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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS (UEMG)
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Adeus(às) professorinhas:
um estudo sobre trabalho, sociabilidade e violência
Lúcio Alves de Barros
Úrsula Mansur
Belo Horizonte - MG
Março de 2012
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LÚCIO ALVES DE BARROS
ÚRSULA MANSUR
Adeus(às) professorinhas:
um estudo sobre trabalho, sociabilidade e violência
Lúcio Alves de Barros
Úrsula Mansur
Relatório final de pesquisa apresentado ao Centro de
pesquisa da Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) e ao Programa Institucional de apoio à
pesquisa (PAPq /UEMG) e ao Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC/UEMG/Estado).
Coordenador: Prof. Dr. Lúcio Alves de Barros
Equipe Técnica: Úrsula Mansur (Bolsista de Iniciação
Científica na FAE/BH/UEMG)
Belo Horizonte / MG
2012
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Adeus(às) professorinhas: um estudo sobre trabalho, sociabilidade e violência
Lúcio Alves de Barros
Úrsula Mansur
Introdução
O relatório em apreço descreve a pesquisa efetuada em uma escola da rede
particular na cidade de Belo Horizonte. A ideia nasceu da necessidade de reunião de
informações acerca dos profissionais que atuam no setor privado, um campo que, nos
últimos tempos tem recebido pouca atenção dos pesquisadores, seja porque os
proprietários não entendem as pesquisas, seja porque temem denúncias e descrições que
incomodam pelo conteúdo e natureza. De todo modo, a pesquisa tem por fundamento o
sigilo das informações e o nome utilizado é somente para detectar o objeto. No mesmo
caminho segue-se o sigilo em relação aos entrevistados reservando-lhes o anonimato e a
impossibilidade de identificação.
Neste sentido, foram entrevistados todos os profissionais do ensino, totalizando
10 docentes, uma estagiária, a qual além de lecionar auxilia no trabalho com os
estudantes e a diretora, somando 12 entrevistadas. Como cumpre os regulamentos
propostos da pesquisa, em hipótese nenhuma será deixada clara a possibilidade de
reconhecimento dos entrevistados, tampouco a instituição que, felizmente, abriu suas
portas.
O relatório em apreço está dividido em quatro partes: a primeira descreve a
escola em tela. Trata-se de uma instituição de ensino que atua, principalmente, no
ensino fundamental, tendo como atores privilegiados os estudantes que navegam na
esfera do que chamamos de infância. É uma organização patrimonial, familiar que
agrega um bom número de alunos e professores.
A segunda parte analisa o trabalho efetuado pelos docentes no campo das
profissões. Trabalho no qual a imaterialidade é entendida como “vocação”, por vezes,
uma atividade prazerosa, mas também produtora de sofrimento e alienação. Além disso,
a atividade laboral aparece desvalorizada, deixada de lado por pais e causadora de
transtornos tanto na esfera privada como na pública.
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Na terceira parte discutem-se as representações e imagens que os docentes
forjam em relação ao trabalho com a infância. Em geral, professores que atuam nestas
condições operam em relações próximas aos papéis das figuras materna ou paterna,
chegando mesmo a idealizações românticas da criança, bem como a confusão, não
intencional, das funções que lhes cabem.
Por último, o artigo polemiza a ideia do trabalho docente como um campo no
qual se configura relações de violência(s) revelando o mal-estar oriundo do pouco
reconhecimento, do desrespeito, dos baixos salários e do latente e, por vezes, manifesto
silêncio dos docentes.
1 - A escola e seus atores
A presente organização é uma escola com moldes patrimoniais e familiares. Sua
estrutura é simples e, como parece ser norma nesse cenário da educação das crianças
nas grandes, médias e pequenas cidades, ela faz parte do grande montante de pequenas
escolas que agregam meninas e meninos da região. A observação da organização revela
um estabelecimento que foi adaptado para o funcionamento da escola. Sua arquitetura
não carrega complexidade. No exterior, muros altos mantêm a "segurança". Paredes
limpas e portões com "portinhola" fecham o cenário nada convidativo ao ato de
aprender. Na realidade, a escola segue o que acontece em muitas outras instituições
escolares, os muros trazem a famigerada “sensação de segurança” própria do
pensamento policial. Contudo, não foi percebida a presença de seguranças e câmeras.
No interior da organização, entretanto, aos olhos do senso comum, o cenário é
"mágico" e não deixa de causar nostalgia, compaixão e paz. Observando aqui e acolá,
são perceptíveis brinquedos espalhados, muitas cores, mochilas dependuradas, bonecos,
mesas pequenas, médias e grandes. Corredores limpos e relativamente largos revelam
um ambiente de liberdade no qual as crianças correm de um lado ao outro. Na parte
posterior, o que seria o quintal da casa, um parque aparece como área de lazer, ao lado
banheiros e pequenas torneiras para que os alunos e alunas possam lavar as mãos e
levarem a efeito a higiene. Espaços apropriados e bem arejados, apesar de tudo indicar a
adaptação da antiga casa.
Nas salas de aula as carteiras correspondem ao perfil dos estudantes. Aos mais
“novinhos” são deixadas as salas nas quais as carteiras são “mesinhas arredondadas” e
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próprias para o trabalho em grupo e para atividades que necessitam de atividade
corporal. O uso do teatro, da música, da pintura e de ações em grupo é manifesto nas
paredes abarrotadas de desenhos, trabalhos (individuais e em grupo), pinturas e escritos
que mostram os primeiros ensaios do que no futuro, possivelmente, será uma letra e/ou
uma palavra. Nas salas de aula onde se encontram os mais “grandinhos” temos a “nova”
e velha organização das carteiras em filas, ordenação a priori aceita porque sempre foi
assim.
Em relação ao horário de funcionamento a escola em estudo funciona no turno
da manhã das 07h00min às 11h40min. No turno da tarde ela abre seus portões
13h00min e a saída dos alunos se dá no horário de 17h00min. A escola não funciona à
noite.
No que se refere à pesquisa. Todas as entrevistadas são do sexo feminino. Das
12 docentes, 08 estão na faixa-etária de 20 a 40. Três possuem mais de 41 anos e
somente uma tem menos de 20 anos. Cinco professoras cursam Pedagogia. Três são
graduadas na área e duas possuem, inclusive, Pós-Graduação (Lato Sensu). Duas
professoras possuem magistério. Dentre as graduadas, uma delas é mestranda em
educação. Como se vê, se partir do quadro da escolaridade o corpo de professores é
mais do que qualificado. Oito professoras disseram que são solteiras e 04 casadas. A
maioria (11) nasceu em Belo Horizonte. A maioria também se considera de cor branca
(07), outras 03 falaram ser da cor negra e mais 03 disseram ser pardas. Tratam-se de
professoras trabalhadoras que recebem não mais do que o mercado de trabalho pode
oferecer. Neste caso, quando se fala em renda familiar 03 professoras estão entre 0 a 2
salários mínimos, 05 possuem uma renda que corresponde mais de dois salários
mínimos chegando a 03. Uma professora possui renda maior do que três salários
mínimos até cinco e somente uma profissional possui renda maior do que 10 salários
mínimos.
No que se refere aos estudantes a escola se apega a um projeto pedagógico
voltado para a valorização do “pensar criativo e autônomo, garantindo que as crianças
possam brincar, fazer escolhas, dar opiniões, refletir sobre suas ações, compartilhar
ideias e desenvolver projetos em grupo”. Além disso, oferece “situações didáticas”
levando em consideração a possibilidade de despertar nas crianças a “curiosidade”, “o
desejo de aprender”, a prática da investigação e organização dos conhecimentos.
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No caminho apontado a escola oferece o Maternal 1, no qual as crianças são
atendidas por professoras e ajudantes. Como “as crianças são muito novas”, de acordo
com as docentes, "o cuidado é redobrado” e a escola funciona como uma “extensão da
casa”, numa clara tentativa de garantir ao infante a segurança e a paz. Neste período, as
professoras trocam fraldas, dão banho, alimentam a criança e ainda as colocam para
adormecer. O local é arejado, bem organizado e com muitas cores suaves nas paredes e
desenhos e brinquedos à vontade.
No Maternal 2 a escola oferece mais ou menos as mesmas condições do
Maternal 1. No entanto, como as professoras estão lidando com as crianças mais velhas,
até 03 anos, elas optam por levar a efeito algumas atividades que respondam as
necessidades demandadas pela criança. A liberdade aparentemente é maior, mas a
observação é a mesma. Cumpre a professora o tratamento individualizado e uma
ajudante neste caso se faz de suma importância. A elas também são delegadas as
atividades de troca de fraudas, de roupas e sapatos. Nesta fase, a criança recebe especial
atenção aos habito de higiene e as professoras ajudam e ensinam a criança a se
alimentar, lavar as mãos, tomar banho, assuar o nariz, colocar e tirar sapatos e se
preparar para a hora de ir embora. Como disse uma das professoras, “é o momento que
exige um maior contato humano”.
Em relação ao Maternal 3, aos infantes com mais de 03 anos de idade, a escola
oferece a possibilidade deles se interagirem com a realidade. Nesta fase as professoras
trabalham o conhecimento dos órgãos, a noção de espaço, a percepção dos sentidos e a
verificação dos acontecimentos que estão em sua volta, como a chuva, o sol, o frio, o
calor, etc. Para este trabalho as docentes lançam mão de brinquedos, desenhos, colagens
e atividades em grupo. A música e o lúdico perpassam o cotidiano do Maternal 3 e é
nesta esfera de atividades que as crianças descobrem possibilidades, como a de
quantidade, textura, cores e o desenvolvimento de fantasias.
Ainda na educação infantil a escola oferece três períodos de formação até o
ensino fundamental. No 1º período, as professoras trabalham um mundo de “novos
conhecimentos”. Acredita-se que a criança já possui as condições de lidar, se colocar no
espaço, perceber limites e identificar o outro. As docentes trabalham a noção do tempo,
principalmente a “temporalidade”, ou seja, “o ontem, o hoje e o amanhã”. Elas também
inserem a ideia de passado, presente e futuro delineando os dias da semana e a
sequência de alguns acontecimentos. É neste período que elas têm contato com a ideia
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de causa e efeito. O que causa a chuva, o frio, o crescimento de uma planta e mesmo as
mudanças de cores. Nesta escola, somente em torno de cinco anos é que as docentes
tentam uma maior compreensão do mundo pelas crianças, notadamente, da realidade
produzida pelos adultos e pela sociedade. Acredita-se também que é nesta fase que elas
estão prontas para a alfabetização.
A alfabetização tem como cenário privilegiado o 2º período. Nesta fase as
crianças tem contato com um mundo maior de letras e sons. Muito se faz com papel,
cola, tesouras, canetas e tintas. O desenho novamente é uma maneira de expressão de
conhecimentos, sensações e sentimentos. Nas salas são perceptíveis as letras do alfabeto
em paredes, na tentativa de lembrar às crianças o seu formato. Acredita-se que a criança
está no término de sua primeira fase de desenvolvimento e o respeito ao outro não é
mais limite, mas condição a ser seguida e perseguida na escola. As professoras
acreditam que é no término deste período que a criançada está pronta para a vida
exterior, com todas as condições objetivas e subjetivas. É claro o amadurecimento das
crianças, especialmente daquelas que entraram desde o maternal na escola e, muitas
delas já terminam este período alfabetizadas. Finalmente, é neste período que tem início
a denominada “vida escolar”, pois a criança torna-se um estudante, pois é evidente o
desenvolvimento no campo da “comunicação”, da “linguagem” e das “relações
interpessoais”.
Quanto ao ensino fundamental a instituição oferece o 1º, 2º e 3º anos. Nestas três
fases a instituição dá continuidade ao desenvolvimento do trabalho anterior. Trabalham
a autonomia do aluno e inserem o planejamento normativo exigido pelo Estado.
É no ensino fundamental que os estudantes têm por obrigação a construção do
conhecimento, o seguimento e a apreensão das regras oriundas do plano pedagógico da
escola. Nesta esfera de ação as docentes incentivam os estudantes a criticar, exercer a
liberdade de escolha e potencializar a capacidade criativa. Muitos já “escrevem muito
bem” e outros já têm uma leitura perfeita. Não é por acaso que nestas fases o aluno
busca incessantemente respostas para demandas cognitivas e problemas que assolam o
seu cotidiano. Também já estão há muito controlando o corpo, se apaixonando pelas
professoras, mas não deixando de colocar sua autoridade em xeque.
Nos anos finais eles estão em salas e em carteiras convencionais, docilizados,
controlados e limitados pelo tempo pedagógico da escola. As docentes seguem as
ementas e o plano de ensino e afirmam que estão lidando com crianças que, na verdade,
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já são “pré-adolescentes”. E são neste caminho que elas cobram o respeito e a atenção,
próprias do “desenvolvimento” da personalidade do ser que nasceu para saber. Trata-se
de fases de exploração do mundo real e de abertura de possibilidades e não é por acaso
que o mundo das informações aparece como algo obrigatório e necessário, pois nesta
escola os alunos saem com a capacidade de perceber, “buscar”, “apropriar-se da
informação”, saber como tratá-la e analisá-la.
Por fim, o estudante tem como símbolo da “mediação” o professor que é o
profissional responsável por estabelecer limites, apontar caminhos corretos e possíveis,
enfrentar problemas familiares e levar a efeito o que o campo normativo prescreve. O
objetivo é claro, para as docentes o desafio é que os estudantes sejam capazes de
adaptarem-se às situações do cotidiano, mesmo que estas lhes pareçam desafiadoras,
temerosas e inseguras. No campo desse conhecimento não ficam de fora as matérias
obrigatórias e as avaliações compostas por provas, atividades de pesquisa, “avaliações
relacionais”, “registros de atividade”, ações lúdicas e tarefas para casa.
2 – O trabalho docente no campo das profissões e da infância
As análises referentes ao mundo do trabalho, em geral, remontam ao século 18 e
19, tempos nos quais homens, mulheres e até crianças se acabavam no trabalho material
nas linhas de montagem e nas fábricas de processos descontínuos cheias de fuligem. A
figura do operário frente ao maquinário, já tão romantizada pelo cinema e pela
literatura, aparentemente se reservou ao trabalho duro e explorado do denominado
sistema fabril. Como se sabe, o grande desenvolvimento da sociedade baseada no
mercado se deu sob a égide da substituição das ferramentas artesanais pelas máquinas.
A máquina a vapor, inegavelmente, possibilitou um considerável impulso ao sistema
fabril em desenvolvimento. A produção oriunda das fábricas deu vida ao que ficou
conhecido como sociedade industrial.
A sociedade industrial, caracterizada principalmente pelo trabalho duro e incerto
do operariado fabril que lotava o chão de fábrica revelou, em larga medida, o poder do
capital e a submissão grosseira do ser humano ao maquinário. Homens e mulheres, ao
longo do século 19 e boa parte do 20 não fizeram outra ação que não fosse a de
adaptação à rotinização e ao controle oriundo das tecnologias gerenciais. A sociedade
industrial, travestida de sociedade do trabalho obrigatório, teve como conteúdo o
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afastamento do ser humano do produto final. Necessário somente como movimento,
pois as operações rotineiras, cheias de vida, não passavam de apêndices das máquinas
que as reduziam à força de trabalho complementar. Todavia, o “trabalho vivo”
continuou e continua a ser a mola propulsora não somente da produtividade como a do
processo de exploração e extração de mais valia. É neste caminho que, na sociedade
composta por mecanismos industriais, aumentar a velocidade, por vezes, se fez
necessário. Não faltando o comando da supervisão e a famigerada adaptação e promessa
de aumento salarial.
O trabalho industrial à primeira vista parece ser monopólio do trabalhador
industrial. Talvez a questão apareça desta forma para os menos avisados ou para o senso
comum. Por algum motivo é deixado de lado a percepção de que o ser humano é - tal
como apregoava Karl Marx -, ser do trabalho, da ação transformadora da realidade e da
emancipação humana. A ação humana sobre a natureza constitui-se como força de
mudança e transformação. Por meio do trabalho o homem se faz ser humano e encontra
as possibilidades para construir o seu universo social. É através desta ação que ele
também transforma a sociedade e faz a história. O trabalho é uma categoria essencial o
qual lhe permite não apenas explicar o mundo e a sociedade, o passado e a constituição
do homem, como também antever o futuro e propor uma prática transformadora. A
tarefa fundamental é a construção de uma nova sociedade.
Neste caminho não e difícil pensar o trabalho docente que, por natureza, não se
encontra em meios de produção contínuos ou descontínuos, com paradas aleatórias e
lidando com a natureza tangível. O trabalho docente é uma operação invisível,
interativa, na qual a natureza é o outro. Um outro ser que reage e coloca em xeque a
fantástica ação do ser humano sobre a natureza. Tardif e Lessard (2011) vêm criticando
a centralidade do trabalho material em relação ao trabalho simbólico levado a efeito
pelos docentes. Mas gastaram muitas linhas para chegar à conclusão de que “a presença
de um “objeto humano” (grifo dos autores) modifica profundamente a própria natureza
do trabalho e a atividade do trabalhador” (Tardif e Lessard, 2011, p. 28). É óbvio que
esta condição é inerente as operações docentes fora e no interior das salas de aula e que
não atingem somente os docentes. Policiais, médicos, enfermeiros, psicólogos,
bombeiros que cuidam do outro fazem parte dos serviços destinados ao bem estar das
pessoas. O que se faz necessário frisar é o conteúdo interativo da ação laboral, não
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somente porque é inerente à condição, mas porque é impossível de ser dividido do ser
que trabalha. Na contribuição dos autores mencionados:
Todo trabalho sobre e com seres humanos faz retornar sobre si a humanidade de seu
objeto: o trabalhador pode assumir ou negar essa humanidade de mil maneiras, mas ela
é incontornável para ele, pelo simples fato de interrogar sua própria humanidade. O
tratamento reservado ao objeto, assim, não pode mais se reduzir à sua transformação
objetiva, técnica, instrumental; ele levanta as questões complexas do poder, da
afetividade e da ética, que são inerentes à interação humana, à relação com o outro
(Tardif e Lessard, 2011, p. 30).
Mas a dimensão da imaterialidade do trabalho não foi deixada de lado pelo
próprio Marx. Em uma passagem clássica de sua obra o filósofo alemão asseverou com
contundência a exclusividade humana em relação ao trabalho no qual o ser humano se
envolve em toda sua totalidade. Nesta atividade ele se relaciona diretamente com a
natureza e participa dela com o seu movimento corporal. Na troca com seu universo
natural ele encontra as possibilidades para imprimir o seu rosto na natureza objetivando
anseios e aspirações. Não se trata de uma simples operação: ao transformar a natureza o
homem produz e reproduz sua humanidade, o seu corpo, a sua mente e cognição, bem
como os sentimentos os quais expressam forças físicas e “espirituais”. O trabalho é o
sentido para a vida humana:
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza,
processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu
intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas
forças. Põem em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e
mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida
humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo
modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e
submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se tratam aqui das formas
instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender
sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a
do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o
trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações
semelhantes quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método
de execução de sua tarefa, que lhe às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto
ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que
ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do
processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na
imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera;
ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a
lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa
subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é
mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do
trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo
conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos
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possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais (Marx,
1994, 202).
Nesta descrição extensa, mas de suma importância, é possível perceber toda
metamorfose que perpassa a condição humana em trabalho. Marx chama atenção para a
subjetividade e como ela se encontra próxima ao objeto em que o trabalhador repousa
sua força vital. Marx não se refere somente aos objetos passíveis de materialidade. O
conceito de trabalho em evidência é utilizado em relação ao outro, ao ser de afeto, o
qual se afeta diante da presença do estranho que lhe modifica. Este, inegavelmente, é o
papel - por natureza - do professor, Tardif e Lessard (2011, p. 31) neste campo
escreveram uma frase lapidar “ensinar é trabalhar com seres humanos, sobre seres
humanos, para seres humanos”. Mas eles não estão no campo da novidade. Marx,
obviamente, a despeito de esquecido por muitos, estava condicionado pelos
determinantes do seu tempo. Todavia, é inegável que o trabalho - não como processo
industrial - é um elemento modificador da própria vida e da natureza. Em tela a
condição frágil e potente deste ser humano repleto de sentimentos, aspirações e
idealizações.
É incompreensível a redução ou mesmo o abandono de conceitos já
consagrados. Provavelmente, a obra de Marx é vista no todo em detrimento das partes e
os autores tendem a cair na análise do processo de trabalho industrial evidenciando os
processos de reificação, alienação, a produção da mais valia e a agregação de valores de
uso, de venda, troca, etc. O curioso é que uma das mais interessantes críticas de Marx
se assenta na submissão do homem ao maquinário. Esta é fator de alienação,
exploração e etc. Para o intelectual alemão, os seres humanos não são agentes
atomizados. Trata-se de indivíduos que, através de atividades conscientes, são capazes
de transformar o mundo real que está em sua volta. Homens e mulheres são
compreendidos como sujeitos. O ser humano aparece como um ser genérico, o qual
opera sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo enquanto gênero, enquanto
espécie que busca sua sobrevivência. Nos “Manuscritos Econômicos Filosóficos”, de
1844, esta acepção emerge da seguinte forma:
A construção prática de um mundo objetivo, a manipulação da natureza inorgânica, é a
confirmação do homem como um ente-espécie, consciente, isto é, um ser que trata a
espécie como seu próprio ser ou a si mesmo como um ser-espécie. Sem dúvida, os
animais também produzem. Eles constroem ninhos e habitações, como no caso das
abelhas, castores, formigas etc. Porém, só produzem o estritamente indispensável a si
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mesmos ou aos filhotes. Só produzem em uma única direção, enquanto o homem
produz universalmente. Só produzem sob a compulsão de necessidade física e só
produz, na verdade, quando livre dessa necessidade. Os animais só produzem a si
mesmos, enquanto o homem reproduz toda a natureza. Os frutos da produção animal
pertencem diretamente a seu corpo físico, ao passo que o homem é livre ante seu
produto. Os animais só constroem de acordo com os padrões e necessidades da espécie
a que pertencem, enquanto o homem sabe produzir de acordo com os padrões de todas
as espécies e como aplicar o padrão adequado ao objeto. Assim, o homem constrói
também em conformidade com as leis do belo (Marx, 1983, p. 96).
Novamente o trabalho e a necessidade figuram como dimensão humana.
Todavia, o importante é o indivíduo como ser genérico, transformador da natureza
através de uma atividade prática e consciente que lhe permite construir o mundo. O
homem (individual e social) é entendido como ser histórico. Ser cognoscente capaz de
externalizar suas aspirações e interesses. Em outras palavras é o ser capaz de auto
realizar-se. A auto realização é possível através do trabalho exercido no mundo
objetivo. Através desta ação o homem se confirma como ser consciente, um ente
espécime.
O objetivo do trabalho, portanto, é a objetificação da vida-espécie do homem, pois ele
não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas
ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído
(Marx, 1983, p. 96-97).
Construir o mundo em matéria inanimada não é o mesmo que construí-lo a
partir de seres que também operam sobre o real. A obra pioneira de Daniel Bell (1973)
chamou atenção para a mudança rápida e dinâmica que se operou na sociedade
industrial. O grande montante de pessoas que agora se aglomeravam em busca de
trabalho no denominado setor de serviços levou o autor a chamar a sociedade de "pós-
industrial" caracterizada, principalmente, por serviços, tarefas intangíveis,
trabalhadores flexíveis e multifuncionais. Bell (1973) apontou para um novo perfil de
sociedade que se maturou em pleno século XX e que recebeu novas nomenclaturas logo
depois. Mas o trabalho material, simbolizado nas grandes fábricas, nos consideráveis
montantes de operários, em uma base sindical respeitável já não revelava a veracidade
das mudanças que atingiram em primeiro as sociedades desenvolvidas e depois as
subdesenvolvidas. Temas como desemprego, não trabalho, horas extras, reestruturação
produtiva tomaram os debates. No mundo da vida, velhas e novas profissões mudaram
de lugar, de forma, status, compreensão, poder e organização. Obviamente, as esferas
das atividades profissionais são formadas por campos de poder (Bourdieu, 1998) e
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algumas profissões diante das metamorfoses do mundo do trabalho se saíram melhores
do que outras (Freidson, 1996, 1998). Algumas tomaram o monopólio dos serviços
materiais e outras acompanharam as atividades próprias do atendimento, formação e
cuidado com o ser humano.
Os autores tendem a se dividir quanto ao caminho percorrido pela profissão
docente. Duas teses foram consagradas e são seguidas de perto pelos pesquisadores. A
primeira, já clássica nos estudos da sociologia do trabalho, se assenta na obra de
Braverman (1987), um autor crítico ao processo e organização do trabalho taylorista
que abriu o debate acerca da proletarização da “classe” trabalhadora. Os autores na
esteira da interpretação da obra do autor mencionado identificaram este fenômeno entre
os professores. Na realidade preocupavam-se com o avanço do modelo de produção do
mercado capitalista que, por definição e natureza, levava os trabalhadores a uma
obrigatória proletarização, fato já perceptível na obra de Marx.
O termo classe trabalhadora, adequadamente compreendido, jamais delineou
rigorosamente um determinado conjunto de pessoas, mas foi antes uma expressão para
um processo social em curso. Apesar disso, para a maioria das pessoas ele representou
por muito tempo uma parte claramente bem definida da população de países capitalistas
(Braverman, 1987, p. 31 e 32).
O autor, contudo, avançou sobre as profissões que não comungavam as mesmas
experiências que a dos trabalhadores nas fábricas. A questão era simples: a
proletarização, a qual navegava a degradação intensa do trabalho, se refletiu na
constante perda do controle do trabalho e, por ressonância, na perda do status, dos
privilégios, direitos e salários. À racionalização capitalista do processo laboral ainda foi
acrescida a introdução de novos maquinários e tecnologias gerenciais. Em sua crítica a
Taylor (1970) o autor é categórico, pois o taylorismo partiu do hiper poder da
supervisão, potencializando quadros administrativos que também sofreriam a
proletarização, minimizando os operários de chão de fábrica ou do piso das instituições
de serviço, tal como as escolas.
A outra tese parte da possibilidade da profissionalização do trabalho dos
professores. Os docentes, tal como médicos, advogados e engenheiros, têm claras
funções, características, possibilidades de mensuração, determinações, discursos e
práticas. Em geral, os autores se apegam à teoria da denominada sociologia das
profissões, uma linha de pesquisa que tem na obra de Eliot Freidson, “O Renascimento
das Profissões” (1998), um bom referencial. Nele, a autora deixa evidente que alguns
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princípios são basilares para a garantia do monopólio da profissão. Em primeiro, ela
ressalta a defesa intransigente de um campo do saber, de uma epistemologia e de uma
doxa que determinados profissionais lançam mão no intuito de legitimar e fazer
reconhecer o campo de ação no tecido social. O segundo ponto, não dissociado do
primeiro, diz respeito ao campo normativo. Profissionais se unem em associações,
instituições e sindicatos no intuito de fazer valer suas próprias regras criadas em quatro
paredes e que garantem um saber discursivo não passível de discussão de sua validade
fora dos trâmites formulados pelos profissionais em suas instituições. Por último, os
profissionais navegam na necessária possibilidade de fazer valer a autoridade
profissional. O objetivo é desautorizar aqueles que não comungam com as mesmas
prerrogativas de formação, aquisição de saberes, rituais, avaliações, diplomas,
certificados e discursos. Tais prerrogativas forjam um campo específico, uma esfera de
poder, uma estratégia de eliminação de muitos e uma discriminação clara no que toca a
formação de códigos, regras e normas de condutas.
Trabalhar com seres humanos leva o trabalhador a manipular informações,
símbolos, significados, habilidades tácitas, conhecimentos diversos, ideias, saberes,
cultura, etc. O docente como trabalhador é este ser de difícil entendimento que encontra
mágica em seu trabalho e lida com a intangibilidade de suas ações. Compreender o
trabalho docente utilizando as mesmas categorias do trabalho material e fabril é pisar
em terreno escorregadio. De todo modo, a atividade docente é a ação que talvez revele
com propriedade o que é trabalhar com pessoas. E, no caso em apreço, nada como
verificar o trabalho docente resultado das relações com a infância. Uma atividade que
nas acertadas palavras de Tardif e Lessard (2011, p. 33) recebeu a seguinte
caracterização:
Esse trabalho sobre o humano evoca atividades como instruir, supervisar, servir, ajudar,
entreter, divertir, curar, cuidar, controlar, etc. Essas atividades de desdobram segundo
modalidades complexas em que intervém a linguagem, a afetividade, a personalidade,
ou seja, um meio em vista de fins: o terapeuta, o docente, o trabalhador de rua engajam
diretamente sua personalidade no contato com as pessoas e estas os julgam e os
acolhem em função dela. Componentes como o calor, a empatia, a compreensão, a
abertura de espírito, etc.. constituem, então, os trunfos inegáveis do trabalho interativo.
As palavras dos autores mencionados corroboram em muito que se destacou
anteriormente. Esse “objeto” que se faz sujeito, resultado do ato docente, além de falar
(consciente, inconscientemente) afeta o proprietário da ação laboral. E quando esse
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objeto é um ser “quase sagrado” nas sociedades ocidentais modernas a atividade se
reveste de muita especialização. Como pode ser observado nos relatos a seguir:
Eu acho que é mágico, é uma coisa assim... As crianças vão descobrindo, sabe? É um
processo mágico. É realizante você chegar, igual no primeiro período, geralmente eles
não tem aquela noção ainda. Aí chega ao primeiro ano, já escreve no final do ano, já
escreve o nome completo, já tem aquela noção de número e quantidade. Eu acho que é
uma coisa mágica, eles brotam de uma forma muito assim... É, mágico, eu acho mágico
(Entrevista nº 2).
Hoje gosto do que eu faço. É prazeroso mesmo, o retorno que eu tenho dos alunos na
questão da aprendizagem, os pais, a confiança que eles têm de deixar os filhos com a
gente e ver o retorno, o crescimento, todo aquele aprendizado ali, pra mim, a educação
infantil eu acho maravilhoso (Entrevista nº 03).
Cumpre mencionar que foi perguntado aos docentes o “como é trabalhar com a
infância”, quais os desafios, os problemas, obstáculos e como em certa medida, se
desenvolvia a sua prática. As respostas trazem certa unanimidade em relação ao cuidado
com o outro: a observação da transformação desse sujeito, da fragilidade que repousa
sobre os ombros da criança e da necessidade de ensiná-la o como se deve viver e o que é
bom e não é para o ser humano. A docência apareceu como substituição, inclusive, da
instituição família e a infância um lugar privilegiado de um ente a ser tratado, vigiado,
controlado, respeitado, limitado e adaptado. É desnecessário gastar muitas linhas para
relembrar toda teoria sobre socialização (Durkheim, 2008; Dubar, 1997; Berger e
Luckmann, 2008), controle das emoções e passagens de princípios e rituais. As
narrativas vão além do quadro teórico. A pergunta feita para outras docentes não deixa
dúvida:
(Trabalhar com a infância) É maravilhoso. É muito bom. O carinho que a gente recebe é
muito gostoso. É complicado? É, a gente trata com diferentes crianças, mas recompensa
demais. É muito gostoso. (O que você chama de complicado?) Às vezes uma criança
que é mais agressiva, que é mais levada. Que bate, que morde, que não aceita muito
aquelas regras, que está em período de adaptação. Isso é mais difícil, mas aí a gente vai
trabalhando com aquela criança. Ensinando mesmo, fazendo com que ela interaja com
as outras crianças nas atividades e falando que não pode toda hora... Se preciso deixar
ela um pouquinho afastada um tempinho, mesmo que seja pouco, só para ela saber que
aquilo que ela fez foi errado, mostrando que não pode uma hora ela aprende (Entrevista
nº 04).
Adoro, adoro crianças. Tem que ter autoridade. Por que com criança tem que ter
autoridade. E tem que ter muito carinho. Você tem que gostar muito do que você faz.
Muito de criança. Tem que ter muita paciência (Entrevista nº 07).
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Eu gosto. Eu acho que é uma fase que tão formando o caráter. (Ela) é formado nessa
idade. É uma fase que eu falo muito para as meninas, é uma fase que o nosso maior
salário é o que a gente passa, o que a gente obtém deles. O resultado que eles dão pra
gente. Eu gosto muito de estar lidando, de estar trabalhando com criança. Sempre gostei
de criança, mas não é só o gostar que te leva. O estar ajudando mesmo (Entrevista n°
08).
Eu acho bom... É gostoso. É satisfatório você lidar com a criança. É bom. Meus alunos
são muitos bebês, digamos assim. Eles ainda estão desenvolvendo. Um ano é mais
cuidado mesmo. Então é aquela coisa gostosa, de ter o cuidado, assim, substituindo um
pouco a mãe que fica muito tempo fora. Então é gostoso. É difícil, às vezes eles choram
por ficarem afastados da mãe por muito tempo (Entrevista n° 10).
Trabalhar com crianças, à primeira vista, pode parecer gratificante, mágico,
lindo, bom, ótimo, excelente e “sem palavras”. A visão romântica da infância parece
corroborar o discurso sempre perigoso do senso comum. Na maioria das vezes, a
infância aparece como composta por sujeitos da paz, anjos, pessoas acima do bem e do
mal, ingênuas, incapazes de perversão, sadismo e violência. O senso comum, recheado
pelo olhar potente dos pais e das mães, vai além porque poucos são aqueles que vão
definir, apontar, encontrar e mostrar os “problemas” ou condições objetivas
desfavoráveis que a própria vida reservou ao filhote. É comum, neste caminho, a defesa
da cria em um mundo sedento por “subjetividades desenvolvidas”, corpo perfeito,
normalidade à flor da pele e “desenvolvimento cognitivo sem igual”. Não é por acaso
que o filho ou a filha ainda criança sempre é a mais inteligente, bonita e forte do que o
filho ou a filha do vizinho. A questão, além de histórica (Ariés, 2006) é curiosa porque
na realidade os acontecimentos se dão de forma muito diferente.
A visão de uma infância com início, meio e fim e como processo no qual se
forma o caráter já é, por definição, problemática. Os estudiosos já tem revelado o
incômodo em relação aos parâmetros construídos por pesquisas aqui e acolá. Teorias
consagradas, entretanto, ainda são utilizadas como mecanismos heurísticos revelando
nada mais do que nossa incompetência e receio em enfrentar a questão do que realmente
é e como deve se apresentar as formas de entendimento desta infância que, por
definição e natureza, está em constante construção e mutação e, raras vezes, não
materializa e reproduz a ressonância das metamorfoses culturais, históricas, econômicas
e políticas. E não para por aí, porque o processo denominado “infância” ainda é
adaptado no intuito de responder as demandas da velha e nova realidade desse ser que
não passou impune das mudanças hodiernas (Ariés, 2006).
17
Em favor do argumento mencionado é bom estar atento aos estudos da
antropologia da criança, a qual com suas possibilidades de pesquisa vêm chamando
atenção para as diferenças, as configurações e as diversas formas elementares e
complexas de cultura que a criança produz. Em outras palavras, a infância não é um
campo tal como o dos adultos (Cohn, 2005). Ela tem o seu espaço e nele produz e
reproduz uma cultura peculiar e por vezes alinhavada com a denominada adolescência
ou mesmo envelhescência. Estudos da antropologia em sociedades consideradas
primitivas revelam um olhar diferenciado e mesmo os estudos da antropologia ou da
sociologia urbana já vem revelando esse ser que não é um adulto em miniatura
(Dornelles et. al., 2007; Sarmento & Gouvea (org.), 2008; Freitas et. al., 2009). Trata-se
de um ser pensante com múltiplas possibilidades de manipulação de meios, poder,
agressividade e produção de signos, significados e símbolos, os quais fazem parte de um
mundo em conhecimento.
É nesse cenário, corrosivo, para utilizar a expressão feliz de Sennett (1999) que
encontramos os professores da escola em estudo. As mudanças institucionais,
notadamente as que vêm sendo analisadas pelos denominados pós-modernos (Lyotar,
2002, Harvey, 1992), colocaram em xeque as grandes narrativas e com elas instituições
como a religião, a política, o Estado, a família e as escolas. E como as organizações são
aglomerados de pessoas nada como verificar o que anda acontecendo com esse grupo de
professoras que, em larga medida, tem sofrido as mudanças do cotidiano. Como visto,
as narrativas são unânimes no sentido de apontar o trabalho com a infância como
“mágico”, lindo, maravilhoso, tudo de bom, essencial para a vida, cansativo, mas
recompensador. São falas que surgiram nas entrevistas, nas conversas informais e nas
observações livres no interior da instituição escolar. Dois apontamentos se fazem
necessários:
O primeiro diz respeito à persistência da visão romântica das professoras em
relação aos alunos. Pelo menos no campo das representações sociais as crianças
aparecem por vezes como anjos, pessoas pequenas que não entendem direito o que fazer
e pequeninos que estão a aprender. Também são uma fonte de vitalidade, pois “basta
olhar para a carinha deles para que tudo volte à paz”. Uma ponta de culpa percorre a
fala das professoras que nutrem o olhar para um ser angelical e indefeso merecendo
muito mais atenção do que elas podem oferecer. Neste caminho abre-se um campo
18
complexo: relações de trabalho que não chegam ao fim, relações que estão sempre
inacabadas, mal entendidas e que - não poucas vezes - produzem mal-estar.
O segundo ponto são as relações (in)conscientes que levam as docentes a
incorporarem a figura do “pai” e/ou da “mãe”. Uma espécie de ator/atriz capazes de
colocarem ordem, disciplina e um campo normativo (formal e informal) que aparece
como mais uma atribuição da profissão docente. Neste caminho é mais do que
compreensível o medo e o receio que os docentes nutrem em relação ao que porventura
aconteceu fora ou pode acontecer na escola. Uma criança triste no início da semana é o
suficiente para plantar a dúvida, mexer com os nervos e chamar uma reunião no intuito
de identificar o que está ocorrendo “com a criança que apareceu na segunda-feira
daquele jeito”. É bem verdade que muitas já operam na possibilidade do problema
residir na família.
O grande chavão de famílias desestruturadas, que por vezes andam no campo da
violência aberta e difusa tem ressonância na vida da criança que não sabe distinguir o
espaço escolar e o da casa. Tal como asseveraram as professoras, os infantes sequer
possuem a configuração do tempo e do espaço. Assim, não sabem identificar o
momento que deu vida à “tristeza”. A figura materna é incorporada pelas professoras
que, após várias tentativas apelam para a psicóloga que presta serviços na instituição,
mas não sem antes tentar retirar do pequenino o incômodo, o problema ou o que ele
teima em esconder. Tais casos tem se avolumado e não é privilégio da escola em
apreço. Contudo, “tenta-se o máximo possível”, como a reunião com a direção ou com
os pais. Estes últimos quando comparecem, mas esse assunto é tema para depois.
3 – O trabalho docente no campo das diversidades e do romantismo laboral
Lidar com a diferença é um problema antropológico e social que, em tempos
ditos pós-modernos, é sempre bom lembrar. O outro nos causa ansiedade e medo,
apesar da importância da reciprocidade, do reconhecimento e da visibilidade que este
outro demanda. As professoras na escola em estudo apontam para a insegurança e a
ansiedade como relações próprias do início do semestre letivo. É certo que a ação
docente é composta por tais atributos, haja vista que os estudantes não são os mesmos a
cada período, semestre ou ano. A atividade docente é perpassada ou tem como
conteúdo, a “novidade” inicial. De todo modo, passados os primeiros dez ou quinze
19
dias, estudantes e professores vão se adaptando com a diversidade, podem se estranhar,
mas existe um acordo tácito de que os limites estão colocados, as regras estão postas e
mais ou menos se tem um cronograma a ser seguido. No que toca à rotina das
professoras pesquisadas, existe um certo padrão. Elas chegam, se apresentam, conhecem
a história dos estudantes, cobram deveres, perguntam como foi o dia, ficam atentas às
mudanças comportamentais e desenvolvem o plano de aula. A imprevisibilidade é outra
característica manifesta na ação docente. É o que uma das professoras brincou em
chamar de “se vira nos 30”, seja porque o professor foi pego de surpresa, seja porque a
aula e sua dinâmica não está rendendo e os alunos andam dispersos. São relações
produzidas em sala de aula que ainda estão em controle do professor. Nas narrativas a
seguir, a rotina laboral apresentou-se da seguinte maneira:
Eu inicio a minha jornada às 7 horas da manhã. Eu tenho duas turmas: de manhã eu dou
aula para o quarto ano e a tarde eu dou aula para o segundo ano. Então de manhã é de
7h: 15m até 11h:40m e a tarde é de 1h até 17h:15m quando eu saio daqui. (...) Com
horário de almoço de meio dia até cinco para uma, pois uma hora eu já estou dentro da
sala. São quarenta horas, são oito por dia. Na sala tem que planejar. O danado do
planejamento não tem como ficar sem ele. Mas nem sempre funciona. Às vezes eu saio
do planejamento: “Hoje eu vou dar essa, e essa matéria”. “Dessa e dessa maneira!”.
“Vai ter tal vídeo”, “Tal filme”, “Tal discussão” e, às vezes não dá certo. Tem que ir
muito como que estão os alunos no dia. Então às vezes você tem que se virar nos trinta.
Mudar seu planejamento porque senão também o seu aluno não tem aquele
desenvolvimento que você queria. Mas, na maioria das vezes eu consigo. Às vezes eu
faço um planejamento em que eu quero dar... Vamos supor, outro dia eu estava
trabalhando sobre meio ambiente, aí eu trouxe um vídeo, aí os meninos estavam assim:
“Ah professora”... E todo mundo conversando e eu falei: “Espera aí, não querem vídeo
não, então vamos...”. Eu mudei a estratégia. Depois eu introduzi o vídeo e eles
aceitaram. Então você tem que se virar nos trinta e fazer acontecer. Mas na maioria das
vezes dá certo (Entrevista nº 05).
Eu chego à escola por volta de 12h30min, almoço aqui na escola e começo a trabalhar.
Eu chego arrumo minha sala. Vejo o que eu posso dar pras crianças hoje, o que eu tenho
de atividade, quais livros que eu vou usar, quais datas comemorativas eu tenho que
fazer. Aí os meninos chegam, eu já pego agenda, estojo. Eles mesmos já estão
programados pra fazer isso. Acaba que é um trabalho rotineiro, todos os dias eles fazem
as mesmas coisas e eu dou a minha aula com o planejamento que eu faço. Tem um
planejamento anual e eu vou seguindo e vou fazendo cada dia um, semanal também. Aí
faz a atividade do livro, da folha, aí vai pro parquinho, lancha. Tem dia que tem
atividade fora da sala, educação física, música, balé, capoeira e depois tem mais
atividades e eles vão embora (Entrevista n° 01).
Eu trabalho dois turnos, de sete ao meio dia e depois eu trabalho de uma a cinco e
quinze. No primeiro turno eu faço acompanhamento psicopedagógico com as crianças
que não conseguem fazer o para casa... essas coisas. E a tarde eu dou aula para o
primeiro período. E eu chego na aula como qualquer outro trabalho. “Bom dia! Vamos
começar mais um trabalho”. Assim: “Bom dia! Nós vamos começar mais um trabalho,
agora nós vamos”. “Pega o caderno de geografia, vamos começar.” Assim. Na educação
20
infantil: “Boa tarde! Nós vamos fazer atividades, hoje nós vamos trabalhar a letrinha
C”. Aí a gente vai aprender palavras, vamos procurar na revista. Tem muita dificuldade
nesse trabalho? Não (Entrevista n° 02).
Eu chego os meninos estão no parquinho. Aí eu auxilio lá. Fico com todas as idades. Aí
eles vão almoçar, às vezes eu ajudo no almoço e eu chego meio dia. Uma hora entra
para a sala e eu já fico no maternal 3 auxiliando a professora que é do maternal 3. Aí eu
fico o dia todo com ela auxiliando mesmo. A criança que no trabalho, por exemplo, uma
criança que tem mais dificuldade eu ajudo, ajudando ela mesmo a conseguir dar
atividade para a sala toda, que são 19 crianças, senão fica meio complicado. A gente
chega, canta um pouquinho, dá uma atividade, um brinquedo, mas antes do brinquedo,
depois da atividade a gente sempre dá um lanche, que é duas e meia, três horas no
máximo. Depois tem o parquinho, volta para a sala, descansa um pouquinho, toma água.
Brinquedo de novo, a gente conta uma história, segue mudando uma coisa ou outra,
intercalando. Às vezes não dá tempo de fazer tudo, às vezes dá tempo de dar brinquedo
mais do que nos outros dias, vai intercalando (Entrevista n° 04).
Não significa é claro que as professoras perdem o controle da turma. Pode-se
dizer que a possibilidade de descontrole está latente, em constante espera de que “algo
pode acontecer naquele momento agora”, ou que as coisas podem dar errado,
principalmente quando se está lidando com estudantes da educação básica e
fundamental.
O controle do trabalho é tema antigo na sociologia, principalmente em relação
ao trabalho material dos operários no chão de fábrica. Todavia, a atividade docente se
reveste de outra roupagem. O outro, o eterno inesperado e estranho, muitas vezes não é
passível de controle. Crianças tem febre, ficam chateadas, falam muito, forjam “birras”,
“pirraças” e colocam os limites em xeque. O controle, por mais conservador que possa
parecer, se faz necessário. Para isso as docentes tendem a utilizar especialmente dois
mecanismos. Em primeiro, o planejamento de aulas. O preparo das aulas, geralmente
feito em tempo de casa, auxilia no desenvolvimento do enredo a ser lecionado no dia.
Planejar as atividades é ação corriqueira entre as professoras que se apegam ao
planejamento não somente como forma de controle, mas como prestação de contas e
provas do trabalho empenhado. O segundo mecanismo que a docente lança mão é o da
legitimidade, autoridade e acordos com os alunos. A ideia em levar a efeito
“combinados”, “tarefas”, “correção de para casa”, “ver a agenda”, “diários de bordo”,
“comemoração de aniversário e datas comemorativas” funcionam como válvulas de
escape. O mesmo podendo-se dizer do improviso já mencionado, mas nada que possa
colocar em xeque a programação delineada pela professora e pela direção:
21
É bem isso que eu estou te falando, nem todas às vezes o que eu quero funciona. Eu
tenho que fazer um planejamento bem direcionado para o meu aluno. Quer dizer, eu
acho que eu conheço... Por exemplo, de manhã eu dou aulas pra seis alunos, pois a
turma aqui é pequena. Às vezes eu acho... Eu sei a carinha de cada um, eu sei o que vai
dar certo. E chega na hora você fala: “Não era bem isso”. “Não era esse rumo que eu
tinha que traçar”. E eu mudo. Então os meninos... Outro dia mesmo a gente estava
conversando, as propostas que eu trago para eles são bem atrativas, agora mesmo a
gente estava trabalhando sobre carta, telegrama e eu consegui o correio para fazermos
uma visita. Tudo na base do combinado. Vamos fazer, mas de acordo com o andamento.
Está dando resultado o que a gente está fazendo, está trazendo resultado mesmo.
Positivo, então nós vamos. Senão, pode suspender tudo, os combinados. (Entrevista nº
05).
Meus alunos? São uns capetas (risos). A maioria é educada, eles fazem as atividades,
são inteligentes, são esforçados, mas essa esperteza deles ele também usam contra mim.
Eles me questionam muito, eles me respondem, eles gritam. Eles são inteligentes em
tudo, não só nas atividades (Entrevista nº 01).
Em geral eles são tranquilos. Às vezes tem uns dois ou três que a gente precisa dar mais
atenção. Chamar mais firme, mais forte, mas é tranquilo. (Por que tem que chamar mais
firme, mais forte?) Por que às vezes não escutam. Às vezes vem até de casa. Às vezes
não te escuta direito. Você tem que falar três vezes com a criança. Ou então está
fazendo alguma coisa errada você chama a atenção e continua. Olha pra você e ri. Ai
tem que pegar mais firme. Mas com o restante é tranquilo (Entrevista n° 07).
O controle das operações do denominado trabalho imaterial no campo da
docência ainda repousa nas mãos dos professores. Dificilmente o aluno tem a postura de
vigilância e de cobrança do plano de ensino ou da programação escolar. Tais programas
são entregues no início de cada período e explicados em sala de aula. Na presente escola
o mesmo é feito com os pais e responsáveis. Todavia, o poder discricionário do
professor ainda é preservado. Seria, inclusive, pedir demais dos docentes neste sentido.
É do conteúdo da atividade docente o trabalho livre, com possibilidades de mudança,
adaptações e maiores digressões. A sala de aula, como já se disse, é uma micro cena da
vida social com controles, improvisos, macetes, jogos, acontecimentos com início, meio
e fim, personagens e diferentes atores (Morais, 2008). São relações intensas, interativas
e cujo objetivo é atender o discente. Uma questão que perpassa esta interação com os
alunos é o que Paulo Freire (1996) acertadamente aponta: “Ensinar exige segurança,
competência profissional e generosidade” (Freire, 1996, p. 91). Dificilmente não se
encontra tais elementos na instituição em estudo. Como observado nas narrativas, as
professoras chegam mesmo a reafirmar o mito do sacerdócio na educação. Mas para não
fugir do assunto vale destacar as palavras de Freire (1996):
22
A segurança com que a autoridade docente se move implica uma outra, a que se funda
na sua competência profissional, nenhuma autoridade docente se exerce ausente desta
competência. O professor que não leve a sério sua formação, que não estude, que não se
esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as
atividades de sua classe (...). O que quero dizer é que a incompetência profissional
desqualifica a autoridade do professor (Freire, 1996, p. 91 e 92).
Difícil definir o que o autor chama de “força moral”, mas também é difícil
encontrar uma expressão tão boa que possa fazer alusão ao poder discricionário, à
legitimidade, à qualificação ou competência do professor em sala de aula. Docentes que
hoje atuam sem a devida formação são incapazes de entender a profundidade da
proposta do autor e, inegavelmente, acabam auxiliando na banalização da educação.
Mais que isso, eles fortalecem uma educação que, definitivamente, perdeu a essência do
cuidado, do respeito ao outro, da diferença e da necessária emancipação humana na
busca de mais e mais conhecimento. Não deve ser por acaso que educadores
reconhecidos já decretaram o fim da educação (Nóvoa, 2008).
A formação do professor, obviamente se faz obrigatória e necessária. Contudo, é
preciso afirmar na esteira do já mencionado que a imprevisibilidade, a insegurança,
resguardada com a força moral do professor se rende por vezes à velha relação da
diferença entre a teoria e a prática. Tal como nos revelou uma professora:
Tem uma distância muito grande da teoria pra prática. Eu falo assim: muita coisa que a
gente aprende dentro da academia às vezes você chega aqui fora e diz assim: “Dá pra
aplicar?” “Dá!”. Mas, muitas vezes, sua prática fica distante. Você escuta lá muitas
teorias e quando você chega: “Espera aí! Não dá pra aplicar isso aqui não”. Muita coisa
dá? Dá, mas a maioria das coisas não. A prática é diferente. Por isso muitas vezes a
gente escuta assim: “Ah! Você está falando isso porque não está dentro da sala de aula”.
Tudo bem, eu acho que dá pra aliar as duas coisas. Mas você trabalhar o tempo todo a
teoria dentro da sala... É muito distante (Entrevista n° 05).
Este saber que os docentes encontram na hora e no interior das salas, esse “saber
fazer”, apesar de ser uma relação inesperada, provisória e imprevisível, não está
dissociada da formação que o professor encontrou nas academias. A sociologia das
profissões tem revelado que uma das questões que garantem a legitimidade do ator
profissional é a existência de um saber constituído, a agregação de pessoas que
comungam um saber comum, o monopólio do conhecimento de um grupo, o respaldo
garantido pela academia ou pelos órgãos e associações de defesa de direitos da categoria
(Freidson, 1998). Tais relações podem não estar manifestas ou conscientes para os
profissionais, mas é claro que elas operam em favor da prática em detrimento da teoria
23
no ambiente de trabalho. Este “saber fazer” nasce nas próprias relações de trabalho e
alguns profissionais lidam melhor com ele do que outros. Ele não deixa de ser uma
possibilidade de controle, “força moral” como quer Freire (1996), ou o resultado do
trabalho imaterial com o “outro”.
Cumpre mencionar dois problemas que perpassam o saber docente. Um deles
ainda se refere à questão do controle. Tornou-se comum, diferentemente de outrora,
potencializar as forças dos estudantes em detrimento da autoridade do professor.
Estudantes tem lançado mão das novas tecnologias e as utilizam em sala de aula.
Computadores, celulares, câmeras e outros apetrechos fazem a festa da garotada
desinteressada que, em larga medida, tornou comum o plágio e a prática da leitura como
problema. O ato do improviso não resiste por muito tempo a estudantes mal
intencionados e, por vezes, os pais - convidados a participarem dos rumos da escola -
ainda tem culpabilizado os professores por isso. O outro problema se refere à
banalização, ao descaso e a desvalorização da profissão colocando na encruzilhada o
saber docente. As professoras em pesquisa mencionam “dar aulas”, esquecendo-se que
esta prática tanto nas escolas públicas como nas privadas é atividade paga e faz parte da
mercantilização da educação que inegavelmente coloca o professor na “classe” dos
assalariados. Como é próprio da natureza das relações de mercado, quem possui o
capital pode pagar (quase) tudo. Aparece neste contexto, notadamente na rede de
educação privada, a figura potente do cliente, um ser flexível, líquido, medíocre,
perigoso, cheio de desejos e poder que devido ao dinheiro faz questão de bradar a velha
frase: “estou pagando”. E este cliente em uma escola privada infantil não se reduz ao
aluno, ele é principalmente o responsável. E neste contexto se encontra uma grande
barreira no campo da educação. Esta barreira formada por clientes que sabem o valor do
capital e das relações que ele é capaz de tecer.
É de longa data a ideia de que a comunidade deve fazer parte do saber
pedagógico, do plano pedagógico e do cotidiano da escola. Provavelmente, não é
passível de generalização a afirmação de que nas escolas mães e pais estão sempre
presentes. E presentes não somente nas festas comemorativas. Mais do que antes se faz
importante à presença da comunidade, dos pais e das mães dos estudantes que
definitivamente estão perdendo o controle sobre as ações dos filhos. Longe destas
informações, evidentes no senso comum, é bom notar que, apesar de potente, esse
cliente quer ver resultado, mas tem grandes dificuldades em participar da construção
24
dele. Na escola em estudo, as professoras afirmaram categoricamente que poucos pais e
mães se fazem presentes. Muitos sequer conhecem os professores, a direção, a psicóloga
e outros profissionais da instituição. Na realidade não sabem como funciona a escola e
não tem o interesse em acompanhar os filhos, mas, paradoxalmente, exigem
“resultados”, baixas mensalidades e o melhor desempenho da criança.
Esse ano, esses alunos, no quarto ano, eu tive um contato muito grande com os pais ano
passado por que eles foram meus alunos no terceiro e agora no quarto. Então eu já
conheço os pais. Então temos uma relação muito boa. Inclusive esse aluno que me deu
problema eu conversei com o pai. O pai já me conhecia, já sabia do meu trabalho, então
tudo fica mais fácil. Sabe como você trabalha dentro de sala. Qual a sua conduta com o
aluno. Esse ano eu estou com uma turma totalmente nova e estou vendo que tem pais,
para você ter ideia, na primeira reunião no começo do ano veio 50% dos pais. Então
50% dos pais eu não conheço. Não apareceram na escola ainda. Então o pouco que eu
conheço é por um bilhete que eu mando para o pai e ele me retorna. E se acontecer
alguma coisa. Essa reunião mesmo que está marcada, que a gente marcou agora a tarde.
Para marcar essa reunião foi difícil. Liga, manda recado para o pai, manda recado para
mãe, ai fala: “Ah! Não posso porque estou trabalhando”. “Não tem como marcar agora
porque fulano não pode, beltrano não pode”. E ai foi muito difícil. Ontem um dos pais,
a mãe dessa criança chegou e falou que não poderia vir porque o pai não viria. “Não!
Não tem como”. Eu estou precisando conversar com os pais. Justamente a criança que
está com problema na sala. Então como você vai ficar com o pai ausente? Não tem
como ficar sinalizando só por agenda e ai tivemos que remarcar um horário, um horário
mais fácil pra conciliar o horário dos dois. Então vou ter essa reunião agora. Mas é
difícil. Tem pais que são super tranquilos. Estão sempre presentes, perguntando. Tem
pais que vem na porta todo dia: “E ai? Como está o aluno... assim... assim e assim...”.
“Tem alguma coisa que eu posso melhorar?” Estão sempre presentes. E tem aqueles que
eu nem conheço. (Entrevista n° 05).
Na encruzilhada da crise que perpassa as famílias e os vínculos amorosos
(Matos, 2000), o professor opera como “gestor de emoções” e “gestor familiar” das
condições objetivas e subjetivas do estudante na escola. É um “gestor das emoções”
quando consegue por competência identificar, analisar e solucionar problemas. Alunos e
alunas, cujos pais não estão presentes parecem fazer parte da “modernidade recente”
(Young, 2002) na qual os filhos nascem somente para responder a uma demanda social.
Além disso, é preciso identificar o problema das “famílias desestruturadas” e dos filhos
que possuem pais e mães separados. A escola como instituição ainda navega na
existência forjada de uma família nuclear composta por pai e mãe. Há tempos já se
discute as mudanças nesta instituição a começar pela “nova” família composta por um
só progenitor, em geral a mãe (Giddens, 2000; Beck, 2010). A visão romântica da
família patriarcal repleta de agregados não resistiu à história tampouco à realidade tal
como se apresenta e, nesse caminho, a escola tornou-se um grande depósito de
25
problemas que perpassam a priori as relações familiares. A despeito de estarmos
descrevendo uma situação em uma escola que não faz parte da periferia do ensino, o
problema da não participação dos pais é evidente e, talvez, com peculiaridades
sofisticadas. Isto porque a docente sabe, percebe e identifica pelo “saber fazer”
cotidiano a incompletude do seu trabalho no outro e se vê impotente, despreparada,
descontrolada e despersonalizada diante de relações que não foram produzidas na sala
de aula e que, por natureza, fogem do controle.
O professor aparece como “gestor familiar” quando toma decisões e incorpora
responsabilidades independentemente dos pais. São atitudes de espera, de etiquetas,
formação de caráter ou mesmo de deixar o filho com uma das partes responsáveis. É
neste caso que elas optam por “escrever na agenda o problema”, “porque chamou
atenção do estudante e ele se negou a mostrar aos pais”, ou porque “convocou uma
reunião com os pais que não compareceram”. Na verdade cabe ao docente mais essa
função: a garantia da harmonia familiar quando o caos insiste em entrar pela sala de
aula. Não é colocada a questão de que essa tarefa foge da competência da profissão.
Pelo contrário, o “rendimento” na escola depende muito do ambiente no qual o aluno se
encontra fora dela. Uma situação é antítese da outra e certamente esta é uma das
explicações da não participação dos pais nos acontecimentos nas escolas.
Aparentemente, boa parte dos (ex)casais não se suportam ou não tem os filhos como
prioridade acabando a escola por funcionar como uma creche, um lugar seguro para
deixar o filho, porque simplesmente o responsável não tem onde deixá-lo ou não possui
o tempo que, em geral está reservado ao trabalho. A verdade é que o processo
pedagógico, a educação como “prática libertadora” e de emancipação do ser humano
são dimensões deixadas em segundo plano, se rendendo aos determinantes do mercado
e as prioridades laborais ou pessoais dos pais e das mães. As narrativas das docentes
revelam com acuidade o exposto:
Geralmente a criança vem de casa com alguns problemas. Igual tem uma criança que a
criança está chorando a semana inteira. Quando foi ontem, ela contou o que estava
vendo: tem que ajudar a mãe porque o pai está batendo. Tem que saber o que está
realmente acontecendo. Alguém está batendo na mãe. Então a gente tem que perguntar
o que acontece entre eles. Se eles passam para outros alunos. Só fica chorando. Há
conflitos entre eles. Ta batendo demais por que está acontecendo alguma coisa em casa,
ta chorando. Então temos que resolver também esses pequenos... (Entrevista n° 03).
É complicado, porque eu acho que não tem esse limite professora, psicóloga. Você é as
duas o tempo todo na sala. O psicólogo e o professor estão andando juntos, o tempo
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todo. Eu tenho criança que às vezes eu olho pra carinha dela e vejo que naquele dia ela
não está legal. E às vezes ela não me falou nada. Mas às vezes o andado dela. “Espere
ai? Alguma coisa aconteceu”. E ai no andar da aula você vai percebendo: “Não!
Realmente”. Aí você chama essa criança e vai ver que realmente tem alguma coisa ali.
E ai, o contato com o pai é essencial. É um trabalho a mais do professor? É um trabalho
a mais, mas se você não fizer esse trabalho, você não tem resultado. Se você não
conseguir ter esse lado professor-família e fazer essa aliança junto com o aluno, não
anda. Então é um serviço a mais? É, por que acaba que o professor vira professor, mãe,
tia, parente, pai. Tem momento que você tem que ser tudo ao mesmo tempo. E se você
não tem ajuda da família, você tem que ser mais ainda. Às vezes você fala: “Eu tenho
que encontrar com o pai”, “Eu tenho que conversar sobre aquele aluno” e o pai não
aparece. Então você tem o tempo todo que ficar olhando praquela criança. E, às vezes,
você acha que é a criança que está com problema quando é a família que está com
problema. E se você não tem esse contato com a família, como você vai resolver esse
problema. Nós já tivemos um outro problema, se eu ver que você está trabalhando
muito com a criança, mas você não tem que trabalhar com a criança, tem que trabalhar
com os pais. O problema está lá. A criança é um reflexo da casa dele. Então você faz:
“Fulano, vamos fazer assim..., assim... e assim”. Amanhã ele vem com o mesmo
problema, o mesmo defeito, as mesmas atitudes. Você vai conversando com a criança e
ela te mostra, a mãe é assim, o pai é assim. Se não trabalhar a casa, a escola e o aluno
não funcionam (Entrevista n° 05).
Esta questão é retomada adiante no debate acerca da(s) violência(s). Neste lugar
cumpre salientar que, apesar das dificuldades, da grande responsabilidade com o
estudante, do cuidado com os “filhos dos outros” é praticamente unanimidade entre as
docentes a boa relação com a direção da escola. Em geral, elas responderam que
trabalhar naquela instituição “é bem tranquilo”, que dificilmente têm problemas. E
quando eles aparecem são prontamente resolvidos e as demandas são atendidas.
Afirmam como ponto positivo e de suma importância para o trabalho o fato da “escola
ser pequena” e “a direção ser muito próxima”. O trabalho docente, tal como reza boa
parte da literatura, não deixa de ser uma atividade burocratizada, a qual se desenvolve
próxima ao modelo weberiano. Os papéis estão claros e as atividades são transparentes e
distribuídas conforme o tempo, o conteúdo, o período e a maturação do agente que
opera com base na meritocracia. A gestão, obviamente, exerce o controle. Opera-se na
determinação de horários, datas importantes e comemorativas, resguardo de férias,
horários de aulas, abertura de turmas, contratação de professores, inclusão e exclusão de
alunos, bem como no pagamento dos salários, andamento do processo pedagógico,
atendimento das legislações de natureza normativa, relações com o sindicato dentre
tantas outras que fazem parte destes núcleos de socialização constante que é a escola.
Em relação à direção da escola as docentes afirmaram que:
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Hoje eles interferem, mas de uma forma positiva. Eles reconhecem o meu trabalho e a
boa profissional que eu sou pelo tempo de casa que eu tenho. Não sei se seria isso em
uma outra escola. No início isso interferiu muito mais, mas também porque eu acho que
eu era imatura, não tinha muito conhecimento, não sei. Mas eles interferiam mais, eu
não tinha tanta liberdade. Então interferia, a direção interferia, a psicóloga, a
coordenação, eu não tinha o que fazer dentro de sala de aula, eu não tinha aquela
liberdade toda para poder exercer meu papel em sala de aula. Então, eles interferiam
dessa forma. Mas hoje em dia eu me sinto bem livre pra poder fazer... Hoje eu cheguei e
falei o caso do menino. Depois até perguntei pra coordenadora: “Falou alguma coisa a
dona da escola?” “Não”. Ela sabe: hoje ela reconhece realmente o que está passando.
Ou seja, essa interferência é bem tranquila (Entrevista n° 03).
A gestão não. Eu acho que aqui a gestão é muito tranquila. Aceita as ideias da gente. Às
vezes assim, te apresenta as formas, igual, a gente quer que faz assim, assim e assim. A
proposta da escola é essa, essa e essa. Se em algum momento você discordar, eles são
totalmente abertos para sentar e conversar. Essa semana mesmo, eu tive uma
experiência. Porque as minhas provas começam na semana que vem. Ai eu cheguei na
direção e falei assim: “Olha, eu estou achando que nesse ritmo que a gente está não deu
tempo de ter uma visão das crianças”. “Como é que é?” “Isso é fechado?” “Tem como
mudar?” Sentamos e conversamos e chegamos a um denominador comum que sim:
“Não! Então vamos adiar essa prova”. Eu acho que se fosse um outro estilo de gestão,
seria fechado: “Não! A data é essa e pronto”. Eu acho que isso é muito importante. Eu
tenho pelo menos aqui dentro muita liberdade (Entrevista n° 05).
Interfere. Às vezes quando a gente está com algum problema, a gente leva esse
problema pra diretoria, ela nos orienta, passa o que deve ser dado. A coordenadora
também passa como a gente deve trabalhar, como deve ser trabalhado. Vocês tem uma
psicóloga na escola? Temos uma psicóloga. E já precisou algum dia de encaminhar
algum aluno? Já. Na minha sala são 3 que estão encaminhados com ela. Por causa de
indisciplina (Entrevista n° 06).
Sempre interfere. (Mas atrapalha na sala de aula?) Não, Ajuda. Eles têm experiência
então eles me ajudam bem. (Como eles te ajudam?) No modo como eu devo agir e com
bilhete pra agenda, como eu devo responder o bilhete. Como eu devo tratar uma mãe,
dar mais atenção a mãe. Dar atenção para o aluno, atenção de higiene, essas coisas
(Entrevista n° 07).
Sim, a gente tem ajuda da coordenadora e tudo. A gente é até bem livre. A gente faz
todo o plano de aula, todo o planejamento e depois é mostrado pra coordenação, o que a
gente estava fazendo ali agora, e ai ela vem falando: “Não! Isso aqui está bom. Isso aqui
eu acho que não tem necessidade”. E tem muita ajuda delas (Entrevista n° 08).
Ela é muito boa, ela interfere. A minha relação com ela é muito boa. Ela sempre me
ajuda. Eu sempre... tudo que está no meu alcance eu procuro ajudá-la também, da
melhor forma. E é uma boa relação (Entrevista n° 09).
Como trabalhadoras assalariadas as docentes recebem pelo tempo de trabalho
um determinado salário. Em geral, de acordo com as informações coletadas eles não
passam de dois salários mínimos e meio. Na realidade, as docentes, há tempos já fazem
parte de uma categoria que não labutam somente em um local de trabalho. Sabe-se de
professores que lecionam em duas, três ou quatro escolas. Esta atividade não se resume
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aos docentes do ensino fundamental, sabe-se das horas a mais trabalhadas pelos
professores de nível médio e superior (Sinpro, 2009). Essa jornada de trabalho que
recebe novas horas a cada sabor do mercado não deixa de revelar a desvalorização do
trabalho docente tanto em nível estadual, federal como municipal. Nas escolas
particulares o salário também não se revela como uma relação confortável. Professores
reclamam dos baixos salários tendo por justificativa o “muito trabalho”, a “grande
responsabilidade, e o esforço que foi chegar à universidade ou em uma faculdade no
intuito de garantir uma formação superior”. Na escola em pesquisa o salário recebe
críticas. Os docentes tem a consciência de que se trata de uma pequena escola e que é
um "bom lugar para trabalhar". Contudo, possuem a ciência da importância de suas
funções e delegam a desvalorização da profissão pelo descaso oriundo da sociedade e
dos governantes. Arguida sobre a recompensa do salário, uma professora foi taxativa:
Essa pergunta, todo mundo vai falar que não. Outro dia eu estava conversando disso lá
em casa. Eles falam assim: “Mas quando você entrou na profissão você sabia que o
salário era baixo”. Tá, eu sabia que o salário era baixo, mas nem por isso eu tenho que
me conformar com ele. Porque eu acho que o magistério é milenar, e o salário baixo.
Mas a gente... Eu, por exemplo, vi que não compensa, mas estou aqui. Estou tentando.
Eu fiz o concurso, teve o concurso da cidade A agora, eu tentei. O de cidade B há dois
anos atrás eu não fiz. Deixa, depois vai ter. Ai as meninas estão assim: “Se você passar
você vai encarar a sala de aula da escola pública?” Gente! Por que não? Hoje eu quero,
amanhã pode ser que não. Eu penso muito em fazer uma Pedagogia Empresarial... Vou
mudar de profissão? Não sei, mas eu quero ver uma outra pedagogia. Então hoje a sala
de aula está me satisfazendo, mesmo o salário não compensando. Você estar pensando
em fazer outra pedagogia, posso encarar como um sinal de desistência? Não sei se é
sinal de desistência. Eu gosto da pedagogia, eu acredito na escola. Eu acho que a sala de
aula vai dar certo sempre, porque senão a escola seria uma instituição falida e ta ai
provando que passa ano, passa ano. A tecnologia ta aí mostrando pra gente que tem
educação a distância, mas eu acho que a escola presencial nunca vai acabar. Eu acredito
muito na sala de aula (Entrevista n° 05).
Em relação aos salários é pedir muito às docentes o consentimento e o
aceitamento imparcial do valor trabalho. Crianças são fortes e frágeis, previsíveis e
imprevisíveis e, como já é de conhecimento, “é filho dos outros” e merece o maior
cuidado. Obviamente, não é exagero afirmar que não há valor que pague a atenção, as
horas e as ações levadas a efeito pelas professoras. É claro que o salário segue a
dinâmica da economia local. Eles variam de acordo com o número de alunos, o piso da
categoria, a magnitude da escola e a variação do mercado. No sistema privado de
ensino, em geral, as professoras parecem receber maiores rendimentos do que as
docentes da rede pública. Todavia, na escola em estudo as reclamações caminham na
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direção de que “o salário não compensa o esforço”, “a responsabilidade é muito grande”
e “quem tem família não vive dignamente com esse salário”. Em relação a possível
compensação salarial as docentes afirmaram que:
Não. Por quê? Porque atualmente eu acho que o que o professor de Educação Infantil
ganha, pela responsabilidade que ele tem com as crianças menores, muito pouco. Eu
acho que o professor do fundamental não tem tanta obrigação, tanta responsabilidade
dizendo melhor, com essas crianças da sala do que nós da educação infantil. A
responsabilidade da gente é dobrada com relação as crianças (Entrevista n° 06).
Não. Eu acho que não porque a gente tem um trabalho muito grande. Eu acho que o
salário de professor deveria ser maior (Entrevista n° 02).
Há um tempo atrás - eu que sou solteira - para mim está ótimo. Eu não tenho contas
para poder pagar, eu não tenho filhos, então o meu dinheiro é pra pagar a faculdade e
pagar as coisas pessoais. Eu não tenho o que reclamar. Poderia ser maior? Poderia. Tem
pessoas aqui que são formadas e que eu vejo que vivem e tem família com esse salário.
Chamam de “salário miséria” por que não dá conta e eu não quero isso pra mim. Então,
eu, pra mim está ótimo esse salário (Entrevista n° 03).
Sinceramente não. Por que é muito trabalho e, como eu te falo, o maior salário da gente
é o retorno que eles (os alunos) mesmos dão pra gente porque financeiramente mesmo o
retorno é muito pouco (Entrevista n° 08).
Não, Porque não? O salário é muito pouco pela responsabilidade. Mais em tudo, em
geral (Entrevista n° 10).
O salário é baixo. O meu pai quando eu escolhi essa profissão foi o primeiro a dizer:
“Nossa! Você vai ser pobre pro resto da sua vida.” Mas compensa. Eu escolhi sabendo
de todos os detalhes. Eu sei que qualquer profissão você pode ganhar muito, mas eu
acho que você fazendo com amor e fazendo o que você gosta vale muito mais do que
um salário muito alto e você ser infeliz (Entrevista n° 4).
Poderia ser mais. A gente nunca está satisfeito com o salário. Poderia ser mais. Acho
que não compensa não. Porque além da escola, você tem casa também. Eu passo fim de
semana. Deixo de sair porque tem planejamento para fazer. Eu tenho matrizes, para-
casas, planejamento para fazer (Entrevista n° 11).
Eu acho que o salário de professor no Brasil... Não é que não compensa. A gente não é
levado a sério. Por exemplo, você pega um médico, já é PhD. Aqui é diferente. Já vi
professoras, é até engraçado. Ela tinha um namorado e o namorado era médico,
“estudante de medicina”. Quando ele ficou sabendo que ela era estudante de pedagogia
ele desistiu do namoro. Acredita? “Pedagogia? Não tinha coisa melhor para fazer não?”,
“Pedagogia e nada é a mesma coisa” (Entrevista nº 12).
A quase unanimidade das respostas contrárias ao valor trabalho carrega a
resignação oriunda de outras compensações. As narrativas descrevem o enredo já
conhecido da desvalorização da profissão docente. Apontam para o descaso com a
educação infantil. Ressaltam como obrigatórias o consentimento em relação ao salário,
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haja vista que já sabiam do que iam encontrar pela frente e, finalmente, ainda sofrem a
reprovação dos entes mais próximos que, provavelmente, estão marcados pela cultura e
ordem vigente que produziu um quadro de discriminação assentada na ideia de que a
educação, notadamente a infantil, é uma “segunda maternidade”, “uma segunda renda”,
“uma vocação” e a escola a “segunda casa” (Costa, 1995).
No contexto analisado é clara a ambivalência das relações quando em pauta está
o salário e as ações docentes. É evidente que algumas não conseguem se desvencilhar
dos estigmas da “professorinha” e da “mestrinha”, outras encaram a realidade e
comparam a situação da categoria em relação a outras profissões. O fato é que as
docentes, nas duras palavras da entrevistada, “não são levadas a sério” e historicamente
sabemos que esta profissão foi entendida como atividade complementar em relação a
outras, notadamente da profissão do marido, ou de outros entes da família. O mercado
de trabalho docente segue em larga medida a conjuntura do mercado de trabalho de
outras profissões, visto que a remuneração feminina é inferior a masculina, levando os
estudiosos a perceberem a remuneração das professoras como complementação de
renda.
No caso em tela, a despeito da maioria das professoras ser solteira a dinâmica é a
mesma apresentada por Costa (2005) que, em sua pesquisa, afirma que as década de
1980 e 1990 marcaram com fortes tintas a profissão docente, efetuando nela mudanças
que apontam para um “professorado rebelde”, resistente a análise e formado por
múltiplas faces. Na escola em questão é impossível dizer que os professores labutam no
intuito de completarem a renda. É possível frisar as relações de persistência e de
resistência no trabalho. A escola apresenta professoras que resistem. Resistem ao tempo,
ao vento, às doenças e ao sofrimento imposto por condições muitas vezes que não
criaram e que estão longe de entender a magnitude. Trata-se de um grupo coeso em suas
aspirações e que navegam em uma cultura do cuidado com a infância, apesar da baixa
remuneração e do pouco reconhecimento do trabalho.
4 – O trabalho docente no campo da indiferença, do sofrimento e da violência
É preciso ressaltar que a profissão docente no ensino dos primeiros anos -
historicamente - é o cenário privilegiado do trabalho das mulheres (Costa, 1995). Muito
já se discutiu da emergência de uma classe média erguida no Brasil devido à falta de
31
professores capazes de fazer as crianças aprenderem a ler ou lidar com as letras
(Pessanha, 1994). A valorização do antigo magistério não resistiu ao tempo. A crescente
necessidade de mais escolas, a entrada da mulher no mercado de trabalho configurando
a feminização da categoria que opera com as crianças não deixou de ser apontada como
mecanismos desvalorizadores da profissão docente.
De todo modo, os homens não tiveram tanto espaço com as crianças.
Provavelmente, a sociedade patriarcal colaborou incansavelmente para isso e reservou
este papel às mulheres que, como tudo indica, o recebeu de bom grado. A escola em
pesquisa é uma micro cena dessa realidade. Não se percebe homens professores. Se
existem trabalham somente em áreas consideradas masculinas como as atividades de
capoeira que se desenvolve extraclasse. O espaço é feminino, mas é simbolicamente
patriarcal, tal como a “Casa Grande” e a “casa da gente”.
A associação entre espaço privado da casa e espaço público do trabalho também
foi comum na ideologia laboral taylorista que se reformou com o desenvolvimento da
sociedade pós-industrial (Braverman, 1987; Bell, 1973). Ao contrário do trabalho
industrializado alicerçado na produção em massa, o trabalho no denominado “setor de
serviços”, tal como o dos professores, tem resistido ao tempo e apresentado mudanças
nos padrões de sociabilidade (Barros, 2004). Neste sentido, casa e trabalho -
especialmente no caso da educação infantil - se não se completam se confundem,
principalmente, nas relações tecidas pelas professoras com os alunos. Como já visto,
elas se revestem de “gestoras” de relações conturbadas na família. Uma instituição em
frangalhos que vive as mudanças radicais da modernidade. Os vínculos sociais já
pulverizados no núcleo familiar tendem a mudar o perfil nas escolas ou mesmo
fortalecer outros mecanismos de reciprocidade. Nas palavras cansadas de uma
professora:
Na segunda-feira as crianças vêm com toda a carga de casa. Aquela criança que não tem
limite em casa, na segunda-feira, pra mim é mais difícil. Ela chega com tudo de casa,
não tem um pingo de limite. Os pais deixam fazer o que querem, então segunda-feira ela
chega e ela quer fazer o que quiser aqui também. Eu fico, não é moldando a criança,
mas trabalhando a criança durante a semana. Ai na segunda-feira foi difícil porque ela
está rebelde, ela não quer aceitar. Ela está querendo ficar do mesmo jeito que é na casa.
Na terça-feira parece que ela já dá aquele assentada: “Opa! Estou na escola. Ontem foi o
oba-oba, hoje é a terça-feira”. Então a terça, a quarta, a quinta e na sexta-feira tanto os
alunos quanto a gente também já está cansado da semana inteira. Ai você vê também
que eles já ficam mais agitados. É na segunda e na sexta, durante a semana é mais
tranquilo. Hoje eles sabem que é sexta-feira, véspera do dia das mães, então eles estão
com o fogo total. Querem ensaiar, querem fazer trabalhinho pra mãe. Então na sua sala,
32
você fica o tempo todo envolvido com aquilo e cansado. Chega no final do dia você está
quebrada. Às vezes você fala assim: “Nossa! São poucos alunos... mas são poucos
alunos...” (Entrevista n° 05).
Como se vê, é difícil delimitar o espaço da casa e do trabalho e, no caso das
crianças, especialmente as que estão no Maternal, as relações casa-trabalho parecem não
resistirem a nenhum limite. Crianças, obviamente, possuem uma noção do tempo
bastante peculiar, mas para os trabalhadores do ensino o tempo cronometrado faz parte
do labor, constitui em tempo necessário de controle e passagem do conhecimento. Além
disso, sabe-se que as docentes levam trabalho para casa e é neste lugar que planos de
ensino, programações, questionários, festas, datas comemorativas, trabalhos e aulas
ganham vida. As docentes seguem a programação, o calendário escolar e todo
planejamento estipulado pela direção. A desvalorização, o controle e os conflitos não
foram o bastante para tirarem delas o peso da responsabilidade.
Não foi uma nem duas professoras que revelaram a “grande responsabilidade
que carregam” e o “amor aos meninos” e aos “pequenos” que chegam de suas casas
para estudar. Apesar da resistência, do cansaço, do sofrimento, as professoras persistem
e enfrentam corajosamente as mudanças radicais nas relações oriundas de uma
sociedade do risco (Beck, 2010). É claro que muitas mudanças foram assistidas ao
longo do tempo. Mas, tal como mostra o depoimento a seguir:
Eu sou satisfeita com o que eu faço. Gosto muito. Se for pensar tem quatro anos que eu
estou aqui. Eu gosto. Tem dia que eu saio daqui quebrada. Mas eu chego em casa e
renovo. Eu falei outro dia: “Ao mesmo tempo em que eles te sugam, eles te repõem
aquela força.” Às vezes você está trabalhando assim... Aí você sai e fala: “Nossa, eu não
estou dando conta”. Tem um caso a tarde que essa criança me suga muito. Ai eu chego
em casa... Ontem mesmo, eu cheguei: “Nossa gente, eu estou muito cansada. Porque
hoje meu aluno me tirou do sério”. Me tira do sério, ele não quer fazer nada, ai você fica
tentando. Conversa, vai pelo lado bom, conversando numa boa e ele não quer fazer
nada. Vai me cansando. Ele além de não fazer, ele atrapalha. Ai tem dia que eu saio
daqui bem sugada. Mas eu vejo retorno, mesmo que às vezes, ele me irrita muito. Ele
chega: “O professora! Eu gosto muito de você”. Ai vem e te dá um abraço. Você olha e
diz: “Gente! Nem parece aquele que estava ali me perturbando”. Mas no geral eu gosto
do que eu faço e isso facilita (Entrevista n° 05).
O depoimento da professora, dentre tantos outros, revela que no caos, ou na crise
que perpassa a educação “nem tudo está perdido”. A questão da responsabilidade
novamente vem à tona e, a despeito da resistência ao outro, as docentes sublimam,
controlam nervos, respiram fundo, choram, mas não fogem à responsabilidade diária.
Salários baixos, nervos de aço, contas a pagar e desvalorização em todos os sentidos
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não são mecanismos resistentes ao chamado do outro. Pode ser exagero aos olhos do
senso comum, mas a responsabilidade como categoria analítica, tão em falta no
“capitalismo da flexibilidade” (Sennett, 1999, 2004) resiste nas salas de aula diante da
perda da identidade, da reciprocidade com o outro e da constante necessidade de sermos
bons, tal como asseverou Sennett (1999, p. 174):
“Quem precisa de mim?” É uma questão de caráter que sofre um desafio radical no
capitalismo moderno. O sistema irradia indiferença. Faz isso em termos dos resultados
do esforço humano, como nos mercados em que o vencedor leva tudo, onde há pouca
relação entre o risco e recompensa. Irradia indiferença na organização da falta de
confiança, onde não há motivo para se ser necessário. E também na reengenharia das
instituições, em que as pessoas são tratadas como descartáveis. Essas práticas óbvia e
brutalmente reduzem o senso de que contamos como pessoa, de que somos necessários
aos outros.
É imperioso afirmar que a profissão docente ainda está longe deste cenário,
especialmente quando se trata da educação infantil. As docentes se apegam a
importância de suas funções. Não são muitas as profissões que trabalham diretamente
com o cuidado, com o “ser ainda em formação” e com a necessária interatividade com o
desconhecido (Tardif & Lessard, 2011). Até porque é lapidar a frase de Paul Ricouer
destacada por Sennett (1999, p. 174): “Como alguém conta comigo, eu sou responsável
por minha ação perante outro”. No caso da educação fundamental a frase não necessita
de muitas digressões. Ela encerra em si a ideia de que não somos passivos neste mundo
e que este outro potente em ações se transforma ao sabor das relações. A sala de aula,
tal como nos ensina Morais (2008), é um palco privilegiado de tais ações, nas quais
educando e educador se respeitam com lealdade, liberdade e diversidade.
Provavelmente, é diante de tais condições, especialmente a necessidade de
reconhecimento e cuidado do outro, que a docência como profissão resiste aos tempos
flexíveis e desencaixados, como respectivamente Sennett (1999) e Giddens (1991)
assinalaram.
As crianças e os adolescentes exigem de tudo. Os infantes menores precisam ir
ao banheiro, aprender a lavar as mãos, enxugar os dedos, pentear os cabelos, comer
devagar e até serem cuidadas nas higienes mais básicas. As maiores não fogem muito à
regra, estão ali para aprender a ler, escrever, desenvolver cognitivamente e
emocionalmente, além das regras mais elementares da socialização. De qualquer modo
são sujeitos que necessitam de cuidado, apesar da crescente demanda por disciplina,
autoridade, limites e princípios. E nada que possa operar em desfavor da liberdade. Pelo
34
contrário, a liberdade compreende a responsabilidade já mencionada e, por definição, é
limitada pela cultura da disciplina, das normas coletivas, tácitas e formais oriundas da
família e realimentadas na escola. A liberdade, por natureza, é resultado de ação
responsável desde a análise franca e sincera dos contratualistas. Sem esta ação a
liberdade inexiste. Não é por acaso que Freire (1996) afirma que “educar exige o
reconhecimento de ser condicionado” (Freire, 1996, p. 53), bem como a existência da
liberdade, do respeito, da autonomia, da criticidade e da autoridade:
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo
permanente. Mulheres e homens se tornam educáveis na medida em que se
reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis,
mas a consciência de sua inconclusão é que gerou educabilidade. É também na inclusão
que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura
que se alicerça a esperança (Freire, 1996, p. 58) .
Desnecessário bater na tecla que o docente lida com a “inconclusão” deste
sujeito. Rousseau (1995) em “O Emílio”, já afirmava da necessidade de educar para a
emancipação humana. Mais que isso, acreditava ele no poder do ator em aprender a
despeito do educador. É uma educação com liberdade, mas em nenhum momento longe
do contrato social. Rousseau somente quer respeitar as idiossincrasias do sujeito
criança, deste ser pensante que utiliza ostensivamente a razão o qual merece muito
amor, respeito e reconhecimento. Contudo, longe da visão utópica do filósofo francês
encontramos um mundo bastante diferente, no qual se navega em relações de
indiferença. E nas palavras do filósofo contemporâneo, também francês, Gilles
Lipovetsky (2005, p. 21-22):
A indiferença cresce. Em lugar nenhum o fenômeno é tão visível como no ensino, no
qual, em alguns anos, com a velocidade relâmpago, o prestígio e a autoridade dos
professores desapareceram quase completamente. Hoje em dia, a palavra do Mestre
deixou de ser sagrada, tornou-se banal e situa-se em pé de igualdade com a palavra da
mídia e o ensino se transformou em máquina neutralizada pela apatia escolar, feita de
atenção dispersa e de ceticismo desenvolto em relação ao saber. Grande confusão dos
Mestres. Este desafeto pelo saber que é bem mais significativo do que o tédio dos
estudantes, que é variável. Por isso a escola se parece menos com uma do que com um
deserto (embora a caserna também seja um deserto), onde os jovens vegetam sem
grande motivação ou interesse. Portanto, é preciso inovar a qualquer preço: cada vez
mais liberalismo, participação, pesquisa pedagógica e lá vem o escândalo, pois quanto
mais a escola dá ouvidos aos alunos, mais eles abandonam, sem barulho e sem alvoroço,
esse lugar vazio. Assim desapareceram as greves de após 1968, a contestação se
extinguiu; a escola é um corpo mumificado e os professores compõem um corpo
fatigado e incapaz de lhe insuflar vida.
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Das palavras do filósofo, as quais não deixam de causar mal-estar, é bom um
olhar atento sobre o trabalho das professoras. Há tempos já se sabe do descaso, da
desvalorização e do desrespeito com o professor. Na “era do vazio”, na esteira de
Lipovetsky (2005), do risco, tal como quer Beck (2010), os docentes sofrem a corrosão
do caráter tal como deseja Sennett (1999). A mercantilização, a feminização, a
proletarização não podem aparecer como verdades absolutas em condições nas quais o
docente encontra-se exaurido. Os mais atentos poderão falar que é “de tudo um pouco”.
Talvez seja, mas na escola em pesquisa, as professoras estão cansadas. Apesar da baixa
remuneração, do apoio, da relativa liberdade em sala de aula e a relação tranquila com a
direção, é unânime o desespero, o desamparo, a sensação de que “não vai dar conta”, de
“estar sendo sugada”, “humilhada” e “quebrada”.
Nos estudos sobre policiamento é comum um sociólogo chamar atenção para a
questão de “quem vigia os vigilantes”? numa clara tentativa de mostrar a importância do
controle do trabalho de tais agentes estatais. No caso dos professores, pode-se levantar a
seguinte questão “quem cuida dos cuidadores?" A sensação de desamparo dos
professores é algo sério e complexo. Em outro lugar (Barros & Freitas, 2011) foi
ressaltado a patologia que tem acometido os professores, a Síndrome de Burnout. Trata-
se de uma síndrome que aparece na literatura como resultado de vários elementos
(Codo, W. & Vasquez-Menezes, I., 1999). Ela tem como característica primordial a
“desistência psicológica” em relação ao dia a dia no trabalho. Uma espécie de
sofrimento invisível do ator que no ato laboral tem por função cuidar das pessoas. Logo,
ela não se resume ao ambiente escolar. Médicos, enfermeiros, policiais, bombeiros
também podem desenvolver esta síndrome. De acordo com Codo, W. & Vasquez-
Menezes, I. (1999, p. 238):
Na década de 70 foram construídos modelos teóricos e instrumentos capazes de
registrar e compreender o sentimento crônico de desânimo, de apatia, de
despersonalização dos trabalhadores encarregados de cuidar (caregivers). Essa síndrome
foi chamada de burnout, que significa algo como perder o fogo, a energia, queimar para
fora completamente (numa tradução mais direta). O trabalhador perde o sentido de sua
relação com o trabalho, o que se traduz em ausência de interesse. Como clientela de
risco são apontados os profissionais da educação, saúde, policiais e agentes
penitenciários, entre outros.
A síndrome do cuidado é entendida como multifuncional e comporta três
dimensões (Codo, W. & Vasquez-Menezes, I.; Soria Batista, 1999). A primeira é a
exaustão emocional, caracterizada pelo cansaço, perda da energia e esgotamento afetivo
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oriundo do próprio embate com a realidade cotidiana. A segunda dimensão é chamada
de “despersonalização”, um quadro psicológico no qual o agente não reconhece sua
identidade. Suas atitudes tornam-se neutras, sem fundamento, cínicas e negativas. A
despersonalização é o endurecimento afetivo do trabalhador, uma defesa em relação ao
ambiente violento ou hostil. A terceira dimensão da síndrome caracteriza-se pelo
descompromisso do agente, pela falta de motivação (desinteresse) e envolvimento no
trabalho. A desmotivação afeta o contato com as pessoas e, por consequência, opera em
desfavor do trabalhador. O docente, como o ator responsável pelo cuidado da educação
e na educação, possui o “teto de vidro”. Muitos jogam pedras nele e, por consequência,
é esperado encontrar uma ou duas das dimensões já destacadas.
De acordo com as narrativas das professoras o cansaço existe, é latente e por
vezes manifesto em palavras e gestos. Ele se encontra mais evidente em relação á rotina
cotidiana do que no ato do cuidado em si. Horários, agendas, hierarquias, a organização
laboral, as tarefas, as obrigações, os pais, as mães, os salários, são temas recorrentes nas
entrevistas. Outras relações, contudo, são produzidas em paralelo ao cansaço cotidiano,
como o estudo, a família e o modo de como se colocar no mundo. É claro que a relação
com o estranho que se modifica é difícil, mas esta dificuldade é potencializada por
outros determinantes. Como mencionado, a relação com o outro é própria da atividade
docente que é - por definição e natureza - interativa. A passagem do saber que requer
competência também opera como vitalizadora do cansaço e, por ressonância, do
sofrimento das professoras. Ao perguntar como se sentem após dias de trabalho as
docentes asseveraram que:
Muito, cansaço físico, problemas de garganta que dá por causa de a gente falar muito.
Fico rouca várias vezes ao ano, perco a voz, alergias por causa de giz. Hoje já é pincel,
mas já tive muitos problemas desse tipo. E dá muito cansaço, juntam-se as coisas:
problema familiar vem junto. Não dá pra misturar, mas quando mistura vem aquele
cansaço e dá vontade de desistir. Às vezes em casa mesmo já tem o cansaço de saber
que tem que vir. No início do ano, quando começa, aquela alegria toda, mas quando vai
se aproximando julho que tem o recesso e no final do ano em dezembro e as férias, você
já fica cansada. Mas, não que isso aconteça durante todo o ano. Trabalho super bem,
mas não fico doida para chegar no fim de semana não. Não é sempre que acontece esse
cansaço. Quando acontece dá vontade de ficar em casa. Aí é no início, já dentro de casa.
Quando eu chego aqui eu tento esquecer todos os problemas que eu tenho em casa
(Entrevista n° 03).
Às vezes eu estou mais cansada, mas no geral eu tenho alegria de acordar, de vir para o
trabalho, não tenho assim... Tem vez que a gente cansa mais. Tem vez que a gente está
mais esgotada. Acho que vai de casa também, né? Do que a gente tá passando em casa e
reflete um pouco aqui. Mas no geral eu não tenho dificuldade. A gente fica estressada
37
em casa, né? Briga um pouco, xinga um pouco, mas não tem assim... É estressante às
vezes, essa vida de professor (Entrevista n° 02).
É bem cansativo. Bem puxado. Mais no final da jornada, por causa de muita coisa pra
fazer em pouco tempo para dar. E também a indisciplina. A maior parte do tempo você
tem que ficar cobrando uma disciplina da sala e, geralmente, em meninos dessa idade é
muito difícil você conseguir manter uma disciplina dentro de sala de aula. Falta de
limite de pai e de mãe. (Entrevista n° 06)
Aqui a gente fala muito. Gasta muito a voz. Então isso cansa demais. É essa falação.
Falar sempre a mesma coisa, falar, chamar atenção. Falar, falar, falar. Repete muito:
“Não pode isso”, “Não pode aquilo”. “Agora é hora disso”. “Agora não é hora disso”.
“Vem cá”, “Não faz isso”. “Agora é hora de ir para sala”, “Agora é hora de ir fora da
sala”. “Fazer xixi é no banheiro”, “Não é na roupa”. (Entrevista n° 07).
Até que cansar eu canso. Tem algumas coisas assim, que dá uma dificuldade. Mas tudo
se resolve, mas aquela dificuldade assim que não possa resolver. As dificuldades de
estar dentro de sala mesmo. De estar ali lidando com eles dentro de sala mesmo. Em
matéria de conteúdo dentro de sala. Com eles. E com as mães, a relação é assim, essa
coisa de estar, a criança estar muito... Agressiva mesmo. Aquela mãe que pergunta o
que se passa dentro de casa. Na escola a gente lida com um jeito. Em casa o tratamento
é totalmente diferente. A partir do momento que eles voltam, já contaminou com os pais
no final de semana (Entrevista n° 10).
Pra falar a verdade o cansaço maior vem porque a jornada de trabalho é de quatro horas,
mas nunca é só aquilo. A maior parte a gente faz em casa. Que uma atividade, uma aula
que você vai dar para a criança você tem que preparar toda em casa. Feito com recortes
e tudo mais. Eu me sinto cansada mais de ter que levar pra casa, fazer relatório ou coisa
assim. Mas aqui dentro não. (Você sente cansaço mais no inicio da jornada de trabalho
ou no final?) Um pouquinho mais no final. Porque a criança de dois anos chora muito.
Ai quando vai chegando mais no final do dia, sua cabeça... passa a ser muito mais
mental do que físico. Por que você tem aquela preocupação. A criança tá naquela fase
em que ela morde. A criança faz com que tudo para conseguir na base do choro. Então
isso cansa muito mentalmente (Entrevista n° 08).
As narrativas, dramáticas em certo sentido apontam para três campos claramente
delineados. O primeiro é o campo que revela “o que faz o professor na educação infantil
e no ensino fundamental”. Não seria exagero afirmar que este profissional “faz de tudo
um pouco”. Sua multifuncionalidade, que na literatura aparece como competência é
mais do que perceptível. É de sua competência a socialização, a normatização de ações,
a formação, a configuração de limites, a orientação, a higienização, a organização do
tempo, dos movimentos, sem falar as obrigações e da responsabilidade já mencionada
quanto ao cuidado com os filhos dos outros.
O segundo campo é o da liderança em sala de aula. Já se disse que “sala de aula
não é para qualquer um”. Todavia, esqueceu-se de mencionar que “não é qualquer um
que pode lecionar para crianças”. As falas das professoras revelam mulheres potentes,
38
firmes, fortes e assertivas. Provavelmente, é neste nível de formação escolar que vamos
encontrar o que realmente é a educação. A educação que vem das palavras latinas
educare ou educere, as quais são largamente interpretadas como “abrir caminhos para”
ou “conduzir para fora” e/ou “conduzir para outro lugar”. Também no próprio
significado, encontrado em vários dicionários do senso comum, educação é o ato de
educar, conjunto de normas e regras pedagógicas aplicadas ao desenvolvimento e
formação dos seres humanos. Pode-se não utilizar o conceito em todos os níveis da
educação legitimados pelo Estado. A educação infantil tem certo monopólio por parte
de alguns atores. Lidar com as crianças requer a apreensão de um saber diferente, não
tão valorizado na sociedade hodierna, mas um saber especial e que merece maior
reconhecimento. Não é por acaso que as sociedades modernas têm avançado na
discussão dos direitos das crianças e muitos estudos já revelam a especialidade do ser
criança como cultura, produtor de saberes e reconstrutor do tecido social (Dornellas et.
al., 2007). Atualmente erra-se pouco ao afirmar que a professora encontra a criança
como uma folha em branco e se esforça para socializá-la de acordo com a moral
socialmente aceita. De qualquer forma não deixa de ser um privilégio, apesar de que,
para se sair bem os pedagogos parecem apontar para um professor que atue como um
“super-docente”. Nas intensas palavras de Imbernón (2010, p. 22):
Tudo isso implica considerar o professor como um agente dinâmico cultural, social e
curricular, capaz de tomar decisões educativas, éticas e morais, de desenvolver o
currículo em um contexto determinado e de elaborar projetos e materiais curriculares
com a colaboração dos colegas, situando o processo em um contexto específico
controlado pelo próprio coletivo.
As letras do autor mencionado caem como luva na ideia de um super-
profissional da educação. Provavelmente, não é por acaso que o seu livro “Formação
docente e profissional" se encontra na 8ª edição, haja vista que os professores “querem
dar conta de tudo" e, na realidade, não possuem capacidade para tanto porque são
vulneráveis e, em certos “contextos" impotentes, ainda mais em tempos de mercado
como vitalizador das relações entre estudantes e organização escolar. No entanto, tais
palavras apontam para o terceiro e último campo, muito claro na narrativa a seguir, na
qual o sofrimento no trabalho fica mais do que evidente:
Ah! Eu gosto, mas eu não sei se vale a pena esse esforço todo que eu faço. Porque eu
fico muito cansada, sabe? Muito! Dá vontade de chorar... (pausa). (Cansada) desses
meninos, eles são chatos demais. Esse ano está muito difícil. Ano passado os meninos
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eram menores. Eles me respeitavam mais, hoje em dia eles não estão nem aí pra você.
Eu falo muito com as minhas amigas que quando os meninos vão crescendo eles
começam a pensar, e isso é ruim pra gente. Porque você não consegue dominar eles.
Eles te dominam. Eu me sinto humilhada de vez em quando: já ganho pouco, trabalho
muito e eles têm essa liberdade de fazer tudo que quer com você. No final, chega sexta-
feira eu não quero nem olhar, sair de casa. Eu estou muito cansada. Estou muito
estressada. Eu não quero conversar com ninguém. Eu não quero sair pra lugar nenhum
(Entrevista n° 01).
A ideia de “ter que dar conta de tudo”, a ansiedade de que “os meninos vão
crescendo”, a sensação de perda da autonomia, da vitalidade, da identidade e da
autoridade são elementos próprios do sofrimento. Uma categoria que no Brasil recebeu
enorme ressonância na obra de Christophe Dejours (1992, cap. 2). Para o médico do
trabalho francês, a ideia de sofrimento é central nas relações de trabalho. Por diversos
motivos homens e mulheres sofrem, mas o autor aponta para o que denomina
“estratégias defensivas” que o próprio trabalhador produz em relação de trabalho. Na
verdade, Karl Marx já havia chamado atenção para este fato, destacando os processos de
alienação e de coisificação do ser humano. Sua Pergunta: “O que constitui a alienação
do trabalho?”, segue uma resposta lapidar:
Primeiramente ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e,
por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um
sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas
energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O
trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no
trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho
forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer
outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de, logo que
não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga (Marx, 1983,
p. 93).
O sofrimento como parte integrante do trabalho parece fazer parte da natureza
do processo de trabalho capitalista. Na realidade é bom frisar que de natural nada existe
no processo laboral. Tanto na esfera do trabalho material como imaterial as relações são
socialmente produzidas e não deixam de revelar fontes de poder, submissão do outro e
exploração. O sofrimento como categoria analítica aponta para uma chave de explicação
da força vital retirada dos docentes em trabalho. Uma força invisível, “força moral” ou
mesmo o que vem sendo chamado de competência por alguns autores. É esta
dificuldade de “seguir em frente” sem sofrimento que vem retirando dos docentes a
capacidade de “desenvolver livremente suas energias mentais e físicas” e, ao contrário,
potencializando a insatisfação, a desistência e o mal-estar.
40
Além disso, é forçoso mencionar que “exausto e mentalmente deprimido” o
professor já se encontra há tempos. Esperar que ficasse à vontade em seu tempo de folga
sem carregar nenhuma preocupação ou ligação com o trabalho é acreditar fielmente nas
palavras do clássico e romântico autor. Uma das características peculiares aos docentes
é a necessidade de tempo. Professores não conseguem mensurar o tempo exato e
necessário para uma atividade. O próprio conteúdo do trabalho não permite este
privilégio que tem claramente outras profissões. As aulas podem não terminar no sinal.
E se o tempo de aula termina, as indagações resistem fora do âmbito escolar. O tempo
de aula é somente um mecanismo da organização burocrática. A elaboração de planos
de aula e correção de avaliações se somam às várias demandas produzidas ao longo de
um curso. Identificar o início de uma atividade é possível, mas o seu desenvolvimento e
maturação é praticamente impossível, sob pena do professor não dar conta da ementa
solicitada ou deixar a desejar diante dos anseios e aspirações dos alunos.
Na escola em pesquisa as docentes afirmam não abrir mão do lazer que, em um
olhar atento, não aparece como determinante tampouco como privilégio ou direito. Elas
afirmam em baixo tom que frequentam clubes, academias, igrejas, faculdades,
universidades e casas de parentes. Além disso, gostam de “curtir o final de semana com
o namorado”, “ver filmes”, “sair para o shopping” ou “ficar com a família”. Mas é
praticamente unanimidade na vida das docentes o exercício de várias funções. Longe do
controle do tempo, as professoras fazem o que podem e repetem a já sabida sobrecarga
de atividades que demandam as relações familiares e os afazeres domésticos,
intensificados pelo sadismo e pelo masoquismo próprio das famílias patriarcais
brasileiras:
Eu procuro (descansar), mas... porque eu tenho filhos... Eu procuro estar com eles em
algum lugar que eles gostem de ir. Levar no clube, no parque, nesses lugares. Casas de
familiares ou ficar dentro de casa. A gente fica tão cansada. Quando tem um tempinho
livre você quer mais é descansar (Entrevista n° 08).
Lazer eu posso te dizer que eu não tenho muito não. Eu sou casada, tenho uma filha
adolescente. E fora daqui é dona de casa. Eu tomo conta de casa, lavo, passo, cozinho,
faxino. Eu que faço tudo em casa. (...) Junta o da escola com o de casa, junta os dois, ai
dá o cansaço (Entrevista n° 06).
Eu procuro estar sempre com minha família. Não faço atividade física nenhuma nem dia
de semana, nem fim de semana. Então sempre que eu posso eu estou com eles. Outro
dia eu estava falando: “Nossa, que vontade de ir lá para sítio e ficar de boa”. Virada pra
cima e falar assim: “Não quero mexer com nada”. Aí sai carregando notebook, um
monte de livros, um monte de coisas. Aí minha tia olhou pra mim e falou assim:
41
“Espera aí? É assim que você vai ficar de boa? Olhando diário de aluno, olhando
planejamento para a semana?” Entre uma conversa e outra eu sento lá e vejo o que eu
tenho que planejar para a semana. Porque não adianta, você fala que no fim de semana
você vai desligar, mas eu acho que a profissão, o magistério não te deixa fazer isso.
Porque na segunda-feira como você chega totalmente de boa na escola sem saber o que
você vai dar para o seu aluno. Não tem como. Então, querendo ou não o seu fim de
semana é tomado. Que sejam poucas horas, mas igual às vezes eu penso: “Ah!
Educação Infantil é mais fácil?” É. Você chega. Aí você vai brincar com a criança
contar uma história. Mas, mesmo assim, você tem que planejar. Fundamental é mais
complicado ainda, não tem como. Você chega na segunda-feira e diz: “Deixa eu pensar
o que eu vou dar para os meu alunos”. Ai realmente a sala vai virar uma “zona”. Todo
mundo olha pra sua cara e pensa assim: “A professora nem sabe o que ela vai dar e eu
vou prestar atenção no que ela vai falar?” (Entrevista n° 05).
Eu procuro manter os meus trabalhos controlados, e fazer em um período. Por exemplo,
da tarde. Passeio normalmente. Vou à missa. Mas, assim, sempre adianto os trabalhos
da escola para não ficar acumulado. E tem aula à noite também o que sobrecarrega
muito. Então saio quando dá (Entrevista n° 10).
O tempo imprevisível e de difícil controle revelam professoras “oniscientes”,
“onipotentes” e, paradoxalmente, incapazes de dividir trabalho e lazer. Dificilmente
estão desatentas ao mundo dos alunos crianças/adolescentes. Longe da percepção da
“sociabilidade dividida”, elas afirmam aproveitar o tempo livre em relações carregadas
de trabalho. Por vezes, as relações familiares, trabalho e lazer são confundidas e a
produção do ressentimento, latente nas falas, aparece nas narrativas porque, tal como
afirmou uma professora: “Eu tento tirar da cabeça, mas um fim de semana sem os
meninos dá uma saudade. Não tem como não pensar. Mas eu tento me divertir um
pouquinho, sair e namorar um pouquinho também” (Entrevista n° 04). Muito já se falou
que o campo da docência é também composto por relações de emoção. No entanto, é
preciso insistir que nestas relações a opressão não é uma boa companheira. Pelo
contrário, o tempo livre talvez seja o melhor e mais próspero momento de criação e
fundamentação de ideias. Tempo este do professor que não é utilizado tal como o tempo
da escola. Logo, é tempo não remunerado ou pouco remunerado, pois dele o docente
não tem o controle. A ilusão e a visão romântica da docência alimenta a esfera do
sofrimento, porque ao trabalho não concluído em sala de aula agregam-se as atividades
domésticas, religiosas e outras tantas que as docentes não têm controle, pois trata-se de
temporalidade não ritualizada e porque ainda traz o sentimento de que toda a “tristeza
acaba no próximo sorriso da criança”.
Pode-se argumentar ainda em relação ao fenômeno da resiliência, uma palavra
bonita que caracteriza a capacidade humana de superar o sofrimento ao mesmo tempo
42
em que restabelece o equilíbrio e busca novos sentidos. Na obra de Dejours (1992) é
apontada esta capacidade do trabalhador justamente quando ele, em contato com o
objeto de trabalho luta contra as forças que o levam para o campo da doença (mental ou
física).
O sofrimento começa quando a relação homem-organização do trabalho está bloqueada;
quando o trabalhador usou o máximo de suas faculdades intelectuais, psicoafetivas, de
aprendizagem e de adaptação. Quando um trabalhador usou de tudo de que dispunha de
saber e de poder na organização do trabalho e quando ele não pode mais mudar de
tarefa; isto é, quando foram esgotados os meios de defesa contra a exigência física. Não
são tanto as exigências mentais e psíquicas do trabalho que fazem surgir o sofrimento
(se bem que este fator seja evidentemente importante quanto à impossibilidade de toda a
evolução em direção ao seu alívio). A certeza de que o nível atingido de insatisfação
não pode mais diminuir marca o começo do sofrimento (Dejours, 1992, p. 52).
No claro caminho aberto por Marx, Dejours (1992) acredita que é na própria
organização do trabalho que o sujeito deve encontrar esta capacidade, haja vista que “a
organização temporal do trabalho, a escolha das técnicas operatórias, os instrumentos e
os materiais empregados permitem ao trabalhador, dentro de certos limites é claro,
adaptar o trabalho às suas aspirações e às suas competências” (Dejours, 1992, p. 52). A
crítica é direcionada, principalmente, ao modelo de organização gerencial e do trabalho
taylorista assentado na clara divisão das atividades laborais, dos tempos, ritmos e
movimentos corporais, bem como da pesada hierarquia, repartições, planos de carreira,
sistema de controle, avaliações, resultados e responsabilidades.
O problema reside é no conflito que emerge, desenvolve e planta raízes entre a
organização do trabalho, a economia psíquica e os desejos dos sujeitos. A situação do
trabalho, imposta na base da insignificância do trabalhador é produtora de medo,
ansiedade, vergonha, depressão, desprazer, cansaço e sofrimento. Nas palavras do
médico francês:
A vivência depressiva compensa de alguma maneira os sentimentos de indignidade, de
inutilidade e de desqualificação, ampliando-os. Esta depressão é dominada pelo
cansaço. Cansaço que se origina não só dos esforços musculares e psicossensoriais, mas
que resulta sobretudo do estado dos trabalhadores taylorizados. Executar uma tarefa sem
investimento material e afetivo exige a produção de esforço e de vontade, em outras
circunstâncias suportadas pelo jogo da motivação e do desejo. A vivência depressiva
alimenta-se da sensação de adormecimento intelectual, de anquilose mental, de paralisia
da imaginação e marca o triunfo do condicionamento ao comportamento produtivo.
(Dejours, 1992, p. 49).
43
Os professores não estão distantes do quadro delineado. Quadro que pode
receber novas roupagens em relação ao objeto de trabalho e em relação ao significado
que o trabalhador confere ao seu ofício. No que toca ao primeiro, não é mais novidade
afirmar a mudança de perfil dos alunos que andam no ensino superior a comprar
diplomas e no ensino fundamental a exercitar a bravura do pai e da mãe em relação à
autoridade dos professores (Barros & Freitas, 2011). No que toca ao segundo ponto, é
difícil encontrar significado onde não se encontra reconhecimento e possibilidades de
aspirar melhores lugares no local e no cenário do mercado de trabalho. Com base nas
ideias de Dejours (1992) identifica-se que os professores, especialmente, os
entrevistados, estão “quebrados”, “cansados”, próximos à “desistência” física e
psicológica, mas que ainda encontram possibilidades de adaptação, especialmente,
devido às crianças e o eterno mito da mulher professora e sacerdote do saber (Costa,
1985). Neste caminho é compreensível a divergência das narrativas. Algumas docentes
afirmaram, categoricamente, ter o interesse - em caso de novas oportunidades - em
deixar a profissão. Inquiridas sobre esta possibilidade destacaram que:
Sim! Já pensei algumas vezes. Mas por falta de não ter outros meios, de capital mesmo,
não tem como sair. Outra faculdade não. Não faria. Eu tentaria abrir alguma coisa pra
mim, relacionada a aula de reforço ou então... Eu gosto muito de trabalhar com criança,
então penso muito em salão de festas, essas coisas assim. Se eu tivesse condições
(Entrevista n° 09).
Já (pensei). (E porque não desistiu?) Eu acho que é por que eu gosto. Ao mesmo tempo
em que eu penso em desistir, eu penso: “Não! É isso que eu quero”. Às vezes é
cansativo. Eu penso... “Mas, não!” É gostoso ao mesmo tempo é cansativo. (Compensa
o cansaço?) Às vezes. Assim, mais para o lado da criança. Pelo salário não compensa
não. O salário da educação infantil é muito pouco. Trabalha muito, cansaço mental é
muito. Você esforça muito a mente (Entrevista n° 10).
Em alguns momentos sim. (E porque você não desistiu?) Porque eu não tive
oportunidade de outra coisa. (Se você tivesse agora, você acha que desistiria?) Não sei.
Talvez, sim. Mas a gente fala assim, mas no momento volta atrás. É uma coisa que eu
gosto de fazer. A gente gosta. É cansativo, mas eu gosto de fazer (Entrevista n° 11).
Crianças que às vezes os pais não aceitam que tem algum problema ou alguma
dificuldade, ou a escola que dá uma carga de trabalho, de conteúdos, de alunos. Às
vezes a sala está muito cheia então há uma tensão grande. Como já passei muitas vezes
vontade de às vezes nem vir trabalhar, por não ter essa ajuda da escola, ou ajuda dos
pais. Eu acho que tem que ter esse contato do pai com escola e com o professor. Eu
acho que tem que haver aquela união em prol do aluno mesmo. Porque quando não tem
essa parceira, eu acho que a tensão está ai. E dá vontade de desistir (Entrevista n° 03).
44
Apesar do cansaço, da desmotivação evidente nas narrativas, da não participação
dos pais, “das turmas”, da desvalorização social e dos baixos salários, as professoras
mostram resistentes às sociabilidades que configuram o sofrimento crônico de Dejours
(1992). A fadiga, a ansiedade, a insatisfação, o pouco tempo fora do trabalho são
relações efêmeras diante das “estratégias defensivas”, “macetes” e formas de adaptação
no trabalho. A relação com os alunos, ao contrário do que apregoa o senso comum, é
tensa, por vezes sádica e perversa. Na maioria das vezes não é rotineira e surpreende o
professor.
As tarefas repetitivas oriundas da direção, a imbricação dos “problemas de casa
com o trabalho”, o constante controle das emoções, reforçam a resiliência, o
consentimento, o controle e as condições nas quais o trabalho se desenvolve.
“Trabalhar com as crianças” é um bom motivo para continuar na profissão,
principalmente, para as mentes românticas e que não perceberam as mudanças que
perpassaram a profissão docente. Mas as professoras da escola em estudo revelam um
curioso paradoxo. Ao mesmo tempo em que denunciam que o cansaço é maior que no
passado, que os alunos não são os mesmos e que já pensaram em deixar a profissão
afirmam que vale continuar a persistir nela. Argumentam que controlam bem as salas,
que trabalhar com crianças é compensatório, que elas são fonte de inspiração, esperança
e perseverança:
Não. É igual eu estou te falando. É uma coisa que eu faço mesmo por gostar. Eu já tive
oportunidade de até trabalhar com outras coisas, mas eu preferi continuar. Eu gosto
(Entrevista n° 08).
Então eu falo uma vez e eles me respeitam, porque eu também escuto muito eles. Sento,
converso, sabe? A gente tem um diálogo aberto dentro de sala de aula. Então eu não
tenho dificuldade quanto a regência de turma, Quanto a desobediência, essas coisas. Já
teve? É logico que a gente tem, né? É lógico que a gente já teve. Mas eu não tenho
muita dificuldade. Igual tem professor que não consegue colocar ordem em sala, às
vezes até desiste da profissão. Eu não tenho isso. (Você já pensou em desistir da
profissão?) Não. (Entrevista n° 07).
Tem dia que mais do que o outro (cansa). Criança é muito assim: tem dia que ela está
muito calma, outro dia a criança está super, hiper, mega agitada. Então com certeza te
cansa mais que o outro dia, mas eu sempre falo, é muito compensatório chegar em casa
e lembrar do que a criança falou: “Que gosta muito de você”. Te dá um abraço quando
ela chega. Quando ela te vê: ela dá um sorriso. É muito compensatório. (Esse cansaço é
mais no início ou no final da jornada de trabalho?) Olha! Eu vou te confessar que
quando eu venho trabalhar eu faço isso, faço aquilo, quando eu chego aqui, como eu
estou te falando, a recepção dos meninos é tão grande, tão boa, que o cansaço
desaparece. Você trabalha tanto... Não para nem um minuto por que mexer com criança
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é isso: não para nem um minuto, então, você não tem tempo de cansar aqui. Você não
fica cansado aqui dentro. Quando você vai embora (eu vou pra aula direto), até eu
chegar na aula, também eu não canso, porque é tudo tão corrido, mas quando vai
chegando a noite vai batendo aquele cansaço. Por que o corpo pede socorro. Mas é um
cansaço que vale a pena (Entrevista n° 04).
A leitura, a interpretação e a ressignificação das práticas laborais seriam formas
para mudar a realidade. É claro que a realidade de Dejours (1992) não é a mesma que a
de Marx e esperar uma “revolução” nesta “modernidade recente” (Young, 2002) é
ilusório. Daí a necessidade da percepção da palavra, das relações e do silêncio dos
atores no locus de trabalho. Esta identificação do que o corpo e logo depois a psique
dizem é uma boa chave heurística para explicar o sofrimento vivido pelos docentes. Um
passo importante a se dar é a busca do prazer, da re-significação dos sentidos e de novos
sentidos para o “saber fazer” no trabalho com o objetivo de tornar as relações laborais
toleráveis e permitindo, em longo prazo, a construção social de um trabalho
fundamentado nas idiossincrasias de cada um. A ausência desta possibilidade só tende a
aumentar a “crise da civilização” e o distanciamento do homem de um modelo ético de
sociedade.
A ausência de um sentido socialmente construído capaz de substituir o sofrimento
vivido individualmente tem consequências na evolução efetiva, mental e somática do
doente, fora de uma construção social do sentido do sofrimento o risco principal é o non
sense da doença. A consequência disso é o desânimo, a decepção, às vezes até o
desespero, que sabemos que muito contribuem para acelerar o curso dos processos
mórbidos (Dejours, 1992, p. 166-167).
Nesta ótica, vale frisar que a desvalorização, a insignificância de ações, a fadiga,
o desrespeito e as relações tensas com os alunos em relação à autoridade são fenômenos
potencializados pelo baixo salário, pela violência, o descompromisso dos responsáveis,
tanto da esfera política como da privada e pela violência.
O reconhecimento do trabalho é certamente um dos pontos importantes da
sociedade moderna. Talvez para os professores o reconhecimento como necessidade
seja até mais importante que qualquer outra. Contudo, na sociedade do risco, nessa
sociedade excludente, na qual inevitavelmente vemos mudança profundas no campo da
educação e de suas sociabilidades os docentes não são à prova de mudanças. E creio ser
importante afirmar que não é por acaso que sua finalidade vem sendo colocada em
questão (Nóvoa, 2008). De qualquer modo, as metamorfoses no campo da educação
atingiram a identidade, a imagem e a sociabilidade destes atores. A identidade devido
46
principalmente a uma classe heterogênea, que não dialoga entre os iguais e que ao longo
dos anos assistiu ao enfraquecimento do movimento sindical. A imagem pública
deteriorada não somente pelos baixos salários e a pouca aceitabilidade de regras e
normas oriundas do ambiente escolar. A mídia ou mesmo os donos do poder trataram de
consumir as forças do professorado: os resultados foram baixos salários, mão de obra
barata e a queda da procura da profissão docente. Por último, a sociabilidade forjada
com a comunidade virou problema diante do paulatino afastamento dos pais e dos
responsáveis. Mais que isso, a escola tornou-se apêndice da casa e vem sofrendo de uma
forma ou de outra a violência que já se desenvolvia no ambiente privado das casas e
público das ruas. Os acontecimentos produziram efeitos perversos, pois, a despeito do
mito do sacerdócio, os docentes têm forjado relações de ressentimento e sentimentos de
culpa simplesmente porque não conseguem dar conta de tudo. Em ambiente minado,
qualquer passo é motivo de perigo e nesse caso nada como analisar as relações de
violência na escola em estudo.
Em outro lugar já foi discutido o polissêmico conceito de violência (Barros e
Freitas, 2011). Não por acaso, as relações entendidas como violentas tem recebido a
roupagem de violência(s) tentando no plural responder uma série de relações que levam
destruição ou sofrimento ao outro. É bem verdade que se trata de um conceito de difícil
manejo e que nos últimos tempos tem recebido maior atenção nas escolas. De todo
modo, um conceito não passa de um conjunto de palavras caso nele não se encontre
manifesto o mundo empírico. A realidade como fato social não é perceptível aos olhos
do senso comum quando os atores colocam significados nas relações. Neste caminho, o
cuidado com as narrativas tornou-se necessário. A violência aparece aqui e ali,
travestida, muitas vezes de indisciplina, empurrões, gritos ou “coisas normais da idade”.
Todavia, as relações manifestas não deixaram de revelar professoras desrespeitadas,
silenciadas e violentadas.
No que concerne às relações de desrespeito as docentes são assertivas em
apontar o descaso dos alunos e das alunas em relação à subjetividade do professor e ao
conteúdo oferecido em sala de aula. Lamentam a ignorância das crianças e o mesmo
dizem dos pais. As mudanças a cada ano não parecem melhorar a situação, tampouco as
relações tecidas com os responsáveis. Os alunos continuam, em geral, os mesmos e a
família, mesmo ausente não tem o interesse em saber o que acontece com os filhos na
escola. O resultado são crianças sem limites e diante dos acontecimentos que fogem do
47
controle a culpa tem recaído sobre as professoras, haja vista que pais e mães, como já
mencionado acreditam em filhos potentes, infalíveis, e corretos como anjos. Nas
entrevistas a condição objetiva dos professores é clara:
O que eu estou vendo mais esse ano é um aluno meu que ele não me respeita, ele ignora
o que eu falo com ele. Então eu falo: “Gente! O fulano não vai pro parquinho hoje
porque ele não ta obedecendo.” Aí ele vai lá e dá um grito no meio da sala. Isso
aconteceu agora. E eu não posso fazer nada. Se eu tirar o parquinho dele a mãe vem pra
cima de mim, a escola vem pra cima de mim. Mas eu faço assim: se eu vou deixar ele
sem parquinho, eu coloco ele uns dois minutos, porque criança não tem essa atenção ao
temporal tão grande. Então isso pra ele já é um castigo, a gente só não fala castigo na
escola. Já chegou na escola aluno a me bater, chutar porque não queria fazer alguma
coisa, tem aluno na escola que você vai chamar atenção dele e ele te ignora. Você vai,
pega nele e ele se joga no chão. Tem criança que é muito forte e você cai junto com ele.
Então acontece, diariamente e quando a mãe chega fala coitado do meu filho sabe? O
que a gente pode fazer? (Entrevista n° 01).
A questão da criança não te respeitar. Às vezes se torna mais difícil ensinar a uma
criança que uma coisa é errada. (E quando isso acontece como você se sente?) Mal, não
vou falar que bem porque, por exemplo, você vai chamar a atenção da criança e ela diz:
“Ah! Você não manda em mim”. Então às vezes você fica assim: “Meu Deus, uma
criança de cinco, três anos, falando isso com você”. A gente fica triste, às vezes você
tem um carinho tão grande por aquela criança. Ficar triste é pensar que às vezes, a
criança não gosta de você, porque depois que você for analisar vê que não é por que...
passa um pouquinho a criança já esqueceu. Já está te abraçando: “Tia eu te adoro, Tia
isso, Tia aquilo”. Mas naquele momento você tem um baque. A criança falar: “Você
não manda em mim”, “Não vou fazer isso”, “Não quero fazer aquilo”. Então às vezes
você toma um susto, mas você não pode passar isso pra criança. Você tem que ser
firme, falar que manda sim, que ela está na sua sala, a autoridade ali é você e que ela
tem que te respeitar (Entrevista n° 04).
As narrativas não deixam dúvida em relação às consequências provenientes do
desrespeito vivenciado. O outro, como visto, esse estranho, além de produzir sofrimento
abre, por vezes em situações inesperadas a forte possibilidade de destruição do eu. Uma
violência simbólica que se apresenta intensa no ato da humilhação, da desumanização e
da indiferença. As professoras entrevistadas, na busca de mecanismos de controle,
lançam mão - em desespero - da autoridade colocada em xeque. Apostam nos
“combinados” e partem para o enfrentamento. A violência aparece quando as
combinações não vão adiante e as negociações acordadas a priori são deixadas de lado:
Na hora que eu vejo que está uma zorra, a professora brava aparece. Ai eu tenho que
colocar ordem, porque senão, a criança não tem esse limite. Ela começa a brincar...
Igual no começo da aula, eu deixo livre porque eu tenho que corrigir o para-casa, tenho
que olhar a agenda, mas na hora que eu dou uma puxada: gente vamos corrigir o para-
casa, eles ainda não estão naquele clima. Vamos todo mundo sentar e corrigir o para-
casa. Ai quando eu vejo que não dá... Gente, estão me escutando? Ai eles: a professora
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agora chegou e vamos dar resultado. Ai funciona. Então é bem assim, na hora que você
vê que está precisando. Na hora da indisciplina, porque também eu não quero robô na
sala. Eu não quero aqueles alunos quietinhos, todos olhando e respondendo tudo a hora
que eu quero. Na hora que tem que prestar atenção, tem que prestar atenção. Porque eu
também não posso deixar totalmente solto. São muitas situações difíceis em sala de
aula? Eu tenho alguns... de manhã até que eu tenho um caso específico. Que a criança
gosta muito de colocar apelido, gosta muito de gozar, tirar onda com a cara do colega e
estava me trazendo muito problema, inclusive a gente tem um novato, que começou este
ano, e a criança quando é novata ela já vem com aquela carga, não conhece o ambiente,
não conhece os amigos, estão já fica totalmente retraída. E essa criança com essa mania
de colocar apelidos, me trouxe problemas. Mas nós conseguimos resolver. Ai eu
introduzi um trabalho sobre bullying na sala e trabalhamos, apresentamos. Ai fizemos
um trabalho sobre diversidade ano passado com esses mesmos alunos. Foram os
mesmos alunos ano passado. Então devagarzinho você vai... Porque é aquilo também, a
criança te escuta agora, ai passa daqui a quinze minutos ela: Não sei mais do que você
está falando. Alguma criança já saiu dos limites? Não, talvez porque essa escola seja
uma escola bem pequenininha, as salas são muito pequenas. Pra você ter uma ideia, eu
tenho seis alunos de manhã e 12 à tarde. Então eu acho que por isso, eu consigo um
controle maior. Então, como estou te falando, de manhã eu tive esse problema com esse
menino, à mania dele é ficar pondo apelido e ficar tirando onda, e isso chateou muito o
colega, então eu tive um probleminha, o pai reclamou, mas não é problema igual eu
vejo colegas reclamando, igual outro dia: “Ah, um aluno chegou armado na sala”. “Ah,
o outro quebrou a cara do outro”. Esse tipo de indisciplina. Graças a Deus (Entrevista n°
05).
A violência difusa, simbólica e materializada em palavras recebe novos
contornos e tensões quando aparecem os casos de agressões físicas e verbais que levam
ao limite a impossibilidade de reciprocidade (Velho, 2000). Em tais casos as docentes
entrevistadas chamaram atenção para as crianças gostarem de “bater”, “empurrar com
força” e “morder”. O contato físico e o uso da força física permitem não somente
verificar a agressividade manifesta. Permite, mais do que isso, perceber uma situação
social tensionada, esgarçada, com professores medrosos e humilhados. Obviamente
essas relações ficam mais complexas no final de semestre. Mas onde existe a
possibilidade da ameaça ou ela como relação, existe o medo e a possibilidade da
violência aberta, cruel e brutal.
Hoje, por exemplo, eu apanhei de um aluno. Os pais não aceitam que tem um problema,
tudo bem que já faz tratamento psicológico, mas que bate. Bateu na ajudante e me bateu
também. Então assim, está fora de sala. Está com a dona da escola. A ajudante apanhou.
Ele bateu nela e ela deixou. Isso acontece com frequência, ele bate na diretora, bate em
quem tiver. Eu cheguei e falei: pode me mandar embora por que eu não estou dando
conta. Por que não vou ficar apanhando de aluno. É a primeira vez que está acontecendo
isso em dez anos, mas chega em um ponto em que você diz assim: Meu Deus! Por que
isso está acontecendo? Para os pais é bilhete, chama para conversar, já veio, mas ai tem
que fazer. Ou tem que fazer e os pais não agem certo. Aí temos todo um trabalho. Acaba
com o clima todo da sala de aula, aquele clima gostosinho, deixam todas as crianças
agitadas, ai tem que conter todas as crianças em uma sala, como eu tenho, 19 alunos,
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todos ficam agitados por que viram um menino batendo na professora. Jogando a
carteira no chão. Ai todos ficam agitados: Você não pode fazer isso? Até voltar para a
rotina do dia a dia. Ai fica difícil (Entrevista n° 03).
Difícil! Por exemplo, a criança bateu. Aí é chamar atenção, mostrar que está errado.
Fazer com que todas as crianças mostrem pro colega que está errado. Se fizer de novo,
mostrar de novo que está errado. Às vezes a gente pune, Ah, você vai ficar sem
parquinho. Ai fica sem parquinho um dia, pra criança ver mesmo que está errado. Das
situações difíceis que a gente mais vê na sala de aula é essa. Às vezes por coisa boba,
um brinquedo, por exemplo, ai bate. Isso é uma situação difícil. Acredito que a gente
não pode citar a mesma situação por que são várias, a gente é pego de surpresa. Então
tem que saber lidar com aquilo naquela hora. (Entrevista n° 04).
Entre as crianças a violência aparentemente é menor, rapidamente perceptível e
na maioria dos casos as professoras aparecem como mediadores e negociam o conflito.
Em geral, episódios violentos ganham vida na indisciplina e em momentos nos quais a
autoridade da professora não está presente, como nas brincadeiras, nos jogos, nos
momentos de lazer e alimentação.
Sempre tem conflitos com brinquedos. Às vezes uma criança quer o brinquedo da outra
e chora. Às vezes bate com o brinquedo na outra criança. A gente explica: “o brinquedo
não é seu”. Ou quando não é o dia de trazer brinquedo a gente explica que é pra guardar
o brinquedo, que hoje não é dia de trazer o brinquedo. Quando bate ou quando faz
alguma coisa põe pra pensar. Fala pra pedir desculpas. Que não vai fazer mais isso,
essas coisas (Entrevista n° 07).
Aluno e aluno sempre tem, eles sempre brigam assim. Aqueles brigas... nada... mas
aquela coisa de tomar brinquedo, de pegar, aqueles disputas, normais que eu acho. Isso
tem. Sempre tem? Sem ter limite ou coisa parecida? Tem, por que são crianças de três
para quatro anos. Eles tem aquela curiosidade de pegar o brinquedo, as vezes não sabe
pedir emprestado ainda. Saber sabe, mas tem aquela euforia de pegar, de puxar. As
vezes machuca. Ontem mesmo um menino arranhou outro por que puxou o brinquedo
da mão. Essas coisas acontecem (Entrevista n° 02).
No entanto, já se tornou “normal” as mordidas. A psicanálise há tempos vem
tentando mostrar a importância da agressividade nos anos iniciais do infante (Winnicott,
1994; Luz & Gonçalves, 2008). Todavia, no piso escolar os professores dizem que não é
um caso, dois ou três. A possibilidade da “explosão” de determinados alunos é assunto
da atualidade e que se difere, em muito, de outros tempos. As crianças estariam
potencializadas. Professoras que trabalham há anos na educação infantil têm percebido
estas mudanças há mais tempo e as docentes novatas não deixam de pensar em mudar
de profissão ou não lidar com alunos. Nas narrativas elas reclamam ainda de “chutes”,
“vias de fato”. “beliscões”, o uso do lápis e o finalmente teste de força física. Em um
depoimento emocionado uma jovem professora vaticinou:
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Violência, no caso a descoberta deles no caso, em caso de violência no caso é mais na
mordida, batendo que é o normal na idade deles. Eles estão disputando o espaço e na
violência é essa. Na indisciplina, às vezes é o jeito em casa, não sei como é que é que
eles são em casa. Então eles não têm muito. Às vezes é muita pirraça, às vezes rejeita o
ouvir um pouco a gente. Mas é tudo conversado, conversando, explica e chega pertinho
e conversa. Uma hora eles entendem. Mas é sempre estar conversando. Então é assim
(Entrevista n° 10).
Quando eu era supervisora, eu via mais casos de indisciplina e de violência do que
quando eu era professora devido ao local em que eu trabalhava. Já teve casos de
violência entre as crianças, violência dentro da própria escola, crianças armadas, a gente
via crianças que eram estupradas pelo próprio pai. A minha clientela era muito
diferente. Aqui são coisas mais normais, brigas por um brinquedo, por um joguinho.
Querer uma cadeira. Em uma brincadeira, querer um livro que o outro está segurando ai
vem e empurra. Ai são aquelas coisas que a gente não pode considerar como violência.
(Entrevista n° 12).
(violência) entre eles sim. Eles costumam se pegar. E ai, todo dia tem um caso assim.
Quando eu olho tem um pegando cabelo do outro, brigando, mas, coisa de brinquedo.
(Mas isso é rotineiro? É comum?) É comum. (E como você lida com essas situações?)
Pego e converso: “Isso é comportamento?” “Olha o que que você fez. Quem se
comporta assim?” Eu falei: “Animais, vocês parecem animais brigando assim. Se
pegando igual vocês estão fazendo”. Aí eles levantam, não ficam de mal um do outro,
não guardam rancor. Daí a cinco minutos eles estão conversando. (E já teve casos mais
sérios, em que você teve que levar para a direção, para a coordenação? Chamar pais? De
comportamento, eles brigarem entre eles?) Já teve sim. (E resolveu o problema?) É, até
certo ponto sim. Mas depois volta, acontece a mesma coisa. É que é criança. Não guarda
o certo (Entrevista n° 11).
Trabalhar em uma conjuntura desconfortável, humilhante, sem respaldo e as
mínimas condições de segurança e defesa produzem, na esteira de Dejours (1992), os
mecanismos de defesa. Nas falas das professoras é claro o lamento em relação ao
amadurecimento dos alunos os quais vão ficando “mais fortes e inteligentes”. O uso da
autoridade, como salientado, é um mecanismo que a docente pode lançar mão, mas que
leva ao cansaço e ao sentimento de desrespeito. Todavia, chega ser hilária a situação das
docentes. As crianças, a despeito de todas as pesquisas e informações que até a TV joga
sobre o imaginário coletivo, ainda são vistas como “anjos”, “pequeninos indefesos” e
“seres que precisam de proteção”. É bem verdade que muitos comportamentos,
dependendo da situação, fortalecem esse imaginário. Todavia, já se sabe das perversões
infantis. As crianças aprontam, “jogam” com o adulto, fazem pirraça, birras e levam a
efeito situações que, no caso em pesquisa, os pais tendem a ignorar.
Na escola em pesquisa, os docentes procuram tomar algumas medidas. A maior
parte dos professores afirmou que aplicam um “castigo” aos moldes do famigerado
programa “Super Nany” exibido na televisão aberta brasileira. Trata-se uma prática
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bastante difundida em deixar a criança “pensando no que ela fez” em um lugar separado
dos demais. A técnica, chamada por muitos de “cantinho de pensamento”, “cadeirinha
do pensamento”, por vezes um banquinho ou um tapete objetiva produzir a culpa, o
mal-estar pelo mal feito e a devida correção do problema, como um “pedir desculpas”
para colegas ou professoras, ou mesmo a organização de material que foi jogado ao
chão. As docentes sentem remorso pelas ações, mas acreditam não ter outra forma
depois da conhecida conversa e das comparações com os colegas. Elas ainda apostam na
ignorância da criança na percepção do tempo em que passam no “pensamento”. A ideia
se resume, portanto, em deixar “um pouquinho” a criança e depois deixá-la sair e se
agrupar com os demais.
Outro mecanismo utilizado em casos de violência ou nas situações em que se
perdeu o controle é o de enviar o estudante para a responsabilidade da direção. Uma vez
“na sala da diretora”, professor, coordenação e psicólogo (caso esteja na escola) se
reúnem no intuito da solução do problema “da melhor forma possível”. Um deles é o
acompanhamento psicológico da criança na escola. Este serviço tem servido de
“controle” e “solução de problemas” ao longo da vida estudantil da criança. As ações
são diversas e sem grande efeito, mas nota-se o “trabalho profissional”, no intuito de
identificar problemas e transtornos psiquiátricos, os quais podem resultar em alunos
hiperativos, doentes, “doidos” ou com problemas em casa.
Então hoje aqui na escola enquanto gestora? Sim, eu tenho alunos que há uns dois anos
atrás, tinha problemas de comportamento e psiquiátricos também que eu voltava com
meus braços cheios de hematomas de tantos beliscões que ele me dava. E hoje eu tenho
uma criança de cinco anos que dá chute, soco, cospe, e a gente fica cheia de hematomas.
Quando eu vou chamar atenção dele e ele reage, ele reage com agressividade. A gente
não pode ter dó, não dá pra medir força, mas tem vezes que ele dava cada chutão que
doía. As professoras, quando não conseguem e tem casos para resolver, elas trazem pra
cá. Os casos na escola são um ou dois. A gente tem até facilidade. Não é que é uma
criança agressiva. Mas tem algum problema e esse problema, sintoma aparece na escola.
Então a professora não dá conta dele, fala a primeira, fala a segunda, fala a terceira, ai
não respeita, empurra o colega e tira a ordem da sala, ai não dá conta. Ai deixa um
pouco na secretaria pra acalmar. Ai conversa, passa um sermão, passa um sabão
(Entrevista n° 12).
Sobre a participação dos pais, a mesma docente afirmou que:
A gente apenas chama os pais, orienta, conversa, encaminha para um especialista
quando a gente já sabe os sintomas. Quando é questão de remédio, de psiquiatra. Então
o que a gente faz? A gente encaminha geralmente para o pediatra, ai vai pro relatório da
escola, ai a gente pede que seja encaminhado para um neuro, para um psiquiatra. A
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gente faz um trabalho de parceria, porque a gente sabe como é dentro da escola, mas o
problema vem de casa. Depois que faz esse tratamento médico, vocês vêem resultado na
criança? Algumas crianças. Na verdade as crianças que se espera o resultado das escolas
são estes que fizeram tratamento, passaram por um neuro, que estão com medicamentos,
acompanhamento com psicólogos, essa criança evolui. Agora a mãe que é resistente,
essa semana teve uma mãe que virou pra mim e perguntou: o que está acontecendo?
Meu filho nunca teve problemas na escola, agora ele está batendo? Eu falei assim: Não,
agora não. A gente vai arquivando. Cada vez que a mãe vai a escola a gente arquiva. Aí
a gente faz uma pasta no setor de psicologia. Ai a psicóloga chama e fala: "Olha! Desde
2008 eu faço o acompanhamento do seu filho, 2008, 2009, 2010 e agora 2011. Olha o
relatório do ano passado, de 2010”. Aí a psicóloga leu uma parte para a mãe: ele bate
nos colegas, bate na professora, foge da sala. Está vendo, tudo registrado e a mãe não dá
importância. Então casos assim não tem progresso não. A mãe vai cozinhando aquele
problema em banho Maria, e o menino vai piorando e a mãe: coitado! Coloca o menino
com vítima. Ai encaminha para o psicólogo, não vai. Encaminha para o “Neuro” não
vai. Encaminha e não vai. Ai ela não toma atitude, não quer acreditar. Então essas
situações difíceis são sempre grupos de acompanhamento? Sim, a gente tem crianças
que tem acompanhamento do fono, no (...) temos casos de autismo dentro da escola,
casos de problemas de aprendizagem, mas a gente consegue progredir. (Entrevista n°
12).
Conversar com os pais e/ou responsáveis é uma prática que algumas professoras
preferem levar a efeito. Dos casos relatados de duas, uma proposição: (1) os pais ou os
responsáveis aceitam as limitações, os problemas e as condições objetivas e subjetivas
do filho, oferecendo auxílio na necessária mudança de comportamento ou (2) eles ficam
indignados partindo para defesa do filho ainda desconhecido. Lançam mão da
autoridade de pai e dizem em largas linhas que “o meu filho nunca teve esse problema
em outra escola”. A culpabilização do outro ou das organizações é comum, todavia, já
foi dito que pais são cegos quanto as possíveis limitações ou até mesmo avanços da
criança. Os “nossos filhos sempre são melhores que os do vizinho”. De todo modo, as
ações neste caminho tem conseguido relativo sucesso , pois os pais que participam
tendem a ajudar as professora, mas como já mencionado a comunidade, ou a maioria
dos pais não participam efetivamente dos andamentos escolares.
Não, eu só tenho um pai que tem cobrado muito de um menino que tem apanhado muito
desse que tá dando trabalho em sala. Que é indisciplinado. Bate muito. Então tem um
pai que não está mais aceitando que o filho dele apanhar desse menino. Então eu estou
tendo problemas com esse pai. Vocês estão desenvolvendo algum projeto para lida com
isso? Estamos, estamos desenvolvendo o projeto "A gente pode", "A gente não pode",
em que a gente fala o que pode... as regras que tem na sala de aula. Então todas as
regras que forem colocadas por eles, eles sentam em uma rodinha e eles mesmos
colocam as regras. O que pode fazer e o que não pode dentro da escola. E a gente
procura todos os dias ver aquele combinado feito para poder ver se consegue diminuir
esses casos de violência dentro de sala de aula (Entrevista n° 06).
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Inquiridos sobre o motivo das ações violentas dos alunos as docentes são
praticamente unânimes em afirmar sobre “a falta de limites em casa”. Em outras
palavras, a instituição família, não estaria cumprindo o seu papel de socializadora
primária (Berger & Luckmann, 2008). As docentes percebem a decadência do núcleo
familiar, visto que o estudante utiliza a escola como catarse na tentativa de desabafar os
problemas que presencia em casa. As docentes sabem de casos que pais estão separados,
em conflito na justiça ou muito atarefados com o trabalho, com agenda cheia e que
definitivamente não estavam preparados para planejar a família. O resultado no
imaginário das docentes são “crianças sem educação”, “estudantes sem limites”, “sem o
mínimo de condição de estar naquela escola”. Como se sabe, estudantes potencializadas
acabam por colocar em xeque ou diminuir aos poucos a autoridade docente. Sobre tais
casos seguem o que vivenciam as docentes:
Então eles falam: “Você não é minha amiga”. “Levanta!” “Eu não vou levantar”. “Faz!”
“Eu não vou fazer. Eu vou contar pra minha mãe”. Eu tento estar contornando a
situação colocando pra eles que tem regra, que dentro daquela sala eu sou a autoridade
sobre eles. Não agressivo, mas colocando assim, você vai fazer sim porque está na hora
de fazer, porque o combinado é esse. No princípio do ano tiveram os combinados. Então
a todo tempo eu estou lembrando pra eles. Então assim, às vezes, quando aconteceu esse
caso de agressividade da criança falar assim: eu não sou sua amiga, eu vou ter que levar
e tal, a criança já vir mesmo pra bater. A gente está lembrando a eles: a você lembra lá
no começo que a gente falou que não pode bater. Não pode responder. Mas como eles
são pequenos fica mais fácil de chegar à direção. Eles costumam bater, morder? Uns aos
outros demais. (Já teve algum problema com você?) Me bater? Só uma vez, mas ai eu
sentei com a criança e eu coloquei pra criança que não que ela não podia fazer aquilo.
Porque não estava nos combinados, que aquilo não era certo, que aquilo era
desagradável e que se eu fizesse com ele igual, ele não ia gostar. Então que se ela
fizesse novamente ela iria ser punida. A gente não usa nem o termo castigo, mas coloca
ela sentada e dá um tempo de sala pra você pensar no que você fez, se você sabe o que é
certo. Eu lido muito com umas carinhas, eu tenho uma carinha feliz e uma carinha triste.
Então se a criança um dia ultrapassou todos os limites dela, ela vai receber uma carinha
triste. Eles não gostam, porque uma simples carinha pra eles diz muita coisa. Ai chega
ao final da aula, recebeu a carinha triste? Mas amanha você não deve fazer mais, sabe o
que é feio, o que não deve fazer. (O caso de violência com você, você teve que levar na
direção ou você mesmo conseguiu resolver?) Eu consegui resolver na sala de aula.
(Teve que chamar pais? Não foi necessário. Já foi necessário? )Em anos anteriores,
nesse não. Nesse que foi necessário, o que você fez, mandou pra direção? Realmente eu
relatei no meu diário de bordo. Depois eu procurei a psicóloga da escola. Comentei
sobre o caso, já era uma criança que já tinha problemas na família. Ai ela chamou a mãe
para conversar ai juntos, a gente decidiu conversa. Resolvemos muito na base da
conversa, não tem nem como você tentar fazer qualquer outra coisa. E ai chamou a mãe,
colocou a mãe a par. A mãe ajudou. A criança realmente melhorou. (Entrevista n° 08).
Acho que (a violência) aumentou demais. Você acha que esse aumento é devido a que?
Há vários fatores, mas eu acho que o culminante mesmo é a falta de limite que não vem
da própria casa dos alunos. Eu acho... aumentou demais. Nós temos casos aqui que
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estão acontecendo, que as professoras estão apanhando, que vai lá pra secretaria, se tiver
que conversar lá batem na gente, batem na diretora, jogam a mesa no chão. E isso e
aquilo e bate. Jogam coisas no coleguinha. Ai quando a gente vai procurar saber, vai
conversar com os pais, ai a gente vai ver que o problema está lá atrás, é um problema
família. Eu acho que o culminante mesmo começa lá dentro de casa na falta de limite (Entrevista n° 09).
As ações delineadas permitem a derradeira análise acerca do silêncio imposto
aos professores. A queda da autoridade, os casos de humilhação, salário baixo e a pouca
discricionariedade em relação aos comportamentos desviantes dos alunos tem retirado a
liberdade necessária e obrigatória no exercício da profissão. Como se trata de uma
atividade interativa (Tardif & Lessard, 2011) pode parecer paradoxal falar em silêncio
imposto aos professores. Como visto, poucas profissões são tão interativas quanto a dos
professores. Por natureza, a relação é dialética, pois a existência do estudante está
condicionada à existência de quem ensina. Logo, temos uma relação interativa na qual o
outro faz parte do enredo da relação social que se desenvolve geralmente numa
complexa “célula”, a sala de aula (Barros, 2012). Nesta sala, silenciados no que toca ás
suas reivindicações abre-se o caminho para a ansiedade e o medo. O resultado esperado
é o sentimento de impotência e fragilidade.
Frágeis e impotentes é comum também no silêncio encontrar a violência.
Professoras não deixaram de comentar que tem vontade de “dar um soco no aluno”,
revidar, empurrar e marcar. De todo modo, a interação é, por vezes, sofrida e tomada
por conflitos, bastando que o outro diferente e condicionado por princípios morais e
religiosos trate de causar mal-estar em uma simples aula. E não é preciso muito,
somente que a docente seja um pouco mais arrojada, cheia de interrogações e
provocações. Neste caminho o outro inesperado toma diferentes perfis, por vezes é
totalitário, arrogante e impetuoso, outras vezes é curioso, inquieto e sedento de saber.
Por último, é forçoso pensar na categoria destes professores que tem pouca ou
nenhuma ação coletiva. A profissão foi tomada nos últimos anos por uma espécie de
“vale tudo”, a ponto de uma docente regozijar com a desgraça de outra. O fenômeno é
generalizável porque se um professor anda recebendo ameaças, críticas ou mesmo está
em conflitos com alguns alunos, pode esperar que o outro professor aproveite dessa
situação. Pode até ser inconsciente, mas o mundo silenciado pela violência latente tem
resultado em professores doentes, cansados, amargurados, deprimidos e desistindo da
profissão. Acredita-se que a violência é todo ato consciente ou inconsciente capaz de
imprimir com certa força sofrimento e destruição da subjetividade alheia, bem como
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causar transtornos, desconforto e mal-estar. No caso em tela, as professoras, ainda
resistentes lutam por sua dignidade física e mental. Talvez ainda façam parte de um
grupo privilegiado, mas nada justifica o sentimento de medo e insegurança que, de uma
forma ou de outra, ainda invade o espaço escolar.
Conclusão
O debate sobre a profissão docente não pode se dar ao luxo de recusar como
meta o entendimento das relações de trabalho como processos interativos. Isto porque a
docência é uma das poucas profissões que lidam diretamente com o outro, este estranho,
eterno desconhecido, em eterno desenvolvimento que em interação pode provocar,
afetar, produzir conflitos ou relações de reciprocidade tão bem vindas em tempos de
caos na educação.
Na escola em estudo, como uma micro cena da realidade de outras instituições
escolares, tais relações ficaram claras e não por acaso novas e velhas questões
apareceram na retina do pesquisador. É bem clara ainda a ideia de que as professoras do
ensino infantil entendem a profissão como uma missão, algo mágico, um sacerdócio,
espaço de esperanças, ingenuidade e que merece o devido respeito, haja vista o cuidado
que tem “com os filhos dos outros”.
Cuidar dos infantes, entretanto, é um trabalho árduo. Em paradoxo ao mundo
mágico as professoras resistem aos problemas que perpassam a profissão. Dentre tantos,
ficou evidente a dificuldade na manutenção da autoridade, da contenção de casos de
violência, o difícil caminho a se trilhar com os pais e a desvantagem em ser professor
em tempos de desvalorização e desrespeito. Mais que isso, a impotência das docentes as
levam à direção escolar que, vítima do mercado adulto alimentado pelos responsáveis,
opera em favor dos clientes, apesar do apoio e da união da coordenação nos casos em
que realmente as relações saem do controle. Somam-se a isso o desrespeito, a
humilhação e os baixos salários. Fortes na sala de aula as docentes acabam por
evidenciar o cansaço fora das quatro paredes que encarceram alunos e professores.
Neste caso, tornou-se comum nas narrativas relatos de cansaço, pensamentos em torno
da desistência da profissão, ansiedade à flor da pele, medo e angústia. É um outro
mundo que a escola não mostra mas também não revela ter a ciência de sua existência.
O sofrimento tem se revestido de mecanismos de defesa e as docentes tem “se virado”
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como podem. O improviso, a mudança de humor, a palavra mais firme e casos de
descarga psíquica tornaram-se normais. Por vezes, as docentes choraram nas entrevistas
revelando um espaço escolar infantil tomado por coerção, medo, insegurança e
resistência.
Não é por acaso que as professoras chamaram atenção para a dificuldade em
lidar com muitos alunos. A este fato elas denunciam a falta de limites em casa, “na
família”, a confusão entre o público e o privado (casa e escola) e a falta de compromisso
dos responsáveis. O trabalho não é o espaço da realização ou da emancipação humana.
No caso em tela, poucas continuam o aperfeiçoamento na carreira e muitas reclamam do
acúmulo de trabalho, atribuições, falta de tempo com a família e das limitadas
condições objetivas de vida para levar a efeito um bom trabalho. São lamentáveis as
relações e representações de que a sociedade não leva a profissão a sério. Essa narrativa
não só resume muito do que foi pesquisado, mas deixa evidente a porta de entrada para
a compreensão da(s) violência(s) latente(s) e manifestas do piso escolar.
As violências que as professoras vivenciam na escola não podem ser entendidas
como normais e muito menos banais. Em primeiro, as docentes não entendem, como
reza o senso comum, as mordidas, empurrões e beliscões como normais no caso das
crianças “mais novinhas”. Elas se sentem ofendidas, humilhadas, desautorizadas e
violentadas. Algumas, inclusive, reclamaram com força destas investidas dos pequenos,
principalmente quando os pais não fazem a mínima questão de se responsabilizarem
pelos acontecimentos. Em segundo, apesar das reclamações das relações violentas
físicas e verbais as docentes atuam contra qualquer ação agressiva, chegando mesmo a
atuarem na prevenção da violência entre os alunos. Para isso lançam, mão de jogos,
brincadeiras, “combinados”, castigos, trabalhos para casa e o envolvimento dos pais.
Tudo para que a criança incorpore os princípios elementares da socialização secundária.
Por último, as docentes, diante da pouca possibilidade de reação, do cansaço sempre
latente, das angústias manifestas, das poucas perspectivas de carreira ou de melhoria
salarial, optam em um acordo tácito na manutenção do silêncio, de um estado de coisas
que calam a possibilidade da fala ou de ação diante dos acontecimentos cotidianos. Essa
violência incorporada e posteriormente reprimida tem resultado em mecanismos de
defesa e em capacidade de resistência ao sofrimento. Todavia, como se sabe, nada sai
impune, as reclamações sobre dores pelo corpo, cansaço da voz, impaciência,
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nervosismo, queda de produtividade revelam o resultado de relações nas quais o corpo
silenciado fala por emoções reprimidas e sonhos destruídos e não realizados.
Trabalhar com crianças na verdade não é fácil. A atividade docente - como
trabalho de difícil conceituação e manejo - recebe nos dias de hoje as novas tintas de
uma modernidade sem limites. As interações são complexas, difíceis e o “outro”, este
estranho de outrora, pode ser o próximo “inimigo”. A questão se torna mais séria, pois a
infância como conceito já é um problema e como esfera de compreensão de uma etapa
da vida resiste a muitas explicações. Em meio a mudanças cumpre finalizar destacando
professores resistentes, que ainda labutam “com alegria”, repletos de “esperança”, de
crenças que as coisas podem mudar em um mundo de sociabilidades complexas que vão
além dos muros da escola e que, na realidade, já se perdeu o controle e a ideia para onde
tudo isso vai ou se realmente existe um lugar para ir.
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