POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO ESPECIAL PÓS 1994: ALGUNS
APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO DE SURDEZ1
Raquel Elizabeth Saes Quiles Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Este artigo tem a intenção de apresentar algumas reflexões sobre o conceito de surdez
delineado nos documentos oficiais e legislações produzidos a partir de 1994. Para tanto,
apresenta-se num primeiro momento o contexto político e estrutural dos anos 1990, visando
reunir subsídios para discutir o conceito de surdez delineado nas políticas públicas a partir
dessa década. Permeando toda essa discussão, busca-se olhar para a história da educação dos
sujeitos surdos, pois é a história que fornecerá possibilidades de entendimento da
configuração das políticas atuais propostas para esses sujeitos.
Para iniciar uma discussão de políticas públicas, faz-se necessário esclarecer algumas
questões que permeiam esse campo de estudo. Primeiramente, entende-se por política pública
uma ação do Estado, que se materializa através das administrações governamentais. Mas
ressalta-se que isso não significa que a proposta legal se implementa da forma como é
pensada, pois as práticas construídas a partir das políticas públicas envolvem o contexto
histórico de cada momento. Dessa forma, importa ressaltar que o resultado final de uma
legislação constrói-se num movimento dialético em que as relações sociais, econômicas e
políticas estão presentes e são determinantes. Esclarece-se também que como uma política
social2, a política educacional é, consequentemente, o Estado em ação.
Hofling (2001) observa que políticas públicas referem-se ao “Estado implantando um
projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da
sociedade” (p. 31). Essa mesma autora ainda destaca que políticas públicas são as de
responsabilidade do Estado, todavia, não podem ser reduzidas a políticas estatais, pois a sua
implementação depende de um processo de tomada de decisões que envolvem órgãos
públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade.
Optou-se por estudar as políticas públicas na área da Educação Especial por ser de
fundamental importância para as pesquisas em Educação, já que é a política pública que
orienta o ensino das pessoas com necessidades educacionais especiais3.
Dentre as inúmeras possibilidades de estudo no campo da Educação Especial,
escolheu-se pensar sobre a pessoa surda, por ser uma discussão atual devido aos movimentos
de grupos de surdos ou pessoas ligadas a eles, na luta pela conquista de direitos legais e
2
reconhecimento, principalmente no que se refere à utilização de uma Língua específica
(Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS).
Quanto ao recorte temporal, optou-se pela década de 1990 por ser um momento
histórico em que ocorrem no país diversas reformas, inclusive educacionais. O ano de 1994
foi escolhido como “divisor do tempo” por ser o ano em que se publica no Brasil a Política
Nacional de Educação Especial, documento considerado relevante para as posteriores Leis e
documentos.
1.1 Contextualizando o objeto de estudo
As últimas décadas do século XX e o início do século XXI vêm marcados por
profundas mudanças no campo econômico, sociocultural, ético-político, ideológico e teórico.
Essas mudanças são nominadas de várias formas: internacionalização do capital, globalização,
mundialização, dentre outras. São evidentes principalmente a partir do início dos anos 1970,
quando o discurso liberalizante ataca o Estado intervencionista. Inicia-se um novo momento,
cunhado neoliberalismo4, que propõe um Estado Mínimo e se torna a expressão de um
processo de mudanças no sistema capitalista, que se visualizam principalmente nos anos
1980.
Segundo Soares (2002), as transformações estruturais causadas pelo neoliberalismo
são essencialmente: informalidade no trabalho, desemprego, desproteção trabalhista e,
consequentemente, uma “nova” pobreza. A reprodução do capital continua acontecendo,
todavia, a partir de um novo modelo social de acumulação5. Para o fortalecimento dessa nova
ideologia, alguns ajustes precisam ser feitos, dentre eles, no papel do Estado.
Evidencia-se assim uma nova concepção de Estado ou uma nova “roupagem”, porém,
os interesses da classe que detém o poder, ou seja, da classe capitalista, permanecem, pois
acredita-se que essa nova concepção seja apenas uma forma de reorganizar o capitalismo6.
Destaca-se que especialmente no Brasil, nos anos 1990, os interesses do mercado
passam a ser centrais para o Estado. Segundo Moraes (2002):
O neoliberalismo econômico acentua a supremacia do mercado como mecanismo de alocação de recursos, distribuição de bens, serviços e rendas, remunerador dos empenhos e engenhos, inclusive. Nesse imaginário, o mercado é matriz da riqueza, da eficiência e da justiça (p. 15).
3
Essa análise é de fundamental importância para o entendimento dos acontecimentos
históricos dos anos 1990, pelas importantes alterações na configuração e padrões de
intervenção estatal. Tumulo (2002) esclarece sobre essa intervenção ao colocar que:
A necessidade de uma maciça e crescente intervenção do Estado na economia, bem como a utilização também ascendente de recursos para realização de suas outras funções precípuas, inclusive as de coerção e repressão, vêm obrigando o Estado a se desvencilhar de tarefas que a ele foram atribuídas por razões históricas-políticas, a saber, as chamadas políticas sociais – educação, saúde, previdência e seguridade social, etc. Trata-se da constituição daquilo que vem sendo denominado de “Estado mínimo”. Contudo, é preciso salientar que este é apenas um dos “lados da moeda”, já que o “outro lado” expressa o “Estado máximo”, ou seja, ele é “mínimo e máximo” ao mesmo tempo. Para ser “máximo” na sua função determinante de salvaguardar a reprodução do capital no seu movimento contraditório, o Estado vê-se obrigado a ser “mínimo” no atendimento às políticas sociais (p. 172-173).
Parece que o capitalismo vive nos anos 1990 uma crise estrutural e, para superar essa
crise, se utiliza mais fortemente de sua ideologia para se fortalecer e se manter, pois para que
o Estado seja mínimo para o social e máximo para o capital, é preciso pautar-se por uma
ideologia que lhe dê subsídios e alicerces7.
Segundo Peroni (2003), “a lógica do pensamento neoliberal está na tensão entre a
liberdade individual e a democracia”. Ao se propor um Estado mínimo discute-se a definição
do “tamanho” do Estado. Com base nessa nova tendência mundial, o Brasil passa então, na
década de 1990, por intensas reformas, pois:
A crítica ao Estado intervencionista, efetivada pelos partidários do neoliberalismo, e a busca de minimização da atuação do Estado no tocante às políticas sociais, pela redução ou desmonte das políticas de proteção, são prescritas como caminho para a retomada do desenvolvimento econômico por meio da reforma do Estado (DOURADO, 2002, p. 236).
Especificamente no campo educacional, os anos 1990 foram marcados por reformas8
em todos os âmbitos do sistema de ensino. Essas reformas trazem, em seus discursos, como
referência, a preocupação com a eqüidade social e educação para todos. Destaca-se, todavia,
que as políticas educacionais nesse momento são subordinadas aos organismos internacionais,
gestores da mundialização do capital.
Ou seja, os anos 1990 foram marcados por um movimento em prol da valorização da
educação e sua universalidade9. Mas para entender essa discussão emblemática no sistema de
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ensino, é necessário perceber como essa construção se deu historicamente. Ou seja, para uma
análise crítica da educação, importa pensá-la na perspectiva da sociedade atual, ou seja, a
sociedade capitalista.
Segundo Junior (2002), o contexto de mundialização da economia que justificou a
necessidade de profundas mudanças nas estruturas sociais, portanto, de uma nova forma de
politização da sociedade (reformas políticas e do Estado), configurou-se na formação de um
novo ser social. É exatamente neste aspecto que a educação se torna essencial e, desse prisma,
tem para si igual demanda, ou seja, profundas mudanças (reformas educacionais).
Assim, pensando que o projeto educacional não pode ser entendido de forma
dissociada e/ou desvinculada do projeto de sociedade (e nesse caso, a sociedade capitalista),
faz-se primordial entender a relação entre educação e economia. Pensando sobre essa relação,
Oliveira (2003) afirma que:
A responsabilização dos trabalhadores pela sua inserção no processo produtivo constitui-se característica notável do atual debate sobre educação e empregabilidade. Constatar que isso não é novidade somente confirma uma regra básica do capitalismo que é deixar a cargo dos próprios trabalhadores a luta pela reprodução da força de trabalho e, nesse sentido, a educação é condição indispensável (p. 69-70).
Essas mudanças no campo educacional foram orientadas por encontros e eventos,
organizados pelos organismos internacionais. Um deles merece destaque: trata-se da
Conferência Mundial de Educação para Todos, ocorrida em Jontiem, Tailândia, em 1990. A
Conferência propõe maior eqüidade social nos países mais pobres e populosos do mundo. É,
sem dúvida, um grande marco nas reformas educacionais durante essa década.
Alerta Oliveira (2003), que o conceito de eqüidade10 social, da forma como aparece
nos estudos produzidos pelos organismos internacionais, sugere a possibilidade de estender
certos benefícios obtidos por alguns grupos sociais à totalidade das populações, sem, contudo,
ampliar na mesma proporção as despesas públicas para esse fim. Nesse sentido, “educação
com eqüidade implica oferecer o mínimo de instrução indispensável às populações para sua
inserção na sociedade atual” (p.74). Ou seja, a educação é estendida a todos, mas o gasto
público continua o mesmo. Isso significa, conseqüentemente, a minimização do conceito de
Educação Básica, sendo configurado como o mínimo de escolaridade oferecida pelo poder
público, com o objetivo de apenas transmitir códigos indispensáveis à vida moderna11.
5
A preocupação econômica estará resguardada, pois oferecer educação básica às populações implica em possibilitar a formação de força de trabalho apta ao mercado [...] As exigências de perfil profissional mais flexível e adaptável recaem sobre uma formação calcada não mais em saberes específicos, mas em novos modelos de competência (OLIVEIRA, 2003, p. 75).
Conforme Barroso (2005), assiste-se a tentativa de:
[...] criar mercados (ou quase mercados) educativos transformando a idéia do “serviço público” em “serviços para clientes”, onde o “bem comum educativo” para todos é substituído por “bens” diversos, desigualmente acessíveis. [...] O objetivo central já não é adequar a educação e o emprego, mas articular o ”mercado da educação” com o “mercado do emprego”, nem que para isso seja necessário criar um “mercado dos excluídos” (p. 742).
De forma resumida, Oliveira (2003) apresenta a educação que se configura nesse
momento no país:
A educação básica, entendida como um mínimo de escolaridade a ser oferecido pelo poder público, pode estar a serviço de contribuir na gestão do trabalho e da pobreza nos dias atuais. As orientações para as reformas educacionais dos anos 90 resguardam a possibilidade de continuar a formar força de trabalho apta às demandas do setor produtivo, e no lugar da igualdade de direitos oferecem a eqüidade social, entendida como a capacidade de estender para todos o que se gastava só com alguns (p. 73).
Na verdade, o que se vive, a partir da lógica neoliberal12, é uma transferência para o
aluno da responsabilidade pela sua própria aprendizagem13. Todavia, não é considerado, como
alerta Freitas (2002), que “os alunos não chegam à escola em condições de igualdade em
relação às oportunidades que tiveram” (p. 320).
Mas, ao saírem da escola, devem estar preparados para lutarem individualmente por
um espaço na sociedade, a partir de seus méritos individuais. É o que destaca Hofling (2001),
ao dizer:
[...] os neoliberais postulam para a política educacional ações do Estado descentralizadas, articuladas com a iniciativa privada, a fim de preservar a possibilidade de cada um se colocar, de acordo com seus próprios méritos e possibilidades, em seu lugar adequado na estrutura social (p. 38).
Em síntese, pode-se afirmar que a política educacional dos anos 1990 se situa no
contexto da redefinição do papel do Estado, que como já exposto, ocorre principalmente
6
porque no processo de globalização14, os Estados Nacionais precisam se fortalecer para atuar
na correlação de forças internacionais.
Dessa forma, na esfera educacional, que sofre as tensões da sociedade capitalista e de
suas crises, vive-se neste momento histórico uma disputa entre o ajuste dos sistemas
educacionais às demandas da nova ordem do capital e as demandas por uma efetiva
democratização do acesso ao conhecimento em todos os níveis. Para tanto, registra-se a
presença dos organismos internacionais, marcados por grandes eventos, assessorias técnicas e
farta produção documental.
É nesse cenário nacional que se aprova a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional), em 1996, que tem por finalidade “desenvolver o educando, assegurando-lhe a
formação comum indispensável para o exercício da cidadania, e fornecer-lhe meios para
progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Artigo 22).
Destaca-se que o processo de tramitação do Projeto de Lei demonstrou que os
interesses do governo não estavam sintonizados com as solicitações da sociedade organizada,
como tão bem demonstra Saviani (1997). Na verdade, conforme destacam Frigotto e Ciavatta
(2003), o pensamento dos educadores e sua proposta de LDB não eram compatíveis com a
ideologia e com as políticas do ajuste. Dessa forma, ao final do longo processo de negociação,
foi aprovada uma LDB minimalista, e portanto, em consonância com a proposta de
desregulamentação, de descentralização e de privatização, compatível com o Estado
Mínimo15.
Outro exemplo claro das contradições e disputas promovidas pela força exercida pelo
capital é o Plano Nacional de Educação, aprovado em 2001, pois o Plano aprovado é uma
resposta autocrática do Governo FHC (Fernando Henrique Cardoso) ao Plano Nacional da
Educação da sociedade brasileira, elaborado sob liderança do Fórum Nacional em Defesa da
Escola Pública, pois “o projeto da sociedade brasileira reivindicava e continua a reivindicar o
fortalecimento da escola pública estatal e a democratização da gestão educacional”
(FRIGOTTO e CIAVATTA, 2003, p. 113).
Conforme Junior (2002), o Plano Nacional da sociedade brasileira se sustentava em
dois grandes eixos: a ampliação da ação do Estado na escola pública e a efetivação da gestão
democrática da educação e da escola. Já o Plano aprovado, parece adaptar, em linhas gerais,
as orientações para educação produzidas pelos assessores do Banco Mundial.
Percebe-se, então, que as tensões desse “jogo de poder” entre governo e sociedade vão
refletir diretamente na elaboração das políticas públicas. O fato é que as mesmas acabam
sendo gestadas pela lógica do mercado, dando à educação, por exemplo, um teor
7
mercantilista. Na década de 1990, as políticas públicas são marcadas por um caráter
descentralizador.
Frigotto e Ciavatta (2003) esclarecem que:
A ausência de uma efetiva política pública, com investimentos no campo educacional compatíveis com o que representa o Brasil em termos de geração de riqueza, vai conduzindo a medidas paliativas que reiteram o desmantelamento da educação pública em todos os seus níveis. [...] Trata-se de uma perspectiva pedagógica do momento é individualista, dualista e fragmentária, coerente com o ideário da desregulamentação, flexibilização e privatização e com o desmonte dos direitos sociais ordenados por uma perspectiva de compromisso social coletivo (p. 108).
Enfim, para sintetizar, pode-se dizer que:
[...] a universalização do capitalismo trouxe a novidade da internacionalização do capital produtivo, o que impôs um novo paradigma estrutural, organizacional e de gestão para as grandes corporações, bem como, no plano macroeconômico, induziu o movimento de fusões corporativas como temos observado. Por outro lado, isso impôs um novo metabolismo social cuja racionalidade é a penetração do capital em quase todas as esferas, especialmente aquelas que outrora eram de natureza pública, movimento que se iniciou pela própria reforma do Estado, que passa a gerir novas reformas, incluindo aí as educacionais, com o objetivo de iniciar e consolidar as mudanças sociais nesse novo estágio do capitalismo (JUNIOR, 2002, p. 220).
Percebe-se que sempre que o capitalismo passa por mudanças e se configura de
maneiras diferentes, faz-se necessário buscar alternativas que o consolide, para que possa
continuar se mantendo vigente. Parece que a educação é um foco fundamental para a
reprodução do capital. É o que reflete Freitas (2002):
O sistema capitalista prevê que, ao precarizar as condições de trabalho cada vez mais, ao intensificar o processo de exploração (relativa e absoluta), ele vai gerar tensões sociais que precisam ser monitoradas e amenizadas para não comprometer o próprio processo de acumulação do capital. A educação tem um lugar entre as condições facilitadoras da reprodução do capital e um papel a cumprir (p. 312).
Na verdade, trata-se de relações de poder, que envolvem a luta de classes. Entendendo
a política educacional como uma política pública social desenvolvida pelo Estado, não há
como desvinculá-la das contradições e tensões da sociedade capitalista.
8
1.2 Sobre a educação dos surdos nos anos 1990: alguns aspectos relevantes
Para discutir a educação de surdos nos anos 1990, é preciso refletir sobre o movimento
da inclusão. Muitas são as proposições em torno desse assunto, tanto no que se refere aos
aspectos teóricos do termo quanto aos aspectos relacionados à sua implementação, ou seja, na
busca por uma escola inclusiva.
Não se aterá nesse momento à explicitação dos divergentes pontos de vista sobre essa
questão. Todavia, entende-se ser necessário esclarecer qual o posicionamento que tem se
assumido diante desse debate.
Tem-se entendido a inclusão, com base na proposta teórico-metodológica escolhida, a
partir do seu contrário: a exclusão. Ou seja, se as pessoas com necessidades especiais foram
num determinado momento histórico “incluídas” no sistema regular de ensino é porque
obviamente elas estavam excluídas até então. Mas não se pode fazer uma análise dessa
exclusão apenas pelo viés da “deficiência” ou incapacidade rotulada nesses sujeitos
historicamente. É preciso atentar para o fato de que a exclusão faz parte da lógica do sistema
capitalista de produção, pois suas bases estão firmadas em princípios que não contemplam a
todos, apesar do discurso de “igualdade” que perpassa ideologicamente o discurso oficial. Em
outras palavras, conforme Arruda, Kassar e Santos (2006), a exclusão encontra sua inclusão
na lógica capitalista.
Santos e Paulino (2006) ressaltam que:
[...] uma sociedade sem exclusões é, para nós, um vislumbre. Inclusão e exclusão são conceitos intrinsecamente ligados, e um não pode existir sem o outro porque inclusão é, em última instância, a luta contra exclusões. Analisando desta forma podemos então afirmar que sempre existirá a luta por uma educação inclusiva. Se exclusões sempre existirão, a inclusão nunca poderá ser encarada como um fim em si mesma. Inclusão sempre é um processo (p. 12).
Além disso, a análise da inclusão a partir do indivíduo é simplista, pois se acredita que
não exista total posição de inclusão ou de exclusão. Esses lugares podem ser provisórios.
Existe sim uma sociedade que precisa da exclusão para se manter em suas bases estruturais e
usa a inclusão como um instrumento para o combate de uma exclusão que na verdade vai
continuar existindo. Ou seja, é preciso haver excluídos para incluir... todavia, a inclusão não
garante que não haverão mais excluídos, até por que isso não depende apenas da escola ou de
outros espaços sociais.
9
Sobre essa questão, Fogli, Filho e Oliveira (2006) destacam que:
[...] devemos nos preocupar com não com o termo exclusão em si, mas com os critérios e dimensões em que ela se processa. Ao aparecer como um fato, a exclusão é retirada do seu conteúdo processual, sendo vista na pessoa excluída, na conseqüência, e não na causa (p. 152).
Isto é, a exclusão deve ser pensada não a partir do excluído, mas sim, referenciando-a
ao processo que leva essa pessoa a essa condição. O que se evidencia nos anos de 1990 é que
apesar das contradições quando se pensa numa “educação inclusiva”, é esse o discurso que se
faz premente. Especificamente quanto à educação de surdos, o que se vê são políticas públicas
voltadas para a garantia do acesso e permanência desse aluno dentro das escolas regulares de
ensino, juntamente a outras crianças, surdas e ouvintes.
Sabe-se que não é possível refletir sobre a educação, inclusive de pessoas surdas, sem
se deparar com contradições. Elas sempre estiveram presentes em toda a história, pois a
escola não está “descolada” da sociedade a quem serve e essa sociedade é em si mesma
contraditória. Assim, a educação é um território de embates, de limites e de possibilidades. A
forma como se constituíram as propostas educacionais para sujeitos surdos é um exemplo
disso.
Passou-se da era do extermínio, em que não apenas os surdos, mas qualquer criança
que apresentasse alguma característica diferente da “norma” era banida com a morte do
convívio social, para a era assistencialista, no cristianismo, quando a Igreja passa a ver os
deficientes como portadores de alma, e por caridade, devem ser acolhidos e cuidados, o que
culminou no século XVIII na institucionalização, chegando à era da inclusão, momento em
que se pretende implementar uma política de matrícula de alunos com necessidades
educacionais especiais (inclusive os surdos) em salas de aulas comuns da rede de ensino.
Sabe-se que essas mudanças de perspectiva e olhares com relação à educação não
apenas dos surdos, mas de pessoas com necessidades especiais, de uma maneira geral, não se
dão por acaso. A educação se destaca como motivo de preocupação apenas nos momentos em
que ela for necessária ao fortalecimento e interesses do capital. Jannuzzi (2004) corrobora
com essa idéia ao destacar que é a história educacional que fornece elementos para o
entendimento da história da educação do deficiente, ou seja, é preciso perceber a Educação
Especial no movimento da organização social brasileira, “nas vias consideradas possíveis do
capitalismo internacional” (p. 134).
10
Por outro lado, e por se tratar de uma contradição, ao longo do tempo foram se
organizando e sustentando movimentos e grupos que passaram a lutar por seus direitos e
reivindicar mudanças significativas. Sem dúvida, essas iniciativas favoreceram as proposições
legais que foram postuladas. As políticas públicas são resultado também das manifestações de
cidadãos que se organizam por interesses comuns. Sobre essa questão, Mazzotta (2005)
coloca que:
[...] somente quando o “clima social” apresentou as condições favoráveis é que determinadas pessoas, homens ou mulheres, leigos ou profissionais, portadores de deficiência ou não, despontaram como líderes da sociedade em que viviam, para sensibilizar, impulsionar, propor, organizar medidas para o atendimento às pessoas portadoras de deficiência (p. 16-7).
E de fato, chega-se à década de 1990 com uma gama de legislações, documentos e
iniciativas governamentais na busca pela inclusão de pessoas com necessidades especiais,
dentre eles os surdos, na rede regular de ensino, a partir da prerrogativa da educação
inclusiva, afinal como salientam Corrêa e Stauffer (2006), “[...] concretizar a escola pública
como espaço inclusivo nos leva a buscar a elaboração e a concretização de políticas públicas
com este fim” (p. 126).
No Brasil, muitas dessas políticas e legislações que garantem a inclusão dos surdos nas
classes do ensino regular, têm seus pressupostos amparados na Declaração de Salamanca,
documento internacional elaborado na Espanha em 1994, que trata especificamente da
educação de vários grupos de pessoas, dentre eles, as pessoas com necessidades especiais. O
Documento aponta claramente que essas pessoas devem estar incluídas no sistema regular de
ensino.
Sobre essa questão, importa destacar uma observação apontada por Bueno (2005), que
esclarece que em nosso país ocorreu um fato muito estranho. A Declaração de Salamanca
divulgada pela SEESP (disposta no site do MEC) utiliza em todo o texto legal o termo
“inclusão”, ou “escolas inclusivas”. Todavia, no texto original da Declaração, o termo
utilizado é “integração” ou “escolas integradoras”. Segundo Bueno (2005):
Este não é um mero problema de tradução, mas uma questão conceitual e política fundamental, pois que pretende nos fazer aceitar de que a inclusão escolar é uma proposta inovadora, que nada tem a ver com o passado e que inaugura uma nova etapa na educação mundial: a educação de todos,
11
inclusive para os “portadores de necessidades educativas especiais”, na construção de uma sociedade inclusiva (p. 03).
De fato, a partir da Declaração de Salamanca, grande parte dos autores do campo da
Educação Especial passa a utilizar o termo “inclusão” como uma nova proposta para as
pessoas com necessidades educacionais especiais, isto é, como algo totalmente inovador,
como se a Declaração instaurasse um novo momento na educação de pessoas com
necessidades especiais: “uma educação inclusiva numa sociedade inclusiva”.
Sabe-se que não houve mudanças estruturais na educação, apesar do discurso
inclusivo. Ou seja, a implementação dessa escola inclusiva abarca diversas outras questões,
que não se relacionam apenas a “boas intenções”.
Ferreira e Ferreira (2004) argumentam que:
Pela égide da racionalidade neoliberal como a busca de maior eficiência na educação, menor custo e maior acesso, constitui-se uma realidade em que podemos ver as questões específicas serem secundarizadas, na perspectiva de uma escola para todos, e a educação a que as pessoas com deficiência têm direito ser reduzida ao acesso e permanência garantidos na sala de aula do ensino regular, sendo isso suficiente. Parece-nos que a política de educação inclusiva não pode ser reduzida a esta racionalidade descrita (p. 33).
Isto é, não é apenas o acesso à escola que determinará bons resultados em todo o
processo escolar. De fato, não se pode dizer que o movimento inclusivo resolveu todos os
dilemas relacionados à educação de pessoas com necessidades especiais. Todavia, percebe-se
algumas mudanças significativas nos textos legais a partir do discurso da inclusão.
Ainda em 1994, é publicada no Brasil a Política Nacional de Educação Especial, que
tem por objetivo a apresentação de uma proposta de educação que vá ao encontro aos anseios
das pessoas com necessidades especiais. Ou seja, pretende ser um norte para as ações no
campo da Educação Especial, além de propor a participação conjunta dos três níveis de
governo e da sociedade. A partir dela, muitas outras conquistas legais continuam se
efetivando. Todavia, destaca-se que esse Documento não aparece mais entre os elencados
pelo MEC como norteadores da política de Educação Especial no país.
A Educação Especial passa a ser entendida como uma modalidade de ensino, ou seja,
perpassa toda a Educação Básica. Isso é definido claramente na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), a Lei nº 9394, de 1996, que explicita que explicita que a Educação
12
Especial deve ser oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos
portadores de necessidades especiais16. Além disso, a LDB assegura que os sistemas de
ensino tenham currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos
para atender às necessidades de todos os educandos com necessidades especiais.
Em 2001, merece destaque a Resolução nº 02/2001, que institui as diretrizes nacionais
para a Educação Especial na Educação Básica. A Resolução determina que as escolas da rede
regular de ensino devem prever e prover na organização de suas classes comuns serviços de
apoio pedagógico especializado.
Em 2002, salienta-se a Lei nº 10.436, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS. Sem dúvida essa Lei é um grande avanço para as pessoas surdas, pois ela reconhece
a Língua Brasileira de Sinais e outros recursos a ela associados como meio legal de
comunicação e expressão. Define a LIBRAS como um sistema lingüístico de transmissão de
idéias e fatos, oriundos de comunidades17 de pessoas surdas do Brasil. Dessa forma, os surdos
a partir desse momento podem utilizar livremente sua língua. Isso significa uma nova forma
de proposta de ensino às pessoas surdas.
Historicamente, observa-se que o ensino direcionado às pessoas surdas foi pautado por
três metodologias ou filosofias diferenciadas. Os estudos de Lacerda (1998) demonstram a
diferença entre as três. Inicialmente, o propósito da educação era que o surdo se comunicasse
com o mundo ouvinte, através da fala (Oralismo). O Oralismo era uma tentativa de reabilitá-
lo, a partir da superação da surdez. Na década de 1960, começaram a surgir estudos sobre as
Línguas de Sinais utilizadas pelos surdos. Novas propostas pedagógicas foram discutidas,
surgindo nos anos 1970 a chamada Comunicação Total, que é a prática de utilizar sinais e
amplificação sonora ao mesmo tempo. Os sinais são priorizados, mas a oralidade é mantida
para possibilitar a integração social do surdo. Esse método foi percebido como ineficaz, mas
possibilitou o contato com a Língua de Sinais. Assim, as propostas educacionais foram
orientadas para uma Educação Bilíngüe, que é uma proposta que defende a Língua de Sinais
como uma língua que possibilita comunicação completa e desenvolvimento cognitivo e social
dos surdos. Nesse modelo, o que se propõe é que se ensine as duas línguas (a de sinais e a do
grupo majoritário), mas não de forma misturada, sendo que a Língua de Sinais é efetivamente
o canal de comunicação utilizado, de forma que desenvolva no surdo a competência
lingüística necessária para a aquisição da segunda língua.
Dessa forma, a Lei nº 10.436 regulamenta no país uma proposta de ensino a partir da
perspectiva bilíngüe. Para regulamentar essa Lei, em 2005 é promulgado o Decreto nº
13
5.626/05, que esclarece sobre as mudanças necessárias ao ensino a partir do reconhecimento
oficial da LIBRAS.
Todas essas legislações traduzem o direito ao aluno surdo de estar inserido/incluído na
escola, com um currículo adaptado às suas necessidades e assistido por um apoio pedagógico
especializado (o professor intérprete), que deve mediar a comunicação através da LIBRAS.
Todavia, sabe-se que o direito adquirido legalmente não significa a garantia de sua
implementação da forma como exposto no texto legal. Essa tem sido a preocupação de muitos
estudiosos da Educação Especial, como Lacerda (2006) e Quadros (2006). Essas autoras
demonstram que a proposta legal e a implementação nas escolas ainda não são/estão
convergentes.
Segundo Lacerda (2006), diversas têm sido as formas de realização da inclusão de
surdos no ensino regular. Segundo a autora:
A inclusão apresenta-se como uma proposta adequada para a comunidade escolar, que se mostra disposta ao contato com as diferenças, porém não necessariamente satisfatória para aqueles que, tendo necessidades especiais, necessitam de uma série de condições que, na maioria dos casos, não têm sido propiciadas pela escola (p. 166).
Ao analisar as dificuldades de implementação da proposta bilíngüe, Lacerda (2006)
coloca que as crianças surdas encontram-se defasadas no que diz respeito à escolarização.
Segundo essa autora, uma das questões centrais da educação de surdos gira em torno do
aspecto lingüístico, pois:
[...] a presença do intérprete não é suficiente para uma inclusão satisfatória, sendo necessária uma série de outras providências para que este aluno possa ser atendido adequadamente: adequação curricular, aspectos didáticos e metodológicos, conhecimentos sobre a surdez e sobre a língua de sinais, entre outros (p. 176).
Não se nega que o intérprete presente na sala de aula do ensino regular é uma
possibilidade de garantia da educação bilíngüe e que o mesmo favorece uma melhor
aprendizagem dos conteúdos acadêmicos. Todavia, “este aluno continua inserido em um
ambiente pensado e organizado pelos alunos ouvintes” (LACERDA, 2006, p. 177). Ou seja,
muitas das atividades propostas em sala de aula não são significativas para os surdos.
Quadros (2006) direciona seus estudos para a percepção que os surdos18 têm sobre a
inclusão e coloca que “[...] as proposições dos surdos sempre foram por uma escola pública de
qualidade em língua de sinais, com professores bilíngües e professores surdos” (p. 155). Isso
14
quer dizer que os surdos entendem por inclusão algo diferente do que está proposto nos
dispositivos legais.
Mais uma vez evidencia-se a questão lingüística como um aspecto primordial a ser
refletido. Segundo essa autora, o grande entrave do processo inclusivo dos surdos na educação
refere-se ao fato dessa escola construir suas relações e significações a partir da língua
portuguesa, ou seja, os seus princípios pedagógicos não estão adequados aos surdos.
Diante disso, o grande desafio que se coloca é o de “criar espaços educacionais onde a
diferença esteja presente, onde se possa aprender com o outro, sem que aspectos fundamentais
do desenvolvimento de quaisquer dos sujeitos sejam prejudicados” (LACERDA, 2006, p.
181). Para tanto, é necessário pensar o aluno surdo a partir dos condicionantes históricos,
econômicos, sociais e culturais que também o compõe.
1.3: Afinal, de que sujeito estamos falando? Algumas considerações
Diante dos desafios que se tem hoje em relação à educação de sujeitos surdos,
entende-se que um deles, e talvez o desafio inicial, seja a reflexão e indagação de quem é
afinal o surdo que se tem construído no espaço escolar. Essa questão foi central para
referendar a pesquisa realizada nos documentos e legislações apresentados no site do MEC
como norteadores da Política de Educação Especial no país. A pergunta que se tem procurado
responder é: qual é o conceito de surdez nesses documentos e legislações? Acredita-se ser
esse questionamento importante para o entendimento de quem seja o surdo hoje para a escola
moderna, que implementa as determinações e dispositivos legais.
O estudo realizado até o momento indica que não há um conceito claro de quem seja
esse sujeito para as Leis e documentos. Muitas são as diferenças terminológicas. Surdo é:
deficiente físico, portador de deficiência, pessoa com necessidades especiais, portador de
necessidades especiais, portador de deficiência auditiva, portador de deficiência sensorial,
pessoa com dificuldade de comunicação. Ou ainda, algumas Leis e documentos o considera
apenas surdo ou pessoa surda, que é um termo que aparece em uma das últimas proposições
legais, que aponta uma mudança de perspectiva e de olhar com relação a esses sujeitos
(Decreto nº 5626/2005, que regulamenta a Lei nº 10.436/2002, que dispõe sobre a Língua
Brasileira de Sinais).
Isso significa que até 2002, os termos eram diversos, mas se referiam a um tipo de
conceito sobre a surdez. Esse conceito está voltado a aspectos individuais, limitadores,
orgânicos, biológicos e, portanto, numa perspectiva clínica, pois o surdo era entendido a partir
15
da sua deficiência. Dessa forma, muitas Leis e documentos sugerem a correção do problema
auditivo através da linguagem oral.
Entende-se isso como um aspecto preocupante, pois a pessoa com necessidades
especiais deve ser entendida também a partir dos aspectos sociais, políticos, econômicos e
culturais, que permeiam sua vida e são determinantes na construção de quem são. Sobre esse
aspecto, Mazzotta (2003) afirma que:
[...] é fundamental que se entenda que as necessidades especiais não decorrem linearmente das condições individuais, tomadas isoladamente, mas apresentam-se concreta e objetivamente na relação entre a pessoa e as situações de vida (p. 15).
Ou seja, a deficiência é apenas um dos elementos que compõe o ser humano; ela não é
a sua totalidade. Dessa forma, ela “não deve ser privilegiada nem desprezada, apenas
considerada” (FOGLI, FILHO e OLIVEIRA, 2006, p. 116).
Pensando sobre isso, duas questões evidenciadas no estudo realizado até aqui,
percebidas na grande maioria das Leis e documentos, merecem ser destacadas por
desencadearem a importância de reflexões mais aprofundadas: primeiro, a não definição clara
dos Documentos oficiais sobre o surdo e segundo, quando há uma definição, a mesma é
baseada nos aspectos individuais e físicos. No entanto, sabe-se que “[...] a política
educacional, enquanto política social pública tem um dinamismo que envolve avanços e
recuos, desvios e contradições” (MAZZOTTA, 2003, p. 17).
O ano de 2002 marca uma importante mudança de concepção. Com a promulgação da
Lei nº 10.436/2002, regulamentada pelo Decreto nº 5626/2005, o surdo passa a ser entendido
como pessoa surda, ou seja, uma pessoa diferente, pertencente a uma minoria lingüística. Essa
é uma discussão mais política do termo, em que a discussão da surdez passa pelo viés cultural.
O Decreto traz a diferenciação entre pessoa surda e deficiente auditivo. Em grande
parte das Leis e documentos até então, esses dois conceitos eram confusos e muitas vezes
apareciam como sinônimos. O Decreto define como pessoa surda “aquela que, por ter perda
auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando
sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (artigo 2º). Já a
deficiência auditiva é entendida como “a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um
decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e
3.000Hz” (Parágrafo único). Ou seja, para este Decreto, o surdo não é considerado deficiente.
16
Ao refletir sobre o porquê dessas confusões terminológicas e olhar para as Leis e
documentos de forma contextualizada com os aspectos históricos e sociais, pode-se perceber
que na verdade esse esclarecimento de termos não parece ser uma preocupação para as
políticas públicas. Surge então o seguinte questionamento: para quê o surdo é educado? A
quem serve o sistema de ensino? Não seria à sociedade? E essa sociedade não é capitalista? A
inclusão de surdos no ensino regular não seria para atender a demanda do mercado? Ou seja,
entendendo o surdo como um ser produtivo e útil ao mercado de trabalho, a função da escola
passa a ser a de prepará-lo para atender às exigências do sistema capitalista, como fornecedor
de mão-de-obra. Pouco interessa, dessa forma, como esse trabalhador vai ser chamado19.
Quando se pensa a educação de pessoas com necessidades especiais (dentre elas, os
surdos) de forma associada à lógica da sociedade em que se vive (a sociedade capitalista), que
se orienta pela ideologia neoliberal, percebe-se que o ensino a eles direcionado pode até
apresentar metodologias diferenciadas, mas o seu objetivo final é a preparação desses
cidadãos para serem produtivos ao mercado. A educação pensada para essas pessoas pode ser
analisada à luz da história da educação brasileira, que retrata que a educação se molda para
atender as necessidades do capital20.
Considerações Finais
A sociedade capitalista é contraditória. Da mesma forma, a política educacional
também o é. Sobre isso, alerta Mazzotta (2003) que “[...] a política educacional, enquanto
política social pública tem um dinamismo que envolve avanços e recuos, desvios e
contradições” (p. 17).
Apesar da constatação de que a escola está a serviço do capital, acredita-se que de
forma dialética, ela é também um espaço de formação, de homens livres e conscientes, que
podem transformar a realidade. É o que coloca Frigotto (2005), ao parafrasear Marx:
[...] os homens fazem a história, mas não em condições escolhidas por eles. As condições não escolhidas se referem a um conjunto de determinações que produziram uma determinada estrutura e superestrutura social que nos condiciona. [...] Trata-se pois de estruturas e determinações socialmente produzidas e, portanto, socialmente passíveis de serem alteradas pela ação consciente dos sujeitos humanos (p. 63).
Assim, é preciso tentar enxergar algumas possibilidades na implementação dessas
políticas, pois o fazer pedagógico é transformador, inovador e mutável. Isto é, essa mesma
17
escola que atende às exigências do mercado, gestor da sociedade capitalista, é um instrumento
de transformação e mediação.
Conclui-se, portanto, que alguns caminhos ainda precisam ser trilhados no que se
refere ao entendimento de quem seja o surdo que está no espaço escolar, para assim ser
possível pensar uma política educacional que lhe atenda em suas necessidades e
especificidades. Nesse processo de construção dessa educação que se acredita possível, senão
estaríamos fadados às determinações arrasadoras de um sistema por si só excludente, a
contribuição dos próprios sujeitos surdos torna-se relevante e essencial. As conquistas que se
tem evidenciado na legislação atual, devem-se, em grande parte, à articulação desse grupo na
busca da implementação de seus direitos.
Notas 1 Este artigo é resultado dos resultados parciais de uma pesquisa de Mestrado que está sendo desenvolvida sob a orientação da Professora Doutora Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O objetivo principal da pesquisa é o delineamento do conceito de surdez, a partir do estudo dos documentos e legislações apontados pelo MEC como norteadores da Política de Educação Especial, pós 1994. 2 Com base em Hofling (2001), compreende-se políticas sociais como “ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico” (p. 31). 3 Ressalta-se que se optou pela utilização do termo “pessoas com necessidades especiais” para referir-se às pessoas “diferentes” que necessitam de recursos específicos na construção de conhecimentos no espaço escolar. 4 Observa-se que apesar de se tratar de um “novo momento”, as teorias neoliberais retomam as teses clássicas do liberalismo e “resumem na expressão ‘menos Estado e mais mercado’ sua concepção de Estado e de governo” (Hofling, 2001, p. 36). 5 Ainda conforme Soares (2002), esse novo modelo de acumulação implica as seguintes características: “os direitos sociais perdem identidade e a concepção de cidadania se restringe; aprofunda-se a separação público-privado e a reprodução é inteiramente devolvida para esse último âmbito; a legislação trabalhista evolui para uma maior mercantilização (e, portanto, desproteção) da força de trabalho; a legitimação (do Estado) se reduz à ampliação do assistencialismo. A expressão institucional desse modelo – e do caráter das relações sociais – é também um novo Estado, um cenário diferente que expressa – ao mesmo tempo que define – novas condições da luta social” (p. 13). 6 Confira Kassar (2001). 7 Como salientado anteriormente, trata-se da ideologia neoliberal. 8 A mais significativa delas foi a Reforma do Estado, ocorrida em 1995 e implementada pelo então ministro do governo de Fernando Henrique Cardoso, Bresser Pereira. Com o objetivo de delinear um Estado chamado por ele de Estado Social-Liberal, a reforma proposta por Bresser Pereira se pautou na resolução de quatro questões primordiais: a delimitação das funções do Estado, a redução do grau de interferência do Estado, o aumento da governança e o aumento da governabilidade. Bresser Pereira considerava o Estado fundamental para promover o desenvolvimento, coordenar a economia e complementar o mercado. Sobre uma análise crítica dessa reforma, confira Frigotto e Ciavatta (2003).
18
9 Destaca-se que esse movimento ocorreu no contexto das reuniões mundiais organizadas pela UNESCO, em geral com financiamento do Banco Mundial. 10 Oliveira (2003) define eqüidade como sendo a “disposição de reconhecer o direito de cada um, mesmo que isto implique em não obedecer exatamente ao direito objetivo, pautando-se sempre pela busca da justiça e moderação” (p. 74). 11 A autora, em suas reflexões, adverte sobre a necessidade de avaliar as políticas em torno da oferta de Educação Básica para todos, à luz das necessidades requeridas pelas reestruturação do capital (cf. OLIVEIRA, 2003). 12 Importa ressaltar, como salienta Barroso (2005), que as políticas neoliberais afetaram muitos outros países e foram adotadas como referenciais para os programas de desenvolvimento gerenciados pelos organismos internacionais, que conforme o “Consenso de Washington” orientavam a “disciplina orçamental, reforma fiscal, eliminação das barreiras às trocas internacionais, privatização e desregulamentação, como conseqüente apagamento da intervenção do Estado” (p. 741). 13 É o momento do “aprender a aprender”, como sugere o Relatório Delors, produzido na década de 90, pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI – UNESCO. 14 Sobre a globalização, destaca-se a contribuição de Vaidergorn (2001), que salienta ser a competitividade o rumo declarado como acertado para a modernidade. Como decorrência, a “educação passou a ser considerada como um dos pilares que possibilitam uma inserção mais vantajosa do país no mercado globalizado” (p. 85). 15 Fávero (2003) salienta que a LDB fez nascer a exigência de planos estaduais de educação. Todavia, os mesmos foram elaborados segundo um manual divulgado pelo MEC. Assim, os objetivos educacionais não foram produto de um processo de planejamento, mas foram prefixados, inclusive por compromissos e intervenções internacionais. 16 Termo utilizado pela Lei nº 9394/1996. 17 Esclarece-se que esse é um termo utilizado pelo texto legal, que demanda estudos mais aprofundados. 18 Destaca-se que esse estudo foi realizado em Santa Catarina, a partir das perspectivas de um grupo específico de surdos. 19 Ressalta-se que se tem a preocupação e intenção de aprofundar essa discussão da relação entre a educação de surdos e a sociedade capitalista no trabalho que está sendo desenvolvido, que resultará numa Dissertação de Mestrado. 20 Confira Januzzi (2004).
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19
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