já me envolvia na dança, no canto, no teatro, eu não era boa em nada disso, mas eu me envolvia com tudo, isso me deixa conhecida, até o porteiro da escola me conhecia. A diretora da escola que eu estudava foi me visitar na CMM, ela falou muito bem de mim para a irmã Liliana, eu também cheguei a ganhar o terceiro lugar de um concurso de redação com tema sobre drogas. (Pesquisa de campo, 2012).
103
No final do ano de 2003, a moça foi chamada pela irmã e ficou sabendo que
teria uma bolsa de estudo para fazer o ensino médio na Escola Santa Terezinha,
uma das melhores escolas particular de Manaus. Quando recebeu a notícia, sentiu
um caleidoscópio de emoção, chegou à luz que ela tanto buscava, mas logo veio o
medo do fracasso e ela disse: “Não! Eu não quero! Vou reprovar, eu tenho medo”, e
a irmã disse: “Você vai”.
No ano de 2004, ela inicia o ensino médio no Colégio Santa Terezinha,
como bolsista integral. A CMM também oferecia teatro, acompanhamento
psicológico, pedagógico, etc., além de participação nos movimentos sociais, nos
quais Apurinã sempre se destacou. E assim consegue aproveitar as oportunidades
oferecidas pela CMM.
Eu passei seis anos na CMM, dos 13 aos quase 19 anos, mesmo depois da maior idade eu fiquei na CMM, lá as meninas só ficam até os 18 anos, mas como eu não tinha nenhuma possibilidade de retorno para a família, fiquei na casa até quase 19 anos. Eu passei quatro anos sem convívio com a minha família, ficava só na CMM, porque lá, todos os fins de semana, as meninas abrigadas vão para suas casas, mas eu não tinha para onde ir. Até que, um dia, minha tia foi me visitar na casa, fizemos as pazes ela fez um aniversário surpresa para mim, levou um monte de coisas, então fizemos a experiência de tentar retornar, mas não deu certo, não deu certo, porque já era outro mundo para mim. Na CMM, as coisas foram abrindo para mim, através do teatro, através dos projetos que a gente era inserida, o trabalho realizado com a questão da cidadania, dos direitos, e aí eu fui estudar o ECA, entender o que era, e me apaixonei por esse mundo social. Com 15 anos eu decidi que eu queria ser assistente social.
Foi essa inserção e participação no movimento social, o conhecimento para
além da sua vivência histórica que fazia aquela garota, tão marcada pela violência,
vislumbrar a possibilidade de mudar a sua vida, fazer essa história menos sofrida.
Durante o período de abrigamento, ela viveu a adolescência, compartilhou
com as outras abrigadas sua história, conheceu outras mais intensas, fez do abrigo
a sua casa, viveu intensamente esses anos, que lhe deram um acúmulo de
experiência e vivências. Mas o conhecimento também pode revoltar e ela destaca
que:
Não é só pela minha história de vida, mas pela história das outras meninas, perceber o quanto é importante conhecer os nossos direitos, não só do conhecimento, mas de ser protegida pelo que a
104
gente tem, porém, esse conhecimento adquirido na casa também me fazia ficar revoltada, pois eu pensava: Se é a minha família que me bate, me espanca, são os violadores do meu direito, por que eu tenho que sair de casa? Me sentia presa, queria ser livre. Comecei a participar das conferências municipais dos direitos da criança e do adolescente e nos debates eu dizia mesmo que a lei tinha que mudar, porque ela transforma a vítima em agressor, é a vítima que é punida, ela que fica presa, olha aí, não aconteceu nada com a minha tia, eu não queria que acontecesse, mas e as outras meninas, que eram estupradas pelo próprio pai ou tio? Elas tinham que sair de casa, o cara continuava na boa, não era preso, não acontecia nada. Então, aí, o teatro ajudou muito no meu crescimento como pessoa, porque esse fato, que aconteceu em Porto Velho, para mim era uma situação. Mas eu não sabia o que era, quando as peças teatrais eram sobre violência sexual contra criança e adolescente, teve um dia que eu simplesmente travei, saí da sala espancando a professora chutando todo mundo, eu empurrava as pessoas, eu sentia um ódio tão grande porque eu tinha me dado conta do que tinha acontecido com a minha irmã e comigo, isso foi logo nas primeiras aulas de teatro, eu fiquei uma semana para conseguir falar sobre o assunto e dizer o que tinha acontecido. (Pesquisa de campo, 2012).
O conhecimento e o entendimento da violência vivida causava revolta digna
dos cidadãos, é essa capacidade de revolta tão necessária que impulsionava a
jovem a buscar mais conhecimento e se instrumentalizar para lutar pelos direitos
socialmente conquistados. Mas ela ainda era apenas uma garota, com um intenso
histórico de agressão, que poderia refletir para sempre em sua vida e em suas
escolhas, como ela mesma informa:
Apesar de estar no abrigo, a Assistente Social não sabia da minha história de vida por completo, sabia de alguns detalhes. Então, assim, para superar, para hoje chegar aqui e conseguir falar, foi muito difícil, mesmo com apoio psicológico, pedagógico, etc. que eu tive na casa, porque eu fiz acompanhamento psicológico nos últimos dois anos que passei na casa, não fiz mais porque me recusei. Eu não acreditava na terapia, eu ia para lá, falava, falava, e ela me dizia coisas que eu já sabia, então eu achava que eu mesma podia ser a minha psicóloga. (Pesquisa de campo, 2012).
As meninas abrigada na CMM tem sua festa tradicional de debutantes, e
Apurinã também teve a sua festa. Nesse mesmo período, sua mãe sai do presídio
em liberdade condicional e retorna a Manaus.
Quando eu completei 15 anos, minha mãe saiu da prisão, minhas irmãs foram morar com ela, em uma situação complicada, porque meu atual padrasto abusou sexualmente da minha irmã do meio. (Pesquisa de campo, 2012).
105
Como a mãe estava residindo em Manaus, Apurinã tenta conviver com ela
nos fins de semana, mas não se sentia parte daquela realidade, além de não
concordar com as atitudes da mãe, como informa:
Com 15 anos, eu já namorava escondido das irmãs, eu me envolvi com o motorista da instituição, ele não tinha estudo, e depois que a irmã descobriu, perdeu a graça, mas acredito que o que me desencantou mesmo foi a interferência da minha mãe, ela tentava me vender para ele. Ela pedia as coisas para ele. Ela criava situações pra me deixar sozinha com ele. Ele ajudou a construir a casa dela. Ela deixava ele dormir na casa e me deixava sozinha em casa com ele. Então eu não quis mais. Eu me sentia vendida. (Pesquisa de campo, 2012).
Mesmo tentando conviver com a mãe, Apurinã continua no abrigo. Lá, a
moça tinha casa e não sofria mais violência, e seus direitos estavam garantidos.
Mas ela sofria com muitas faltas, como suprir essas necessidades, onde estaria o
remédio para a cura interna? Como esquecer tanto abandono e entender as suas
próprias fraquezas, às vezes expressas na mais simples ação?
São tantas as perguntas que as respostas poderiam estar em um rapaz por
quem Apurinã se apaixonou. Foi ele que lhe apresentou o amor, o carinho e a
atenção que também lhe fazia muita falta. Ele foi seu grande amor.
Mas aquele sonho tão lindo foi se transformando em um pesadelo. O rapaz
era dependente químico, tinha vários processos por assassinatos e assaltos. Ela
sofreu muito para conseguir acreditar que aquele homem tão maravilhoso fizera tudo
aquilo que a polícia lhe mostrou na ficha criminal dele. E depois de muito sofrimento
ela decidiu esquecê-lo para sempre, porém, não era fácil fazer o coração obedecer à
razão:
Foi uma grande confusão na CMM, a irmã pensava que eu estava levando drogas para dentro da casa. Colocou até polícia atrás de mim, teve investigação, levaram fotos minhas para a polícia, aí, assim, foi um período muito complicado, porque eu me apaixonei muito por ele, de verdade mesmo. Porque tudo o que eu tinha na CMM, na verdade, é que a gente não tem a atenção que a gente quer ter, eu não tinha tempo para mim, eu tinha tempo para o teatro, para a aula, para o projeto, eu tinha tempo para tudo quanto era coisa, mas, de verdade, parecia que ninguém me ouvia, entendeu? E eu encontrei um ser humano que era extremamente inteligente, te dá aulas de história, do que você quiser, mas a verdade é que ele fazia assaltos, era um dependente químico, assassino. Mas comigo ele
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não era nada disso, comigo ele era amigo, namorado sensível, que fazia café e me levava na cama, uma coisa de outro mundo. Aquele cara que eu li o processo que falava friamente que matou, torturou e etc. e que olhava dentro dos meus olhos. Sabe, quando tu sentes que essa pessoa não tem coragem de triscar um dedo em você? Eu passei mais de um ano com ele, mas eu tive que romper, porque a minha razão sabia que não era correto, eu já era maior de idade, se a polícia me pegasse com ele, não ia querer saber se eu era cúmplice ou não. Apesar de que, quando estava comigo, ele não usava drogas, quando ele estava comigo parecia que vivia outro mundo, entendeu? Eu faltava ao trabalho na casa para ficar com ele. Eu percebi que era perigoso, quando um vigilante nos viu juntos e contou para uma moça da casa, aí ele mandou três caras ameaçarem o vigilante de morte. Então, eu fiquei com medo dele. Depois disso, ele foi armado na CMM. Então, eu deixei para lá, mas o encontrei ainda algumas vezes, e sei que eu o amei de verdade. (Pesquisa de campo, 2012).
Então, Apurinã manda um e-mail para o rapaz terminando tudo, pois não
teve mais coragem de encontrá-lo pessoalmente; ela sofreu muito para conseguir
sobreviver e continuar sem aquele amor. Ela estava frágil e carente, queria colo de
uma mãe de verdade. E assim ela relata: “Passei uma semana na maior depressão,
fiquei trancada numa sala, precisando de atenção e de carinho, aí foi a primeira vez
que a irmã me deu colo de verdade”.
Então, ela termina o ensino médio, presta vestibular para Ciências Sociais
na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), consegue passar; fez também boa
pontuação, mais de 60 pontos, no normal superior na Universidade Estadual do
Amazonas (UEA); não passou por causa do sistema de cotas, visto que tinha feito o
ensino médio em escola particular.
Ela fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)27 e conseguiu boa
pontuação sendo beneficiada integral pelo Programa Universidade para Todos
(Prouni)28 para fazer o curso de Serviço Social no Centro Universitário do Norte,
curso sonhado desde os 15 anos de idade. E a vida estava realmente mudando.
27
O Enem avalia conhecimentos obtidos até o término do Ensino Médio. É usado como parte do processo seletivo de centenas de Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas. 28
É um programa do Ministério da Educação, criado pelo governo federal em 2004, que oferece bolsas de estudos em instituições de educação superior privadas, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, a estudantes brasileiros de baixa renda, sem diploma de nível superior, foi criado pela MP 213/2004 e institucionalizado pela Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao programa.
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3.6 A Universitária e a Vida Fora da Casa Mamãe Margarida
Uma nova fase se inicia para Apurinã; agora ela não era apenas uma
abrigada da casa, mas simplesmente a primeira menina abrigada a passar na Ufam,
por isso a CMM premiou-a com uma viagem para a Itália, onde teve a oportunidade
de conhecer vários lugares; foi também para a Áustria. Durante a viagem, a jovem
recebeu um convite para ficar na Itália, mas não quis porque não queria abandonar
as irmãs que estavam no Brasil.
A jovem volta para Manaus e inicia a sua vida de universitária, mas agora
ela já estava com quase 19 anos (faltava apenas dois meses para seu aniversário) e
precisava sair da CMM. Então, ela foi morar de aluguel com uma amiga, mas não
seria fácil viver sem a proteção da CMM; era um pássaro inexperiente, que saíra do
ninho para buscar outros voos e outras relações num horizonte cheio de
complexidade. E ela fala sobre a nova experiência:
Então, a minha saída da CMM, não foi fácil em nenhum aspecto, nem emocional, nem financeiro, nem educacional, enfim, quero dizer que foi “barra” de todas as formas. Para começar, eu sempre deixei parecer para as pessoas muito independência, mas, no fundo, no fundo, sempre foi autodefesa. A verdade é que desde quando me dei conta de que não tinha possibilidades de sair da CMM e ir morar com minha mãe, ou com qualquer outra tia, fiquei muito mal, me senti um lixo. As crises começaram a vir, mas, ao mesmo tempo, eu precisava provar para mim que eu podia ser feliz, sem ter que estar com aquelas pessoas que não entendiam e não respeitavam minhas opiniões, minha visão de mundo, meus gostos, meus defeitos, minhas qualidades. A verdade é que eu sou muito diferente de todos e todas da família, e a CMM contribuiu para isso. Eu saí da CMM com algumas coisas materiais encaminhadas, pois tive um ano para juntar dinheiro, junto com uma amiga que também era abrigada e vivia a mesma situação que eu. Então, nós já tínhamos certo que iríamos morar juntas, assim que o juiz nos desabrigasse. Assim, quando saí da CMM, fomos morar num ap/quitinete, até legalzinho. Lá pagávamos aluguel, energia e uma taxa de água. A vida fora do abrigo é muito difícil, até hoje, porque imagina que você passa a tua infância e adolescência toda sendo sustentada por alguém, bem ou mal, mas por um adulto e, de repente, você se vê sozinha, responsável pelo teu próprio sustento, pela tua sobrevivência! Foi muito difícil conciliar trabalho, estudo, e despesas, que nem tinha noção de quanto pesavam na vida da gente. Mas fui vivendo. A vida a dois com a amiga não durou muito tempo, pois os conflitos começaram a chegar logo; eu comecei a me sentir a empregada dela, porque ela ganhava mais do que eu, apesar de ainda estar cursando o ensino médio, mas trabalhava em dois horários, logo, ganhava pelos dois. E eu acabava contribuindo bem
108
menos, na compra da alimentação, visto que as despesas com energia, água e aluguel eram divididas em partes iguais. E todo serviço doméstico acabava sobrando para mim, sobretudo nos fins de semana. Então, não deu certo, a relação começou a ficar insustentável, e eu resolvi procurar um lugar para morar sozinha, mesmo porque tinha o desejo de que minhas irmãs passassem o fim de semana comigo, e lá não era possível, devido o espaço ser pequeno para muitas pessoas. (Pesquisa de campo, 2012).
E talvez por ironia do destino, Apurinã sai da CMM no mesmo período em
que suas irmãs Potyra e Jassy iniciam a vida de abrigadas, pois elas são retiradas
do convívio com a mãe por causa de abuso sexual sofrido por Potyra.
Potyra revelou à minha tia, que o marido da minha mãe, meu padrasto, a aliciava há mais de um ano. Isso gerou um caos, pois eu fiquei revoltadíssima, sobretudo porque minha mãe não acreditava na minha irmã e porque eu sempre desconfiei dele, e sempre disse à minha mãe, mas ela nunca me dava ouvidos e sempre o defendia, me acusando de estar com ciúmes dela. A partir disso, sob muita pressão que fiz, minha mãe resolveu deixá-lo, e sair de casa. Assim, minhas irmãs chegaram ao abrigo, pois corriam risco de vida. Apesar da denúncia de violência sexual não ter ocorrido de fato, pois, como o marido da minha mãe sabia que ela cumpria condicional, e que estava com nome falso, tinha medo de que ele contasse à polícia o fato, então, minha mãe seria presa novamente, agora por uma preventiva que tinha em seu nome verdadeiro e por falsidade ideológica. E eu, na época, a entendi, mesmo preferindo que ela denunciasse, e mesmo que corresse o risco de voltar à prisão. O que importava para mim naquele momento era saber que o que minha irmã sofreu não iria ficar impune, o que não aconteceu. Então, as duas, Potyra e Jassy, foram morar no abrigo, no período em que eu estava de saída, que contradição, a vida! (Pesquisa de campo, 2012).
Apurinã já trabalhava como auxiliar administrativo na própria CMM (com
CTPS assinada), no turno matutino, e no turno vespertino cursava Ciências Sociais
na Ufam e Serviço Social, no Centro Universitário do Norte (Uninorte) (universidade
privada), no turno noturno. Porém, conciliar trabalho e estudo não foi fácil e ela não
aguentou um ano nesse pique, então desistiu da Ufam, e passou a estudar à tarde
no Uninorte.
Contundo, antes de sair da federal, no dia 26 de março de 2008, dia do seu
aniversário de 19 anos, ela conheceu um professor (E), que faria parte da vida dela
futuramente.
109
Eu pedia nas minhas orações, que o homem da minha vida, eu queria encontrar na universidade, então eu conheci o (E) na Ufam no dia do meu aniversario de 19 anos. sempre tive aquela coisa de menina, príncipe encantado, etc., fiquei toda mexida, trocamos telefones e nos encontramos depois. (Pesquisa de campo, 2012).
Nesse mesmo período, a vida começa a exigir mais ainda, de Apurinã, e ela
vai percebendo a cada dia que não era fácil ser adulta e responsável por diversas
situações, pois, quando se tem com quem dividir as questões cotidianas, as coisas
parecem mais simples, ou apenas podemos sentir segurança, e assim, em cada dia
de gente grande, a moça sentia as novas agruras da vida, e o peso da
responsabilidade com ela e com as irmãs.
Em meados de 2008, fui morar sozinha e, nesse mesmo período, minha irmã foi internada com urgência por suspeita de tuberculose, e então começou o pior momento da minha vida. Foi uma mistura de tudo, fragilidade emocional, crise com minha melhor amiga, relação com as irmãs da CMM fragilizada, carência de recursos financeiros para a vida agora sozinha, minha outra irmã que estava no abrigo em depressão, nossa! foi um turbilhão de dificuldades. E naquele momento a única pessoa que estava comigo, dando apoio, segurança, conforto era o (E). Minha irmã Potyra, na época com 16 anos, ficou internada até o fim de maio, e quando saiu do hospital precisava de cuidados especiais, pois estava realmente com tuberculose, logo, não podia voltar ao ambiente do abrigo, visto que lá não tinha possibilidades de ter um acompanhamento exclusivo, e as condições de ventilação e higiene nos quartos das meninas não eram o ideal para a sua recuperação e tratamento. Assim, eu solicitei das irmãs que ela fosse morar comigo, diante dos cuidados que ela precisava. Você deve estar se perguntando e a mãe de vocês nessa história? (Pesquisa de campo, 2012).
Apurinã continuou fazendo Serviço Social no Uninorte, e já tinha certa
proximidade com a mãe, mas ainda morava de aluguel. Começou a namorar o
professor, e se encantava a cada dia com ele. Apurinã via nessa relação muitas
possibilidades, e sonhava em construir com ele uma família.
Ele é um homem inteligente que ela sempre sonhou, logo descobre que ele
seria o homem da sua vida. Esse novo namorado renovava suas esperanças de
mulher e suas necessidades de carinho atenção e amor.
Com 16 anos eu já queria ser mãe, eu achava lindo, queria dar carinho, mesmo não tendo recebido carinho, viver o processo de gravidez, então, eu achava lindo. Então com dois anos de relacionamento com o (E), eu resolvi ser mãe e o (E) tinha que ser o
110
pai do meu filho, na verdade, a imaturidade me fez apressar esse processo, eu ainda não me sinto adulta, então, ser mãe para mim era como eu criei as minhas irmãs, só eu sei o que passei para concluir a faculdade de resguardo. (Pesquisa de campo, 2012).
Depois de um tempo com o professor, e muito apaixonada, Apurinã resolve
ser mãe e acredita que o (E) é o homem de sua vida, e o homem ideal para ser o pai
de seu filho. E, no último ano da faculdade, ela engravida, junto com a gravidez
também surgem várias decepções com o namorado.
Contudo, a vida lhe apresenta outro desafio, pois sua irmã do meio, Potyra,
recebeu o diagnóstico de doença muito grave e sem cura, Poliangeite
microscopica29 e, por causa da doença, a moça passa a receber o Benefício de
Prestação Continuada (BPC). E Apurinã lamenta a falta de apoio da mãe, e a falta
de uma família. Afirma, com muita tristeza:
A minha mãe é a grande decepção da minha vida, eu já fui apaixonada pela minha mãe, mas agora não, eu entendo que ela também é vitima, mas não quero contato com ela, ela não se comporta como mãe, não cuida das filhas. Não tem uma presença, não tem apoio, eu tentei fortalecer esse vínculo mas não deu certo e eu abri mão da minha mãe. Sabe qual é a minha dificuldade de trabalhar com todos os problemas que eu tenho? É que eu não tenho com quem contar. Mesmo assim eu tenho o sonho de conhecer meu pai, eu queria ter o nome do meu pai, a minha mãe não sabe o nome do meu pai. Eu não tenho noticia dele, eu queria muito dar um avó para o meu filho, porque eu não tive. (Pesquisa de campo, 2012).
3.7 A Vida Depois da Graduação
Hoje, Apurinã está com 23 anos, é graduada em Serviço Social, mora com o
filho de um ano de idade, ainda trabalha como auxiliar administrativo na CMM e
aufere R$ 700,00 por mês. Não tem casa própria, mora de aluguel e paga R$ 500,00
por mês. Ela também conta com a ajuda do pai da criança.
29
É uma forma de vasculite sistêmica de pequenos vasos, associada aos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, que preferencialmente acomete vênulas, capilares e arteríolas, e que pode, entretanto, envolver artérias e veias. Está entre as vasculites sistêmicas primárias de pequenos vasos mais frequentes, e pode ter apresentação clínica indistinguível da granulomatose de Wegener e da síndrome de Churg-Strauss. Estas vasculites de pequenos vasos são histologicamente semelhantes e podem ser diferenciadas pela presença de granulomas na granulomatose de Wegener, ou de quadro clínico-funcional de asma na síndrome de Churg Strauss. (Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo>. Acesso em: 20 abr. 2012).
111
Ela tem dificuldade de trabalhar com um filho pequeno; como é muito bem
quista na CMM, atualmente leva o filho para o trabalho. Diante dessa realidade de
pura sobrevivência, ela destaca que ainda passa por necessidades econômicas,
principalmente.
Como, infelizmente, qualificação profissional não é garantia de um emprego
que possa mudar a situação de pobreza, é como assistente social que ela abre, com
muita tristeza e emoção, o seu coração ferido:
Eu estou em crise com a profissão, na realidade não é com a profissão em si, é com a conjuntura, eu tenho muito fé que as coisas vão chegar na minha vida, a crise é porque se tu não tem um sobrenome, se não faz parte de grupos, você não consegue emprego, eu sei de colegas, que colaram a faculdade inteira, eu conheço tanta gente nessa cidade, mas não quero me vender, eu não tenho coragem de trair o que eu acredito e por isso eu não consigo emprego. Eu pedi minhas contas da CMM, porque eu preciso cuidar do meu filho da minha irmã, mesmo agora, depois de formada, eu passo necessidades. E isso para mim dói muito, lá foi a minha casa, e hoje eu não me sinto valorizada por ela. Sabe, quando a irmã me apresenta como ex-abrigada e diz que agora sou assistente social, eu me sinto um troféu, por que eu fui um projeto que deu certo, a casa ganhou muito dinheiro às minhas custas, eu fui a primeira abrigada a concluir a faculdade, na verdade, para mim, isso é muito triste. (Pesquisa de campo, 2012).
Apurinã tenta sobreviver e contornar a relação complicada com o pai do
seu filho pois, em quatro anos de relacionamento, ele já a fez sofrer muito, porém,
mesmo ela sabendo dos defeitos dele, não consegue deixar de amá-lo, no fundo,
acredita que vai chegar o momento da grande mudança; ela já se separou várias
vezes e voltou novamente. Ele tem outros relacionamentos, filhos e histórico de
várias mulheres, mesmo assim é o amor da vida dela.
E, diante de mais uma fase difícil, ela fala da fé, acredita que Deus vai olhar
por ela, que vai chegar a hora, e emocionada ela fala orgulhosa de ter lutado muito:
Só vejo uma esperança: passar num concurso público, preciso acreditar que tudo tem seu tempo, pois eu passaria por tudo novamente para poder estudar, hoje eu vejo no rosto das minhas irmã e primas o orgulho que elas têm de mim, por ter concluído a faculdade, vejo a esperanças nas pessoas, e isso para mim vale a pena. (Pesquisa de campo, 2012).
112
Esse orgulho talvez só seja realmente compreendido por quem teve que
passar por tantas dificuldades para ter acesso ao direito à educação, acreditar que a
educação é a chave para um mundo melhor pode não ser óbvio, o que não está
posto para alguém que vivenciou a ausência real de garantias de direitos.
Potyra,atualmente, está com 20 anos de idade, é beneficiária do BPC por
causa da doença diagnosticada, é uma moça introspectiva e que não quer nenhum
tipo de relacionamento com sua mãe. Conviveu algum tempo com Apurinã, mas
recentemente resolveu morar com um companheiro. Ela ainda não terminou o
ensino médio e, além das marcas e lembranças da vida de risco e desproteção,
convive com a certeza da doença incurável.
Jassy está com 17 anos de idade, é mãe de um menino de dois anos e
reside com seu companheiro. Ainda não concluiu o ensino fundamental. Mesmo
diante da luta vivenciada, ela é uma menina alegre e amorosa, guarda poucas
lembranças da infância e, talvez por isso, não demonstra sofrimento e/ ou raiva da
mãe.
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4 CONSIDERAÇOES FINAIS: O ENTRECRUZAR DAS HISTÓRIAS
O real não está na saída nem na chegada,
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia
(Guimarães Rosa)
Por meio do estudo realizado a partir das narrativas apresentadas neste
trabalho, foi possível constatar que a história é contada muitas vezes pelo
colonizador, restando ao colonizado o estigma do pobre acomodado ou do
preguiçoso que não quer trabalhar para mudar suas condições de vida. Diante desse
cenário permeado de injustiças sociais que se constrói a história de milhares de
pessoas que lutam cotidianamente para validar o direito e o acesso à proteção
social, à equidade e à parte que lhes foi bruscamente retirada deste “latifúndio”.
Em um contexto de desigualdades sociais é que essas histórias reais,
relatadas neste trabalho, entrecruzaram-se e desenvolveram-se, num processo
distinto e ao mesmo tempo semelhante, quanto à necessidade de acesso à proteção
social.
É na realidade da pobreza e de abandono que as duas mulheres
apresentadas neste trabalho traçaram seus caminhos, resistindo para romper com a
violência e com a falta de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado.
Assim, ao falar em proteção social, no contexto brasileiro, é relevante resgatar as
impressões de quem dela necessita e a conjuntura que a desenvolve, no bojo da
sociedade capitalista.
Mediante os relatos apresentados, observa-se como os sujeitos em situação
de pobreza se posicionam na sociedade e nos convidam a refletir a respeito da
relação com o Estado. Apresenta-se a riqueza do ser genérico e o acúmulo de
experiências da vida real, coberta de significados e de meandros que constroem as
relações sociais, bem como a violência da pobreza e da falta de oportunidades,
diante de uma realidade social excludente.
As marcas somadas durante toda uma vida permeada de riscos sociais é
uma realidade frequente para as crianças pobres, que podem ser obrigadas a perder
o convívio familiar, por causa de um processo de violência e maus-tratos, que é
evidente na realidade brasileira.
114
A primeira mulher que dá vida a esta história relata momentos de muitas
dificuldades e abandono, durante todo a sua infância e adolescência. A vida
expressada pelos sujeitos deve ser observada para compreender e materializar
estratégias de atenção às crianças e aos adolescentes e à família como um todo,
para efetivar a proteção social e a assistência social, visando ao fortalecimento e à
manutenção dos vínculos familiares, para possibilitar a cidadania e a justiça social.
A pobreza e desproteção social que afeta a família imprime novos desafios,
condiciona a vida e os vínculos familiares; estes, fragilizados, se rompem
bruscamente, força o abandono dos seus membros, mediante as condições de
sobrevivência. Ser criança, nessas condições, é realizar as tarefas de casa, é
trabalhar para o sustento do grupo familiar. É o amadurecimento precoce, é o
aviltamento da infância, e essas condições prevalecem, em detrimento da
importância da escola, da saúde, ou até mesmo da afetividade familiar de seus
membros.
São realidades como essas que revelam a inoperância do Estado e a
segmentação imposta pela sociedade capitalista, que exclui parcela da população,
do usufruto de bens e serviços, assim como do direito ao reconhecimento de sua
própria condição, numa realidade crescente de carência que se constituem em
desafios para o sistema de proteção social brasileiro.
O contexto da constituição das leis de proteção social no Brasil e as tensões
que movimentam a realidade, podem ser relatados de várias formas e diferentes
perspectivas. Porém, é imprescindível levar em consideração a visão dos sujeitos
que compõem essa história, os quais tendem a ser elencados de forma genérica e
suas experiências são esquecidas ou esvaziadas de significados.
Para tanto, é fundamental atentar para as especificidades locais, pois as
diferenças regionais não podem ser suprimidas de suas características específicas,
as quais estão inseridas no movimento da história e da luta dos sujeitos nas suas
particularidades cotidianas que constituem o Brasil e seus “brasis”.
Dentre esses brasis, cita-se o Estado do Amazonas e sua capital, Manaus,
que, mesmo estando distante das grandes regiões desenvolvidas do País, sofre as
influências dos contextos social, econômico, cultural e histórico nacional e apresenta
um desenvolvimento repleto de desigualdades sociais e de concentração de renda.
Diante do exposto, verifica-se que o texto da CF de 1988 garante o modelo
de proteção social não contributiva, que tem por eixo principal a proteção integral às
115
famílias, isto é, o reforço para que elas exerçam a proteção de seus membros
(SPOSATI, 2009, p.50). Contudo, a partir da década de 1990, as estratégias
neoliberais de um Estado mínimo, principalmente no trato das políticas sociais, vão
direcionar a proteção social no Brasil.
Essa realidade apresenta baixos investimentos no social, mais focalização e
menos universalização dos direitos, desconsiderando, assim, a supremacia dos
direitos sociais em detrimento do econômico. Essa lógica determina a pontualidade
das políticas de atendimento às famílias, incentiva o trabalho voluntário e a
responsabilidade do indivíduo pelo seu bem-estar, e, com isso, a lógica do esforço
pessoal.
A segurança, a proteção à maternidade e à infância são garantias da CF de
1988, em seu art. 6o, e nessa perspectiva é imprescindível que a intervenção estatal
esteja conectada com a territorialidade, para que a pobreza e a desigualdade social
não sejam naturalizadas, e incorpore concretude de condições de acesso como dois
elementos imbricados mutuamente (KOGA, 2011, p.16).
Esse movimento possibilita o estabelecimento de parâmetros de
questionamentos a respeito da política social desenvolvida e suas características
históricas, que podem simplesmente não comportar a realidade complexa da
população empobrecida e em situação de risco social, não efetivando, dessa forma,
a segurança social.
É necessário, também, romper definitivamente com o estigma histórico que
coloca a proteção social no campo da compaixão, do amor ao próximo. Pois o
modelo de proteção social assegurada na CF de 1988, não é continuísmo de velhas
práticas assistencialistas ou de modelo de gestão tecnocratas (SPOSATI, 2007, p.
20). Concretizando-a como direito do cidadão, incidindo em mudanças concretas
que efetivem o dever do Estado na proteção à família.
Os direitos da criança e da família pobre, no Brasil, passam por avanços
significativos, porém, o desrespeito que marcou a vida dessas mulheres ficará para
sempre. A memória estará viva e as marcas estarão sempre presentes, mesmo que
sua condição social hoje seja outra, ninguém esquece tanta violência sofrida. Além
da violência e da pobreza, existiu a violência do abandono, do desrespeito, e
mutilação da infância, da adolescência.
Esses relatos são claros e enfáticos a respeito da necessidade da proteção
social. E, de acordo com Sposati (2007, p. 442), há necessidade de criminalização
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da pobreza, pois a condição de ser pobre não gera direitos. Toda a história
demonstra que o sofrimento poderia ser amenizado.
Assim, as marcas são profundas e a história é rica de detalhes que
dispensam qualquer análise, pois, chegar a qualquer lugar, em uma realidade de
abandono, é basicamente improvável. Mas, diante do improvável, essa história
mostra a urgência da efetivação da proteção social, como garantia de cidadania, da
equidade, e do desenvolvimento humano.
A proteção ao trabalho é imperativo para que as famílias consigam preservar
sua autonomia e garantir a própria subsistência. Deve buscar formas para priorizar o
atendimento de qualidade aos sujeitos, garantir o acesso e criar condições para que
os cidadãos ampliem sua resiliência (SPOSATI, 1998 p.26).
Todavia, é diante do reconhecimento dos problemas estruturais da
sociedade brasileira e do debate sobre a efetividade do sistema de proteção social,
que as diferentes correntes de pensamentos destacam a inoperância do sistema no
enfrentamento da pobreza e da desigualdade.
Contudo, a vida das duas mulheres, que têm suas histórias relatadas neste
trabalho, explicita a importância da proteção social; principalmente a história de
Apurinã. Mesmo que as garantias constitucionais efetivadas nesse contexto não
tenham conseguido prevenir uma realidade de sofrimento, abandono, exploração do
trabalho e violência, pois é possível constatar o retardo e a perspectiva do extremo
para que o direito e a dignidade humana fossem protegidos de acordo com os
dispositivos constitucionais.
Isso posto, é importante elencar que, para garantir os direitos sociais, não
basta apenas o reconhecimento em lei, este é apenas o primeiro passo; dessa
forma, é imprescindível a materialização do direito sob o reconhecimento do sujeito,
da igualdade e da autonomia e da vida ativa, nos territórios, local onde se
concretizam as relações sociais. (KOGA, 2011, p.33).
E, assim, serviços que atendam às demandas, de acordo com suas
respectivas necessidades. Para Jaccoud (2009, p. 69), é justamente pela via do
direito social que a proteção social se torna efetiva, reduzindo vulnerabilidades e,
incertezas, igualando oportunidades e enfrentando as desigualdades.
Em suma, é importante lembrar que a pobreza não é um problema individual,
ou apenas a carência de renda, mas, é advinda de problemas estruturais da
sociedade capitalista que determina o lugar do sujeito. A pobreza deve ser
117
combatida com políticas articuladas, com garantias de oportunidade, de acesso a
bens e serviços, ao direito e empregos, mecanismos para ampliar a capacidade
protetiva dos sujeitos e a equidade, para que velhas praticas não permaneçam em
novas configurações.
Fundamentos que inovaram a concepção de direitos sociais e elaboram o
conceito de seguridade social, superando o antigo padrão de proteção social e com
“novas concepções de direito e justiça social” (JACCOUD, 2009, p.62, apud
DRAIBE, 2002, p. 3). Diante dessa nova concepção, a proteção social pública seria
direcionada contra as privações, sejam elas decorrentes de riscos sociais ou de
situações socioeconômicas, ampliando a responsabilidade pública. Concretizando o
tripé da seguridade social.
E assim, somos convidados a refletir a respeito das inúmeras categorias que
poderiam aqui ser trabalhadas, para aprofundar o estudo, porém, não teríamos
tempo para essa análise no período de um mestrado, nos colocando a possibilidade
de aprofundamento futuro no doutorado.
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