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Dança

PASSO SOLO

Política pública do Estado de São Paulo para a área centraliza milhões em recursos numa única companhia desde 2008

por Juliana Moraes

Nas chaves de acesso rápido do portal oficial da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, ao escolhermos a palavra “dança”, o único link que aparece é o da São Paulo Companhia de Dança. Uma pessoa que deseja se informar sobre a dança paulista terá, portanto, a falsa impressão de que essa companhia é a única existente relacionada à essa linguagem. Fica a pergunta: não há mais nada sendo produzido e que mereça fazer parte do site oficial da Secretaria de Cultura? A crítica de dança Helena Katz (em O Estado de S. Paulo, janeiro de 2008) citou várias frases que o então Secretário da pasta, João Sayad, usou para justificar a criação da Companhia paulista. Disse Sayad que o “objetivo era a excelência” e, questionado pela reportagem se havia cogitado usar a dotação orçamentária em projetos que atendessem a quem já faz dança, respondeu: “O que você escolheria: salvar a Varig ou começar a Gol? É mais fácil começar algo novo do que consertar o já existente”, argumentou.

Os comentários infelizes do ex-secretário instigaram os protestos de parcela significativa dos artistas de dança. A posição da Secretaria desconsiderava, além das manifestações populares, a rica história da dança do Estado como o Balé do IV Centenário, o Teatro Galpão, o Balé da Cidade de São Paulo (que neste ano completará 42 anos de existência), além da criação dos cursos de graduação em dança e a recente safra de artistas que criam na interface da dança com o teatro, a performance, as artes visuais, e as novas tecnologias.

Essa mágoa dos artistas originou a cisão entre vários profissionais da dança e a companhia, que só encontraria um caminho de superação com o estabelecimento de uma política pública que viabilizasse formas continuadas e diversificadas de produção e pesquisa em dança e que revertesse, ou ao menos equilibrasse, o investimento concentrado na São Paulo Companhia de Dança.

Criada em janeiro de 2008 pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, a Companhia e seus bailarinos têm como formação prioritária o balé clássico, o que define o perfil técnico de suas coreografias. Na descrição sobre ela se afirma que “a consolidação do grupo responde ao crescimento e desenvolvimento da dança no país”. Dessa forma, a Secretaria, que é apenas de São Paulo, declara que a Companhia de Dança foi criada com ambições de ação nacional. Diz ainda que se “pretende influir decisivamente firmando um padrão e contribuindo para o desenvolvimento de experiências similares”, entretanto, não há referência a como a companhia pretende fazer tal contribuição.

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA RETRATO DO BRASIL, AGOSTO DE 2010.

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Enquanto isso, os artistas da dança, assim como os de todas as outras áreas, têm como única fonte de fomento a projetos no Estado o Programa de Ação Cultural (ProAC), que prevê gastos no valor de 20 milhões de reais neste ano visando, segundo informações do site oficial, “atender demandas da sociedade civil na produção artístico-cultural”. Nesse caldo, que vai do teatro aos telefilmes, passando pela história em quadrinhos e literatura, a dança tem recebido apenas 1,8 milhão de reais desde 2008. Os editais são lançados uma vez por ano e os projetos selecionados têm que ser finalizados no prazo de até 10 meses. Ou seja, o ProAC promove uma política eventual e fragmentária, que não possibilita continuidade dos projetos e oferece aos artistas e produtores poucas possibilidades de planejamento. Diferentemente disso, a Associação Pró-Dança tem contrato firmado com a Secretaria de Cultura para gerenciar a São Paulo Companhia de Dança nos próximos 5 anos com orçamento praticamente igual a todo o conjunto do ProAC (18 milhões para 2010, com 90 milhões já contratados para o período de cinco anos).

A análise do ProAC para a dança levanta mais uma questão: a produção centralizada na capital é tão grande que os editais deste ano chegam a precisar que dos 33 projetos selecionados nas categorias de criação inédita e circulação de espetáculos, pelo menos cinco têm que ser de grupos sediados fora da capital (dois de circulação e três de obras inéditas). Essa “defesa” modesta do interior se coloca para que pelo menos um pouco do dinheiro seja destinado a produções de outras cidades, ou seja, o próprio edital reconhece a concentração geográfica dos projetos enviados para seleção.

O poder de atração da capital é, de certa forma, natural. Entretanto, o fluxo acentuado nos últimos anos demonstra também a capacidade de intervenção – no caso positiva – da política pública: com a Lei de Fomento à Dança do Município, que existe há cinco anos e destina em média 4 milhões de reais por ano a projetos de pesquisa em dança contemporânea, muitos jovens bailarinos e coreógrafos veem na capital a única possibilidade de viabilizarem suas carreiras, já que não há um plano de governo que divida sua ação pelas regiões do Estado na intenção de promover formação continuada e auxiliar no desenvolvimento de mercado de trabalho regional.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) elaborou a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural em 2001. O documento diz em seu artigo primeiro que a cultural é “tão necessária para a espécie humana quanto a biodiversidade é para a natureza”. Enquanto a dança prolifera na capital, multiplicando caminhos estéticos, o Estado decide apostar num único perfil de dança. Uma visão do fomento à cultura que aposta na verticalização e na concentração, a contrapelo da diversidade estética.

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA RETRATO DO BRASIL, AGOSTO DE 2010.

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