OURO PRETO: Paisagem Cultural do Itinerário dos Tapetes de Serragem da Semana Santa
FREITAS, Esequias Souza de.
1. IFBA-Campus Ilhéus. NEPUC-SB (Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanos e Culturais do Sul da
Bahia – Eixo Ilhéus-Itabuna) Rodovia Ilhéus - Itabuna BR 415, Km 13 - Bairro Vila Cachoeira - Ilhéus - BA
RESUMO Tapetes de serragem têm sido, há muito tempo, preparados para procissões como elementos de ornamentação viária. Eles ressignificam percursos urbanos indiferenciados no cotidiano, em itinerários específicos durante a festa religiosa. Através da atribuição de rica carga simbólica, cria-se com os tapetes uma ambiência de Espaço Sagrado Efêmero, que existe enquanto dura a celebração a que servem, mas cuja memória permanece firmemente nas comunidades locais, através dos variados sentidos de pertencimento evocados por meio do rito religioso. Na cidade de Ouro Preto, especificamente, os Tapetes de Serragem da Semana Santa sobressaem-se dessa já rica caracterização e se tornam fenômenos únicos. Ao marcar a Estrada Tronco (eixo de ocupação primária da paisagem), esses tapetes ligam, em suas extremidades, templos de arraiais fundacionais que evoluíram para a malha urbana conhecida, percorrendo extensões quilométricas para apresentar uma forma manutenção da memória da ocupação territorial. Investidos aqui de valor cosmogônico, os ritos cristãos da Semana Santa se mostram como um meta-discurso que executa um contar a história da própria cidade.
Palavras-chave: Ouro Preto; Tapete de Serragem; Paisagem Cultural; Semana Santa; Minas Gerais.
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Ressalva teórica – sobre a relação entre os conceitos de natureza X cultura
Dois dos quatro principais objetos de nossa reflexão –um tapete devocional de serragem, bem
como uma cidade sobre a qual esse é perfilado– ainda que visivelmente distintos em nível de
complexidade, encontram-se reduzidos a uma mesma categoria primal: a de artefatos,
objetos da ação humana. Nisso distinguem-se essencialmente da terceira coisa a tratar, a
paisagem, na acepção purista que a aloca nos domínios da natureza (antes que se levante a
necessidade de tratar da paisagem urbana)1. A quarta coisa será, propriamente, a paisagem
cultural, que resulta exatamente da ação da cultura sobre a paisagem natural, e que reclama
para sua compreensão a localização da matéria humana sobre ela, da qual o pensamento é a
matriz essencial.
Para a antropologia, campo de referência desse estudo multidisciplinar, o tapete de serragem
e a cidade são fenômenos culturais. O fenômeno cultural é manifesto em ideias, em
comportamentos e eventualmente em artefatos, nesse caso constituindo representação da
cultura material. Mas, em sua concretude, subtende necessariamente a natureza imaterial
que o pré-codifica, a intencionalidade humana que se estende da inspiração ao saber fazer.
Tanto o tapete de serragem quanto a cidade, enquanto artefatos, dependem de concepções
prévias, bem como do conhecimento de como realizá-los, individualmente e coletivamente.
“Essa dupla codificação permite comparar os três fenômenos culturais, ou seja, o artefato,
bem como seus aspectos cognitivos e comportamentais.” (NEWTON, apud RIBEIRO, s.d.)2.
A paisagem de Ouro Preto como cidade típica da colônia portuguesa
A necessidade que se impõe introdutoriamente, e que nos autorizará a passar para o estudo
em questão –de como os tapetes devocionais de serragem da Semana Santa ocupam a
cidade de Ouro Preto concretamente e simbolicamente–, é compreender como essa cidade
brasileira, ao representar um modo de ocupação espacial tipicamente português do período
colonialista, se relaciona com a paisagem. Para tal, é exemplar a intitulação que propõe
Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, do modo como as cidades lusitanas
na América (ditas “semeadas”) se distinguiam das cidades espanholas no mesmo contexto
1 Ou das paisagens que, mesmo sob a ação modeladora do gênio humano, mantenham-se próximas à aparência
de um natural estetizado, produto de uma intenção idealizadora de natureza, como na obra de arquitetos paisagistas, ou como em qualquer representação de paisagem: pintada, fotografada ou descrita.
2 In RIBEIRO, Darci (Editor). Suma etnológica brasileira. Edição atualizada do Handbook of South american
Indians. RIBEIRO, Berta (Coord.), et al. Volume 2. Tecnologia indígena. São Paulo: Vozes, Finep, s.d..
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(ditas “ladrilhadas”), por causa basicamente dos aspectos de cada cultura urbanizadora, e do
modo como eles refletiam a razão.
“Com efeito, a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para tantas nações conquistadoras, a contrução de cidades, foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. [...].
Em nosso próprio continente a colonização espanhola caracterizou-se largamente pelo que faltou à portuguesa: por uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis e bem ordenados. [...].
Já à primeira vista, o próprio traçado dos centro urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõem-lhes antes o acento voluntário da linha reta.” (HOLANDA, 1995, p.95, 96). (grifo nosso).
A América Ibérica teve, portanto, dois distintos modelos de urbanização, em que o principal
fator de diferenciação foi, a priori, o modo com que lidavam com as adversidades topográficas
de cada sítio a ser ocupado, resultando em um nível mais ou menos amistoso de diálogo com
a paisagem3.
Os centros urbanos luso-americanos foram propícios ao tipo de assentamento que deixava o
habitante bastante à vontade sobre onde e como edificar, sendo as ações regulatórias
governamentais ainda menores no interior, dada maior atenção à ocupação litorânea por
motivos de proteção da costa. Um certo sentido de abandono à própria sorte acompanhou os
investimentos desbravadores de muitos homens, especialmente no caso da descoberta do
ouro nas Minas Gerais, o que teve consequências sobre o modo de se instalar no sítio.
3 Os modos de urbanização de origem ibérica foram submetidos a pelo menos duas fortes matrizes: a de cultura
romana, racionalizada, que preconizava o projeto prévio de seus assentamentos, principalmente os de expansão militar, gerando o modelo de cidade em retícula ortogonal (hipodâmico); e a de cultura árabe, de ocupação espacial orgânica, com infinitos corredores interconectados a pátios, uma expressão da complexidade das relações interpessoais espacializadas. Aparentemente, o modelo espanhol ateve-se mais à cultura urbanizadora racionalista romana (na traza urbana), e o modelo português incorporou mais fortemente elementos da urbanização meso-oriental, visto que a maior parte da península ibérica manteve-se vários séculos sob o regime de califato, governo de cultura islâmica.
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Figura 1- Quadro comparativo: Exemplos de urbanização hispano-americana X ocupação espacial espontânea luso-brasileira. (Plantas: Acervo digital da Biblioteca Nacional, busca em acervo cartográfico). (Foto: autor: Esequias Freitas).
Essa notável diferença, ademais percebida em inúmeras cidades das colônias espanholas e
portuguesas, está assinalada não apenas por sua forma, mas principalmente por um modelo
abstrato de relação com o terreno, e terá profunda expressão no efeito como a paisagem
natural externa impacta a percepção da cidade, e mais, exerce ainda hoje, como tipologias
instaladas no imaginário do homem urbano, padrões de ocupação e comportamentos
relacionados ao uso do espaço. De modo que, quer em Buenos Aires, Lima ou Bogotá, ou
quer em Salvador, Olinda, ou Vila Rica, o que se percebe é que:
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“Seja como for, o traçado geométrico jamais pode alcançar, entre nós, a importância que veio a ter em terras da coroa de Castela: não raro o desenvolvimento ulterior dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes às sugestões topográficas.
A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para seguir até o fim.” (HOLANDA, 1995, p.109).
“A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem” (HOLANDA, 1995, p110). (grifo nosso).
Era comum a experiência de instalar-se provisoriamente, modo de vida imposto à atividade
bandeirante, do que vieram daqueles vilarejos de sobrevivência incerta. "Não foram os
primeiros da área, que seria conhecida por Minas Gerais, pois desde as entradas paulistas de
1674 eles se formaram ao longo dos caminhos.” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1975, p.06).
Esses arraiais, nos seus arruados, seguiam as manchas de ouro ao longo dos rios, riachos e córregos, posto que a exploração, ao primeiro impacto da descoberta, limitava-se às margens dessas correntes fluviais. Por isso, as ruas avançavam, recuavam, infletiam, cruzavam-se ou bifurcavam-se nas mais imprevistas direções, sem respeitar socavões ou grimpas abruptas da espessa morraria. Tudo era irregular, porque improvisado pelo surto inesperado da riqueza [...]. (SALES, 2007, p.54).
Uma vez normalizadas as explorações nas minas, surgem povoados de casebres em torno das capelas provisórias, delineando caminhos, que darão origem aos logradouros públicos da vila por surgir. Estes arraiais, mistos de acampamentos, tornam-se povoados em pouco tempo, e, já no final do século XVIII, delineia-se o caminho tronco que vem unir os diversos núcleos, sugerindo a ocupação urbana até hoje mantida. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1975, p.10). (grifo nosso).
A malha urbana que então vai se formando na Vila Rica de então, hoje cidade de Ouro Preto,
resulta da conurbação desses arraiais que vão se estruturando, e entre eles se consolida, à
força de pisoteio, a ligação comum que constituirá, ao longo do vale, a melhor rota de
passagem em direção a Mariana: a “estrada tronco”. A cidade de então pode ser vista
margeando uma estrada, segundo cartografia estudada por Sylvio de Vasconcelos (1977), em
seu livro Vila Rica. Ao contrário do que ocorre nas cidades planejadas, a forma das ruas foi
sendo dada pela sucessão de casas em alinhamento menos ou mais acidental, segundo a
solução que cada uma foi dando para a própria dificuldade que o terreno lhe impunha. De
modo que é pela adjacência das fachadas justapostas sem recuo que a linha da rua se vai
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perfazendo, segundo esclarece Nestor Goulart Reis Filho (1987), em Quadro da Arquitetura
no Brasil.
Assim, é impressionante em tantas cidades coloniais brasileiras, mas sobremaneira em Ouro
Preto, que haja uma intuição espontânea que sobrevém ao visitante, de que, por mais
grandiosa a expressão arquitetônica assentada no sítio, esse é que se sobrepõe
poderosamente à arquitetura, como numa imagem poética de repentino fascínio inversor. Ali o
labor humano se encontra submetido ao imperativo prévio da paisagem natural, cujo principal
elemento expressivo é a força da topografia.
Percebendo a cidade barroca
A experiência de civilização nas colônias do imperialismo barroco europeu passou pela ideia
de implantação de um modelo societário advindo de ideais transplantados. E modelos de
cidade têm sido há séculos projeções de modelos de cidadania. Ordenar o espaço é um meio
de ordenar o homem, especialmente o urbano. E a cidade barroca teve modelos ideais
provenientes de sua matriz europeia. Mas Ouro Preto não é o mais característico exemplo de
transplantação de um modelo europeu de cidade ideal. Não proveio de um plano, um desenho
de caracteres formais evidentes e facilmente identificáveis. Mas naturalmente está repleta de
características do tempo em que se erigiu: o período barroco. São evidentes numa cidade do
barroco as seguintes características:
Na cidade barroca não existe um espaçamento entre as construções. Cada fachada se articula com a do lado, cada casa se desdobra na seguinte. O que transforma um espaço vazio no meio da cidade numa praça é a harmonia do conjunto criada pelas construções encostadas umas nas outras. [...] As fachadas alinhadas das ruas servem para restringir a visão às principais edificações. [...].
Um senso espacial de cercamento define a rua [...]. O plano da fachada pertence visualmente ao espaço da rua, não à parede. A rua rouba as fachadas das paredes em volta para construir seus contornos. Daí a impressão de que as fachadas dos prédios são paredes interiores de uma sala ao ar livre. [...]
O olhar do sujeito que caminha por uma cidade barroca é um olhar barrado, sempre interrompido por um obstáculo. As ruas não permitem um olhar em perspectiva, uma vez que são curvas ou desembocam não em cruzamento, mas em meio a outra rua. [...]
A disposição das ruas determina a visão. [...] A fachada é vista de perto, implica proximidade. Como um muro. O cercamento do olhar é um dispositivo da visão. Em vez de ver todos os lados –como pressupõe a arquitetura moderna– o observador divide com as coisas o mesmo campo, está no meio delas. (PEIXOTO, 1996, p.279).
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Ouro Preto é uma cidade nascida durante o período barroco, e ideologicamente sujeita à
influência de uma “cosmovisão barroquista” 4 . A cidade nasceu num ambiente cultural
permeado por um sentido particular de ordem, proveniente da experiência religiosa
organizadora da vida social, por meio da persuasão que se valia do espetáculo. Esse sentido
de ordem era contribuição da matriz cultural européia, e uma das chaves ideológicas para um
domínio português sobre sua colônia americana. Mas essa ordem aparentemente não
repercutiu de modo automático e reconhecível como maneira correta ao ocupar o espaço.
Muito mais eficaz foi, entretanto, a maneira como esse sentido de ordem achou lugar na
cultura, exatamente no componente imaterial que preenche essa espacialidade de valores
barrocos, mais que de determinações formais clássicas. É no domínio dos comportamentos,
muito mais que nas características morfológicas, que uma percepção barroca deve encontrar
atenção junto à percepção do barroco.
O desaparecimento dos templos - a perda da capacidade de perceber
Ocupando-se de uma reflexão sobre a construção da cidade, o filósofo Nelson Brissac Peixoto
toma os templos como objetos que oportunizam uma experiência salutar da percepção da
4 Como caracterizou Afonso Ávila, referindo-se a uma das obras literárias provenientes da cultura mineira do séc.
XVIII, e especialmente de Ouro Preto, as “Cartas Chilenas”, de Tomás Antônio Gonzaga.
Figura 2: Cercamento do olhar. Fachadas justapostas encaixotam a rua e conduzem o olhar, não para um monumento em perspectiva privilegiada mediante projeto –como no urbanismo barroco europeu– mas aqui tangenciando os templos; assim, a rua está ora a sugerir aproximações frustradas, ora a surpreender o caminhante com aparições monumentais imprevistas, num processo de descoberta intuitivo e indireto. Nas fotos, trechos do Tapete de Serragem da Paróquia da Conceição (2009). (autor: Esequias Freitas).
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diferença num tecido urbano, proveniente do ritmo impresso pela presença do
desproporcional. O autor se ressente da contemporânea ausência dos templos, mas
curiosamente não enquanto edifícios excepcionais, grandiosos: “hoje não se pode mais contar
com o lugar que nos seja dado como morada dos deuses.” (PEIXOTO, 1996, p.257). Seria
ainda hoje possíver erigir catedrais? O problema não se refere à técnica, mas à capacidade de
se ser ainda hoje sensível ao grandioso, ao valor mais que à coisa simplesmente vista, ao que
se perceba como monumental.
O sentido de instalar novas experiências de perceber, vivenciar o mundo em que se habita,
promove uma sensibilidade menos linear, neutra ou lisa, menos “horizontal”. Essa forma de
percepção tem sido imposta pelo excesso de movimentação contemporânea, de
transitoriedade, de nomadismo. “uma irreversível tendência a desambientar monumentos
tende a transformar as cidades atuais em desertos.” Seria possível aceitar tal tipo de
consideração tendo em vista uma cidade como Ouro-Preto? Haveria aspectos de sua
contemporaneidade que interfeririam na percepção de seu próprio passado, mesmo que ele
esteja compulsoriamente presente, pela permanência material do antigo, dos bens
patrimoniais tombados, mais do que pela memória, bem intangível dos que vivem a própria
cidade? “A cidade contemporânea deixou de ser um testemunho cultural [...] Quando se muda
sempre de lugar, criam-se abrigos, não testemunhos culturais.” (PEIXOTO, 1996, p.257).
Os edifícios excepcionais não deixaram de existir, mas deixaram de ser percebidos por nós na
essência que constitui sua excepcionalidade, mais que na forma. Os monumentos
submergem na horizontalidade de uma insensibilidade atacada por outras fontes de estímulo;
“Uma irreversível tendência a desambientar os monumentos tende a transformar as cidades
atuais em desertos. As obras de arte parecem condenadas à diáspora.” (Op. cit., p.257). De
modo que não será a quantidade de bens arquitetônicos monumentais a garantia natural de
que haverá fruição sensível de sua riqueza que extrapola ao domínio do material.
No garimpo do imaterial, pistas para uma sensibilidade barroca
Uma alternativa para essa perda, essa alienação anestésica do mundo das configurações
urbanas barrocas, reside no reencontro de uma possível sensibilidade barroca no
contemporâneo. Isso seria um devaneio ou uma proposição irresponsável, se não
pudéssemos nos amparar em alguns indícios muito interessantes. O primeiro é que, em se
tratando de Ouro Preto como uma cidade colonial luso-brasileira, quaisquer modelos
racionalizados de implantação pouco se aplicariam a sua experiência urbanizadora, havendo,
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entretanto, ainda hoje, vasta evidência da permanência dos valores constituintes de sua típica
ocupação espacial em qualquer assentamento urbano cujo crescimento espontâneo comece
a ganhar estrutura reconhecível para além do improviso inicial. Isto é: há uma evidente
resiliência do modo de urbanização de matriz portuguesa entre nós, no nível da cultura
popular. O segundo indício vem de uma extensão natural do primeiro: a uma cultura
urbanizadora com sinais de permanência seculares, podem subjazer elementos de uma
cultura urbana que lhe corresponda. E estes é que nos servirão no reaprendizado de como ver
a cidade de hoje a partir da busca de traços de sua origem em nós. Tal coisa seria,
possivelmente, menos plausível se, em nossa secular experiência cultural, as prescrições
formais não encontrassem menos guarida na razão que as afecções passionais calhassem ao
coração. E a permanência de elementos imateriais tem mostrado, entre muitos povos, que
comportamentos, tradições e linguagem têm subsistido longamente mesmo à separação de
seu patrimônio material por guerras, diásporas ou pelas mudanças que o tempo impõe à
pedra e cal.
De volta à cidade, vem da observação dos templos, aqui muito bem preservados, o indicador
para o caminho a ser reencontrado em meio às rotinas urbanas do sec. XXI em Ouro Preto.
Há trezentos anos, a necessidade de igrejas se justificava por uma efervescência de
atividades religiosas pouco imaginável mesmo em nossos dias de messianismos adventícios.
E a oportunidade em que se realizava a conjunção da vivência pública da fé no espaço urbano
era, com propriedade, a festa religiosa barroca.
A festa religiosa como fenômeno cultural e suas dimensões perceptuais
A festa religiosa barroca em Minas revela a permanência de fortes traços da cultura colonial
brasileira, que se mostram evidentes na manutenção de características dos modos de festejar
em público até os dias de hoje. Essas festas não devem ser observadas fora da moldura
histórica que particularizou o momento de enriquecimento das vilas mineiras pelo ouro no séc.
XVIII. Aliás, o motivo da pompa e suntuosidade presentes, segundo Afonso Ávila (1994) tinha
razões simbólicas de integração social que excediam ao mero capricho decorativo por uma
apresentação mais bela e memorável.
A festa barroca, no entender de Ávila, representa um fato civilizacional, uma forma mentis que se expressa através de uma cultura lúdica, sensorial e persuasória, com o que pôs em evidência a complexidade sociopolítica do fenômeno festivo, momento de reiteração da ordem política metropolitana, mas também promotor de novas possibilidades de, por exemplo, integração dos mulatos na sociedade mineradora. Identificando a festa barroca com o carnaval contemporâneo, ele apontou para a persistência de certas formas
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estéticas, chegando a anunciar, por meio da aproximação meta-histórica entre festa barroca e carnaval contemporâneo, novas possibilidades para compreensão das conexões entre identidade nacional e festa. (JANCSÓ, KANTOR, 2001, p.09).
Uma aproximação de menor alçada e esforço será necessária ao nosso propósito: a
percepção de como os fins evocativos e sensibilizantes do modo de ser tipicamente barroco
encontram-se presentes e atuantes no homem contemporâneo. A chave da convergência
para identificação desses elementos será, numa experiência do espaço-tempo altamente
significativa, o uso da rua num rito que realize a ideia de passagem, cujo exemplo notável é a
procissão.
Os trechos de rua, entre marcos visuais ou intervalados por outras passagens, constituem
elementos de sugestão rítmica, composto por seguimentos e estações. Segundo o
antropólogo Carlos Brandão, é necessário que
[...] saibamos reconhecer que, fora situações de exceção, o que torna ritual uma cerimônia devota do catolicismo é sua qualidade de deslocamento, de viagem: a. em busca do lugar sagrado, como a romaria; b. conduzindo seres simbolicamente sagrados através de espaços profanos, como a procissão; c .viajando através de lugares com o anúncio de um festejo em algum local, como a folia; d. fazendo desfilarem pelas ruas pessoas revestidas de uma dignidade especial, como o cortejo; e. levando símbolos e sentidos de sacralidade à casa do outro, como na visitação; f. fazendo representar itinerantemente uma memória tida como heróica e/ou religiosa, como o folguedo.” (BRANDÃO, 1989, p.39).
Participar desse movimento, percebendo a necessidade de uma compreensão de dentro para
fora, foi o fator determinante para a adoção da etnografia como procedimento sine qua non da
pesquisa em que se referencia este texto. E eleger a situação mais abundante de expressões
ritualísticas na rua outopretana impeliu o trabalho a investigar a na Semana Santa, em seu
repertório de procissões, como ocasião oportuna de investigação. A observação se deu nos
anos de 2008 e 2009, e a necessidade de cobrir o biênio se mostrou necessária em razão de
que, em nessa cidade, duas paróquias se revezam na organização e realização das
festividades a cada ano: a de Nossa Senhora do Pilar, nos anos pares; e a de Nossa Senhora
da Conceição, nos anos ímpares.
Tendo como ponto alto da devoção as procissões da Sexta-Feira da Paixão e a do Domingo
de Ressurreição, tomamos aqui a segunda como elemento de trabalho, por considerar mais
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próprio à percepção do sentido de paisagem cultural, em função de, em se tratando de
aspectos perceptuais, a primeira é realizada de madrugada, pois a contrição devota de um
culto de martírio é mais apropriadamente realizada sem interferência de elementos de
distração visual fornecidos pelo ambiente em segundo plano; provam-no o fato de se preferir,
ainda hoje, em diversos lugares, a luz de velas como recurso de orientação dos fiéis. Nessa
situação, o sentimento de percepção pretendido é o interioridade psicológica (para os
milhares que seguem o esquife da imagem do Cristo morto nas ruas de Ouro Preto), em
reflexão silenciosa, sem hinos, sem cores exceto o roxo nas janelas, muito pouco apreendido
como deixa do espaço mais externo.
A procissão do domingo, porém, detém um elemento do maior interesse: ela trilha as ruas
sobre um tapete de serragem multicolorido, executado uma noite antes, exclusivamente para
ela; e que será desmanchado pela passagem ritual. Logo de manhã, o cortejo das autoridades
eclesiásticas encabeça a sequência de irmandades e associações que representam a
sociedade a celebrar a ressurreição de Jesus Cristo. Aqui o papel da visualidade é crucial;
atuando junto à comoção emocional, a espetacularidade da paisagem que muda ao longo do
processional imprime um estado uma suspensão do tempo real, pois nessa oportunidade se
realiza um tempo qualitativo diferente do cronológico. A abordagem conceitual da festa, em
proveitosa definição de Louis Marin5, amplia o horizonte de análise sobre o qual o tapete de
serragem de realiza:
[...] um processo coletivo que simultaneamente manipula o espaço por meio de certos movimentos em um certo tempo e produz seu espaço específico segundo regras e normas determinadas que ordenam esses movimentos e esse tempo valorizando-os. Pode-se dizer o mesmo do tempo: o desfile, cortejo ou a procissão, ordenando-se no tempo cronológico, estruturam-no segundo a temporalidade que lhes é própria e por isso mesmo produzem um tempo que simultaneamente interrompe o tempo cronológico e em certa medida o completa ou o funda. (MARIN, 1994 apud. HANSEN, in JANCSÓ, KANTOR, 2001, p.735).
A vivência dessa experiência requer discernir que algo autoriza o sujeito ao contato com essa
dimensão de “encantamento”: adentrar e sair dela requer ritos oportunizados por sinais
demarcatórios. Mircea Eliade afima: “Para o homem religioso o espaço não é homogêneo: o
espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das
outras” (ELIADE, 2008, p.25). No estudo da festa religiosa barroca mineira do séc. XVIII, João
5 Louis Marin. “Manifestation, cortège, defilé, procession”, in: De la representation. Paris:
Seuil/Gallimard, 1994, p.48.
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Adolfo Hansen destaca a profunda importância do percurso para o significado do evento,
especialmente pela delimitação:
As extremidades do percurso acumulavam funções: como extremidades espaciais, marcavam uma partida e uma chegada, delimitando um espaço intermediário, o da festa; temporariamente, as extremidades eram um início e um fim dos processos simbólicos que instauravam um tempo qualificado entre ambos os pontos; como extremidades sígnicas, eram metafóricas ou alegóricas, pois estabeleciam e delimitavam um espaço-tempo qualitativo, o do festejo e o do sagrado, sobrepostos ao espaço-tempo físico da vila. Nesse espaço-tempo qualitativo, ele mesmo simbólico, houve processos simbólicos de emissão, presentificação e recebimento do sagrado...” (HANSEN, in JANCSÓ, KANTOR, 2001, p.735).
São em igrejas que essa procissão se inicia e se encerra, com uma cerimônia religiosa; uma
missa em cada extremo, e um percurso entre ambas, marcado pelo tapete de serragem. Para
entender a profundidade da importância do tapete de serragem, há que se dizer a essa altura
que, na história da cidade de Ouro Preto, as duas paróquias citadas –Pilar e Conceição–
representam dois grandes arraiais que, constituindo cada um sua Igreja Matriz, cresceram em
arquetípica alteridade, definindo suas identidades em oposição mútua. E que, ao realizarem
revezadamente os ritos de Semana Santa a cada biênio, reportam-se, por motivos previsíveis,
à importância de suas presenças na mancha urbana unitária atual, que veio assimilar e diluir
seus limites físicos, já em meio ao séc. XVIII, quando se definiu o conjunto urbano que Ouro
Preto manteve, quase inalterado, até o começo do séc. XX.
Os tapetes de serragem no contexto de uma paisagem cultural associativa
As procissões de Domingo de ressurreição feitas pelos paroquianos da Matriz do Pilar (bairro
do Pilar) e da Matriz da Conceição (bairro de Antônio Dias), em Ouro Preto, têm percursos
exclusivos. Essas comunidades demarcam sua espacialidade pela alusão a um ponto fixo
referencial: suas igrejas matrizes, seu “absoluto cósmico”, segundo Mircea Eliade; sua
referência de Éden, o lugar do surgimento. E essas procissões são mais que o cumprimento
de uma tradição religiosa católica da Páscoa; são uma reconstituição ritual da fundação de um
território, e por isso importa tanto para muitas pessoas que elas descrevam percursos
distintos.
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Figura 3 – Procissão da Ressurreição na Paróquia do Pilar (2008), iniciada em sua Matriz, percorrendo o
eixo da Estrada Tronco (tornado então espaço sagrado), para uma das cabeceiras da mancha urbana
primitiva, até a Igreja do Bom Jesus. (autor: Esequias Freitas).
Mas para a operação dessas aquisições simbólicas, convém verificar, como a cultura barroca
contra-reformista lidou com a idéia de representação, especialmente por meio das festas
religiosas:
Assim, o termo representação aplicado às festas coloniais significa processos miméticos substancialistas, coletivos e anônimos, de produção simbólica. Eles utilizam várias espécies de signos recortados em várias substâncias para presentificar várias coisas ausentes. As várias espécies de signos produzem a presença metafórica de coisas e Instituições imediatamente ausentes. A presença efetuada é uma aparência cuja forma é condicionada pelos materiais disponíveis, pela circunstância institucional ou informal do uso das imagens e pelo gênero retórico-poético da representação (HANSEN, in JANCSÓ, KANTOR, 2001, p.741).
O tapete de serragem contemporâneo em Ouro Preto funcionaria precisamente neste papel, o
de estabelecer um discurso sobre as origens urbanas, ao tocar o habitante com uma
esperiência estética de herança barroca, evocadora de subjetividades, que apontam para a
presença do grandioso manifesta em meio ao comum. A partir do tapete se faz reatualizado,
ressignificado, o sentido do templo (de que fala Brissac), da sua importância para uma vida
urbana que perdeu o lugar da “morada dos deuses”, e o faz tomando temporariamente para o
espaço da rua a dignidade de lugar de adoração, proveniente dos edifícios religiosos. E o uso
do tapete de serragem aponta para o sentido de origens do lugar, induzindo o público e os
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participantes da sua execução e desmanchamento a uma percepção da natureza mítica
dessa vivência; a entrevisão do numinoso transvazando comum; do passado mítico revelado
em meio ao presente tangível.
As procissões de Ressurreição, como movimento grupal sobre traçados urbanos específicos,
feitos sobre os tapetes de serragem, são recursos pelos quais, por meio da memória coletiva
evocada nessa oportunidade, os participantes do presente se imbuem de um sentido do
ancestral, nutrindo-se de suas histórias, reforçando seus contornos como corpo coletivo em
meio à população ouropretana geral, através da restituição da noção de limite de seus
territórios paroquiais em meio à massa urbana indistinta que os circunscreve; e o percurso
urbano dos tapetes funciona como discurso sobre a ideia do lugares de suas origens,
esperados para tornarem-se manifestos, um a cada biênio, como uma espécie de desenho
memorial, pelas comunidades daqueles paroquianos que têm se apelidado secularmente
como Mocotós e Jacubas6.
O tempo da realização ritual não é menos importante que o espaço de sua ocorrência. Se a
festa representa uma cosmogonia, a instituição de referenciais espacialmente fixados e
demarcatórios, cabe considerar que esse ato criador, anualmente experienciado, está
submetido a um sentido que extrapola sua situação cronológica. “a festa não é a
comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua reatualização”.
(ELIADE, 2008, p.73). Portanto, o sentido de participar do rito da Páscoa não apenas imprime
sobre o participante a consciência da memória; imprime sobre ele a tristeza da perda, e a
seguir alegria da ressurreição. Semelhantemente, se em Ouro Preto a Semana Santa tem
como subtexto a afirmação de pertencimento territorial a contornos urbanos específicos, a
expressão de espacialidade assumida pelo tapete de serragem e a procissão que o
desmancha atuam como atualizadores do acontecimento fundacional dos povoados que
deram origem aos bairros do Pilar e de Antônio Dias.
Conclusão
Tratamos aqui de um tapete de serragem assentado na cidade de Ouro Preto dos nossos
dias, mas não detido nela. E é imprescindível, para tal, que sua existência seja efêmera, que
6 Termos perjorativos com que os grupos do Pilar e da Conceição se tratam a séculos. Aludindo a
períodos de grande privação e fome coletiva, chamam uns aos outros de “Mocotós” (restos de ossos do abate do gado) aos paroquianos do Pilar, e “Jacubas” (farofa pobre feita de mandioca) aos da Conceição.
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seus materiais seja perecíveis, que ele não permaneça. Ele viabiliza, na ocasião da festa, e
pela evocação da memória, a convicção do pertencimento dos sujeitos ao lugar, e do lugar a
outros tempos. Enquanto realização transitória de um lugar qualificado no espaço urbano, a
construção do tapete confere ao festejador instrumentos de vivência de um mito, pelo qual o
sentido da origem do lugar seja trazido à tona. O tapete de serragem permite à imaginação
realizar o passado no presente, por meio de um uso e apropriação do espaço que apontam
para a necessidade de demarcação de domínios territoriais do sagrado; ou de manifestações
do sagrado sobre o espaço normalmente profano, que unificam o espaço-tempo em
experiências de hierofania vividas pelos fiéis.
Figura 4 - Vista Panorâmica de Ouro Preto, com a Matriz da Conceição em primeiro Plano (autor: Esequias
Freitas). Abaixo, planta da cidade com percursos dos Tapetes de Serragem do Pilar, a esquerda (2008) e da
Conceição, a direita (2009), no sentido da Estrada Tronco.
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Assim sendo, temos nos Tapetes de Serragem da Semana Santa de Ouro Preto,
especialmente executados no Domingo de Páscoa, a realização de um rito religioso que se
reporta duplamente à ideia de ressurgimento, pois representa, no nível da fé cristã, a
Ressurreição de Jesus Cristo; e que toma esse sentido primário como meta-representação,
para evocar um outro ressurgimento: o dos territórios fundacionais das duas principais
comunidades locais, presentificando um passado não tão distante historicamente (Sec. XVIII),
mas tornado remoto pelo distanciamento necessário às histórias que se dignificam pelo sabor
épico impresso em suas narrativas.
A experiência de participar da realização dos Tapetes de Serragem, e de seu
desmanchamento sob os pés de uma procissão, nos introduz a um estado de sujeição a uma
sensorialidade de estirpe barroca, atualizada em nossos dias pela resiliência de traços de
uma mentalidade fortemente impressa desde os tempos do Brasil colônia, e que traz consigo
elementos de uma cultura urbana própria à colonização portuguesa, ainda presente nos
modos espontâneos de fazer e ser cidade.
Tapetes de Serragem também evocam a ordem do dia sobre a questão da paisagem cultural
em Ouro Preto. Talvez exatamente por sua ocupação tão impetuosa, breve e não planejada,
essa cidade não conseguiu, na composição de sua paisagem urbana, esvaecer a expressão
imperiosa da topografia como elemento mais expressivo da paisagem natural, que nunca lhe
esteve do lado de fora; antes a permeia e transpassa todo o tempo. A rigor, portanto, aí nunca
estiveram dissociadas, pois dificilmente haverá lugar dessa cidade em que não se possa
perceber os caprichos do relevo em meio a qual o ouro veio se revelar.
Então, estando em Ouro Preto a paisagem natural na paisagem urbana (e não o contrário,
como em qualquer outro lugar poderia ser), os percursos urbanos monumentais desenhados
por esses tapetes, que chegam a ter dois quilômetros de extensão, são qualificadores de uma
vivência de espaço multi-integradora. Pois alinha, pelos fios da significação, tempos
diferentes; e acrescenta, pelos itinerários, a presença do chão como elemento paisagístico no
primeiro plano, de fato como uma fachada sob os pés, afirmando pela direção predominante
de seus percursos o eixo fundamental da cidade, a Estrada Tronco.
Ao longo desse chão pintado de serragem efêmera estarão, numa extremidade, os centros
fundacionais de cada povo, seu lugar edênico, ponto que provê de sentido suas cosmogonias
paroquiais. Na outra, um outro templo que, após o percurso, restituirá o lugar sagrado ao
tempo em que voltará a ser o lugar comum do cotidiano. Dessa forma recontam para si
mesmos, simbolicamente, a cada ano, a história da própria existência.
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Essa exposição se encerra com a consideração de que, para os Tapetes de Serragem da
Semana Santa de Ouro Preto-MG, há suficiência de razões, dispostas em múltiplas ordens,
pelos quais se deva considerar a pertinência de classificá-los como exemplo pleno de
Itinerário numa Paisagem Cultural Associativa, sem que nisso haja qualquer apelo à
complacência para com aspectos de uma cultura popular de onde se queiram ver mantidos,
sob tutela de uma cultura superior, aspectos folclóricos ou pitorescos.
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