ADRIANO PEREIRA SANTOS
OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR, SUAS INSTITUIÇÕES E AS
HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS DOS AGRICULTORES
Dissertação apresentada à Universidade
Federal de Viçosa, como parte das
exigências do Programa de Pós-
Graduação em Extensão Rural, para
obtenção do título de Magister Scientiae.
VIÇOSA
MINAS GERAIS-BRASIL
2014
ii
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos meus pais, Ilda e José Carlos e a minha tia Ireny
tanto pela formação cultural que me proporcionaram como pela confiança, amor,
carinho e apoio incondicional.
À professora e amiga Nora Beatriz Presno Amodeo por ter acreditado em mim e
em meu potencial e pelos ensinamentos e conversas sempre muito ricas e inspiradoras
Gostaria de agradecer também aos agricultores e agricultoras de Viçosa que me
receberam sempre com muita atenção e solicitude, tornando a pesquisa de campo um
momento de muito aprendizado com conversas agradáveis e enriquecedoras para minha
formação pessoal e acadêmica.
Agradeço especialmente à minha companheira Marcella, uma mulher
maravilhosa, que me inspira e da forças, e com quem compartilho momentos de alegria
e felicidade. À razão do meu viver – Alice, o grande presente que o universo me deu,
um pequeno ser cheio de luz que faz com que cada instante vivido ao seu lado seja
repleto de alegria e amor.
À UFV, por todos os espaços de formação intelectual, profissional e pessoal nela
vivenciados. Aos colegas do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural, aos
funcionários Carminha e Romildo e aos professores, especialmente à Ana Louise pela
confiança em mim depositada e pela enorme contribuição que suas aulas e ensinamentos
me proporcionaram nessa caminhada.
Agradeço também a todos meus amigos que estão sempre ao meu lado, me
dando forças e compartilhando alegrias e angústias, especialmente ao Tommy, Ramom,
Victor, Vinicius, Yuri, Luisa, Grazi e à pequena Iara que só nos faz sorrir.
Também devo agradecer a Capes pelo financiamento dos meus estudos, o que
me possibilitou dedicação exclusiva às atividades mestrado.
Finalmente à ITCP/UFV pelo companheirismo e aprendizado proporcionado, e
pela compreensão do coletivo por minha ausência na reta final deste trabalho. Agradeço
também a professora Bianca por todo o apoio e contribuição para meu aprimoramento
profissional.
iii
BIOGRAFIA
Adriano Pereira Santos. filho de Ilda Pereira dos Santos e José Carlos dos
Santos, nasceu em 08 de maio de 1987, em Guarulhos-SP
Aos dezessete anos ingressou no curso de ciências econômicas na Universidade
Federal de Viçosa, graduando-se em setembro de 2011.
Durante o período da graduação participou do Estágio Interdisciplinar de
Vivência do estado de Minas Gerais (EIV-MG), experiência essa que abriu os caminhos
para o interesse nas questões agrárias do Brasil.
No ano de 2006 iniciou seu estágio no programa de extensão Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares, no qual permaneceu até julho de 2010, tendo
vivenciado experiências de trabalho junto a grupos populares que tiveram uma grande
contribuição para sua formação acadêmica e humana e profissional.
Ao final de 2011 vivenciou a marcante experiência de se tornar pai, com o
nascimento da Alice Cordeiro Costa Santos. No ano seguinte ingressou no Programa de
Pós Graduação em Extensão Rural iniciando sua trajetória como pesquisador, com
interesse em questões relacionadas a agricultura familiar, mercados e sociologia
econômica.
iv
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS .......................................................................................................... vi
RESUMO ........................................................................................................................ vii
ABSTRACT ................................................................................................................... viii
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1
1.2. OBJETIVOS .............................................................................................................. 3
1.2. METODOLOGIA ...................................................................................................... 5
2. A CONSTRUÇÃO SOCIOECONÔMICA DOS MERCADOS DA AGRICULTURA
FAMILIAR ........................................................................................................................ 7
2.1. AGRICULTURA FAMILIAR E MERCADOS. ............................................... 7
2.2. MERCADOS: DA PERSPECTIVA ECONÔMICA À SOCIOLÓGICA ....... 11
2.3. AS ESTRUTURAS, INSTITUIÇÕES E OS CAMPOS DA
COMERCIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR ............................................. 18
3. OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR DE VIÇOSA ............................. 28
3.1. A FEIRA MUNICIPAL ..................................................................................... 32
3.2. O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOOLAR (PNAE) OU
A “MERENDA ESCOLAR” ............................................................................................. 36
3.3. OS MERCADINHOS, RESTAURANTES E SUPERMERCADOS LOCAIS 41
3.4. O PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS (PAA) ......................... 44
3.5. A VENDA DIRETA E OS ATRAVESSADORES ............................................ 48
3.6. A REDE DE PROSSUMIDORES RAÍZES DA MATA ................................... 50
v
4. AS HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS E AS ESTRATÉGIAS DE
COMERCIALIZAÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES.................................... 57
4.1. PRODUTIVA .................................................................................................... 61
4.2. CLIENTIZAÇÃO ............................................................................................. 68
4.3. ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO ................................................................. 72
4.4.GESTÃO EMPREENDEDORA ....................................................................... 77
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 82
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 85
vi
LISTA DE SIGLAS
ACSA: Associação Córrego Santo Antonio
ACVA: Associação Comunitária de Vista Alegre
ATER: Assistência Técnica e Extensão Rural
CAE: Conselho de Alimentação da Educação
CAEAF: Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar - Doação simultânea
CDAF: Compra Direta da Agricultura Familiar
CDLAF: Compra Direta Local da Agricultura Familiar
CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento de Pesquisa e Tecnologia
CNPJ: Cadastro Nacional de Pessoa Física
CONAB: Companhia Nacional de Abastecimento
CPR – Estoque: Formação de Estoques pela Agricultura Familiar
DAP: Declaração de Aptidão ao Pronaf
EMATER: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FL: Feira Livre de Viçosa
FLV: Frutas, Legumes e Verduras
FNDE: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
GAO: Grupo de Agroecologia e Agricultura Orgânica
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IED: Investimento Estrangeiro Direto
IPCL: Incentivo à Produção e Consumo de Leite
ITCP/UFV – Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da UFV
MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário
NSE: Nova Sociologia Econômica
OMC: Organização Mundial do Comércio
PAA: Programa de Aquisição de Alimentos
PNAE: Programa Nacional de Alimentação Escolar
POA: Perspectiva Orientada aos Atores
PROEXT: Programa de Extensão Universitária
PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
SAUIPE: Grupo de Saúde Integral em Permacultura
SENAES-MTE: Secretária Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho
e Emprego
STR: Sindicato dos Trabalhadores Rurais
vii
RESUMO
SANTOS, Adriano Pereira M. Sc., Universidade Federal de Viçosa, junho de 2014. Os
mercados da agricultura familiar, suas instituições e as habilidades
socioeconômicas dos agricultores. Orientadora: Nora Beatriz Presno Amodeo.
Estudos recentes evidenciam o significativo papel que a agricultura familiar
desempenha no tocante a oferta de alimentos para a população brasileira. No entanto,
muitos são os desafios que esses agricultores encontram para acessarem os diversos
mercados que estão ao seu alcance nos dias atuais. A literatura especializada ressalta a
diversidade que as práticas de comercialização assumem, sugerindo ainda a existência
de lacunas no tocante a compreensão das relações que os agricultores familiares
desenvolvem com os mercados. Nesse sentido, essa pesquisa objetivou identificar as
características e racionalidades típicas ao campo da comercialização da agricultura
familiar do município de Viçosa-MG, bem como analisar as diferentes habilidades
exigidas aos agricultores para o acesso aos canais de comercialização de sua produção.
Sob o intuito de possibilitar as classificações necessárias a esta análise, optou-se por
trabalhar especificamente com os mercados de frutas, legumes e verduras (FLV),
segmento que envolve grande parte dos mercados e dos produtos da agricultura familiar
no município. Utilizando a metodologia de estudo de caso, a partir do mapeamento dos
principais mercados deste segmento, foi possível identificar os atores sociais
responsáveis por realizar as transações econômicas nestes espaços e, por meio da
aplicação de entrevistas semiestruturadas e observação participante e não participante,
foram levantadas as principais habilidades desenvolvidas pelos agricultores para
obterem êxito em suas relações comerciais. As habilidades foram agrupadas em quatro
principais categorias, a saber: produtiva, clientização, cooperação e associação, e gestão
empreendedora. As quatro instituições sociais de mercado apresentadas por Fligstein
(2003), ou seja, os direitos de propriedade, as estruturas de governança, as concepções
de controle e as normas de transação constituíram as categorias utilizadas para a análise
dos mercados. Contudo, sobre o dilema que envolve a relação entre as práticas dos
atores e as estruturas sociais que as condicionam, os resultados levantados indicam um
aumento do repertório da ação daqueles, embora tenha sido verificado também a
existência de restrições formais que limitam o poder dessa atuação, de forma que tanto
as habilidades como as instituições se influenciam mutuamente.
viii
ABSTRACT
SANTOS, Adriano Pereira M. Sc., Universidade Federal de Viçosa, June of 2014.
Markets for family farmers, their institutions and farmers’ socioeconomic skills.
Adviser: Nora Beatriz Presno Amodeo.
Recent studies highlight the significant role that family agriculture plays in relation to
food supply for the Brazilian population. However, many are the challenges for these
farmers to access the various markets that are within their reach today. The literature
stresses the diversity that marketing practices assume, even suggesting the existence of
gaps with regard to understanding the relationships between farmers and markets.
Therefore, this research aimed to identify the characteristics and rationalities of the field
of marketing of family farming, in Viçosa-MG,, and to analyze the different skills
required for farmers to access marketing channels for their production. In order to allow
the necessary classification for this analysis, it was decided to work specifically with
markets of fruits and vegetables (FLV), segment that involves large part of the markets
and products from family farms in the county. Using the methodology of case study,
from a mapping of the main markets for this segment was possible to identify the social
actors responsible for the economic transactions in these spaces and, through the
application of semi-structured interviews and participant and non-participant
observation, were surveyed key skills developed by farmers to be successful in their
business relationships. The skills were grouped into four main categories, namely:
production, clientization, cooperation and association, and entrepreneurial management.
The four social institutions of markets presented by Fligstein (2003), ie, property rights,
governance structures, conceptions of control and rules of the transaction, were the
categories used for the analysis of markets. However, on the dilemma involving the
relationship between the practices of the actors and the social structures that condition
them, the results collected indicate an increased repertoire of action of actors, although
it was also found that there are formal restrictions that limit the power of this
performance, so that both the skills and the institutions had influenced each other.
1
1. INTRODUÇÃO
A inserção produtiva e econômica da agricultura familiar1 brasileira assume um
papel cada vez mais significativo para o desenvolvimento econômico do país, e as ações
voltadas ao fortalecimento desse segmento ganham assim mais atenção tanto das
autoridades públicas, quanto do meio acadêmico e da sociedade civil como um todo. No
entanto, o escoamento da produção dos agricultores familiares apresenta-se ainda
enquanto um dos principais desafios à vida econômica destes. Diversas são as
estratégias desenvolvidas para a criação ou ampliação de espaços de comercialização
capazes não só de absorver a produção agropecuária familiar, como, muitas vezes, de
desencadear o surgimento de relações e ações específicas e intimas a cada um desses
mercados. O foco deste trabalho encontra-se então no universo dessas relações
desenvolvidas entre as pessoas ou as unidades produtivas que as circunscrevem e os
mercados em que compram e vendem.
Assim, pretende-se analisar as maneiras ainda incipientes, porém cada vez mais
pertinentes de compreender os processos de comercialização, as instituições e os fatores
que regem a ação econômica dos atores sociais envolvidos nos mercados da agricultura
familiar. A ideia é analisar como as práticas mercantis, balizadas tanto por uma
racionalidade econômica como por disposições culturalmente ou socialmente
incorporadas, podem diferenciar-se substancialmente diante do contexto e arranjo de
relações sociais intrínsecos a cada mercado acessado. Para tanto, faz-se necessário
identificar as habilidades necessárias aos agricultores para o acesso a esses diversos
canais de comercialização.
A opção por realizar um estudo sobre os processos de comercialização na
agricultura familiar e a relação destes com as estratégias desenvolvidas pelos
agricultores deve-se ao intuito de compreender o mercado em sua totalidade, como um
espaço de interação humana, capaz de traduzir a ampla gama de possibilidades da ação
1 Entende-se por agricultura familiar, a atividade econômica predominante praticada por
trabalhadores que se encaixam na classificação indicada pela lei nº 11.326/2006 na qual agricultor
familiar é aquele que pratica atividades no meio rural e atenda aos seguintes requisitos: não detenha,
a qualquer título, área maior do que quatro módulos fiscais em hectares; utilize predominantemente
mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou
empreendimento; tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas
vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento e dirija seu estabelecimento ou
empreendimento com a família.
2
sócio-econômica. Essa pesquisa intenta assim trazer uma nova perspectiva analítica para
a identificação dos processos de comercialização da agricultura familiar, ao relacionar
as estruturas de mercado com as habilidades requeridas aos agricultores para sua
inserção nestes.
Nesse sentido, é importante destacar que desde a década de 1990 até os dias
atuais houve um processo inédito de direcionamento de políticas públicas para o
segmento da agricultura familiar, assim. O surgimento de instrumentos como o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que promove a compra direta de produtos
alimentícios de associações e cooperativas da agricultura familiar e o Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) o qual é afetado pela lei nº11947/09, que
determina que no mínimo 30% do orçamento que é destinado para a alimentação das
escolas municipais e estaduais deve ser para a aquisição de produtos da agricultura
familiar. Juntos, os dois programas atendem tanto a agricultores individuais quanto
àqueles associados ou cooperados e contribui para a construção dos chamados mercados
institucionais..
Cabe lembrar, ainda, que políticas de incentivo à comercialização dos
empreendimentos de economia solidária, como projetos de criação de pontos fixos de
comercialização e de fomento iniciativa de redes solidárias e grupos de consumo,
ganham espaço crescente, por meio de projetos desenvolvidos pela Secretaria Nacional
de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (SENAES/ MTE).
Políticas essas destinadas ao segmento caracterizado pelo modo solidário de
organização produtiva, o qual, muitas vezes, abrange grupos formais, ou não, de
agricultores familiares. Essas recentes possibilidades de comércio acessíveis aos
agricultores familiares brasileiros contrastam, em tese, com as formas convencionais de
organização das vendas que podem acontecer tanto por meio de atravessadores como
pela participação em feiras livres ou outros espaços de comercialização, nos quais as
habilidades e práticas exigidas diante das incertezas e oscilações de tais mercados
diferenciam-se substancialmente das novas configurações possíveis.
Assim, como se pretende discutir a partir das informações aqui levantadas a
elaboração de estratégias de ampliação da renda dos agricultores familiares, diretamente
ligada ao aumento da comercialização destes, podem ser melhor compreendidas ao
lançarmos mão de uma análise que transcenda os aspectos de natureza estritamente
econômica. Adotando uma perspectiva capaz de captar os elementos culturais, sociais e
3
simbólicos que interferem nas dinâmicas dessas novas estruturas mercantis ao alcance
dos agricultores.
Contudo o estudo detalhado das características principais dos diferentes espaços
de comercialização da produção da agricultura familiar apresenta-se fundamental para
compreensão das dinâmicas e praticas mercantis desses agricultores, bem como permite
a explicitação dos fatores que balizam as escolhas de tais atores em acessar uma ou
outra forma de venda. Nesse sentido o presente trabalho busca então compreender:
quais habilidades os agricultores familiares necessitam desenvolver para acessar os
distintos canais de comercialização ao seu alcance?
1.1 OBJETIVOS
Nesse contexto, o objetivo principal desta pesquisa consiste em analisar as
características e racionalidades típicas aos mercados da agricultura familiar no
município de Viçosa-MG, bem como identificar as diferentes habilidades exigidas aos
agricultores para o acesso aos canais de comercialização de sua produção.
Para tanto se faz necessário também identificar quais são esses canais de
comercialização mais significativos para o escoamento da produção da agricultura
familiar no município, bem como diagnosticar os mecanismos utilizados para a
operacionalização das etapas que envolvem o ato de compra e venda de cada um dos
canais de comercialização estudados.
Buscou-se ainda caracterizar as habilidades de ordem sócio-econômica
desenvolvidas pelos agricultores para conseguirem participar dos mercados e ampliarem
tanto suas possibilidades de comercialização quanto as quantidades comercializadas.
Assim como verificar quais as racionalidades que orientam as práticas mercantis da
agricultura familiar viçosense.
Por fim este estudo teve também como objetivo identificar as estratégias e a
organização produtiva utilizada pelos agricultores familiares estudados, procurando
verificar os padrões produtivos adotados.
A justificativa principal para a realização desta pesquisa encontra-se na
contribuição desta para a ampliação do escopo analítico utilizado para compreender os
mercados da agricultura familiar e as interfaces estabelecidas entre os agentes
econômicos que nela atuam. A intenção é saber como os agricultores desenvolvem
práticas produtivas, organizacionais, sociais e cognitivas que relevam as
4
particularidades locais e culturais. Dessa forma esta pesquisa pretende fornecer
subsídios para estudos posteriores que intentem aprofundar as análises sobre as
especificidades aqui apontadas no tocante o acesso a mercados da agricultura familiar.
Destaca-se ainda que a discussão proposta aqui possibilita também esclarecer o
dilema de cunho teórico conceitual sobre qual é o sentido da relação causal entre as
estruturas dos mercados e a ação dos agricultores familiares, ou seja esta determina
aquelas ou vice-versa
Posto isto, excluindo-se esta introdução, a presente dissertação encontra-se
dividida em cinco capítulos. Na seção seguinte será apresentada a metodologia utilizada
para a definição e coleta dos dados e para a realização das análises pertinentes, e para a
sistematização dos resultados da pesquisa.
Posteriormente, pretende-se definir os principais conceitos e proposições do
arcabouço teórico e conceitual utilizado nesta pesquisa, a saber, a agricultura familiar
sua conjuntura política e o contexto da relação histórica desses agricultores com o
mercado e a Nova Sociologia Econômica e sua abordagem do enraizamento social e da
construção social dos arranjos econômicos, como o mercado.
A identificação das instituições observadas nos mercados da agricultura familiar
de Viçosa, bem como a caracterização da operacionalização destes espaços e a análise
das exigências ao seu acesso consistem no objeto do capítulo seguinte. Propõe-se nesse
momento contrastar as peculiaridades e especificidades típicas a cada um desses
mercados.
O capítulo posterior pretende dar conta da analise das habilidades verificadas
junto à prática mercantil dos agricultores, para tanto foram criadas categorias que
permitiram a uma visão sistêmica dos processos relacionados ao desenvolvimento
dessas habilidades apresentam-se diretamente ligadas com aos contextos sócio-
econômico dos mercados acessados.
Culmina com as considerações finais, onde será apresentado um panorama geral
dos resultados das análises realizadas em cada um dos capítulos, bem como se pretende
tecer as devidas conclusões a cerca do modo como as habilidades dos agricultores
familiares estudados também condicionam o acesso exitoso aos mercados do município,
e, portanto as ações de assessoria, fomento e apoio a comercialização desses sujeitos
deve considerar e potencializar essas habilidades.
5
1.2 METODOLOGIA
De acordo com os objetivos apresentados, o presente estudo de caso empregou
uma abordagem exploratória, descritiva e analítica Para tanto foram utilizados métodos
quantitativos e qualitativos para a análise das informações levantadas. Assim, as
práticas mercantis dos agricultores familiares constituíram o objeto deste estudo e as
unidades de análise foram os agricultores familiares e os mercados que absorvem sua
produção no município de Viçosa, Minas Gerais.
Primeiramente foi realizada uma pesquisa exploratória com o intuito de obter
informações secundárias sobre a comercialização da agricultura familiar no município,
identificando os principais mercados. Numa etapa posterior, através das entrevistas
semiestruturadas, foram indagadas as estratégias, bem como as habilidades econômicas
e sociais utilizadas pelos agricultores familiares no tocante ao acesso a diferentes
mercados e suas formas de funcionamento e normas de comercialização
correspondentes.
Na análise qualitativa das informações expressas nas falas dos agricultores
foram identificadas as relações sociais desenvolvidas entre os atores para a participação
nos diferentes mercados. O aspecto qualitativo tratado aqui remete à necessidade de se
compreender os significados “efetivamente vividos e os conteúdos comunicados” a
partir da interpretação e da avaliação com base na intencionalidade dos agricultores e na
influência do contexto que os envolve (MINAYO, 1992, p.222). Dessa forma, foram
estabelecidas categorias de análise que subsidiaram a discussão do conteúdo expresso
pelos atores sociais estudados, permitindo assim, fazer inferências.
Sob o intuito de captar a diversidade expressa nos mercados da agricultura
familiar no município de Viçosa, foram realizadas entrevistas tanto com agricultores,
como com técnicos de extensão rural, comerciantes e cozinheiras das escolas que
recebem os produtos de agricultores familiares.
Para a definição do número de agricultores entrevistados, foi utilizada uma
amostra não probabilística definida com base na técnica “Bola de Neve”. Ele é método
utilizado em pesquisas sociais no qual, de acordo com (ALBUQUERQUE, 2009), é
selecionado um número inicial de indivíduos que indicarão outros sujeitos com os quais
se relacionam que também estejam dentro da população-alvo, no caso os agricultores
familiares de Viçosa que comercializam sua produção. Ou seja, inicialmente foram
identificadas pessoas de referência (chamadas de “sementes”) entre as redes sociais
6
correspondentes ao circulo de relações em cada um dos mercados mapeados, essas
pessoas indicavam outros agricultores que também comercializam sua produção nos
mercados do município (as “filhas”). Esse procedimento é repetido até que os nomes
comecem a se repetir, chegando-se ao ponto de saturação das cadeias. Essa abordagem,
amparada na ideia de cadeias de referência, possibilitou a seleção de informantes
qualificados para que se pudesse alcançar os objetivos desta pesquisa: identificar as
habilidades dos agricultores familiares para acessarem os mercados ao seu alcance.
Assim, foram trinta e quatro (34) os agricultores familiares entrevistados.
Também, foram entrevistados informantes chave sendo: dois (2) técnicos que atuam
como mediadores do acesso aos mercados (um deles da EMATER, e outro de um
projeto de extensão universitária), oito (8) comerciantes do varejo local e duas (2)
cozinheiras de duas escolas municipais que rebem os produtos referentes às entregas do
PNAE. Totalizando assim quarenta e seis entrevistas (46). Cabe ressaltar que foram
encontrados outros agentes atuando nos mercados estudados, por exemplo, na Feira
Livre, que não correspondiam ao foco desta pesquisa: agricultores familiares do
município de Viçosa, razão pela qual não foram incluídos nesta pesquisa.
Foi realizada também, observação não participante em duas reuniões para as
definições da chamada pública e do projeto de entregas para o PNAE, e uma atividade
de uma das associações que entregam produtos para o PAA, e a observação participante
em três atividades de entrega de produtos na Rede Raízes da Mata e em cinco Feiras
Livres.
A análise documental incluiu os contratos que dispõem sobre a regulamentação
das entregas ao PNAE entre os anos de 2012 e 2013; os projetos finais das entregas do
PAA, do ano de 2012, correspondentes às duas associações que comercializam no
programa, os que foram obtidos através da EMATER; bem como os documentos que
contém as normas gerais que condicionam o acesso a esses dois programas. Esses
documentos foram utilizados para complementar a análise desses mercados, com a
ajuda da revisão bibliográfica correspondente.
7
2. A CONSTRUÇÃO SÓCIO-ECONOMICA DOS MERCADOS DA
AGRICULTURA FAMILIAR
2.1 AGRICULTURA FAMILIAR E MERCADOS
Apesar de todo o debate conceitual oriunda das diversas controvérsias teóricas
que circunscrevem o seu significado e utilização, a expressão agricultura familiar
encontra-se hoje consolidada tanto nos documentos oficiais que regulam as políticas
públicas do estado brasileiro como também nas universidades e centros de pesquisa que
trabalham para compreender os fenômenos subjacentes ao universo rural e até mesmo,
cada vez mais, no vocabulário dos próprios agricultores que enquadram-se na genérica
caracterização delimitada pelo termo.
Navarro (2010) assinala a existência de uma dupla origem do termo, a saber, a
norte americana e a europeia ressaltando a associação entre a adoção da expressão e o
desenvolvimento da chamada agricultura moderna, que se consolida nos países
desenvolvidos, e torna-se hegemônica caracterizando um modelo técnico-produtivista
na organização da produção agrícola. O autor salienta ainda uma substancial distinção
entre os agricultores familiares, ou farmers estadunidenses intensamente integrados ao
mercado e ao modus operandi da economia capitalista, e os camponeses europeus e o
longo processo histórico que marca a organização da produção e do modo de vida
destes.
O economista Ricardo Abramovay (1992), entretanto, compreende a unidade
familiar como a base sobre a qual a estrutura social da agricultura se desenvolveu nos
países ricos, gerando inclusive prósperos resultados produtivos no setor de alimentos e
na produção de fibras. O autor enaltece ainda o peculiar caráter desse segmento que,
contrariando uma imagem associada ao atraso, ou ao primitivo, constitui-se enquanto
familiar não apenas sob a ótica da propriedade em si, como também da gestão, de
maneira que:
"O peso da produção familiar na agricultura faz dela hoje um setor
único no capitalismo contemporâneo: não há atividade econômica em
que o trabalho e a gestão estruturem-se tão fortemente em torno de
vínculos de parentesco e onde a participação de mão-de-obra não
contratada seja tão importante." (ABRAMOVAY, 1992, p.209)
8
O aparente paradoxo do qual nos fala o autor pode levar ao questionamento
sobre como essa unidade familiar de produção no campo consegue integrar-se aos
padrões tecnológicos e produtivos, em constante transformação, e simultaneamente
manter relações de trabalho (e em muitos casos a organização da produção) distantes
daquela preconizada pela racionalidade dos retornos crescentes de escala. Nesse sentido,
Wanderley (1996) atenta para o fato de que o caráter familiar representa não apenas um
simples detalhe descritivo, mas apresenta-se capaz de desencadear processos
diferenciados que fundamentam uma atuação social e econômica específica, que
abrange características como a diversidade de culturas e atividades e uma maior
integração comunitária.
A origem dese termo remete então às intensas transformações direcionadas para
a modernização da agricultura brasileira que solapa o meio rural a partir de meados da
década de 1960 (modernização esta enviesada para a integração na dinâmica produtiva e
mercantil do capitalismo industrial) a unidade familiar se preserva e o que antes era tido
por formas camponesas origina a chamada agricultura familiar (ABRAMOVAY, 1992).
No entanto tais transformações não representam uma ruptura total com as práticas
anteriores mas, de forma dialética, produzem um agricultor que mantém certas tradições
e adapta-se ao novo padrão sócio-econômico em curso (WANDERLEY, 1996).
Em meio a essa suposta dicotomia característica aos agricultores familiares, um
olhar científico para esse segmento requer também a análise de outras dimensões, além
da econômica, que permitam uma perspectiva mais completa de suas nuances. Os
sistemas de contraprestações e retribuições típicos às relações entre filhos e netos, pais e
avós e as obrigações que envolvem a reciprocidade e a dependência pessoal entre os
membros familiares, constituem-se como exemplos de fenômenos intimamente ligados
ao universo familiar e que, por sua vez, interferem significativamente no desenrolar de
suas atividades econômicas (MARTINS, 2003).
O estudo das práticas e dinâmicas dos agricultores familiares devem portanto
edificar-se sob o olhar para a totalidade de suas ações enquanto indivíduos sociais que
são, e que encontram-se intimamente ligadas ao espaço que ocupam. De forma que:
"Educação, cultura, produção, trabalho, infra-estrutura, organização
política, mercado etc, são relações sociais constituintes das dimensões
territoriais. São concomitantemente interativas e completivas. Elas
não existem em separado. A educação não existe fora do território,
assim como a cultura, a economia e todas as outras dimensões. A
análise separada das relações sociais e dos territórios é uma forma de
construir dicotomias "(FERNANDES,2006, p.29)
9
No Brasil, é fato inegável a evidente associação que se tem entre a difusão do
termo agricultura familiar por meio da execução de políticas públicas de incentivo
produtivo a esses atores e sua adoção enquanto autodenominação para os (nem sempre)
pequenos produtores rurais que ocupam os campos brasileiros. Logo, falar sobre a
realidade econômica dos agricultores familiares brasileiros, a partir da década de 90,
implica, invariavelmente, levar em conta o papel do Estado na construção dos
significados e no aporte de incentivos a esse segmento.
Destaca-se que até então as ações do estado na agricultura limitaram-se aos
setores mais capitalizados, produtores de commodities, que apresentavam condições de
contribuir para sanar os desequilíbrios da balança comercial que desestabilizavam a
macroeconomia brasileira (MATTEI, 2005). A agricultura familiar entra na pauta do
disputadíssimo orçamento público apenas em 1996 com a criação do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), que surge sob um
contexto em que a escassez de crédito e o alto custo de produção eram tidos como os
principais entraves à atividade dos agricultores familiares (GUANZIROLI, 2007).
Sem adentrar nos detalhes e especificidades da execução do programa, o
direcionamento do PRONAF para a concessão de crédito e modernização produtiva dos
agricultores familiares, parece, entretanto deixar uma lacuna quanto ao aspecto da
comercialização dessas novas mercadorias impulsionadas por aquele. Guanziroli (2007)
e Kageyama (2003) apresentam estudos avaliativos que sugerem a eficácia do programa
no tocante a intensificação da utilização de recursos tecnológicos e aumento da
produtividade dos estabelecimentos familiares, e por outro lado, não observam
associação do programa com aumentos significativos de renda para o segmento.
Nesse sentido nota-se que o escoamento da produção familiar enfrenta
constantes desafios até os dias atuais, seja pela dificuldade de competir com
estabelecimentos de maior escala que apresentam maior facilidade de abastecer os
mercados, ou pela dificuldade de integrar-se em redes para viabilizar uma logística
eficaz. Dificuldades essas mitigadas parcialmente tanto por instrumentos de políticas
como o Programa de Aquisição de Alimentos, e o Programa Nacional de Alimentação
Escolar2 que, por meio de compras públicas diretas criam mercados reais que têm
contribuído cada vez mais para o incremento da renda dos agricultores familiares como
também por iniciativas ligadas a mobilização de agricultores e consumidores como
2 No capítulo seguinte esse programa será apresentado mais detalhadamente.
10
cooperativas e redes de consumo solidário que visam ter acesso a produtos livres de
agrotóxico e produzidos pelo segmento familiar.
Assim, os desafios que envolvem a relação entre a agricultura familiar e o acesso
a mercados repousam tanto em características específicas à organização sócio-
econômica desses atores sociais, haja vista, a combinação de atividades agrícolas com
atividades não agrícolas (pluriatividade), e a perspectiva de uma dinâmica de integração
entre agroindústria e agricultura familiar, como também nas transformações que os
mercados de bens agropecuários tem sofrido, principalmente a partir da década de 1990.
Em relação a essas ultimas transformações, Wilkinson (2008) destaca três
principais tendências para a agricultura familiar, a primeira diz respeito a abertura
comercial e integração regional decorrente do desmoronamento da intervenção estatal
nos mercados o que desencadeou profundas mudanças na regulação, organização e nas
formas de acesso a mercados; a segunda remete ao surgimento de novos nichos de
mercados como os de produtos orgânicos, comércio justo, entre outros que inicialmente
apresentavam oportunidades de inserção do segmento familiar, entretanto suas
exigências “em termos tecnológicos e mais ainda mercadológicos representam barreiras
para os agricultores tradicionais”; a terceira tendência assinalada compreende a
intensificação da contradição que se manifesta por um lado através da pressão por maior
escala e menor custo no ramo das commodities e de outro lado por uma crescente crítica
do ponto de vista ambiental e da especialização econômica ao modelo dominante, de
maneira que os modelos produtivos baseados na agricultura familiar passam a ganhar
espaço e visibilidade no contexto da economia mundial e seus mercados
agroalimentares (WILKINSON, 2008, P.14)
A partir deste cenário os desafios do acesso a mercados por parte dos
agricultores familiares são muitos e envolvem tanto o desenvolvimento de capacidades
e habilidades individuais e coletivas para a construção de novas formas de
relacionamento com estes mercados como inovações organizacionais e produtivas que
possibilitem incrementos nos níveis de qualidade e soluções logísticas e operacionais
capazes de abrir cada vez mais espaço para os produtos da agricultura familiar no vasto
universo que compreende os espaços de comercialização em nível local, regional e até
mesmo internacional.
11
2.2 MERCADOS: DA PERSPECTIVA ECONÔMICA À SOCIOLÓGICA
O estudo dos conceitos subjacentes ao tema da mercantilização e funcionamento
dos mercados tem se apresentado mais amplo e complexo do que sugerem as
abordagens que focam seus olhares sobre o ato da compra e venda, e no processo de
formação de preços, sem adentrar os fenômenos que compõem o seu contexto. Diversas
são as definições, desde as mais próximas às ciências econômicas até aquelas que
utilizam instrumentos sociológicos de análise, que demonstram o esforço teórico
encontrado nos trabalhos sobre mercados, mercadoria e mercantilização.
Com efeito, tais conceitos foram até o momento, objetos de estudo mais de
economistas do que de outros cientistas. Os mercados foram estudados, sob o
pensamento econômico dominante, como um espaço autônomo e impessoal onde se
realizam as trocas entre os agentes, assumindo assim uma posição tangencial dentre os
conceitos e variáveis cernes dos modelos econômicos. Em uma célebre frase, North
(1977) apud Abramovay (2004) ilustra essa posição que parece ser contraditória até
mesmo com os pressupostos da ortodoxia liberal: “É curioso que a literatura de
economia e história econômica contenha tão pouca discussão sobre a instituição central
em que se fundamenta a economia neoclássica – o mercado”.
Assim os economistas clássicos, neoclássicos e liberais tratam o mercado
basicamente como um espaço que deve assegurar o funcionamento do mecanismo de
determinação de preços e quantidades de bens e serviços capaz de equilibrar o sistema
econômico. O foco dos trabalhos recai então sobre as preferências e restrições dos
agentes econômicos traduzidos pelas funções matemáticas de utilidade que, tomadas em
distintos modelos explicam as escolhas de consumidores e produtores que interagem
nos mais variados mercados.
Recentes trabalhos sobre o tema levantam, entretanto, formas alternativas de
estudar os mercados, compreendendo-os enquanto “espaços de interação humana que
replicam conhecimentos” (STORR, 2008, p.136 apud AGNE&WAQUIL, 2011, p. 155)
enraizados pelos contextos sociais no quais estão imersos. Dessa forma, os mercados
não surgem como algo externo às pessoas, mas sim construídos pelas pessoas e suas
dinâmicas culturais, sociais e políticas que dão sentido às suas relações.
A mercadoria por sua vez, foi historicamente definida pelos pensadores da
ciência econômica como algo que essencialmente surge para ser comercializado ou
12
intercambiado. Marx (1982) complementa ainda que as mercadorias devem ser
analisadas atreladas ao equivalente geral, ou seja, o dinheiro, sua representação
quantitativa que permite que esta, quando comercializada nos espaços de trocas,
transforme valor de uso em valor de troca. Vale lembrar que essa leitura de Marx
possibilita a compreensão de um mercado impessoal que torna independente das
pessoas o resultado de seu trabalho, abordagem essa aparentemente incompleta quando
contrastada com seus escritos sobre o fetichismo da mercadoria que revela uma visão
mais institucional dos mercados (CONTERATO et alli, 2011).
Também influenciado pelo pensamento marxista, Karl Polanyi (2000) argumenta
que tomar elementos como terra, trabalho e dinheiro enquanto mercadorias representa
uma ficção, pois, mesmo que estes estejam subordinados às forças de compra e venda
que se materializam nos mercados reais, são muito mais amplos e complexos do que
simplesmente produzidos para o intercambio, assim:
Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia
também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do
homem ligado a esta etiqueta. [...] Os mercados de trabalho, terra e
dinheiro são essenciais para uma economia de mercado, entretanto,
nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de
grosseiras ficções [...] (POLANYI, 2000, p. 95)
Como uma extensão dos debates relacionados ao conceito de mercadoria, o
termo mercantilização pode ser tratado sob duas principais óticas: aquela definida como
um processo quase mecânico em que os mercados simplesmente transformam valores
de uso em valores de troca e outra que o compreende como um processo dialético que
envolve atores sociais com interesses por vezes conflitantes, ou seja, próximo à visão
mais relacional dos mercados.
Interessa-nos aqui adotar esta perspectiva relacional que compreende a troca
como uma interação social que acontece em contextos sociais e institucionais
específicos capazes de influenciar substancialmente os processos mercantis.
Destarte, em meio a esse debate, vale destacar os trabalhos de Appadurai (2008)
e Kopytof (2008), nos quais ambos autores evidenciam a dimensão sociocultural e
política da mercantilização e atribuem à troca, com todas as relações políticas e
institucionais que ela envolve, a real fonte de valor das coisas.
Assim, reconsiderando a teoria de valor marxista:
Appadurai afirma que o valor é antes uma projeção das pessoas e não
uma objetividade exterior. Disso decorre sua investidura na proposta
de uma política de valores. A insistência na política e nos processos
13
culturalmente localizados volta à atenção da mercantilização como um
processo não linear [...] (CONTERATO et alli, 2011)
Em síntese a discussão apresentada na citação anterior sugere a compreensão da
mercantilização como um processo amplo e diverso em que a “intersecção de fatores
temporais, culturais, políticos e sociais faz com que algumas coisas transitem no estado
de mercadoria” (APPADURAI, 2008).
Entretanto, a relação das pessoas com os mercados, sofreu sucessivas
transformações ao longo da história. Correntes de pensadores, economistas entre outros
cientistas sociais intentaram, em vários momentos, definir formas ideais que deveriam
orientar a atuação dos agentes em determinados mercados a fim de alcançar um
desenvolvimento da economia e da sociedade como um todo.
No tocante ao espaço agrário, os economistas, principalmente os partidários da
corrente liberal, como Theodor Schultz, argumentam que “o problema do
desenvolvimento capitalista na agricultura estava associado aos entraves à completa
racionalidade por parte do agricultor no uso dos fatores de produção” (SCHULTZ, 1964
apud CONTERATO et alli, 2011, p.73). Essa racionalidade completa é caracterizada
pela ideia de que a crescente inserção dos produtos da agricultura nos mercados leva
invariavelmente a maiores níveis de desenvolvimento.
A perspectiva da commercialization, representante das ideias apresentadas
acima, defende a passagem de um modo de produção simples de mercadorias para uma
forma de produção mecanizada e tecnificada capaz de alcançar altos índices de
produtividade. É essa a visão liberal que traz uma concreta proposta de
desenvolvimento das forças produtivas do campo sob o modo capitalista de produção.
Nesta concepção, tornou-se corrente (mainstream) o entendimento de
que modernizar a agricultura tradicional significava integrá-la e inseri-
la ao mercado via aumento da comercialization – a montante através
da absorção de inputs externos como insumos, sementes e fertilizantes
e , a jusante pela ampliação dos chamados cultivos comerciais
(CONTERATO et alli, 2011, p.72)
A principal crítica a essa vertente é levantada pelo conjunto de trabalhos que
posteriormente se convencionou como “the comoditization debate” (LONG et
alli,1986). Os teóricos da mercantilização aproximam-se da perspectiva da economia
política ao assumirem que o processo de mercantilização não é uniforme, linear e muito
menos completo, sendo incapaz de garantir inequivocamente, o desenvolvimento e a
melhoria de vida dos agricultores.
14
A perda da autonomia dos agricultores que se inserem em mercados altamente
competitivos que, segundo os autores da economia política, caracterizam o
desenvolvimento capitalista no campo, não é levada em conta pelos teóricos da
commercialization Assim surge o argumento de que as implicações dos fatores sociais e
políticos que envolvem a mercantilização da agricultura devem assumir uma posição
relevante na compreensão das dinâmicas produtivas e comerciais do espaço agrário.
Como defende Nierdele (2006), a mercantilização sugerida pela dependência dos
agricultores aos mercados está condicionada a um contexto externo, no qual é possível
uma dinâmica em que os agricultores negociem a inserção em diferentes circuitos de
troca, tendo em vista suas próprias condições e interesses dos demais atores. Tal noção
abre espaço para estudos que exploram o papel dos fenômenos e relações sociais na
construção dos mercados agrícolas, e permite compreender a atuação dos agricultores
não apenas como meros receptores, totalmente passivos e subordinados a uma lógica
externa, mas também enquanto sujeitos históricos ativos dotados capacidade de
intervenção nas dinâmicas mercantis.
Próxima a essa perspectiva, a chamada Nova Sociologia Econômica (NSE) surge
como uma formulação teórica que procura integrar, num mesmo arcabouço conceitual,
teorias sociológicas e econômicas ao propor um olhar para as interações econômicas dos
indivíduos sob a lente das relações sociais entre os mesmos. Termo cunhado nos
Estados Unidos, onde autores como Richard Swedberg (2004) e Mark Granovetter
(2003) expõem a corrente americana da sociologia econômica e introduzem uma nova
perspectiva de compreensão dos fenômenos econômicos a partir de olhares
metodológicos e conceituais da sociologia que direcionam-se para as noções de
“enraizamento” do comportamento econômico, de formação das redes sociais e de
construção social dos mercados.
Essa vertente de pensamento trata da ação econômica socialmente enraizada,
bem como, da forma através da qual essa compreensão permite um melhor
entendimento das interações existentes entre os indivíduos, seu ambiente e os arranjos
institucionais sob os quais estão envolvidos (VINHA, 2001).
Steiner (2006) aponta como sendo objetivo da NSE o estudo da construção
social das relações que se desenvolvem nos mercados e a investigação quanto à origem
sociológica dos fenômenos econômicos. Para tanto o autor propõe a compreensão da
NSE a partir de três dimensões principais:
15
[...] 1) as relações sociais influenciam as ocorrências econômicas
(construção social das relações econômicas). Mostram, por exemplo,
como as relações sociais (domésticas, principalmente) redefinem
sensivelmente o uso da moeda conforme a origem da renda. 2)
dimensão analítica na explicação sociológica das variáveis mercantis.
Mostra, por exemplo, o poder das relações sociais na busca pelo
emprego. 3) a sociologia econômica comporta uma dimensão cultural
e cognitiva (STEINER, 2006, p.50).
Polanyi (2000) é um dos principais autores a problematizar algumas das
premissas básicas da ciência econômica tradicional, mais especificamente, a ideia do
mercado autorregulável e do conceito de homo economicus. Ele também é o primeiro a
evidenciar a distinção de dois significados encontrados no termo economia, ou seja, o
significado formal, que foca sua analise na alocação eficiente dos recursos escassos e
outro significado substantivo que compreende o processo de busca pela satisfação das
necessidades materiais dos indivíduos (VINHA, 2001).
Este autor argumenta assim, que o desenvolvimento da economia liberal
ocasiona o surgimento de uma esfera estritamente econômica, separada de outras
instituições da sociedade e regulada por um imperativo mecanismo de mercado que
torna todo o “resto” da sociedade subordinado a essa esfera e consequentemente a esse
imperativo (POLANYI, 1976).
Essa esfera econômica autônoma tem como mecanismo regulador um mercado
sobre o qual a teoria econômica liberal discute apenas as formas de obtenção de preços
e quantidades de equilíbrio, sem aprofundar as investigações relacionadas às interações
práticas que acontecem nesse espaço. Assim, a ordem na produção e na distribuição de
todos os tipos de bens em uma economia é assegurada apenas pelos preços, componente
fundamental do mercado autorregulável (POLANYI, 2000).
A proposta da NSE consiste, então, em abordar os mercados como estruturas
sociais, baseadas em relações padronizadas entre os indivíduos de forma a imergir a
esfera econômica dentro de uma esfera social.
Nessa perspectiva Abramovay (2004, p.02) aponta que:
[...] sua compreensão faz apelo à subjetividade dos agentes
econômicos, à diversidade e à história de suas formas de coordenação,
às representações mentais a partir das quais relacionam-se uns com os
outros, a sua capacidade de obter e inspirar confiança, de negociar,
fazer cumprir contratos, estabelecer e realizar direitos. Aqui os
atributos serão muito mais particularizados, obtidos por métodos
16
fundamentalmente indutivos e apoiados, sobretudo na recomposição
de narrativas históricas.
A obra de Polanyi retoma conceitos apresentados anteriormente por trabalhos de
antropólogos (MAUSS,2003;MALINOWSKY,1978) lançando uma nova aplicabilidade
ao mesmos no sentido de corroborar com a critica e a proposta teórica assinalada pela
NSE. Reciprocidade, redistribuição e domesticidade são esses conceitos chave,
enquanto o primeiro diz respeito à ideia de um circuito de prestação e contraprestação,
capaz de regular as transações entre agentes em uma dada sociedade, o segundo remete
a existência de uma entidade centralizadora à qual é atribuída a função de realizar a
distribuição dos recursos materiais de maneira mais equitativa possibilitando a
coordenação das relações entre os agentes, e a domesticidade associa-se a noção de
produção para a utilização própria, ou doméstica oposta ideia de produção de
excedentes visando retorno financeiro.
Os teóricos da NSE buscam de certa forma, a superação do paradigma conceitual
que sustenta que cada ator social age racionalmente, exclusivamente baseado em seu
autointeresse (homo economicus). De acordo com esse paradigma os agentes
econômicos respondem de maneira mecânica e atomizada aos estímulos do ambiente
que os cercam.
Nessa mesma linha de interpretação da vida econômica, Mark Granovetter
(2003) salienta o conceito de enraizamento do comportamento econômico que permite
observar o progressivo distanciamento da economia em relação às outras dimensões
sociais da sociedade moderna. As transações deixam de ser definidas pelas obrigações
sociais e familiares dos indivíduos e passam a ser explicadas sob a ótica do cálculo
racional do lucro individual.
Este autor defende, portanto que:
Os atores não se comportam como átomos fora de um dado contexto
social, nem aderem como escravos a um guião determinado por uma
intersecção específica das categorias sociais que, por acaso, ocupam.
As suas tentativas de realizar ações com finalidade estão, pelo
contrario, incrustradas em sistemas concretos e continuados de
relações sociais (GRANOVETTER, 2003, p.74).
Granovetter (2003) ainda evidencia o papel fundamental da confiança nas
relações econômicas entre os indivíduos e discorre acerca da possibilidade de arranjos
sociais, pautados em acordos coletivos, serem interpretados enquanto soluções
eficientes para determinados problemas econômicos. O autor destaca também que, por
17
outro lado, o alto grau de confiança entre indivíduos que se relacionam
economicamente, pode permitir ainda mais atos de má fé por alguma das partes sendo
que “a confiança que nos é depositada por outra pessoa coloca-a em uma posição muito
mais vulnerável que a de um desconhecido” (GRANOVETTER, 2003, p.77).
O autor defende a existência de múltiplas racionalidades que podem direcionar a
ação econômica. Contudo, critica as visões que colocam a motivação baseada em
interesses econômicos como sendo racional, enquanto que outros motivos de naturezas
distintas sejam tratados como não racionais. A proposta é a de uma abordagem que
releve uma observação não apenas baseadas em objetivos econômicos como também na
sociabilidade e nas estruturas sociais nas quais os sujeitos encontram-se imersos para
compreender a racionalidade e o instrumentalismo por trás da atuação econômica dos
agentes.
Em meio a esse contexto de reivindicações conceituais e teóricas levantadas
pelos novos sociólogos econômicos, cabe lembrar a importância envolta na tentativa de
reunir essas duas ciências que o tempo separou, a sociologia e a economia, sob o
objetivo de possibilitar uma compreensão dos fenômenos sociais e econômicos de
maneira menos fragmentada. Da mesma forma que os economistas precisam assimilar
melhor a interferência das dinâmicas sociais sob a ação econômica os sociólogos
também devem se emprenhar no entendimento de como o interesse individual influencia
processos, como por exemplo, o de formação dos preços nas diversas transações
econômicas que acontecem em uma dada sociedade (SWEDBERG, 2009).
Este estudo permite então explorar as características das interações que balizam
os diversos interesses, conflitantes ou confluentes, em jogo nos mercados da agricultura
familiar brasileira. Assim, os entendimentos coletivos materializados por hábito ou
acordos explícitos ou tácitos podem ser analisados sob a luz das categorias indicadas
por Fligstein (2003)
De forma geral a NSE, intenta, portanto levantar elementos relacionados ao
contexto social sob o qual os fenômenos econômicos encontram-se envoltos que
suprimam os inúmeros distanciamentos, encontrados na teoria econômica convencional,
entre os pressupostos teóricos e a observação da evidencia empírica no tocante a vida
econômica de uma sociedade.
O mercado torna-se então um conceito ainda mais atraente aos olhares dessa
nova corrente de pensamento, não apenas pela maneira como se formam os preços ou
18
pelo seu volume financeiro, mas também pelas inequívocas interações e relações sociais
que pressupões sua existência.
Em um dos principais manuais de microeconomia com os quais se depara boa
parte dos estudantes, o mercado é definido claramente enquanto um “grupo de
compradores e vendedores que, por meio de suas interações efetivas ou potenciais
determinam o preço de um produto ou de um conjunto de produtos” (PINDYCK &
RUBINFELD, 2007, p.07).
Fica evidente nessa passagem a função atribuída ao mercado como o espaço que
permite a alocação eficiente dos recursos produtivos em uma sociedade. Essa
perspectiva utiliza, principalmente, métodos matemáticos para a determinação das
curvas de utilidade dos indivíduos a fim de compreender suas preferências para então
determinar as quantidades e preços que equilibram o sistema econômico. Tem-se assim
uma perspectiva ideal que deve tanto dar significado quanto determinar os valores e
princípios capazes de reger as atividades mercantis ao seu ponto máximo em termos de
utilização dos recursos econômicos.
Por outro lado um olhar da sociologia econômica aos mercados deve partir de
uma análise histórica destes ao longo do tempo de forma a permitir o entendimento de
como eles funcionam na vida real, e qual suas consequências para o modo de vida do
homem de forma geral. A ideia é quebrar com a artificialidade dominante nas definições
sobre mercados que marcam o olhar dos economistas e assim inspirar o surgimento de
novos conceitos e definições. (SWEDBERG, 2005)
Seguindo esse pensamento as tarefas iniciais de um estudo de mercados deve ser
identificar quais os tipos de mercados existentes em uma dada realidade social bem
como quais os valores, interesses, acordos e instituições impulsionam as trocas em cada
um dos mercados
2.3 AS ESTRUTURAS, INSTITUIÇÕES E OS CAMPOS DA
COMERCIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR
Diversas perspectivas, sejam as mais centradas nas disposições individuais ou as
que se apoiam nos sistemas estruturais de relações e coesão social, de Weber a Marx,
buscam dar conta da compreensão das práticas e do comportamento do homem em seu
convívio social. A íntima relação entre a ação individual e a coerção estrutural, objeto
de estudo de muitos autores clássicos sob inúmeros contextos, será tratada neste estudo
19
a fim de compreender as ações e disposições inerentes ao ato de compra e venda
praticado por agricultores familiares e a relação destas com as normas bem como as
características operacionais dos mercados onde tais ações ocorrem.
Dentre os esforços envidados para a criação de uma visão sociológica dos
mercados, Fligstein (2003) desenvolve uma perspectiva conceitual das instituições
sociais que os compõem. O argumento central é que as relações sociais inter e intra
unidades produtivas representam elementos fundamentais para o entendimento de como
a estabilidade dos mercados é alcançada.
Este autor assinala a existência de quatro principais formas que as instituições de
mercado assumem: direitos de propriedade, estruturas de governança, concepções de
controle e normas de transação. Estas instituições “permitem que os atores envolvidos
nos mercados se organizem e desenvolvam entre si relações de competição, cooperação
e transação (FLIGSTEIN, 2003, p. 198).
Um pré-condição básica para o acontecimento das trocas entre os agentes em
uma determinada economia é justamente a propriedade privada. Esta acarreta uma
relação social capaz de excluir a utilização de alguns bens ou serviços por parte dos
indivíduos e cria a necessidade de transações que possam satisfazer diferentes
necessidades materiais dos sujeitos na sociedade (SWEDBERG, 2009). O
desenvolvimento do modo capitalista de produção passa, invariavelmente, pela
legitimação da propriedade privada não só na esfera social, econômica e política como
também no âmbito do Direito. Dessa forma, os direitos de propriedade são capazes de
determinar quem são os agentes produtivos e para onde vão os lucros auferidos nesse
processo.
Há, entretanto, apontamentos que sugerem ser a constituição dos direitos de
propriedade um processo político contínuo e por vezes controverso, não
necessariamente resultado de uma alocação eficiente dos fatores produtivos. Com efeito,
até os dias presentes vários atores sociais, mobilizados em organizações ou não,
frequentemente procuram questionar e influenciar os direitos de propriedade que estão
dados em nossa sociedade. Assim, a compreensão de tais direitos surge como uma
premissa fundamental para o entendimento dos diversos arranjos mercantis encontrados
na economia.
As estruturas de governança correspondem, para Fligstein (2003), “às normas
gerais que, numa sociedade, estabelecem as relações específicas de mercado acerca do
20
modo como as empresas devem estar organizadas”. Ou seja, são os acordos, leis ou
práticas informais institucionalizadas que determinam como se dá a competição em um
mercado específico. A Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, é um
organismo que busca mediar os interesses de diversos competidores dos mercados
internacionais, estabelecendo, diretrizes, e regras com o intuito de regular a competição,
em um sistema multilateral de comércio.
As economias de mercado desde o século XIX até os dias atuais são orientadas
também por peculiaridades locais, valores sociais, formas de hierarquia dentre outros
que podem, em alguns casos, cercear ou redirecionar as ações dos agentes em suas
transações econômicas. Como nos mostra o historiador Thompson (1988), que em seu
livro Costumes em Comum relata episódios em que os costumes ou as práticas sociais
institucionalizadas, mesmo das classes econômicas menos abastadas são capazes de
limitar ou até mesmo inibir a expansão de certos aspectos insurgentes com a expansão
da economia de mercado na Inglaterra do dos séculos XVIII e XIX, como as revoltas
dos preços dos pães.
Esses aspectos culturais e históricos que desencadeiam práticas e regras
específicas ao seu meio e que, por sua vez, conseguem interferir significativamente nas
relações entre produtores consumidores e trabalhadores em um dado mercado Fligstein
(2011) define como concepções de controle. O autor afirma ainda que tal concepção
pode também ser pensada como um ¨conhecimento local¨ e o Estado pode ou ¨contribuir
para a criação ou pelo menos não se opor às concepções de controle¨ (FLIGSTEIN,
2003).
No que concerne ao universo das trocas em si, uma ultima forma de instituição
de mercado assinalada também por Fligstein (2003) são as normas de transação, ou seja,
as regras que condicionam a realização das transações na economia como os aspectos
relacionados ao transporte, pagamento, seguro e cumprimento de contratos. Assim tem-
se um conjunto de categorias de análise utilizadas como direcionamento para o olhar do
pesquisador durante a pesquisa de campo.
Diferentes mercados, com os mais diversos formatos e instituições no sentido
exposto aqui, surgem em alta velocidade, especialmente da década de 90 à atualidade.
Influenciados por novas tecnologias da informação e comunicação, por um intenso
processo de globalização de culturas locais e por uma perspectiva dominante no
pensamento econômico que incentiva cada vez mais o crescimento das exportações e a
21
diminuição de barreiras comerciais entre os países, a estrutura dos mercados
agroalimentares vem sofrendo significativas transformações.
As transações internacionais envolvendo gêneros alimentícios, que crescem
significativamente a partir da adoção de políticas de crescimento econômico via
exportações, alinham-se então a exigências e padrões de novos mercados globais nos
quais barreiras, tarifárias e barreiras de qualidade sanitárias ou técnicas limitam a
participação e o acesso de pequenos produtores dos chamados países em
desenvolvimento. Sob um cenário no qual a busca por investimento estrangeiro direto
(IED) por esses países (tida como a solução para aumentar a insuficiente poupança dos
mesmos) acontece via exportações de commodities, após sucessivas quedas de preços
dessas mercadorias durante a década de 90 surgem circuitos alternativos de comercio
como o fair trade, entre outros que exploram a demanda por produtos não tradicionais
(WILKINSON, 2008).
Destarte, quanto à estrutura dos mercados nacionais, Wilkinson (2008), aponta
para a tendência de adequação destes com o modelo internacional, no qual crescem as
exigências relacionadas às barreiras técnicas e sanitárias. Nesse sentido eleva-se
também a participação das grandes redes de supermercados e hipermercados que
transformam as formas de coordenação da distribuição e comercialização de alimentos
em nível regional. O autor afirma ainda que:
¨Com ritmos diferentes dependendo das condições locais, a grande
distribuição subistitui os canais tradicionais de distribuição com a
montagem de centrais próprias de distribuição (CD), por país ou
região e também substitui fornecedores tradicionais, operando com
um número limitado de fornecedores especializados que atendem às
especificidades de entrega, leque de produtos e qualidade. Não
predominam contratos formais, mas os fornecedores precisam fazer
parte do registro de fornecedores e obedecer a rígidos critérios de
qualidade, sujeitos a inspeção periódica.¨(WILKINSON, 200, p.157)
A agricultura familiar, diante desse cenário apresenta notável capacidade de
suprir essa nova demanda mercantil, baseada em sistemas integrados de distribuição,
uma vez que esses agricultores, de acordo com o Censo Agropecuário realizado pelo
IBGE em 2006, correspondem a 84,4% dos estabelecimentos rurais, e ocupam apenas
24,3% da área total dos estabelecimentos rurais sendo os responsáveis por 87% da
produção nacional de mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do
arroz, 21% do trigo, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves e 30% dos
bovinos. Entretanto esses agricultores encontram também constantes desafios para
22
inserirem-se nos circuitos mercantis cujas exigências estão mais próximas a realidade de
produtores com altos níveis de capital e escala produtiva, aspectos distantes muitas
vezes da estrutura de estabelecimentos menores que apostam na diversidade e na
superioridade da base artesanal. Assim, os agricultores familiares organizados buscam
também criar novos padrões mercantis que estejam mais compatíveis com sua realidade
técnica, financeira e estrutural.
Uma abordagem teórica que intenta relevar o poder de atuação desses
agricultores consiste no objetivo da chamada Perspectiva Orientada aos Atores (POA),
que tendo como principais expoentes os autores Norman Long (2012) e Jan Douwe Van
der Ploeg (2012) representa uma tentativa de superar os esquemas estruturalistas de
entendimento dos processos de mudança social que abarca a discussão sobre
mercantilização. Os processos de inserção de agricultores em mercados, sujeitos
inegavelmente e predominantemente, a fatores externos é analisado aqui sob um prisma
que se funda em um paradigma orientado aos atores que busca superar a limitação
teórica subjacente ao conceito de determinação externa.
Destaca-se então a necessidade de pensar as interfaces dos produtores com as
estruturas e os dispositivos dos grupos que se relacionam nos mais variados tipos de
mercados. Assim como a NSE, os repertórios culturais como noções de valor, discursos,
ideias de organização, símbolos e rituais são tidos como elementos que podem orientar
a prática dos agentes econômicos. Tal perspectiva parece distanciar, entretanto, da NSE
ao centralizar em sua proposta conceitos e definições próximas de um arcabouço teórico
microssociológico, dialogando substancialmente com as ciências antropológicas
explorando o universo que compreende a ação individual dos atores.
Parte-se do pressuposto de que a intervenção externa invade necessariamente o
mundo da vida dos indivíduos e dos grupos sociais afetados de maneira que possam ser
mediadas, transformadas e resignificadas por esses mesmos. Assim como ilustra a
seguinte passagem:
“Os atores sociais não são vistos meramente como categorias
sociais vazias (baseadas na classe ou em critérios de classificação) ou
recipientes passivos de intervenção, mas sim como participantes
ativos que processam informações e utilizam estratégias nas suas
relações com vários atores locais, assim como com instituições e
pessoas externas. Os caminhos exatos da mudança e seu significado
para os envolvidos não podem ser impostos pelo exterior, nem podem
ser explicados em termos da prática de uma estrutura lógica
inexorável [...]” (LONG & PLOEG, 2011, p. 24)
23
Fica evidente assim, o enfoque que reconhece a capacidade de intervenção dos
atores sociais no curso do desenvolvimento de suas vidas mesmo frente a estruturas
sociais rígidas e incisivas intervenções do meio externo.
O fato de os agricultores mobilizarem uma ampla gama de recursos fora dos
mercados reflete a existência de “espaços de manobra” e estratégias criadas para manter
uma autonomia relativa da unidade de produção. Neste sentido, é equivocada tanto a
percepção de que a mercantilização induz à perda total da autonomia, quanto de que
este processo possa ser completo, uma vez que persiste um amplo conjunto de recursos
mobilizados fora dos circuitos mercantis (NIERDELE, 2006).
“Os projetos dos agricultores não são simplesmente reações
àqueles que são, à primeira vista, impostos por atores externos mais
poderosos. Eles são ativamente gerenciados como respostas
diferenciadas às estratégias e circunstancias geradas por outros, as
quais modificam, transformam, adotam e/ou contrapõem.” (LONG &
PLOEG, 2011, p.35)
Uma outra contribuição relevante para uma abordagem que contemple o
universo de intermediação ativa dos agricultores nos mercados é apresentada pelo
sociólogo Pierre Bourdieu (1989), que mesmo tido por muitos acadêmicos com um
teórico de linha estruturalista, lança mão de conceitos interessantes para a investigação
das práticas mercantis dos agricultores familiares que podem também serem
compreendidas partindo de seu conceito de habitus, o qual, segundo este autor,
representa as “disposições incorporadas” que evidenciam as “capacidades criadoras,
ativas, inventivas do habitus” (BOURDIEU, 1989, p.61). A noção de habitus pretende
então dar conta da relação de “mão dupla” entre as “estruturas objetivas” e “estruturas
incorporadas” (BOURDIEU, 2005) revelando assim o caráter relacional marcante no
arcabouço analítico do autor.
Tal perspectiva permite apreender as “diferenças reais que separam tanto as
estruturas quanto as disposições (os habitus)”, de maneira que o princípio dessa relação
reside nas “particularidades históricas coletivas diferentes” (BOURDIEU, 2005, p.15).
Assim, as atitudes exigidas aos agricultores familiares para o acesso a diferentes
estruturas mercantis – seja a participação em cooperativas, o transporte da produção a
um local específico, ou até a cumplicidade e reciprocidade com um eventual
atravessador – podem ser objetivamente analisadas a partir desses conceitos.
Os habitus dos agricultores familiares, serão tomados aqui a partir das atitudes e
inclinações interiorizadas por estes no tocante a necessidade da comercialização de seus
24
produtos. Assim, buscar-se-á agrupar em tais ações os condicionantes e os princípios
conscientes e inconscientes que dão certa unidade a um conjunto de comportamentos
específicos a cada espaço de comercialização.
Fica evidente, pois, o senso locacional presente no habitus que
aponta também para as estruturas interiorizadas tanto nos princípios e
valores como nas posturas e disposições corporais em um momento e
contexto específico, que denota práticas “distintas e distintivas”
inerentes às posições das quais são produto . Ou seja, opõe-se a visões
microssociológicas que permitem atentar-se à parte esquecendo-se do
todo, e afirma que “todo o ponto de vista é à vista de um ponto
socialmente localizado” (SCHENATO, 2011, p.36)
O autor encadeia o conceito de habitus (dentro de sua perspectiva relacional) ao
conceito de campo enquanto um universo relativamente autônomo de relações
específicas (BOURDIEU, 2005). Destarte, ao indagar sobre as práticas e disposições
dos agricultores familiares no âmbito de suas relações comerciais, faz-se necessário
identificar a estrutura de relações objetivas que circunscreve e até mesmo produz tais
práticas.
A teoria do campo aponta para a existência de atores sociais que constroem um
conjunto de praticas comuns capazes de estabilizar seu universo de ação. Nesse sentido,
o grupo de atores dominantes busca reproduzir as circunstâncias que lhe garantem
vantagem em uma dado campo, ou estrutura social, e para tanto utilizam-se das mais
variadas estratégias e habilidades que permitem determinar os princípios, os valores a
estrutura hierárquica predominante desse espaço social.
Ao tratar os mercados enquanto campos deve-se ter em mente como identificar
os, não apenas os valores e princípios subjacentes ao mercado, como também as
instituições e estruturas que determinam o seu funcionamento, ou o campo em análise,
como afirma Fligstein (2001):
¨To apply the theory of fields to market society, it is necessary to
define what kind of fields markets are, and what types of social
organization are necessary for stable ¨markets as fields¨ to exist.
Economic exchange ranges from infrequent and unstructured to
frequent and structured. Markets are social arenas that exist for the
production and sale of some good or service, and they are
characterized by structure exchange. Structure exchange implies that
the actors expect repeated exchange for their products and that,
therefore they need rules and social structures to guide and organize
exchange.¨(FLIGSTEIN, 2001, p.30)
Pretende-se então explorar as características das interações que mediam os
diversos interesses, conflitantes ou confluentes, em jogo nos canais de comercialização
25
da agricultura familiar brasileira. A maneira por meio da qual os agricultores podem
assumir um papel ativo diante dos desafios impostos pelos mercados ser também objeto
de estudo desta pesquisa, bem como, intenta-se também identificar quais habilidades
econômicas e sociais são requeridas para a participação mercantil desses atores. As
habilidades serão compreendidas sob o âmbito da capacidade de agir e da ação
intencional visando um determinado resultado. (MORGAN, et all, 2010).
Ao adentrar no universo teórico e conceitual que envolve o estudo da ação
individual socialmente orientada cabe destacar a contribuição de Fligstein (2009), que
propõe a utilização do conceito de habilidade social, reivindicando uma concepção da
ação alternativa às visões sociológicas dominantes. O autor defende uma compreensão
dos atores a partir de elementos endógenos que podem direcionar a ação dos indivíduos
nos processos coletivos nos quais se inserem.
Surge assim uma abordagem dedicada “à criatividade e a habilidade necessárias
para que os indivíduos, como representantes das coletividades, atuem politicamente em
relação aos outros atores para produzir, reproduzir e transformar os equilíbrios
institucionais.” (FLIGSTEIN, 2009, p.81)
O estudo do campo da comercialização da agricultura familiar proposto nesta
pesquisa pretende utilizar-se de conceitos ligados as habilidades econômicas e sociais
que os atores são impelidos a desenvolver para acessar os diversos subcampos
correspondentes aos canais de comercialização nos quais interagem.
Assim, como assinala Fligstein (2009, p.86):
A habilidade social funciona como uma microestrutura para
compreender o que os atores fazem nos campos. Para começar, é a
combinação de recursos, de regras preexistentes e das habilidades
sociais dos atores que funciona para produzir campos, estabilizá-los
periodicamente e produzir a transformação.”
A ideia de campo pode ser aplicada a universos sociais distintos, desde que se
identifique um conjunto de práticas e valores inerentes a cada contexto, capaz de
produzir disputas, produções e reproduções, conservadoras ou subversivas por parte dos
agentes que o compõe. Assim, Shenato (2011) esclarece que o campo social pode ser
compreendido como um espaço de lutas e forças entre os agentes, e que determina as
condições, regras, limites e possibilidades que balizam os conflitos sociais do campo
que reproduzem.
26
Como resposta a esses conflitos, os agricultores familiares buscam diferentes
estratégias para satisfazerem suas necessidades em meio às disputas que envolvem os
mercados que acessam. Muitas vezes essa disputa ocorre nos espaços institucionais de
definição dos critérios e exigências de acesso a algum mercado, ou ainda em meio às
orientações, não só técnicas como políticas também, que estabelecem os padrões
sanitários e produtivos de outra gama de mercados.
Bourdieu (2001) propõe também, dentro de seu arcabouço analítico, a existência
de diferentes formas de capital, além daquela comumente utilizada pela teoria
econômica, a saber: o capital cultural e o capital social, que como demonstra na seguinte
passagem:
[...]capital can present itself in three fundamental guises: as
economic capital, which is immediately and directly
convertible into money and may be instituitionalized in the
form of property rights; as cultural capital, which is convertible,
on certain conditions, into economic capital and may be
institucionalized in the form of educational qualifications; as
social capital, made up of social obligations (“connections”),
which is convertible, in certain conditions, into economic
capital and may be institucionalized in the form of a title of
nobility.”
As noções dos capitais citados acima invoca-nos a estudar as práticas mercantis
dos agricultores imersas em um conjunto de fatores ligados à estrutura de costumes e
valores culturalmente incorporados, ou as instituições do tecido social que circunscreve
esses agentes. Movidos pela necessidade de perpetuação do mana (elementos de
prestigio e honra da coisa dada) ou do hau (espírito da coisa), não são apenas os
aborígenes melanésios, como nos descreve MAUSS (2003) quem realizam trocas como
formas de manutenção da organização social e cultural de um determinado povo ou
sociedade.
O antropólogo Clifford Geertz (2001) em sua etnografia sobre as relações de
troca em um mercado do Marrocos, também expõe as formas de manifestação cultural e
coerção social que se traduzem nas trocas praticadas nesse mercado. De acordo com
Servilha (2008, p.32 ) a troca para aquele autor é tida como “todas as relações onde dois
ou mais indivíduos trocam algo, envolvendo ou não dinheiro, o que inclui as relações de
compra e venda diárias”.
Nesse contexto o mercado é compreendido enquanto um sistema diferenciado
que conecta a produção e o consumo de forma culturalmente e socialmente enraizada.
Assim, as capacidades de agencia e a interação dos agricultores com as estruturas
27
formais que condicionam sua participação nos mercados, apresentam-se como categoria
chave para o entendimento dos mercados disponíveis aos agricultores familiares,
sujeitos dessa pesquisa.
Portanto neste trabalho pretende-se dar forma às habilidades econômicas, sociais
e culturais desenvolvidas e praticadas pelos agricultores familiares de Viçosa, sob o
pressuposto de que tal categoria de analise não é contemplada pela perspectiva do
pensamento dominante que assola a ciência econômica, cujos instrumentos de
investigação dos mercados não conseguem captar.
28
3. OS MERCADOS DA AGRICULTURA FAMILIAR DE VIÇOSA
O caráter local da distribuição de gêneros alimentícios foi sempre predominante
nas sociedades humanas, seja pela perecibilidade destes produtos, pelas características
climáticas ou pelas particularidades culturais que determinam as preferências culinárias
de um povo. Essa dinâmica local, entretanto, sofre uma progressiva perda de espaço
concomitante ao avanço do modo de produção capitalista, e ao consequente advento da
economia de mercado tanto em escala regional, internacional e nacional - sendo que esta
última teve ainda desdobramentos de ordem geopolítica para a consolidação dos
Estados Nacionais europeus, de acordo com o que nos relata Polanyi (2000).
Em meio a esse processo histórico, sob o qual o mercado assume um papel de
regulador chave dos recursos produtivos de uma sociedade, o ideário da maximização
dos ganhos direciona os agentes econômicos a inserirem-se em uma dinâmica mercantil
altamente competitiva que deve fundar-se no imperativo de que a escolha racional entre
diversas alternativas deve ser aquela preconizada pelos modelos econômicos baseados
nas curvas de indiferença. Nesse sentido, os métodos de análise utilizados pelos
cientistas econômicos passam a distanciar-se cada vez mais dos estudos que relevam os
fenômenos sociais subjacentes às trocas mercantis de uma economia.
Entretanto, não há como negar que mesmo em face do imperativo do livre
mercado competitivo e da racionalidade do homo economicus, existem ainda, nos dias
atuais, diversas racionalidades que orientam uma infinidade de formas de transações
econômicas, sejam materiais, simbólicas, monetárias ou não, nas sociedades ao redor do
planeta (GRANOVETTER 2003, SWEDBERG 2001, ZELIZER 2003). A presente
seção tem por objetivo então desvendar o funcionamento dos principais mercados
acessados pelos agricultores familiares residentes no município de Viçosa, buscando
identificar como acontece a operacionalização dos atos de compra e venda nesses
mercados e quais são as principais exigências e características que envolvem a inserção
nestes.
Recentes trabalhos de autores como Wilkinson (2008), e Ploeg (2008) indicam
as transformações que os mercados alimentares vêm sofrendo no mundo todo, diante de
um novo quadro institucional decorrente de diversos acordos multilaterais e da
adequação das políticas domésticas de comércio exterior às exigências de padronização
do acesso a mercados de exportação sob o intuito de angariar investimento estrangeiro
direto, principalmente nas chamadas economias emergentes.
29
Nessa pesquisa optou-se por trabalhar especificamente com os mercados de
frutas, legumes e verduras (FLV). Em nível nacional e também internacional esse
mercado foi um dos mais afetados pelas transformações supracitadas, de maneira que a
comercialização desses gêneros passou a ser vista como um grande potencial de
negócios para as grandes redes de distribuição varejista que passam então a impor
padrões organizacionais e institucionais que, em muitos casos exclui aqueles
agricultores pouco intensivos em capital e tecnologia. (BELIK & MALUF, 2000). Por
outro lado, como Wilkinson (2008, p.157) aponta, no contexto de pequenos
estabelecimentos varejistas, “com sistemas de abastecimento pouco desenvolvidos no
segmento de FLV, as perspectivas das associações de pequenos fornecedores parecem
ser mais alentadoras.”
Entretanto, essa padronização decorrente de uma maior modernização, e o
subsequente alinhamento dos pré-requisitos de participação nos mercados aos moldes
das tendências observadas pelos grupos transnacionais que dominam a grande
distribuição em escala global, não parece ainda ter chegado nessa medida aos mercados
agroalimentares viçosenses. Assim sendo vale lembrar que ao mesmo tempo em que se
manifesta a tendência do ajustamento aos padrões internacionais mencionada, existe
também o crescente surgimento de novas formas de comercialização baseadas em
experiências que visam a aproximação entre a produção e o consumo de alimentos
(SCHIMITT, 2011) que, sob um caráter local, imprimem uma gama de acordos e
padrões de inserção definidos também localmente.
O município de Viçosa possui 72.220 habitantes, de acordo com o censo
demográfico do IBGE de 2010, sendo que destes 4.915, ou 6,8% são residentes da zona
rural. O censo agropecuário de 2006 indica ainda a existência de 874 agricultores
familiares e de acordo com dados fornecidos pela EMATER atualmente existem 412
Declarações de Aptidão ao Pronaf (DAP) ativas no município. Cabe destacar,
entretanto, que em relação ao segmento de frutas legumes e verduras (FLV), de acordo
com o censo agropecuário, apenas 55 estabelecimentos rurais produzem esse tipo de
produtos (14 banana, 13 laranja e 28 mandioca), entre os 1.088 totais existentes no
município. Esses dados sugerem ainda que a produção de FLV no município não é o
principal foco dos estabelecimentos rurais, sendo que a criação de bovinos (496
estabelecimentos) e equinos (259 estabelecimentos), e a produção de café (247
30
estabelecimentos), e feijão (224 estabelecimentos), envolve um número muito mais
significativo das propriedades do município (IBGE, 2006).
A coleta de dados realizada nessa pesquisa permitiu identificar oito principais
canais de comercialização utilizados por agricultores familiares de Viçosa, a saber: a
Feira Livre (FL) municipal, o PNAE, os mercadinhos e supermercados locais o PAA, a
venda direta (na qual os produtos podem ser entregues tanto na casa do comprador,
como no próprio estabelecimento), os restaurantes, a Rede de Prossumidores Raízes da
Mata, e os atravessadores.
Embora existam 412 DAPs ativas no município, o número de entrevistados foi
determinado a partir da população identificada em cada um desses mercados, ou seja, o
número de agricultores que comercializam frutas legumes e verduras (FLV) que
acessam esses canais de escoamento. Assim na Feira Livre, dentre uma população de 32
agricultores, foram entrevistados 20; no PNAE, no ano de 2013, 33 agricultores
realizaram as entregas, desses entrevistou-se 17; nos mercados locais foi deixado uma
lista a ser preenchida pelos agricultores em 8 estabelecimentos comerciais, obtendo-se o
número de 31 agricultores residentes em Viçosa, destes foram entrevistados 19; em
relação a venda direta, restaurantes e atravessadores, houve dificuldade em obter um
número da população total, no entanto, foram identificados, e entrevistados nesta
pesquisa 15 agricultores que praticam essas formas de comercialização; por fim na Rede
Raízes da Mata, no ano de 2013 foram identificados apenas 4 agricultores familiares
residentes em Viçosa que comercializam através desta, sendo entrevistados todos eles
nesta pesquisa
Assim, o número de 34 agricultores entrevistados aparentemente pequeno,
apresenta-se significativamente relevante ao tomarmos por base tanto o número de
estabelecimentos que produzem os gêneros alimentícios que aqui interessam, quanto a
população de cada um dos mercados que pretendemos estudar. É importante lembrar
ainda que durante a pesquisa foi possível observar uma forte sobreposição entre os
mercados, haja vista, a identificação de 23 combinações relativas à diferenciação de
mercados entre os entrevistados, como demonstra o número de 87 respostas totais sobre
o mercados acessados, obtidas na pesquisa de campo.
O gráfico a seguir detalha porcentagem dos agricultores entrevistados que
acessam cada um desses mercados mapeados.
31
Gráfico 1- Mercados Acessados pelos Agricultores Familiares de Viçosa
Fonte: dados da pesquisa
A feira livre é o canal de escoamento da produção que a maioria dos
entrevistados utiliza, em seguida aparecem os mercados locais, o PNAE e o PAA. No
entanto é importante lembrar que existe uma forte intersecção entre os conjuntos
relativos a cada um dos mercado, pois a grande maioria dos entrevistados (91%)
acessam dois ou mais espaços de comercialização.
Esse cenário envolve uma pluralidade de racionalidades, regras de
funcionamento, sistemas de operacionalização e outras características que poderão ser
melhor visualizadas com a caracterização detalhada e específica de cada um desses
mercados.
Sob o intuito de amparar a análise dos mercados em categorias que permitam
uma visão ampla das instituições3 presentes identificadas nestes, será utilizado o
arcabouço analítico proposto por Fligstein (2003). Como evidenciado no capítulo
anterior, este autor identifica quatro agrupamentos para as instituições de mercado, a
saber:
1) Direitos de Propriedade: “constituem relações sociais que definem quem tem
direito aos lucros de uma empresa. Grupos organizados de empresas, trabalhadores,
3 O conceito adotado aqui será o mesmo exposto por Fligstein (2003, p.198) que assinala que as
instituições consistem em “regras partilhadas sob a forma de leis ou entendimentos coletivos,
mantidas por hábito, acordo explícito ou acordo tácito”.
32
agências governamentais e partidos políticos procuram influenciar a constituição dos
direitos de propriedade” (FLIGSTEIN, 2003, p.198-199).
2) Estruturas de Governança: Representam as formas legais e informais que os
agentes encontram para controlarem o funcionamento do mercado, “correspondem às
normas gerais que, numa sociedade, estabelecem as relações de competição e
cooperação, bem como as definições específicas de mercado acerca do modo como as
empresas devem estar organizadas. ”(FLIGSTEIN, 2003, p.199).
3) Concepções de Controle: Referem-se às impressões dos agentes em relação
“aos princípios que presidem à sua organização interna, táticas de competição ou
cooperação, e espelham a hierarquia de status que ordena as empresas num dado
mercado”(FLIGSTEIN, 2003, p.199).
4) Normas de Transação: devem considerar “as tarefas de transporte, os
pagamentos, o seguro, o intercâmbio de dinheiro e o cumprimento dos contratos
(FLIGSTEIN, 2003, p.200).
Isto posto, dividiremos este capítulo em subseções correspondentes a cada
mercado estudado, de forma a identificar como essas instituições se manifestam nesses
espaços. Sob o objetivo de tornar esta apresentação mais dinâmica será agrupado na
seção 3.4 os mercados locais e os restaurantes e, na seção 3.6 a venda direta junto a
venda aos atravessadores.
3.1 A FEIRA MUNICIPAL
A Feira Livre municipal existe há cerca de 47 anos e, segundo a secretaria de
agricultura da Prefeitura Municipal conta com a participação de aproximadamente 115
feirantes divididos em setores de acordo com os produtos comercializados
(hortifrutigranjeiros, derivados, industrializados, artesanato e alimentos para consumo
imediato), dos quais 63 são residentes em Viçosa. O setor de hortifrutigranjeiros, que
mais nos interessa para fins da presente pesquisa, é aquele que dispõe da grande maioria
das barracas desse espaço, ao todo setenta e quatro registradas. Dentre o segmento de
FL, entretanto, restringindo-nos aos feirantes de Viçosa, chegamos ao número de 32
barracas4, número esse utilizado como base para a coleta de dados deste trabalho.
4 Número obtido a partir da observação participante realizada durante as cinco Feiras Livre entre
os meses de janeiro e fevereiro de 2014.
33
A participação nesse mercado requer a demonstração de interesse aos órgãos
responsáveis, que então avaliam a disponibilidade de espaço e a “reputação” do
interessado para realizar seu cadastro e conceder-lhe um “lote” na Feira, de acordo com
o relato de um informante qualificado na Prefeitura. Dessa forma, não há restrições
formais que delimitam os direitos de propriedade nesse espaço, produtores pequenos,
grandes, médios, familiares ou não, podem participar igualmente deste mercado.
As trocas praticadas na Feira Livre entre os sujeitos da pesquisa acontecem
predominantemente de forma material, intermediada monetariamente. No entanto os
vínculos pessoais, de amizade, companheirismo e reciprocidade entre os feirantes,
frequentadores e fregueses manifestam-se de várias maneiras e desempenham um papel
chave para a manutenção das relações sociais e econômicas observadas no
funcionamento deste mercado.
Isto pode ser observado na articulação que ocorre para o transporte de
mercadorias até o local da Feira Livre, pois os agricultores feirantes residentes em uma
mesma comunidade valem-se dos laços de vizinhança para realizar uma locação
conjunta de caminhões, ou caminhonetes para conseguir viabilizar sua participação a
um custo menor. Nesse sentido um agricultor informou-me também que “aqui a gente é
igual família, quando acontece algum problema de carro quebrar, ou alguma coisa do
tipo sempre tem alguém que eu posso chamar pra me ajudar a trazer as coisas.” (José
Antonio). Outro agricultor também relata que já precisou da ajuda de seus colegas para
conter um estudante bêbado que o desafiou e o desrespeitou, após passar por cima de
suas mercadorias, demonstrando assim como as relações pessoais existentes entre os
feirantes contribui para assegurar as regras de bom funcionamento desse mercado.
Nesse sentido as estruturas de governança identificadas na Feira Livre, remetem
tanto aos mecanismos sociais que asseguram a cooperação mútua entre os feirantes,
como citado acima, quanto às regras informais responsáveis pela estabilidade dos preços
decorrente do elevado grau de competitividade verificado nesse mercado.
A coleta de dados realizada na pesquisa evidenciou também que os preços dos
produtos do segmento FLV nesse espaço apresentam-se, geralmente, inferiores aos
praticados em outros espaços do varejo municipal. Essa defasagem consiste em um dos
principais diferenciais desse mercado, que, embora avaliado pelos agricultores de forma
negativa, alguns, entretanto, notaram a via de mão dupla que essa situação impinge, pois
34
os preços menores garantem maior liquidez, de maneira que, como nos relata um
agricultor:
“Todos [os mercados] são importantes, mas pra mim
acaba que a feira é um pouco mais, porque por mais que a
gente vende mais barato, a gente vê o dinheiro né? Todo
sábado é garantido entrar um dinheirinho, e mesmo um ou
outro sendo fiado, a maioria a gente recebe na
hora.”(Fabiano)
Não apenas este agricultor, como a maior parte dos entrevistados,
principalmente por motivos ligados á liquidez, regularidade ou confiança, declararam
ser a Feira Livre municipal o principal mercado acessado pela família, como nos mostra
o gráfico a seguir:
Gráfico 2 - Mercados mais importantes para os agricultores familiares de Viçosa.
Fonte: dados da pesquisa
Contudo deve-se ter em mente que a Feira Livre corresponde a um mercado no
qual os preços desempenham um papel fundamental para o equilíbrio desse mercado, de
maneira que boa parte dos feirantes define seus preços por comparação, de acordo com
os preços e qualidades das barracas mais próximas às suas, fazendo as devidas correções
em relação à apresentação (tamanho e aparência) de suas mercadorias.
Sob esse aspecto a noção de embeddedness, ou incrustação postulada por
Granovetter (2003) pode ser utilizada para explicar a persistência e permanência dos
35
agricultores familiares e seus padrões produtivos num espaço como a feira, no qual as
redes sociais construídas entre os comerciantes, prefeitura municipal e consumidores
demonstram como a ação econômica encontra-se devidamente enraizada no tecido
social de um determinado contexto cultural e político. Como fica evidente ao
observarmos que embora exista um alto grau de concorrência, seguida de competição
pela via dos preços entre os feirantes, há também a cooperação, e a troca de favores e
“auxílios” culturalmente e socialmente incrustados, de forma semelhante à proposta de
que “os comportamentos e instituições em análise são tão condicionados pelas relações
sociais, que conceitualizá-los como elementos independentes representa um sério
equívoco” (GRANOVETTER, 2003, p.69).
Assim, os efeitos supostamente benéficos do modelo da concorrência perfeita
defendido pela teoria neoclássica, como pressões baixista sobre os preços finais aos
consumidores e o incremento da liquidez aos produtores, acontecem na Feira Livre
simultaneamente às relações que envolvem a troca de tempo de serviços e de produtos
como nos relata: “[...] tem vez que eu to com muita salsinha por exemplo, e a Dona
Francisca não tem, então ela pega um pouco da minha pra vender na barraca dela e eu
faço do mesmo jeito com ela também” (Seu Nem).
Por outro lado, pode-se considerar também que, nesse caso, a incrustração difere
da construção social desse mercado que, como evidencia Wilkinson (2008, p.95), este
último conceito amplamente utilizado nas discussões da sociologia econômica, refere-se
aos esforços de “adaptação às transformações e aos critérios de regulação dos
mercados”. Ou seja, como verificado durante a pesquisa de campo, os agricultores
feirantes buscam sempre se adaptar às referências de qualidade e preços de seus
concorrentes, como mostra o relato de um agricultor que ao ser questionado sobre como
decide os preços de seus alimentos em cada feira, disse:
“Quando chego [na feira] eu dou uma olhada no preço dos meus
vizinhos né. Se ele tá pedindo R$ 1,00 no alface daquele maior, eu
coloco o meu desse aqui [ele pega um alface nitidamente menor do
que o do vizinho] a R$ 0,70, e assim vai com as outras mercadorias
também” (Paulo Gomes).
Fica claro aqui uma das táticas utilizadas pelos agricultores que se encontram na
posição de tomadores de preços de mercado, bem como os entendimentos da
36
organização interna e dos fluxos de poder de mercado que se manifestam nesse
mercado. Ou seja, suas concepções de controle.
Outro aspecto importante a ser destacado em relação à Feira Livre é a
inexistência de qualquer tipo de exigências de caráter sanitário, de padrão produtivo,
preço, ou de controle de qualidade dos produtos. Nesse espaço a proximidade entre
comerciante e consumidor e o aval desse último é o que determina o sucesso das vendas
daquele. Ou seja, o critério básico de acesso a este mercado é (excluindo o cadastro
prévio junto à Secretaria Municipal de Agricultura) ter uma boa apresentação visual dos
produtos, e manter boas relações com os clientes.
A observação sob um olhar científico desse espaço plural que representa a Feira
Livre de Viçosa permitiu-nos identificar uma diversidade de racionalidades que
orientam as transações nesse espaço. A racionalidade de maximização de ganhos em um
contexto de intensa competição pode ser verificada pela dinâmica dos preços
supracitada. Não há como negar a existência do cálculo racional do ganho individual
traduzido nas práticas dos agricultores nesse mercado, bem como não há como afirmar
que este é o mecanismo ordenador do funcionamento da Feira. A construção social
desse mercado imprime uma ampla diversidade de relações e práticas, evidenciada
também ao analisarmos as normas de transação desse mercado assinaladas aqui
(acordos para o transporte, para a efetivação das trocas e acordos pré-estabelecidos).
Há aqueles que buscam a liquidez, como aqueles que buscam se divertir e se
entreter junto aos seus pares, como os que têm na feira a única ou a principal fonte de
escoamento de sua produção. Todos esses objetivos traduzem-se assim, em ações que
refletem essa pluralidade de racionalidades que, por sua vez, faz com que esse espaço
continue sendo atrativo tanto aos compradores quanto aos vendedores,
independentemente das transformações vividas nos mercados de FLV, nos âmbitos
local, nacional ou internacional.
3.2 O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR (PNAE), OU
A “MERENDA ESCOLAR”.
O PNAE consiste em um dos programas sociais mais antigos na área de
alimentação e nutrição do Brasil. Sendo criado no ano de 1955, o programa ganha
37
ênfase com a constituição de 1988 que determina o papel do estado no atendimento
adequado à alimentação escolar das escolas públicas. No entanto, é apenas em 2009 que
o programa sofre uma significativa alteração que leva aos desdobramentos relevantes
para esta pesquisa, haja vista que a lei nº11947/09 e a resolução 38 do Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação (FNDE) estipulam “que no mínimo 30% do
orçamento das prefeituras que é destinado à alimentação escolar sejam utilizados na
compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação”
(ITCP-UFV, 2012).
Sob o objetivo de atender às necessidades alimentares dos alunos da educação
infantil, ensino fundamental e médio das escolas públicas ou daquelas mantidas por
entidades beneficentes de assistência social, o funcionamento do programa tem início no
repasse de recursos do FNDE às prefeituras municipais, seguido então pelas etapas de
realização da chamada pública, elaboração do projeto de vendas dos proponentes,
seleção e aprovação dos projetos, compra dos produtos e recebimento dos produtos.
Vale ressaltar que essas etapas são assessoradas tanto pelos agentes de ATER (até a
elaboração do projeto) como pelo Conselho de Alimentação da Educação (CAE), de
acordo com o fluxograma abaixo:
Figura 1- Fluxograma do PNAE
Fonte: ITCP/UFV, 2012.
38
Em Viçosa esse programa começou a ser acessado no ano de 2012 e, segundo
relato do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, foi ele próprio quem levou
a proposta à Prefeitura e à EMATER. Ele nos informa que, após participar de atividades
e eventos relacionados à agricultura familiar no estado de Minas Gerais, pode observar
as vantagens de acessar o programa, e também a forma de operacionalização do acesso,
e isso o inspirou a trazer a proposta para Viçosa.
Nesse município, o programa é executado a partir de duas chamadas anuais, uma
para cada semestre letivo das escolas da rede municipal, essas chamadas são articuladas
conjuntamente pela Prefeitura Municipal, representada pelo Secretário de Agricultura e
por um funcionário da Secretaria de Educação, pela EMATER de Viçosa na figura três
técnicos e por uma representante do CAE.
Num primeiro momento é convocada uma reunião que conta com a presença dos
representantes de cada uma das entidades articuladoras e dos agricultores familiares
interessados em entregar para o que eles denominam “merenda escolar”. Nesse encontro
são definidos então quais agricultores serão contratados, e discutem-se questões
operacionais relativas a entregas, definição de preços e prazos em geral.
Durante a pesquisa de campo se teve a oportunidade de participar da reunião
para a contratação dos alimentos para o primeiro semestre letivo de 2014. Nesta
atividade foi encaminhada uma tabela a cada um dos agricultores, solicitando
informações sobre a descrição, quantidade, período de disponibilidade dos produtos a
serem entregues para o programa. Ficou acertado também que dessa vez eles não iriam
entregar essa tabela para a EMATER, mas que os técnicos desta visitariam cada uma
das propriedades para resgatar a tabela preenchida e verificar se na propriedade havia
capacidade para a produção que estava sendo declarada.
Essa nova forma de controle sobre a elaboração dos projetos de venda,
aconteceu com o intuito de fiscalizar as propriedades, pois segundo relatos de
informantes, estavam acontecendo situações em que os agricultores compravam
produtos de terceiros para entregar ao programa. A forma de estabelecimento dos preços
também foi discutida nessa reunião, ocasião em que foi deliberada uma comissão
formada pelos próprios agricultores que teria a responsabilidade de realizar uma cotação
em três lugares diferentes para então ser realizada a média que irá definir os preços que
constarão nos contratos.
39
Aqui podemos utilizar, sob a forma de categorias de análise, três das instituições
de mercados postuladas por Fligstein (2003): a primeira diz respeito aos direitos de
propriedade praticados nesse mercado, o que fica explícito no próprio contrato onde
consta que a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, ou seja, os
agentes produtivos a serem beneficiados, se restringem ao segmento das unidades
produtivas familiares, daí alguns autores optarem por utilizar o termo mercado
protegido em referência tanto ao PNAE como ao PAA, que apresenta o mesmo critério.
Dentre as normas gerais que estabelecem a organização e atuação dos
agricultores para a entrega ao PNAE, a avaliação das cozinheiras das escolas ou, como
são conhecidas, “as merendeiras” é um fator importante no que diz respeito às estruturas
de governança identificadas nesse mercado. O CAE é o órgão que transmite essa
avaliação aos agricultores nas reuniões para elaboração do projeto de vendas. Durante a
reunião observada nessa pesquisa, a representante deste conselho relatou que as
merendeiras estavam reclamando dos tomates e das bananas que estavam chegando
muito maduros, desencadeando significativas perdas. Outra avaliação colhida junto às
merendeiras de uma das escolas foi a de que, de uma forma geral, os produtos eram
bons, mas alguns como as cenouras, por exemplo, eram muito menores do que as que
vinham antes da execução da chamada lei dos 30%, e que isso acarretava em um
incremento do tempo de trabalho necessário para o seu preparo.
Assim, como os fatores históricos lembram, antes da referida lei, os agentes
produtivos que acessavam este mercado consistiam em grandes redes de distribuição ou
de produção consolidadas e capazes de atender a requisitos formais, exigidos,
(praticando também táticas de competição de preços) para as compras públicas
demandadas a esse setor. Essas redes funcionam com base em formas de produção
convencionais, que apresentam substanciais distinções quanto à organização e ao
modelo produtivo familiar, assim a “herança” deixada por esses agentes tem ainda
diversas implicações em relação aos costumes, práticas e regras próprias aos atores que
recebem e transformam essas mercadorias no produto final: a merenda escolar.
Essas informações permitem também considerar que o PNAE promove o
surgimento de concepções de controle presentes no mercado da alimentação escolar,
uma vez que o Estado é quem define os mecanismos de controle da competição, por
meio das condições de acesso e definição de preços e quantidades máximos.
40
Outra instituição observada remete às normas de transação. Constam no contrato
realizado entre os agricultores (contratados) e a Prefeitura (contratante) cláusulas que
dispõem sobre os prazos e procedimentos para as entregas dos produtos e os
recebimentos dos pagamentos, além das quantidades e preços referentes às entregas de
cada um dos agricultores, tudo isso determinado previamente nas reuniões para a
elaboração do projeto de vendas. O custo do transporte fica a cargo dos agricultores, e
diferentemente da feira, a possibilidade de um rateio entre vizinhos para custear a
locação de um mesmo veículo é reduzida devido à logística das entregas ao programa
por meio da qual, geralmente, cada agricultor acorda entregar em escolas diferentes, e
em horários específicos. Isso implica em uma exigência de acesso que impossibilita
ainda a participação de alguns interessados. De acordo com os resultados da pesquisa,
dos entrevistados que declararam dificuldades para comercializar seus produtos, 67%
apontaram a falta de um veículo de transporte próprio como a principal, e 25% disseram
ter mais problemas com as más condições das estradas. Ou seja, pode-se afirmar que a
norma de transação relativa ao transporte das mercadorias no PNAE não se apresenta
condizente com os recursos da maioria dos entrevistados.
Gráfico 3 - Principais dificuldades da comercialização dos agricultores familiares de
Viçosa.
Fonte: dados da pesquisa.
.
41
Contudo, por ser uma possibilidade adicional de comercialização (inexistente dois anos
atrás), e devido ao “bom preço” pago pelo FNDE, esse cenário apresenta-se animador
para boa parte dos agricultores familiares do município (24% das preferências dos
agricultores entrevistados), bem como para a Prefeitura, EMATER e demais entidades
envolvidas na viabilização desse mercado que atualmente corresponde a 66% da
demanda municipal, e segundo relatos do presidente do STR tem servido de modelo
para os municípios ao seu entorno.
3.3 OS MERCADINHOS, RESTAURANTES E SUPERMERCADOS LOCAIS.
Os mercadinhos, restaurantes e supermercados locais que se abastecem de
gêneros alimentícios oriundos da agricultura familiar do município foram analisados
conjuntamente devido à verificação de dinâmicas de funcionamento, exigências e
padrões extremamente similares entre si. Nesta pesquisa foram entrevistadas pessoas
ligadas a oito estabelecimentos dessa classificação: todos os grandes supermercados que
atuam na cidade, bem como os varejistas especializados em FLV de maior volume.
Com exceção de um deles, a origem da maior parte de suas mercadorias advém do
CEASA de Belo horizonte/MG, sendo que todos também compram produtos mais
perecíveis como verduras e algumas frutas e legumes da agricultura local, não só a
familiar, e também não apenas a de Viçosa.
À exceção citada acima designaremos com o nome fictício de Mercado do José,
o qual apresenta um papel significativo no abastecimento de boa parte dos outros
estabelecimentos dessa categoria. De acordo com o relato de um dos sócios-
proprietários, a família dispõe de uma unidade de produção agrícola bem consolidada
que atualmente consegue dar conta de praticamente todas as mercadorias
comercializadas no estabelecimento. Este mesmo informante declarou ainda que vende
também na Feira Livre e a vários mini-mercados localizados nos bairros.
Os direitos de propriedade observados em meio a essa categoria de mercado
garantem a participação de uma vasta e heterogênea parcela de produtores rurais, de
forma que os beneficiários dos rendimentos auferidos abrangem pequenos, médios e
grandes produtores sem restrições quanto a padrões produtivos, nem sanitários. No
entanto, é evidente que aqueles agentes produtivos que detêm maior capacidade de
42
escala acabem construindo relações mais duradouras com os grandes varejistas. Esse é o
caso de dois grandes supermercados da cidade, cujos setores de FLV são terceirizados
para uma empresa de logística especializada nesse segmento, cuja unidade de
distribuição mais próxima encontra-se no município de Juiz de Fora-MG.
Ao identificarmos as estruturas de governança presentes nesse mercado, pode-se
compreender que as relações estabelecidas que determinam a organização dos
produtores no tocante as definições de preços e quantidades repousa nos critérios que
atendem a eficiência da distribuição praticada pelos varejistas que, na maioria dos casos,
dispõe de capacidade financeira e poder de barganha superior ao dos produtores.
Há também uma relevante diferença entre as possibilidades da agricultura
familiar local e as grandes redes de distribuição de alimentos. Essa diferença fica
explicita ao verificarmos que empresas de logística como a citadas anteriormente, ou as
encomendas de mercadorias do CEASA-BH apresentam uma capacidade de entrega
permanente de uma ampla lista de produtos diversos, nacionais e importados, bem
distante do que podem oferecer os estabelecimentos familiares.
Essa situação apresenta-se análoga à nova tendência de transnacionalização dos
elos das cadeias agroalimentares que atingem o continente latino americano de acordo
com Wilkinson (2006, p.5), que assinala ainda que os estudos sobre os impactos dessa
tendência:
[...] apontam para uma transformação do ambiente concorrencial, que leva a
maiores níveis de eficiência e a pressões tanto sobre custos quanto sobre um
maior ritmo de inovações e modernização tecnológicas [...] nesse processo,
médios e até grandes produtores estão sendo privilegiados à custas da
participação da pequena produção, que só se mantém com base em respostas
inovadoras de organização ou sob sistemas variados de subcontratação ou
associação com médios produtores.
Quando questionado sobre quais as exigências e critérios que interferem na
escolha da compra das mercadorias que serão comercializadas em seu estabelecimento,
um dos varejistas entrevistados foi bem claro ao dizer que: “Aqui é o seguinte: o pessoal
[produtores] passam aqui com o que eles têm, se a mercadoria tiver bonita, o preço for
bom e servir para o que eu to precisando na hora, a gente pega, se não a gente dispensa”
(Varejista 1).
43
Este relato evidencia como as relações tecidas entre os varejistas e os produtores
locais podem ser tênues de maneira que, mais uma vez, a agricultura familiar apresenta
ligeiras desvantagens em relação ao sistema logístico das grandes empresas de
abastecimento.
Em relação às concepções de controle, cabe destacar que geralmente as relações
de proximidade e confiança entre esses produtores e consumidores também interferem
nas práticas desse mercado. Três dos oito varejistas entrevistados relataram manter
relações comerciais com um ou outro produtor local devido à questões ligadas à sua
reputação e ao fato de já se conhecerem há muito tempo, por exemplo. Entretanto, como
exemplificado acima, essas relações não são determinantes ao ponto de fazer frente a
eventuais desvios quanto aos aspectos relacionados à regularidade da entrega e ao preço
praticado, de maneira que as formas de competição são ainda mais influenciadas por
esses últimos aspectos. Contudo, tem-se que as regras de transação como o
compromisso e a quantidade da entrega, preços baixos e o pagamento consignado no
caso das verduras, devido a sua alta perecibilidade, determinam mais do que qualquer
outro fator as características das instituições identificadas nesse segmento de mercado.
Quanto aos restaurantes, embora seja verdade dizer que as instituições
verificadas acima também fazem parte da realidade das práticas mercantis desses
estabelecimentos, existem algumas ressalvas em relação às demandas de quantidade,
que resultam também em preços diferentes daqueles praticados nos mercados locais. E
da mesma forma em que acontece nestes últimos, nos restaurantes não existem padrões
de natureza sanitária ou de padrão produtivo, e os preços e a aparência visual das frutas
legumes e verduras comercializada ainda são os principais critérios adotados por esses
compradores, como nos relata uma agricultora: “Pros restaurantes eles não querem nem
saber se tem veneno, ou se tem adubo orgânico, pra eles tem que ter preço e entregar na
hora certa, é isso que vale” (Dona Telma).
Esse relato indica também que, nos restaurantes, a pontualidade da entrega é um
critério que impõe um modo de organização específico exigindo uma habilidade de
gestão das etapas de produção e comercialização, ou seja, mais um aspecto que deve ser
incluído à analise das instituições nesse mercado, sendo que esse critério remete à
utilização mais eficiente dos fatores de produção dos serviços prestados pelo
restaurante.
44
3.4 O PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS (PAA).
Em 2003, é instituído pelo decreto n°10.696, de 2 de julho, o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA), alterado posteriormente pelo decreto n° 5.783 em 15 de
agosto de 2006. Fruto de ações vinculadas a estratégias de Segurança Alimentar e
Nutricional inserida no programa Fome Zero, o intuito deste programa consiste, de
forma geral, na criação de um espaço de escoamento da produção da agricultura
familiar, por meio de uma política de preços mínimos praticados sob uma garantia de
compra, e na inserção dos agricultores familiares no mercado institucional por meio das
compras governamentais. Segundo documento oficial, o principal objetivo do programa
pode ser tido como:
“[...] garantir o acesso aos alimentos em quantidade, qualidade e
regularidade necessárias às populações em situação de insegurança
alimentar e nutricional, contribuir para a formação de estoques
estratégicos, permitir aos agricultores familiares que estoquem seus
produtos para serem comercializados a preços mais justos, e promover
a inclusão social no campo por meio do fortalecimento da agricultura
familiar” (BRASIL, 2006).
O programa representa assim um instrumento de intervenção estatal que
acontece tanto no lado da oferta como da demanda de alimentos, ou seja, estimula a
produção por meio da flexibilização dos procedimentos para as compras
governamentais (dispensa de licitação), ao mesmo tempo em que redistribui esses
alimentos. O diagrama abaixo permite ilustrar como o programa está concatenado às
ações de combate a fome do Governo Federal.
45
Figura 2 –Diagrama Programa Fome Zero
Fonte: CHMIELEWSKA, et all, 2010
A operacionalização desse mercado acontece de acordo com as modalidades do
programa, que são cinco ao todo: Compra Direta Local da Agricultura Familiar
(CDLAF), Compra Direta da Agricultura Familiar (CDAF), Compra Antecipada
Especial da Agricultura Familiar - Doação simultânea (CAEAF), Formação de Estoques
pela Agricultura Familiar (CPR - Estoque) e Incentivo à Produção e Consumo de Leite
(IPCL) (BRASIL, 2007).
Na pesquisa de campo realizada neste trabalho foram mapeadas duas
associações de agricultores no município que acessam o programa através da
modalidade de Compra Direta para Doação Simultânea. Esta modalidade exige um
acordo de venda e entrega prévia entre os produtores e as instituições beneficiadas, haja
vista, entidades cadastradas nas redes de assistência social local, outra exigência muito
relevante para as questões levantadas nessa pesquisa é a necessidade de que os
agricultores familiares estejam organizados em grupos formais como cooperativas ou
associações.
Uma primeira consideração quanto aos direitos de propriedade desse mercado
está relacionada a esta última exigência indicada no parágrafo anterior, ou seja, os
46
atores sociais que auferem os ganhos financeiros decorrentes desse programa são
estritamente os agricultores familiares, entretanto, para isso devem estar vinculados a
algum processo de organização e mobilização social formalizado juridicamente como
associação ou cooperativa.
Dessa forma, em muitos casos, como nas duas associações pesquisadas neste
trabalho, a formalização jurídica aconteceu de forma concomitante ao surgimento da
organização enquanto processo social, e sob o intuito máximo de acesso ao PAA5. Por
ora, vale dizer que as concepções de controle que envolve esse mercado remetem
diretamente às regulamentações que determinam as condições de acesso, os preços e as
quantidades comercializadas, uma vez que este programa surge exatamente como uma
proposta de mercado protegido, principalmente em relação à competição de preços e
escalas produtivas, inviáveis para grande parte dos agricultores familiares (quando
comparados a agentes produtivos mais capitalizados).
Cabe aqui um paralelo entre o PAA e o PNAE em relação a essa categoria de
análise. Sendo as propostas dos dois programas semelhantes no tocante aos agentes
beneficiados e formas de funcionamento, é verificada também uma grande semelhança
entre as concepções de controle dos dois mercados, de maneira a corroborar a
proposição de Fligstein (2003, p. 212): “os novos mercados imitam as concepções de
controle vigentes nos mercados mais próximos, sobretudo quando as empresas de outros
mercados decidem entrar no novo mercado”. Há que se considerar, entretanto ligeiras
diferenças entre os mecanismos de definição de preços e das exigências de acesso entre
esses mercados.
Em relação às estruturas de governança, pode-se dizer que tanto as leis que
determinam o modo de funcionamento legal das organizações (associações ou
cooperativas) quanto o regulamento que delibera sobre a operacionalização do programa
e os aspectos culturais e históricos que orientam a atuação dos agricultores representam
as diretrizes que definem como agentes produtivos devem proceder para acessarem o
PAA.
5 Em relação às consequências que esse procedimento pode acarretar discutiremos melhor no capítulo
seguinte que trará as estratégias e as habilidades dos atores para o acesso a mercados
47
Sobre esse aspecto é importante esclarecer também que, como observado no
contexto viçosense, a Prefeitura Municipal e os técnicos da EMATER desempenham
um papel chave para a viabilização desse mercado. Estes últimos são os que assessoram
a gestão e funcionamento das associações, sendo que em uma delas esses atores também
realizam as convocações para as assembléias, a elaboração e o arquivamento das atas
das mesmas e até mesmo o controle e a prestação de contas das entregas realizadas. Já a
prefeitura disponibiliza o veículo de transporte que busca os produtos nas propriedades
rurais e os distribuem nas entidades beneficiadas. Fica evidente como a compreensão
dos desafios do processo organizacional das cooperativas e associações que acessam o
programa é indissociável da análise das instituições presentes nesse mercado.
As normas de transação são determinadas pela entidade responsável pela gestão
PAA, ou seja, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), que determina as
regras e procedimentos burocráticos que regem as entregas dos produtos, a prestação de
contas e o pagamento dos agricultores. Em uma das associações pesquisadas, o
cumprimento desses procedimentos encarou dificuldades de diversas naturezas
(mudanças em quantidades, ou produtos, entre as entregas previstas no projeto e as de
fato realizadas, por exemplo) que acarretaram em complicações com a prestação de
contas e consequentes atrasos no pagamento aos agricultores. Esse acontecimento gerou
muitas descrenças por parte desses agentes produtivos quanto a viabilidade e vantagens
de inserção nesse tipo de mercado protegido, de maneira que um dos agricultores da
comunidade que não acessa o programa declarou, mesmo precisando conseguir novos
canais de escoamento para a sua produção, não ter interesse de acessar o programa.
Os preços praticados nesse mercado também representam um fator que
desestimula a participação de muitos agricultores familiares de Viçosa. Diferentemente
do PNAE, onde os próprios agricultores se organizam em comissões que realizam os
orçamentos base para o preço no próprio município, no PAA os preços são aqueles
definidos pela CONAB que conta com uma metodologia específica de contabilização
dos custos de produção de cada item, para cada região brasileira. Assim, para alguns
agricultores que participam de uma das associações pesquisadas não é viável a
comercialização de determinados produtos por essa via. Entretanto, de acordo com o
regimento do programa, é possível a submissão de aditivos à CONAB com o
48
requerimento de reavaliações dos preços praticados para alguns produtos, desde que
verificadas defasagens em relação aos preços locais6.
Contudo, em meio às informações levantadas na pesquisa de campo, podemos
compreender que o PAA representa um canal de comercialização relevante para os
agricultores familiares do município, haja vista que 17% das respostas quanto à
importância do programa apontaram-no como o mais importante. No entanto, suas
exigências e formas de funcionamento ainda representam um grande desafio para o
acesso exitoso do programa para pelo menos 16 agricultores de uma das duas
associações que participam desse mercado no município.
3.5 A VENDA DIRETA E OS ATRAVESSADORES.
A venda direta consiste em uma forma de mercado que proporciona a construção
de uma relação mais estreita possível entre os agricultores familiares e os consumidores
finais (uma vez que os outros mercados estudados, com exceção da Feira Livre,
estabelecem relações com mediadores). Dentre os entrevistados dessa pesquisa, os oito
agricultores que declararam comercializar dessa maneira enfatizaram o fato de não
utilizarem nenhum tipo de agrotóxico e que a prioridade da produção é a qualidade.
Ou seja, um enquadramento dos direitos de propriedade presentes nesse
mercado, evidencia que os agentes produtivos que o acessam correspondem
substancialmente aos agricultores familiares que buscam realizar um trabalho próximo á
um padrão produtivo alternativo à agricultura convencional.
Não parecem existir nesse mercado estruturas de governança específicas, pois as
relações de confiança e amizade interferem significativamente para ocorrência das
transações, e são essas relações que determinam como será a pratica mercantil tanto dos
produtores, como dos consumidores, Fato este que sinaliza como é criada a reputação
dos produtores, de forma que os preços passam a ter até uma posição secundária para a
concretização dessas transações.
6
As causas que resultam no fato de nenhum dos agentes produtivos entrevistados disporem dessa
informação serão também alvo das discussões realizadas no capítulo seguinte.
49
Nesse sentido, as concepções de controle como as normas de transação também
estão ligadas a essas relações que podem permitir a compra “fiada” em determinados
contextos e em outros não, por exemplo.
Um dos agricultores, quem declarou ser esta forma de comercialização através
da qual aufere o maior faturamento em relação aos outros mercados, destacou ao ser
questionado sobre esse tipo de venda:
“[…] é muito bom porque pra mim não tem hora pra vende, ai
sempre aparece alguém aqui e eu sempre atendo, pode ser
cinquenta centavos, um real, mas que no fim um dinheiro bom, e
as pessoas que vão gostando acabam voltando ou me liga e eu
levo na casa deles quanto precisa...” (Seu João Dias)
Esse relato evidencia ainda esse outro caráter da venda direta, haja vista,
possibilitar um ganho significativo muitas vezes “sem ter que sair de casa”, e ao passo
que as relações com os consumidores vão se consolidando, esse mercado pode se
expandir atendendo os anseios e limitações de ambas as partes.
Nesta pesquisa, foram entrevistados apenas dois agricultores familiares que
declararam entregarem produtos a um atravessador. Neste caso é um mesmo
atravessador de uma comunidade rural que compra os produtos desses dois agricultores,
direto na propriedade.
Um dos agricultores declarou comercializar por essa via de forma residual em
relação aos seus outros canais de escoamento, declarando que entrega a essa pessoa
apenas quando esta com mercadoria sobrando, sendo que seus principais mercados são
o PAA, e os mercadinhos locais com os quais já tem relações mais duradouras. O outro
agricultor, entretanto, alegou que entrega em média 50% de sua produção e demonstra
um alto grau de dependência desse mercado que tem como principal vantagem o fato de
o atravessador buscar os produtos, não incorrendo assim em custos de transporte, nem
demanda as negociações e os conhecimentos que são exigidos para inserir os produtos
no varejo. Entretanto o preço pago pelo atravessador chega a ser até 75% menor do que
os preços pagos no PAA, no PNAE ou na Feira por exemplo.
A venda aos atravessadores exige apenas uma quantidade mínima, preços
demasiadamente baixos e o contato direto com essa pessoa. No entanto, o segundo dos
produtores mencionados relata que tem que ter um planejamento minucioso da
50
produção e conhecer quando os períodos do ano que esse atravessador costuma precisar
de mais produtos para que consiga fazer uma combinação mais eficaz nas vendas para o
PAA e para esse atravessador. Esse planejamento demonstra assim a necessidade de
desenvolver uma habilidade, que aqui será classificada como empreendedora, e que será
melhor trabalhada também no capítulo seguinte.
Contudo, os dois agricultores apresentaram-se ligeiramente insatisfeitos com
essa via de comercialização, de forma que nenhum deles atribuiu aos atravessadores
grande importância no tocante às suas estratégias de comercialização, haja vista o fato
de os atravessadores nem serem mencionados nas respostas sobre a ordem de
importância dos mercados acessados.
3.6 A REDE DE PROSSUMIDORES RAÍZES DA MATA.
A Rede Agroecológica de Prosumidores/as Raízes da Mata (Viçosa-MG) é
uma organização coletiva de compras que busca aproximar produtores/as e
consumidores/as na construção de uma relação diferenciada de produção e consumo.
Essa inciativa surgiu em 2011, e seus princípios são a Agroecologia, Economia Popular
Solidária, gestão compartilhada, transparência e “prossumo”, ou seja, uma prática mais
consciente, responsável e ativa por parte dos consumidores e produtores no tocante à
comercialização de produtos socialmente e ambientalmente mais sustentáveis.
A Rede se estrutura a partir da articulação do Grupo de Agroecologia e
Agricultura Orgânica (GAO); Grupo Apêti de Agrofloresta; Grupo de Saúde Integral
em Permacultura (SAUIPE); Programa TEIA de Extensão Universitária; e a Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares da UFV (ITCP-UFV). Esses grupos constituem-
se em iniciativas de extensão universitária que atuam sob uma perspectiva dialógica de
trabalho, envolvendo estudantes, professores, técnicos e empreendimentos populares.
Os grupos GAO e Apêti realizam trabalhos voltados para uma agricultura mais
sustentável, do ponto de vista prático e teórico, abordando os temas ambiental, social,
econômico e político, cobrindo uma lacuna deixada nos programas curriculares
acadêmicos da UFV. O SAUIPE desenvolve trabalhos embasados na prática de
permacultura em Viçosa promovendo ações relacionadas ao tratamento ecológico de
resíduos, metodologias para a transição agroecológica, bioconstruções, práticas em
51
economia solidária, reutilização de materiais, desenvolvimento de produtos naturais e
etc. A ITCP-UFV realiza trabalhos de assessoria a grupos populares, formais e
informais, desenvolvendo ações direcionadas ao fortalecimento e fomento de
empreendimentos econômicos organizados a partir dos princípios da Economia Popular
Solidária. Por fim, o programa Teia visa articular esses projetos de extensão da UFV,
que atuam de acordo com uma proposta de atividades de extensão pautada pela
dialogicidade e educação popular (ITCP/UFV, 2013).
Figura 3 Entrega de produtos agroecológicos na Rede Raízes da Mata
Fonte: Raphael Fontes
O diálogo entre as equipes envolvidas nesses projetos somados às demandas de
comercialização dos diversos grupos de agricultores beneficiários dos mesmos
desencadearam ações que visavam estabelecer um canal de venda casada entre esses
atores e uma demanda potencial, composta inicialmente por pessoas vinculadas à
universidade, e que tinham o interesse de ter acesso a produtos agroecológicos e
oriundos de processos produtivos mais democráticos e participativos.
De maneira geral, o funcionamento da rede teve inicio a partir da elaboração de
uma lista de produtos disponíveis, definida após os contatos com os produtores
participantes, e enviada todas as segundas-feiras, por meio eletrônico, a todos os
prosumidores cadastrados,. Os prosumidores têm prazo de dois dias para preencherem a
planilha com seus pedidos e enviar de volta à comissão organizadora que então repassa
os pedidos aos produtores. As entregas são realizadas toda sexta-feira e os
52
procedimentos operacionais para a mesma (o recebimento dos produtos, a organização e
separação destes e o controle das saídas) contam com o envolvimento de produtores,
estudantes colaboradores e prossumidores voluntários.
No entanto, é válido ressaltar que todas essas atividades demandam recursos
como tempo e dinheiro, que são obtidos, principalmente, junto projetos acadêmicos
financiados por entidades públicas como o Programa de Extensão Universitária
(PROEXT) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento de Pesquisa e Tecnologia
(CNPq) e pelo pagamento, realizados pelos produtores, de uma taxa de 10% sobre o
valor das entregas semanais.
Os agentes produtivos que participam da Rede Raízes da Mata, no que concerne
ao segmento alvo desta pesquisa, são agricultores familiares autônomos e residentes em
assentamentos da reforma agrária7. Sob a restrição básica de não haver agrotóxicos nos
processos produtivos, pode-se dizer ainda que existe uma certificação participativa em
torno das técnicas de produção e manejo que acontecem, principalmente por meio de
intercâmbios realizados entre todos os membros da rede, e cujas metodologias intentam
ser uma troca de experiências e saberes quanto à prática agroecológica. Essa
característica denota os direitos de propriedade observados nesse mercado, uma vez que
a Rede apresenta uma evidente intencionalidade de fomento da agricultura familiar, da
agroecologia e da economia solidária e, portanto, pode ser compreendida enquanto uma
forma de mercado protegido e solidário.
Quanto às normas gerais que orientam as relações econômicas desenvolvidas na
Rede, ou seja, as estruturas de governança de Fligstein (2003) são definidas em espaços
de participação de produtores, consumidores e colaboradores. Nesse sentido, a
organização dos agentes produtivos para a entrega dos produtos é definida também
nessas atividades, de forma que busca-se mitigar suas limitações e explorar suas
potencialidades. Em conversas com as pessoas que compõem a coordenação da Rede
fica evidente que as exigências de caráter sanitário e de logística são construídas de
7 Vale lembrar, no entanto que não existe nenhum assentamento rural no município de Viçosa-MG
alvo desta pesquisa.
53
forma conjunta entre os produtores e consumidores, sem deixar de considerar aspectos
de natureza técnica8.
Os mecanismos e as estratégias relativos ao controle da competição e dos preços
apresentam-se em construção, sendo pauta recorrente das atividades da Rede. Os preços
são definidos pelos próprios produtores que são orientados a estabelecerem um valor
justo, que remunere adequadamente o trabalho e os gastos envolvidos na produção,
apesar de não existir ainda critérios precisos de como isso deve ser feito. No entanto, foi
definido em espaços deliberativos da Rede que os produtos iguais (especificamente os
alimentos do segmento FLV) de produtores diferentes devem ter o mesmo preço, a fim
de impedir a competição por essa via.
As práticas e regras específicas ao funcionamento da compra casada praticada na
Rede Raízes da Mata contemplam assim, muito mais os princípios e objetivos fundantes
desta – Agroecologia, Economia Popular Solidária, gestão compartilhada, transparência
e prossumo – do que uma racionalidade competitiva amparada em critérios de eficiência
tecnológica. O leitor atento pode questionar se esta racionalidade é necessariamente
antagônica àqueles princípios. Em relação a essa discussão convém lembrar que:
“[...] a via de desenvolvimento agrícola com base na produção
familiar está bloqueada no Brasil e em muitos outros países da
América Latina devido à consolidação dos preços relativos que não
refletem dotações reais de fatores, mas resultam basicamente do
acesso desigual à terra e ao crédito subsidiado” (WILKINSON, 2008,
p.26).
Segundo este autor, na agricultura, “a competitividade foi deslocada, por meio
de mecanismos institucionais, do trabalho braçal para a mecanização” (WILKINSON,
2008, p.27), bem como a noção de eficiência é introduzida associada a um paradigma
tecnológico que excluí a unidade familiar, e suas vantagens competitivas (a ausência de
um controle, e supervisão externa sobre prestação de serviços, por exemplo) em
comparação ao trabalho assalariado. Esse fenômeno constitui um ciclo onde o
alinhamento das dinâmicas produtivas familiares de pequena escala aos padrões
tecnológicos, socialmente, e economicamente dominantes, torna-se a única opção à
sobrevivência daquelas sob o contexto da ordem comercial que impera nos mercados
8 Recentemente, a Rede recebeu assessoria de uma nutricionista que desenvolveu uma novas formas
de organização da dinâmicas das entregas.
54
globalizados. Essa “irreversibilidade de uma trajetória tecnológica específica não reflete
necessária e diretamente a uma superioridade competitiva, mas pode resultar de arranjos
institucionais predispostos a uma solução tecnológica particular” (IBDEM).
Essa perspectiva que compreende a tecnologia como algo não neutro, mas
socialmente e culturalmente construída, é discutida também nas abordagens de Dagnino
e Novaes (2003), que discorrem sobre o enquadramento do atual padrão científico nos
moldes condicionados por valores e controlado pelo homem. Assim, é possível
pensarmos uma análise de padrões de eficiência e competitividade apropriados à
realidade de uma unidade produtiva familiar, e agroecológica, e a partir daí definir
estratégias alternativas que consigam atingir êxito não só econômico, mas também
ambiental e social. E é justamente essa a proposta que pretende as mobilizações em
torno da Rede Raízes da Mata.
“A Rede foi o que incentivou a gente a produzir, antes ninguém
valorizava a gente, né? Agora todo mundo conhece nossos produtos e
dá valor no nosso trabalho... E assim, eu sempre sonhei em um dia
entrar naquela universidade, nem que fosse de faxineira, e aí hoje o
pessoal me liga pra eu levar meus produtos e todo mundo gosta e
valoriza mais os produtos da gente” (Cintia).
O relato transcrito acima ilustra essa circunstância sob a qual se verifica que
nesse mercado, os padrões tecnológicos exigidos permitem o acesso de agentes
produtivos excluídos do padrão competitivo hegemônico. E a percepção dos
agricultores em relação a essa inovação transcende os aspectos materiais, mas
desencadeia também transformações simbólicas que empoderam tanto a unidade
familiar de produção agrícola quanto o paradigma produtivo agroecológico.
Cabe lembrar que as normas de transação que estabelecem o funcionamento das
transações também apresentam significativas alterações em relação às práticas dos
mercados convencionais. Os preços, em muitos casos, apresentam-se ligeiramente
superiores na Rede do que em outros mercados, entretanto a viabilização de um sistema
de compra casada como o que ocorre na Rede demanda também custos operacionais,
ligados às estruturas e serviços que envolvem sua logística.
Contudo, a Rede apresenta ainda desafios quanto à expansão da demanda efetiva
e do número de produtores envolvidos. Um exemplo é o fato de os quatro entrevistados
que entregam para a Rede avaliarem-na como o mais importante entre os mercados
55
acessados, apresentando, entretanto, como principal fonte de escoamento de sua
produção outros mercados. Embora a importância da Rede para os agricultores não
esteja ligada apenas aos recursos financeiros obtidos através deste espaço, mas também
a fatores de ordem simbólica como a reputação baseada na confiança em relação à
origem agroecológica dos produtos, por exemplo, é necessário o desenvolvimento de
estratégias que permitam a ampliação da Rede, para que esta possa desempenhar um
papel mais significativo no contexto da comercialização da agricultura familiar
viçosense.
Temos assim um panorama dos principais mercados da agricultura familiar do
município, de maneira a tornar possível identificarmos quais são as principais
exigências para o acesso a cada um desses mercados como consta no quadro abaixo:
Quadro 1- Principais exigências dos mercados acessados pelos agricultores familiares
de Viçosa
Condições para o
Acesso Mercados
Padrão Produtivo Rede Raízes
da Mata PNAE
Processamento pós-
colheita (embalagem) PNAE PAA
Qualidade do produto TODOS
Quantidade mínima Mercados
Locais Atravessador
Planejamento da
produção PNAE PAA
Mercados
Locais
Associação/organização
coletiva PAA
Rede Raízes
da Mata
Gestão Financeira e
Contábil PAA
Divulgação dos
Produtos Feira Livre
Mercados
Locais Venda Direta
Preços baixo
Feira Livre
Mercado
Locais Atravessador
Contatos pessoais Feira Livre Mercados
Locais Atravessador Restaurantes
Regularidade Mercados
Locais Restaurantes PAA PNAE
56
Fonte: dados da pesquisa
Fica claro aqui que a comercialização da agricultura familiar envolve uma ampla
gama de elementos desde aspectos organizacionais, produtivos e gerenciais. No entanto,
o atendimento a esses requisitos demanda também a ação estratégica dos agricultores
tanto no sentido da diferenciação de produtos como da diferenciação dos mercados,
assim no capítulo seguinte será discutido quais estratégias e quais as habilidades que
esses atores desenvolvem para conseguirem lidar com essa diversidade conjuntural
típica aos mercados da agricultura familiar caracterizados aqui.
57
4. AS HABILIDADES SOCIOECONÔMICAS E AS ESTRATÉGIAS DE
COMERCIALIZAÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES
Além das entrevistas, foram realizadas também as observações não participantes
e participantes nos principais mercados FLV de Viçosa, como a Feira Livre, os
mercadinhos e supermercados, a Rede Raízes da Mata, e os espaços de construção do
projeto do PNAE. A execução dessas metodologias, somadas a uma relação de
envolvimento e participação deste pesquisador em boa parte desses mercados, permitiu
certo grau de imersão que se figurou fundamental para a obtenção de informações
relevantes para identificarmos como os agricultores desenvolvem seu papel de agentes
na construção social dos mercados.
Os sujeitos desta pesquisa correspondem aos agricultores cujas condições se
aproximam tanto dos critérios oficiais que caracterizam o segmento da agricultura
familiar, como das características relacionadas à categoria campesinato, muito discutida
por diversos autores da literatura sobre sociologia rural e desenvolvimento rural
(WOLF, 1970; WOORTMAM, 2000; WANDERLEY, 1996). Sem adentrarmos na
vasta discussão conceitual a cerca do tema, utilizaremos aqui a perspectiva de
Wanderley, (1996, p.03) que assinala:
A agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas
sociais de agricultura familiar, uma vez que ela se funda sobre a
relação indicada entre propriedade, trabalho e família. No
entanto, ela tem particularidades que a especificam no interior
do conjunto maior da agricultura familiar e que dizem respeito
aos objetivos da atividade econômica, às experiências de
sociabilidade e à forma de sua inserção na sociedade global.
Nesse sentido, quando Ploeg (2008) nos fala sobre a situação dos camponeses
em meio às transformações dos mercados alimentares, em escala global, vivenciadas
nas ultimas décadas, compreende-se aqui que os atores sociais que este autor define
como camponeses apresentam notáveis semelhanças com os agricultores familiares aos
quais se referencia Schneider (2012) em suas considerações sobre as estratégias de
organização desses sujeitos.
Posto isto, nesta seção pretendemos identificar quais habilidades, de natureza
econômica, social, cultural, ou política são necessárias para os agricultores familiares de
Viçosa acessarem os mercados de FLV disponíveis no município.
58
A ideia de habilidade utilizada aqui corresponde às estratégias adotadas pelos
agricultores que possibilitem um desempenho satisfatório tanto econômico como social
(no sentido da manutenção dos circuitos de relações sociais) de sua ação juntos aos
mercados.
Em um estudo comparativo sobre as habilidades empreendedoras dos
agricultores do País de Gales e da região da Toscana na Itália, Morgan Et all (2010)
identificam três principais formas de habilidades, a saber, (Creating and evaluating a
business strategy; networking and utilising contacts; recognising and realising contacts)
de acordo com os autores essas habilidades:
[...] are shown to be mutually influential, with the networking and utilising
contacts skills and the opportunity recognition and realization skills assessed
in relation to the business pathways that farmers follow and, hence, in
relation to their skills in creating and developing strategy.(MORGAN et all ,
2010, p.120).
A abordagem dessa pesquisa buscava dar conta das habilidades desenvolvidas
pelos agricultores para construírem suas relações comerciais. Tal proposição evidencia
assim a importância das redes sociais e dos contatos para a ação econômica eficaz
desses sujeitos nos mercados em que atuam.
De maneira semelhante, Filgstein (2009) assinala a ideia de habilidade social
ligada às ações dos agentes no sentido de incitarem a cooperação de seus pares9. Este
autor, no entanto aprofunda-se nesse conceito explorando seu aspecto relativo à
interatividade dos atores, de maneira que os atores sociais hábeis induzem a cooperação
e ajudam os outros a obter seus fins, para tanto criam um “senso positivo de si mesmos
ao se envolverem em produzir significados para si e para os outros” (FLIGSTEIN,
2009, p.82).
Vale lembrar também que este autor encadeia o conceito de habilidade social à
noção de campos sob a argumentação de que é necessário relacionar as táticas utilizadas
pelos atores com a posição destes nos devidos campos de atuação. Ou seja, a
“habilidade social surge como uma “microestrutura para compreender o que os atores
fazem nos campos” (IBDEM, p. 86)
Em relação à agencia humana indicada por Long & Ploeg que, sob forte
influência do sociólogo Anthony Giddens, a define nos termos de uma “capacidade de
processar a experiência social e de delinear formas de enfrentar a vida, mesmo sob as
9 Este conceito foi exposto mais detalhadamente no capítulo 4.
59
mais extremas formas de coerção” (2011, p.25). O autor completa ainda que a ação
encontra-se dependente da capacidade do indivíduo de provocar alterações em uma
dada circunstância implicando na afirmação de que “todos os atores (agentes) exercem
um determinando tipo de poder, mesmo aqueles em posição de extrema subordinação”.
Esta definição corrobora com a perspectiva assinalada por Ploeg (2008) que
compreende que o fato de os camponeses continuarem a existir em pleno século XXI,
mesmo diante de uma tendência avassaladora de padronização das dinâmicas produtivas
alinhadas ao modelo capitalista, está diretamente associado à capacidade de agência que
esses atores possuem.
O conceito relacionado à capacidade de ação de um indivíduo será também
abordado neste capítulo. Discutido principalmente pelo economista Amartya Sen
(2010), este autor apresenta a ideia de capacidade diretamente ligada ao conceito de
funcionamentos de forma que:
O conceito de “funcionamentos” [...] reflete as várias coisas que uma
pessoa pode considerar valioso fazer ou ter. [...]A “capacidade” [capability]
de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja
realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a
liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos
(ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida
diversos).(SEN,2010, p.95)
Nesse sentido, as estratégias desenvolvidas pelos agricultores para escoarem sua
produção podem também serem analisadas à luz desses conceitos. Como verificado
durante a pesquisa de campo esses atores buscam alternativas tanto de diversificação de
mercados, como de diferenciação de produtos, no entanto sempre condicionadas pelas
possibilidades reais de intervenção nas estruturas mercantis nas quais interagem. Esse
olhar dialoga então com a proposta da “abordagem da capacidade”, a qual, de acordo
com esse mesmo autor “pode ser sobre os funcionamentos realizados (o que uma pessoa
realmente faz) ou sobre o conjunto capacitário de alternativas que ela tem (suas
oportunidades reais) (SEN, 2010, p.96).
Sob o intuito de captar a heterogeneidade de estratégias empenhadas pelos
agricultores, serão analisadas aqui, no âmbito das relações para o acesso aos mercados,
tanto a habilidade de influenciar a ação dos seus pares no sentido da cooperação
(habilidade social), como o exercício de uma forma de poder na condução de
circunstâncias específicas (agência), e também a capacidade de um ator social criar
alternativas de organização e funcionamento dentro das estruturas possíveis. Ao
observar as habilidades desenvolvidas pelos agricultores entrevistados nesta pesquisa,
60
entende-se que as três categorias mencionadas contemplam a pluralidade dessas ações
tanto pelo aspecto da construção de relações de interação cooperativas como da
interferência no curso de determinados acontecimentos e também da liberdade de
realização de combinações distintas diante do campo de possibilidades existente.
Pretende-se aqui utilizar essas três categorias diferentes para analisar o conjunto
das habilidades identificadas nos agricultores familiares, de maneira a garantir a
apreensão da heterogeneidade que caracteriza essas ações. Faz-se necessário salientar,
contudo, que o olhar para a atuação desses agricultores, proposto neste capítulo, não
desconsidera o fato desta ação encontrar-se também, até certo grau, condicionada pelas
instituições (direitos de propriedade, estruturas de governança, concepções de controle,
e as normas de transação) que se fazem presentes nos canais de comercialização do
município estudado.
Para facilitar a descrição das habilidades identificadas durante a pesquisa de
campo, foram criadas quatro categorias de analise.
1) Produção: A primeira categoria relaciona-se aos aspectos
produtivos típicos da realidade econômica e social (dotação de fatores de
produção e recursos disponíveis, tecnologia e mão-de-obra utilizada) dos
agricultores familiares, de maneira a compreendermos como estes utilizam
as diferenciações de produto e de padrão produtivo como um mecanismo de
acesso e ampliação de mercados.
2) Clientização: A segunda remete às ações que visam a construção
e consolidação de relações de fidelização entre produtores e clientes, sob o
intuito de estimular a repetição das transações, denominada aqui, inspirando-
se em Geertz, de clientização.
3) Cooperação e associação: A terceira explica como os agricultores
se relacionam e se articulam com seus pares, por meio de associações
formais, ou construção de redes sociais, para também inserirem-se em novos
espaços de comercialização, tendo fundamento numa racionalidade mais
cooperativa do que competitiva.
4) Gestão empreendedora. A última categoria de habilidades
verificadas nesta pesquisa está relacionada às ações de gestão da produção e
adequação desta a uma inserção mais rentável nos mercados, que aqui será
denominada como habilidade empreendedora.
61
Antes de entrarmos nas análises dessas categorias, é importante apresentar
também os principais motivos que influenciam as vendas dos agricultores familiares
pesquisados.
Gráfico 4- Motivos que influenciam os agricultores familiares de Viçosa na definição dos
preços
Fonte: dados da pesquisa
Esse gráfico demonstra assim, como a regularidade da compra e o preço
consistem nos principais fatores que interferem as escolhas dos mercados, e
consequentemente influenciam significativamente o desenvolvimento das habilidades
para o alcance de seus objetivos. Nesse sentido as seções seguintes discutirão também
como se dá a busca da satisfação desses critérios.
4.1 PRODUTIVA
A dinâmica produtiva da agricultura familiar pode ser caracterizada, entre outros
aspectos, por uma centralidade do trabalho familiar aliada a pouca, ou nenhuma
utilização de insumos externos à propriedade. Entretanto a modernização agrícola
vivenciada no Brasil, também conhecida como Revolução Verde, desencadeou
processos de inserção da produção agrícola, de forma geral, no modelo produtivista
intensivo em capital, tecnologia e de integração à indústria de insumos químicos,
engendrando uma apropriação em graus diferenciados por parte dos agricultores, fato
que resultou em uma diversidade de combinações e padrões produtivos.
62
A partir dos anos 90, no entanto, surgem novas perspectivas para os “pequenos
agricultores” com a intensificação do debate em torno da reforma agrária, e novas
possibilidades de crédito e incentivo à produção que, nesse momento, passa a ser,
oficialmente10
chamada de agricultura familiar.
Wilkinson verifica, nesse sentido, a existência de três principais enfoques quanto
à produção da agricultura familiar:
A primeira surge a partir do esforço de contextualizar a reforma
agrária dentro de uma visão mais ampla da posição atual (no mundo) e
potencial (no Brasil) da produção familiar. A segunda focaliza
justamente o oposto – a marginalização da renda agrícola na economia
rural e na própria agricultura familiar e a importância da pluriatividade
e de atividades não agrícolas no meio rural. A terceira corrente
focaliza a ruptura no modelo de integração agroindustrial com a
produção familiar, o que exige formas mais autônomas de inserção
agrícola e agroindustrial (WILKINSON, 2008, p.71).
Ainda segundo este autor, todas essas abordagens convergem em dois pontos: a
necessidade de adoção de políticas públicas para o desenvolvimento rural direcionadas a
esses atores e a intensificação dos mercados no meio rural. Entretanto, as divergências
são em relação ao custo, e a eficácia do modelo produtivista dominante e quanto à
capacidade da produção familiar de integrar-se e abastecer satisfatoriamente os novos
mercados disponíveis.
Essa breve apresentação das discussões subjacentes ao modo de produção da
agricultura familiar, longe de captar a profundidade e complexidade do tema, nos serve
para dar luz ao cenário que circunscreve o desenvolvimento das habilidades produtivas
identificadas junto aos agricultores familiares de Viçosa.
Figura 4 – Propriedade de Agricultores Familiares
Adriano Santos
10
Devido ao surgimentos de programas governamentais que definem critérios concretos para esta
classificação.
63
Essa categoria intenta dar conta das práticas que focam nos aspectos produtivos
(“agronômicos”) no seu acesso aos mercados. Seriam estratégias de valorização de
padrões produtivos, geralmente no caso estudado, diferentes do modelo da agricultura
convencional, sob objetivos comerciais. Poderiam ser também, estratégias baseadas no
aumento de produção em quantidade, ou de produção de produtos com determinadas
especificidades, por exemplo.
Quando questionados sobre as principais razões pelas quais acreditavam que os
consumidores preferiam seus produtos, uma parcela significativa das respostas (27%)
relaciona-se com a prática de um manejo livre de agrotóxicos. Como demonstra o
gráfico abaixo
Gráfico 5 –Razões que interferem na preferência dos consumidores em relação a produção da
agricultura familiar.
Fonte: dados da pesquisa.
A “boa qualidade” aparece como a mais apontada pelos agricultores, embora não
tenham sido definidos os critérios específicos relativos a um padrão de qualidade. Em
seguida o não uso de “venenos”, e logo depois as principais respostas classificadas
como outros remete a respostas mais peculiares como “porque eu tenho um diálogo
muito franco com as merendeiras” (Paulo), ou “Por sermos pequenos agricultores”
(Nazareth), e até “porque o meu comprador precisa de mais mercadorias” (João Cesar).
64
Um dos agricultores, que comercializa apenas na Feira Livre e na Rede Raízes
da Mata, alega que a grande vantagem de seus produtos é por eles serem livres de
agrotóxicos, sendo que, em relação as suas prioridades na hora de produzir, ele assinala
que: ”Primeiramente por causa de ser sem agrotóxico tem que plantá aquilo que produz
melhor né? Porque não adianta você querer... tem coisa que você planta, mas você não
produz, então não adianta”.
A perspectiva do consumo consciente em consonância com as características dos
ciclos ecológicos de cada região está também implícita na perspectiva produtiva de Seu
Jair, que ainda explora esse diferencial para conquistar a confiança dos consumidores
que valorizam produtos ambientalmente mais sustentáveis, segundo ele, estudantes na
maioria.
Para tanto seu Jair exibe uma placa em sua barraca na feira contendo os escritos
“produtos sem agrotóxicos”, assim este agricultor parece ter identificado um nicho de
mercado e desenvolve então ações a fim de promover as vantagens de seus produtos a
fim de ampliar suas vendas. Seu Jair demonstra também clareza quanto ao custo
financeiro de sua participação na feira e desenvolve um raciocínio que, invariavelmente
remete à racionalidade do ganho individual, necessária para a obtenção do retorno
econômico intrínseco à atividade comercial. Como evidencia na seguinte passagem:
As vezes eu coloco tomate, e tomate tem veneno, não adiante dizer
que não tem, porque na nossa região isso não existe, mas eu não
engano ninguém, a pessoa passa a mão na sacola pra pega o tomate, e
eu falo que esse tomate tem veneno, tem menos agrotóxico né porque
eu só procuro aquele tomatinho pequenininho de final de horta que ai
o pessoal para de jogar. Aquele tomatão bonito eu nem ponho na
minha barraca, só ponho os que tem menos veneno. Eu to querendo
tira uma rendazinha a mais, se eu não tiver enganando o povo eu não
to errado não, porque a gente ta no comércio né,[...]e o dia que eu não
tiver mercadoria pra levar, minha mercadoria for pouca e não der pra
cobrir a gasolina do meu carro? Eu vou ter que ir atrás de outras
coisas. (Seu Jair)
Surgem nesse relato, ao menos dois aspectos relevantes para nossa analise: o
primeiro diz respeito ao nicho de mercado que o Seu Jair tem como carro chefe de suas
vendas, a saber, o mercado dos produtos “sem venenos” que curiosamente, no caso do
tomate, expressa menor valor simbólico ao tomate com a aparência mais “bonita”
provavelmente pelo seu tamanho exuberante em decorrência do uso de agrotóxicos,
enquanto o tomate pequeno, geralmente de preço menor encontra uma “brecha” para
ocupar sua barraca. O segundo relaciona-se à percepção de Seu Jair de que restringir-se
65
aos produtos desse nicho pode não ser suficiente para gerar os ganhos econômicos
desejáveis para a manutenção de sua atividade comercial.
Pode-se dizer que esse agricultor busca uma combinação alternativa para lidar
com os desafios da inserção de sua produção nos mercados. Essa situação denota um
determinado grau de liberdade deste ator para segmentar suas estratégias de vendas, ou
seja, sua capacidade de promover seus objetivos (SEN, 2010).
Outra família de agricultores que comercializa FLV, e que também explora o
diferencial de não utilizar agrotóxicos em sua produção, também demonstrou outras
habilidades produtivas relevantes para a nossa análise. Em primeiro lugar Seu Getulio e
Dona Telma declaram abertamente que sua produção é agroecológia, ou seja,
preocupam-se tanto em diversificar a produção como em minimizar a utilização de
qualquer tipo de insumo externo à propriedade.
Curioso notar que Seu Getulio lembra que “há 40, 50 anos atrás, a gente quase
não via esse negócio de insumo agrícola, e agente só chamava as coisa de natural,
comum, depois é que veio o orgânico e o agroecológico...”. Assim a produção de base
agroecológica está relacionada também à origem deste agricultor, fato que imprime um
valor simbólico, e expressa a existência de um capital cultural, que fortalece sua auto-
estima e o incita a buscar alternativas ao desafio de produzir com baixa utilização de
insumos externos, promovendo assim o surgimento de novas técnicas. Como assinala
Seu Getulio, ao ser questionado sobre a maneira que ele procede para colher couve
(deixando uma parte do talo):
[...] É porque a abelha cachorro chega pra suga a seiva da couve, invés
dela ir direto no caule, ela fica aqui onde que eu quebrei a couve... é
porque ela roe o pé de couve assim a parte que ela gosta da planta ela
vai roendo, então eu tava colhendo e prestei um pouco de atenção que
aquela que ela tava roendo a couve vai ficando mais fraca, a reposição
de folha dela fica ruim, ai eu falei eu vou usar uma estratégia aqui pra
mim engana esse bicho, ai comecei a fazer assim, ela com é mais
tranqüila vai roendo ali mesmo onde já ta quebrado, ai eu vi que deu
certo, quer dizer, isso é uma coisa de prestar atenção na natureza né!
O casal relata ainda que a família começou a explorar essa diferenciação
produtiva, principalmente após uma das filhas decidir estudar no curso de agroecologia,
no Instituto Federal localizado em um município próximo a Viçosa, e lá percebeu que
muitos conteúdos que estava estudando remetiam às práticas de manejo que seu pai
utilizava em casa. Passou então a incentivar a família a ampliar a produção e buscar
mercados. Nesse sentido, contam que o surgimento da Rede Raízes da Mata foi de
66
grande estímulo, pois nela a produção dessa família é valorizada como em nenhum
outro mercado acessado.
Cabe destacar ainda que no tocante a essas habilidades relacionadas com a
utilização de padrões e técnicas produtivas diferentes da produção convencional, o
nicho de mercado que exige essa diferenciação encontra-se em uma trajetória de
crescimento no município de Viçosa, haja vista o recente surgimento da Rede Raízes da
Mata e o também recente acesso ao PNAE, que também apresenta como critério de
participação a não utilização de agrotóxicos (embora os mecanismos de controle e
fiscalização dessas práticas ainda estão sendo implementados.
Assim como no caso das outras categorias evidenciadas nesse capítulo, uma boa
propaganda desse tipo de habilidade produtiva torna-se um fator diferencial para o êxito
econômico nesse nicho de mercado, uma vez que, como os dois agricultores citados
acima descrevem, as pessoas compram seus produtos principalmente “porque nós
falamos muito que é natural” (Seu Getulio), ou porque “eu sempre falo pra todo mundo
que não tem veneno” (Seu Jair).
No entanto é valido destacar aqui também que a estratégia de combinar padrões
produtivos diferentes foi apontada pela maioria dos agricultores entrevistados. Essa
combinação dialoga com a perspectiva analítica de Sen (2010), pelo fato de que
expressa a restrição do campo de possibilidades quanto ao uso dos padrões orgânico ou
agroecológico, uma vez que, como verificado nessa pesquisa, a adubação química ainda
faz parte das necessidades produtivas desses agricultores, como nos mostra o gráfico a
seguir:
67
Gráfico 6 – Padrão produtivo utilizado pelos agricultores familiares de Viçosa.
Fonte: dados da pesquisa.
A duas famílias de entrevistadas expostas anteriormente (a de Seu Jair e a de Seu
Getulio) foram também as únicas a relatarem outra habilidade produtiva: o
processamento artesanal de seus produtos. D Telma, esposa de Seu Getulio declarou
que “inventou” um preparo com vários tipos de suas verduras e temperos que ela
nomeou como “Salada Selvagem”.
Seu Jair, por sua vez, produz tomates secos na sua própria casa. Ele também nos
descreve o processo e diz que tem uma boa resposta de mercado. Entretanto, em relação
a esse gênero de produto, existem barreiras, de caráter sanitário, que impedem a
comercialização em mercados mais formalizados, como é o caso dos programas
governamentais e dos supermercados locais.
Esse tipo de habilidade encontra desafios semelhantes para os agricultores
familiares de forma geral. Wilkinson (2008) conta-nos como os processos de
transnacionalização dos padrões produtivos, e o alinhamento às exigências da OMC,
têm interferido no funcionamento dos mercados, não apenas internacionais, como
também locais.
Na Feira Livre, foi observada também uma notória habilidade relacionada tanto
a uma diferenciação do produto quanto à realização de uma boa propaganda. Apenas um
dos agricultores feirantes comercializa o palmito da pupunha in natura, produto esse que
também sofre barreiras sanitárias para a inserção em mercados com maiores exigências.
No entanto, o que chama a atenção é a maneira pela qual este expõe seu produto, a
68
saber, leva o palmito ainda com casaca cortado em grandes pedaços e na própria barraca
o descasca, fatia e oferece como degustação aos consumidores que passam por ele. Pelo
fato de o palmito da pupunha ser mais comumente encontrado em conservas, e nos
supermercados, este agricultor relata que existe um grau de desconfiança por parte dos
consumidores em relação à qualidade do produto, a introdução desta estratégia foi um
divisor de águas em sua comercialização gerando um incremento significativo nas
vendas.
Nesse sentido, podemos concluir que existe uma intima relação entre as
habilidades produtivas e o acesso aos novos mercados e a novos consumidores dos
produtos da agricultura familiar viçosense. Contudo, em muitos casos, a adoção de
padrões produtivos, orgânicos ou agroecológicos, o fato de se processar os produtos ou
produzi-los de forma específica não se apresenta suficiente para garantir o acesso eficaz
a alguns desses novos mercados, portanto abordaremos ainda outras formas de
habilidades que buscam preencher essa lacuna.
4.2 CLIENTIZAÇÃO
Um primeiro agrupamento realizado foi referente às capacidades dos
agricultores de construírem relações solidas com os fregueses, a fim de permitir a
criação de vínculos que façam com que as trocas se repitam. As diversas atuações para o
estabelecimento desses laços se aproximam daquilo que Clifford Geertz denominou de
clientização, conceito este desenvolvido em sua análise sobre o mercado marroquino de
Sefrou, onde esclarece que:
Clientization is a tendecy, marked in Sefrou, for repetitive
purchases of particular goods and services to establish continuing
relationships with particular purveyors of them rather than search
widely through the market at each occasion of need. (GEERTZ, 2001,
p.142)
Entre os agricultores entrevistados, no que tange aos principais motivos da
preferência dos consumidores por seus produtos, 12% das respostas apontaram o fato de
já existir o conhecimento dos clientes, ou seja, as relações de proximidade e confiança
desenvolvidas com estes. Cabe lembrar, no entanto, que as práticas que intentam
fidelizar os clientes demandam estratégias que variam de acordo com as condições
presentes em cada um dos mercados, como a relação com concorrentes, os direitos de
propriedade, as regras que condicionam as transações, bem como quem são esses
clientes.
69
Em relação às estratégias utilizadas para relacionar-se com os frequentadores, na
Feira Livre, muitos agricultores disseram que “os clientes têm confiança e amizade
também né, e eu costumo tratar meus fregueses muito bem, ai eles acabam preferindo a
gente” (Maria Antonia). Outro diferencial para a construção de uma clientela na Feira
está relacionado ao tempo de participação nesse mercado, de maneira que, como relata o
agricultor José Carlos Fialho: “os clientes já estão acostumados comigo, já tem 35 anos
que eu venho aqui, ai todo mundo me conhece, sabe da qualidade da minha água...”.
Essa fala, assim como outras semelhantes que surgiram durante a pesquisa de campo
denotam como os agricultores utilizam seu histórico de assiduidade neste mercado
como um fator que possibilita a construção de reputação e o estabelecimento de relações
próximas que provocam a repetição das transações com uma gama de consumidores.
A prática da venda direta também parece estar fortemente correlacionada à
habilidade de estabelecer vínculos pessoais com os clientes. Um dos agricultores que
declarou que este era um dos mais importantes canais de escoamento de sua produção,
relatou que começou a venda direta entregando de porta em porta, mas que “não é que
não vendia, mas vendia pouco, sabe? ai o pessoal ficou me conhecendo e eu comecei a
receber encomenda; ai ficou melhor, porque eu saio de casa só com aquilo certo que vou
entregar.” (Seu Pedro). Este agricultor lembra também que muitas pessoas buscam as
mercadorias diretamente em sua casa, e deixa claro que pra ele não tem hora para
vender: “eu procuro atender a todo mundo né, quando chega alguém aqui querendo
alguma coisa, eu vou lá na hora, se tiver que colhe eu colho, faço o possível pra atender
tudo.” (IBDEM).
Nesse sentido, os agricultores que praticam a venda direta, seja ela entregando a
domicilio, ou vendendo na propriedade, demonstram uma constante preocupação em
clientizar seus fregueses, atendendo-os da melhor maneira possível, sob o intuito de
repetir a transação num futuro próximo.
Outra estratégia adotada pelos agricultores, para consolidar sua participação no
PNAE, consiste no estabelecimento de uma comunicação direta com as cozinheiras das
escolas, ou as merendeiras, como chama atenção o agricultor Paulo Zaneti: “eu procuro
entregar só produto de boa qualidade, bem separado, e lavado que é pra facilitar o
trabalho das merendeiras, e ai eu ouço falar bem das minhas mercadorias, né.”. Num
primeiro momento pode-se deduzir que sendo a Prefeitura Municipal, a entidade que
compra os produtos por meio de um contrato semestral de entrega, as habilidades
70
relacionadas ao conceito aqui exposto de clientização não são verificadas, uma vez que
o consumidor que paga não é aquele que recebe. Entretanto, o retorno das avaliações
das merendeiras, realizados nas reuniões de elaboração das propostas semestrais,
despertou em alguns agricultores uma preocupação em “clientizar” as merendeiras
(embora apenas dois dos entrevistados tenham declarado isso), a fim promover a
repetição e continuidade de acesso a essa via de escoamento da produção.
Cabe destacar nesse sentido a perspectiva do agricultor José Ramos, que relata
que: “A gente procura ter um diálogo franco com as merendeiras, faço questão de
observar como elas manuseiam os produtos, pra poder preparar as mercadorias
pensando nisso”.
A habilidade de divulgar seus produtos com o objetivo de ressaltar suas
vantagens, ou seja, o “marketing” apresenta-se transversal a todas as demais
identificadas nesta pesquisa. Dessa forma, quando questionados sobre o que
priorizavam no momento da produção, diante das exigências dos mercados acessados,
uma parcela significativa das respostas correspondeu à prática de uma melhor
apresentação dos produtos como mostra o gráfico abaixo:
Gráfico 7–Prioridades na produção da agricultura familiar de Viçosa
Fonte: dados da pesquisa.
Esse gráfico demonstra também que o cumprimento dos acordos e contratos foi
a prioridade mais apontada pelos sujeitos dessa pesquisa. Diante dessa informação
podem ser realizadas algumas considerações relevantes sob o objetivo desta análise. Um
primeiro ponto importante consiste no fato de que cumprir os acordos implica em um
requisito para a construção de relações de confiança que possibilitam a continuidade e
ampliação das trocas mercantis, no sentido de clientizar os compradores. É possível
71
também inferir que essa prática traduz a formação de um capital social, de acordo com
termos colocados por Bourdieu (2001, p.103), que o define como “the agregate of the
actual or potential resources that are linked to possession of a durable network of more
or less institutionalized relationships of mutual acquaintance and recognition[...]”. Ou
seja, cumprir os contratos também está relacionado à ideia de manter uma boa reputação
que seja reconhecida em uma dada estrutura de mercado e que possa também ser
convertida em capital econômico, no caso, pela manutenção ou incremento das vendas.
Vale lembrar ainda que as motivações racionais que remetem à maximização de
ganhos orientam também a ação relativa ao cumprimento dos acordos e contratos. Esta
ação consiste em uma peça fundamental para o funcionamento ideal do livre mercado
postulado pela teoria neoclássica.
Assim, nesta pesquisa verificou-se que tanto a busca pela fidelização dos
clientes, como a criação de uma boa reputação, envolvem a criação de laços ou vínculos
entre produtores e consumidores. Esses laços podem ser mais sólidos, como aqueles em
que as transações são mais frequentes, ou podem também ser mais tênues, como os que
se dão entre aqueles cujas relações são mais esporádicas.
Ao propor uma concepção de redes sociais edificadas sobre os vínculos fracos
estabelecidos entre os indivíduos, Granovetter 1973 expõe que a força de um laço:
[...] es una (probablemente lineal) combinación del tiempo, la intensidad
emocional, intimidad (confianza mutua) y los servicios recíprocos que
caracterizan a dicho vínculo. Cada uno de estos aspectos es independiente del
otro, aunque el conjunto esté altamente
intracorrelacionado.(GRANOVETTER, 1973, p.02)
O autor cria ainda um esquema analítico de estudos sobre as redes estabelecidas
a partir dos vínculos entre os sujeitos, o qual permite ilustrar seu argumento de que são
justamente os laços fracos aqueles que possibilitam a ampliação e fortalecimento dessas
redes sociais.
Nessa mesma linha de pensamento, ao tratar especificamente da relação entre as
redes sociais e os mercados, Wilkinson (2008, p.93) reforça que os atores se deslocam
entre várias redes, e que assim a força dos vínculos fracos “reside na não redundância
dos contratos sociais de uma pessoa que transita várias redes quando comparada com
uma pessoa que circula apenas dentro da mesma rede social”.
Ao tomarmos os mercados de FLV viçosenses como espaços interligados a redes
sociais constituídas pelos diversos atores que nele interagem, ficou evidente, nesta
pesquisa, a pratica de diferenciação de mercados, que implica por sua vez em uma
72
mobilidade intensa dos agentes fluxo de agentes entre as redes sociais relativas a cada
um dos mercados acessados. Aproximadamente 47% dos agricultores entrevistados
declararam participarem de pelos menos três dos mercados descritos, enquanto 65%
relataram que realizam transações em pelo menos quatro segmentos de mercado.
Por mais que a clientização, nos termos colocados por Geertz, tenha sido mais
observada no tocante às vendas na Feira Livre e na venda direta, a forte inter-relação
entre as redes sociais dos mercados de Viçosa, faz com que as estratégias de
consolidação de laços sociais junto aos clientes sejam também replicadas para os demais
mercados.
Assim é possível perceber que os agricultores buscam a construção de relações
duradouras tanto sob o intuito de permanência e êxito em dado mercado, como o de
expandir a inserção dos seus produtos a novos mercados, de surgimento mais recente,
como é o caso da Rede Raízes da Mata, o PAA e o PNAE.
4.3 COOPERAÇÃO E ASSOCIAÇÃO.
O surgimento dos programas PAA e PNAE representa, sem dúvidas, um grande
impulso na auto-organização dos agricultores familiares, não apenas em Viçosa, como
em todo o país. No entanto, a trajetória de mobilizações dos pequenos agricultores, seja
em sindicatos, cooperativas e até em movimentos sociais, acontece desde longa data.
De acordo com CHRISTOFFOLI (2000), há poucos registros históricos sobre as
experiências de cooperativismo no Brasil, no entanto, nas comunidades indígenas, bem
como nos quilombos há indícios da prática de formas de organização econômica
baseadas em princípios coletivistas tanto para a divisão do trabalho como para a divisão
dos resultados obtidos. Este autor assinala ainda que durante os séculos XVIII e XIX
surgiram algumas iniciativas de colônias coletivistas no Paraná, influenciadas pelas
experiências dos socialistas utópicos europeus.
No caso dos mercados FLV de Viçosa, o único que apresenta uma exigência
bem definida em suas regras de transação que condiciona a participação dos agricultores
ao fato destes se encontrarem organizados em grupos formais como associações ou
cooperativas é o PAA. No entanto o histórico de acesso ao PNAE no município indica
que o envolvimento nos espaços de elaboração e execução das chamadas públicas deste
programa apresenta forte relação com o envolvimento dos agricultores nas redes sociais
ligadas às lideranças do STR e à EMATER municipal.
73
Destarte a regulamentação atual que dispõe sobre as iniciativas associativas,
tanto sob o formato jurídico de cooperativas, como de associações, funciona, ao menos
em tese, apenas como o marco legal que ampara os processos sociais que fundamentam
a existência dessas organizações. Essa colocação faz-se necessária, pois em muitos
casos, a obtenção do CNPJ decorrente da formalização antecede à existência da
organização per se, enquanto um fenômeno de organização social.
O condicionante do acesso a programas como o PAA, já exposto em seção
anterior, pode desencadear um direcionamento exclusivo das organizações para a
elaboração e execução da proposta submetida ao programa, como verificado nesta
pesquisa. Assim temos esse “processo inverso” sob o qual o programa governamental
passa a ser a finalidade maior, ou a única, da associação de maneira que o
funcionamento desta sustenta-se apenas pela participação naquele, cujos desafios
subjacentes à gestão de uma organização e ao custo em que se incorre seu
funcionamento figuram-se significativamente obscuros, ao menos num momento inicial,
como veremos aqui.
No entanto, são inegáveis os benefícios de mercados protegidos como este
programa e, mesmo que não seja no sentido ideal, o envolvimento com associações ou
cooperativas origina também processos de mobilização dos agricultores, que fortalecem
o segmento, e que têm de fato sidos responsáveis por um significativo incremento na
renda financeira desses trabalhadores.
Em Viçosa, existem apenas duas organizações que entregam seus produtos ao
PAA, por meio da modalidade de Compra Direta-Doação Simultânea. Estas
organizações estão formalizadas como associações. A compreensão dos fatores que as
influenciaram a acessar o programa evidenciam um pouco as nuances e desafios que
constituem a articulação associativa dos agricultores familiares.
Uma primeira observação relevante é o fato de uma associação, de acordo com o
Código Civil de 2002, não dispor de respaldo jurídico para atividades com fins
econômicos. Ou seja, em tese uma associação não esta amparada legalmente para
realizar ações de comercialização, apresentando limitação concreta no tocante à emissão
de nota fiscal. No entanto, nenhuma das associações identificadas teve ainda problemas
de ordem legal com nenhum órgão fiscalizador (SILVA, 2010).
A fim de preservar as identidades das associações serão utilizados nomes
fictícios (assim como se faz no caso dos produtores) para remetermos às mesmas, a
74
saber, a Associação Comunitária de Vista Alegre ACVA, e a Associação Córrego Santo
Antonio ACSA.
De acordo com entrevista à Dona Fátima, agricultora da comunidade da ACVA,
foi o seu filho, Alessandro, quem realizou as articulações necessárias para a submissão
do primeiro projeto de entregas ao programa. Ela ainda nos relata:
[...] a associação tava parada, mas tinha CNPJ, tudo certinho, o
Alessandro fazia parte la no diretório do PT, ai veio uma menina de
Barbacena pra trabalhar também no PT, chegou e a associação não
tava bem organizada, ai ela encontrou o Alessandro, que falou pra ela:
la na minha comunidade tem uma associação que ta parada também.
Ai eles chego encontrou com nós na capela e explicou a situação tudo,
ai eles legalizaram, pagaram tudo que tinha que pagar sabe, fizeram
aquele ajunte, fizeram uma festinha com feijoada e ai foi isso e
montaram o projeto, mandou, não demorou muito e foi aprovado, ai
fizeram reunião com a EMATER, com as entidades todas, reuniu os
agricultor, fizeram várias reuniões e não faltava ninguém, agora por
questão mesmo assim desses acontecimentos [grande atraso no
pagamento referente às entregas do ultimo projeto executado]... Se
não ia ta até hoje [..].
Este relato, embora se apresente um pouco confuso, ilustra o processo pelo qual
a ACVA deu inicio a sua participação no PAA. Fica claro que apesar de já existir
anteriormente, é a possibilidade de acesso ao programa que determina a retomadas das
atividades desta organização.
Nesse sentido, o protagonismo de uma liderança local foi fundamental para a
mobilização dos agricultores da comunidade, fato que demonstra a habilidade social
deste ator, uma vez, que foi ele o principal agente a incitar as práticas de organização e
cooperação necessárias para a participação no programa.
No entanto, Dona Fátima já indica que atualmente a associação não conta com
um grande envolvimento dos agricultores. Ao ser questionada sobre o motivo dessa
dispersão, a informante declara que deve-se ao fato de o pagamento referente as
entregas do ultimo programa acessado está há quase um ano atrasado, e que isso tem
causado um desinteresse dos agricultores em participar da associação. Eles não parecem
perceber hoje outros motivos para se associar para além do programa, mas este exige o
agrupamento dos produtores (a cooperação e a associação) como pré-requisitos para
acessar a esse mercado.
Em conversas com os técnicos da EMATER que acompanham e assessoram a
ACVA, é relatado que são eles quem realizam tanto as convocatórias de assembleias
como as atas das reuniões. Em uma dessas assembleias foi decidido que a prestação de
75
contas relativa às entregas ao PAA seria terceirizada para um contador, que seria
remunerado por uma taxa de 10% sobre o valor total das entregas realizadas. Entretanto,
ainda de acordo com os relatos dos técnicos da EMATER, problemas de ordem pessoal
desse profissional, somados ao não cumprimento minucioso das entregas com os itens e
períodos exatamente como previstos no projeto inicial (necessitando assim de pedidos
de retificação formais) foram os motivos que causaram o atraso do pagamento.
Esse cenário evidencia que o acesso ao PAA demanda muito mais do que apenas
atores socialmente hábeis capazes de promover e intermediar a cooperação num
determinado campo social. Antes, a participação no programa requer a gestão
qualificada de uma organização que demanda também um planejamento, participação e
envolvimento constantes que reflitam na sustentabilidade não só econômica como social
desta, sustentabilidade essa que não pode ser alcançada com uma única estratégia de
participação em um programa governamental. Tal inferência parte das informações
cedidas tanto pelos agricultores como pelos representantes das entidades de apoio e
fomento que deixaram claro que o insucesso do recebimento do pagamento das entregas
está diretamente ligado às dificuldades encontradas nos processos de construção da
autonomia do grupo que compõe a ACVA.
Quanto ao PNAE, é importante ressaltarmos que seu surgimento no município
de Viçosa encontra-se fortemente relacionado às redes sociais construídas pelos
agricultores próximos às lideranças do STR municipal. Embora a regulamentação legal
que dispõe acerca do funcionamento do PNAE não exija que os agricultores estejam
formalizados juridicamente em associações ou cooperativas, as mobilizações e
articulações dos agricultores interferem significativamente no envolvimento destes nas
etapas iniciais de operacionalização deste programa. Nota-se que aqui as instituições
presentes nesse mercado contribuem para a construção de entendimentos sociais que
desestimulam os agentes a competirem por preço ou por quantidade.
Assim, é possível identificar um campo social correspondente às relações tecidas
no tocante o acesso ao PNAE, no qual os atores sociais hábeis que nele atuam buscam
promover a cooperação mútua, através da posição social que ocupam.
Como indicado no capítulo anterior, foi o presidente do sindicato, um dos
principais responsáveis pelo inicio da execução da “lei dos 30%” em Viçosa. Esse
agricultor relata que o envolvimento nas atividades sindicais permitiu-lhe o contato com
outras organizações da agricultura familiar no estado, conhecendo assim experiências
76
exitosas de acesso ao PNAE. Ou seja, foi justamente o transito deste ator nas redes
sociais do movimento sindical da agricultura familiar, que desencadeou o
estabelecimento de vínculos entre seus pares, fundamentais para o surgimento desse
mercado.
No entanto não basta conhecer o programa para acessá-lo, assim mais ainda do
que a troca de experiências entre as redes sociais, este agricultor evidenciou sua
habilidade social ao realizar as articulações iniciais, entrando em contato com
representantes da prefeitura e da EMATER, sob o intuito de mobilizar agricultores,
técnicos e gestores públicos para a construção das chamadas públicas do PNAE. Este
mesmo agricultor também é um dos principais mobilizadores da ACSA, associação de
sua comunidade, que também acessa o PAA . Essa prática demonstra como os interesses
coletivos podem estimular também a ação econômica dos sujeitos desta pesquisa, pois
como assinala Fligstein (2009, p.83)
[…] eles [os atores sociais hábeis] mantém suas metas de certa forma
abertas e estão preparados para aceitar o que o sistema lhes der. Isso
faz com que os atores estratégicos hábeis se comportem mais ou
menos com motivações opostas a dos atores racionais que se limitam a
buscar seus próprios interesses e metas, em uma espécie de
competição com os outros.
Destarte, podemos então considerar que o acesso aos mercados protegidos, ou
institucionais como o PAA e o PNAE, demanda uma perspectiva de ação enraizada no
tecido social composto pelos agricultores familiares do município, bem como um
conjunto de habilidades sociais que capazes de fomentar a ação cooperativa entre esses
sujeitos. No entanto é importante destacar também que as imposições normativas
relativas aos regulamentos que amparam estes mercados, impõem limites a essa
“agencia” tanto dos agricultores sociais mais hábeis como os demais, uma vez que as
instituições desses mercados, ou seja, seus direitos de propriedade, concepções de
controle, estruturas de governança e normas de transação são definidas, principalmente
nos circuitos de poder político das instâncias governamentais, muitas vezes distantes do
alcance desses agricultores.
Outro mercado que apresenta um funcionamento particular, cujas instituições
são definidas com o intuito de inviabilizar praticas competitivas entre os agentes
produtivos, é a Rede Raízes da Mata. Essa Rede proporciona uma alternativa de
escoamento da produção, fundamentada em interesses coletivos que incitam a
cooperação tanto entre estes sujeitos como entre consumidores, técnicos e estudantes.
77
É importante ressaltar que as atividades como os intercâmbios da Rede, que
consistem em dinâmicas de trocas de experiências e saberes entre os seus membros, a
quinta agroecológica, que representa um espaço mensal de formação que visa debater
questões ligadas à agroecologia, e as reuniões ordinárias da “coordenação” da rede que
discutem e deliberam sobre os aspectos gerais desta intentam provocar a postura de
agente também no comportamento dos consumidores.
Assim, a construção dos pontos nodais desta rede, está diretamente ligada a
essas praticas de mobilização e articulação social de seus participantes. Nessa linha a
atuação dos mediadores desses processos, ou seja, os estudantes, técnicos e professores
vinculados aos projetos de extensão universitária, demanda, além de experiências e
conhecimentos específicos, uma dose generosa de habilidade social capaz de tornar
possível a execução de ações coletivas que contemplem a diversidade presente neste
espaço. O papel destes mediadores na rede é de fundamental importância para o
funcionamento da mesma, o que pode abrir espaço para questionar sua viabilidade para
além dos projetos universitários que viabilizam a participação destes mediadores.
Contudo, nessa categoria ficou claro, de maneira mais explicita do que em
qualquer outra, que no caso de alguns mercados (como principalmente os protegidos e a
rede) tanto o manejo, o planejamento e a organização da produção como as estratégias
de vendas baseadas em boa apresentação e propaganda das mercadorias, não são
suficientes para garantir a participação nesses espaços. Ou seja, as práticas de
cooperação e fortalecimento das redes sociais dos agricultores familiares do município
configuram-se como fundamentais para garantir o atendimento satisfatório a essa nova
forma de comercialização a fim de tornar possível a consolidação e eventual ampliação
da demanda efetiva correspondente a esse mercado.
4.4 GESTÃO EMPREENDEDORA
Esta última categoria analítica, utilizada para desvendarmos as práticas de
comercialização dos agricultores, remete às habilidades de gestão demonstradas por
esses no que concerne a maximização dos ganhos decorrentes de uma maior articulação
entre os desafios produtivos e a inserção nos mercados.
Alguns agricultores relataram realizarem um minucioso planejamento de suas
hortas de acordo com a sazonalidade do abastecimento dos mercados FLV; outros
enfatizam a observação da evolução dos preços de mercado, no caso da feira
principalmente, de acordo com os horários e o dia do mês, para traçarem sua estratégia
78
de vendas; ainda há aqueles que praticam a discriminação de preços adequada às
características gerais do público-alvo de cada um dos mercados acessados. Há também
um dos entrevistados que busca a máxima diferenciação de mercados possíveis.
As praticas mencionadas acima estão relacionadas a uma perspectiva da
atividade econômica como um negócio de fato, no qual, a inovação, reorganização e
adequação às tendências e aos nichos de mercado traduzem uma visão empreendedora
da produção hortícola e frutícola. Diante disso, o termo gestão empreendedora parece
adequado para relacionar as habilidades apresentadas nesta seção. Quanto ao significado
deste termo tomaremos as contribuições de Morgan et al (2010, p 117), que esclarecem:
Entrepreneurial behaviour is associated in many studies with
innovation, reorganisation, and creative action and in (re) ordering
resources to take advantage of, or to create, opportunities for realising
a value. The level and the range of the farmer’s entrepreneurial
activity may also be seen to indicate the famer’s attitudes and
motivational focus as the activities that farmers choose to develop
reflect on their personal priorities.
Uma primeira habilidade empreendedora verificada durante a pesquisa de campo
realizada neste trabalho é aquela relacionada ao planejamento e organização do espaço
produtivo de acordo com a observação atenta da sazonalidade da demanda. O agricultor
Julio Cesar, que declarou comercializar principalmente com dois mercados diferentes,
ao relatar como procede para combinar as entregas a cada um desses mercados,
evidencia sua capacidade de alinhar os períodos de colheita de itens específicos aos
momentos de maior demanda destes, de forma a potencializar a quantidade escoada.
Essa prática, aparentemente trivial, exige uma rigorosa observação, planejamento e
visão de mercado que permitiu a este agricultor atenuar os efeitos econômicos adversos
decorrentes da ausência de um veículo de transporte próprio.
Segundo ele próprio observa:
Vamos supor chega uma época de frio se eu tiver junto entregando no
PAA é mais negocio eu entregar mais quantidade pro PAA do que pro
Zé Antonio [atravessador] você entendeu? porque ele já pega menos,
porque chega no frio já tem aquela quantidade que todo mundo tem,
então ele já diminui a quantia que eles pegam. Então eu prefiro pega
ela [a mercadoria] e descarregar no PAA, por que ai eu aproveito, por
exemplo, chega essa época agora [novembro] que eu já fechei minha
cota do PAA ele [o atravessador] tem condição de me compra mais
quantidade do que se eu tivesse entregando pro PAA, ai equilibra
né?(Julio Cesar)
Outro agricultor entrevistado, também descreve que organiza a sua produção
para ter seus produtos na época em que ninguém mais tem.
79
A habilidade discutida nessa categoria corresponde à prática de discriminação de
preços realizada por alguns agricultores entrevistados. Essa ação pode ocorrer de
diversas formas, na Feira Livre, como citado no capítulo anterior, há aqueles
agricultores tomadores de preço, que se balizam pelos preços dos concorrentes vizinhos
para decidirem os seus preços sob o intuito de potencializar as vendas.
Esse mercado, entretanto, apresenta algumas peculiaridades que tornam as
variações de preços interessantes a nossa análise sobre esta categoria de habilidades, a
saber: 1) os produtos do segmento aqui estudado (FLV), principalmente as verduras,
apresentam um elevado grau de perecibilidade de maneira que caso os itens colhidos
para a Feira não sejam vendidos neste espaço, ou são descartados, ou, para aqueles que
convêm, serão transformados em alimentos para porcos ou aves. 2) A Feira Livre é um
mercado altamente concorrencial, isso provoca pressões baixistas nos preços de acordo
com variações no equilíbrio entre preço, oferta e demanda postuladas pelos modelos
econômicos neoclássicos e verificadas pelos próprios comerciantes.
Tem-se a partir daí duas principais consequências: a primeira consiste na
discriminação de preços em relação ao horário da feira (lembrando que esta tem início
aproximadamente às 6:00h e fim por volta da 12:30h), de maneira que quanto mais
próximo do horário final, aqueles feirantes que ainda têm sua barraca cheia de produtos
começam a divulgar uma “promoção” com quedas que variam entre 30% a 40% em
relação ao preço inicial. Outra consequência é a discriminação das quantidades
ofertadas. De acordo com alguns relatos dos entrevistados até mesmo o dia do mês
interfere da decisão da quantidade que será destinada a comercialização na feira, como
nos conta Anderson:
Às vezes a gente traz [para a feira] bastante coisa e sobra
muito, e outras vezes traz pouca e acaba cedo demais, então essas
coisas vareia (sic), mas, mesmo assim costuma que no último sábado
do mês eu separo menos coisas pra trazer, porque você sabe né, no fim
de mês o povo fica mais apertado, ai compra menos.
Em relação a esse conjunto de estratégias pode-se verificar a perspectiva da
agencia por meio da qual o “ator individual aprende a resolver problemas e a intervir no
fluxo de eventos sociais ao seu entorno e monitorar continuamente suas próprias ações,
observando como os outros reagem ao seu comportamento” (GUIDDENS, 1984, p.1-6
apud LONG & PLOEG, 2012, p. 25). Fica claro também que as capacidades desses
atores de construir sua própria combinação de estratégias de ação são também
80
condicionadas pelas relações concorrenciais e competitivas que caracterizam a Feira
Livre de Viçosa.
Evidencia-se, assim, como a construção social desse mercado encontra-se
também intimamente amparada na racionalidade econômica do ganho individual, uma
vez que as estratégias relacionadas à agencia e às capacidades desses atores intentam
maximizar os ganhos auferidos com as vendas. Essa situação relativa à maneira como se
dá a construção social desse mercado, apresenta-se semelhante ao caso do mercado de
morangos da região de Sologne, na França, cujos processos de mobilização e construção
de acordos e relações sociais entre produtores, técnicos e comerciantes levou a criação
de “uma espécie de bolsa local de morango, nos moldes neoclássicos” (WILKINSON,
2008, p.165).
Outro agricultor nos informa também que realiza outra forma de discriminação,
entre os diferentes mercados que acessa. Nesse caso a diferença de preço cobrado por
um mesmo produto não acontece em detrimento de questões relacionadas à quantidade e
regularidade da compra (como acontece nas transações com os supermercados, e vendas
locais), ou devido ao fato de o preço ser pré-estabelecido contratualmente (como
acontece nos mercados protegidos), mas sim pela percepção deste agricultor que o
público que compreende os consumidores da Rede Raízes da Mata “dão mais valor aos
produtos da gente” como ele nos diz.
Assim o preço de um mesmo produto deste mesmo produtor chega a variar de
20% a 35% da Feira Livre para a Rede Raízes da Mata, fato este que evidencia uma
habilidade empreendedora responsável por um aumento do ganho econômico deste
agricultor.
Uma ultima habilidade empreendedora verificada nesta pesquisa foi apontada
por apenas um dos entrevistados, quem declarou praticar uma intensa diferenciação de
mercados. Sebastião, que tem uma produção especializada em goiaba, jabuticaba e
maracujá, recentemente passou a enxergar a vantagem da diversificação dos canais de
comercialização, e assim ele diz ter vantagem tanto com os grandes compradores,
quanto com os pequenos, quanto nos pontos de venda que coloca nas ruas da cidade e
até na venda consignada para o varejo local. Assim segundo ele informa ele consegue
vender seus produtos em todos os estágios da maturação:
Na comercialização eu tenho várias opções, procurei
diversificar ao máximo, porque eu tenho fruta verde, tenho fruta
madura e ai todos os mercados têm sua função, inclusive, agora eu tô
gostando mesmo é de vender no consignado por que ai eu posso
81
coloca tanto o fruto verde, como os que já tão bem maduro, esses eu
tava perdendo e agora o que vem é lucro.(Sebastião)
Contudo, em relação a essa categoria cabe colocarmos que contrariamente à
lógica da cooperação observada na mobilização em torno de práticas associativas
visando à expansão da comercialização, discutida na seção que antecede esta, aqui a
racionalidade econômica do ganho individual apresenta-se como o grande motor que
impulsiona o desenvolvimento dessas habilidades. Assim, as iniciativas apontadas aqui
remetem tanto às estratégias de caráter competitivo em relação aos concorrentes, como
também àquelas que buscam explorar o excedente do consumidor, como as práticas de
discriminação de preços.
Este capítulo trouxe à tona as habilidades gerais necessárias para o acesso
exitoso à diversidade de mercados, com distintas dinâmicas e funcionamentos,
identificados no município de Viçosa. Essas habilidades representam as múltiplas
racionalidades (de caráter econômico, social, político e cultural) observadas nas práticas
dos agricultores familiares e demonstram também como os conceitos que guiaram a
análise (habilidade social, agência e capacidades) encontram-se devidamente
entrecruzados para uma compreensão satisfatória da totalidade das estratégias
desenvolvidas pelos agricultores familiares sujeitos desta pesquisa.
82
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma primeira consideração que deve ser feita com base nas análises realizadas
nesta pesquisa é a constatação de que os mercados consistem em estruturas
socioeconômicas altamente complexas cuja compreensão científica e empírica requer
elementos analíticos diversos. Ou seja, o arcabouço teórico que lança mão do estudo das
quantidades e preços capazes de equilibrar a relação entre oferta e demanda em
mercados onde os agentes agem invariavelmente no sentido da maximização de suas
utilidades, é notavelmente insuficiente para apreender diversidade que caracteriza tanto
os espaços de comercialização como a orientação dos atores sociais que nele atuam.
Na Feira Livre, ficou explícito que a manutenção das relações sociais e a alta
concorrência, somada as suas implicações para a definição dos preços, por exemplo,
orientam simultaneamente as práticas dos atores nesse mercado. Assim como no PAA,
PNAE, Venda Direta e na Rede Raízes da Mata, fatores como o estabelecimento de
redes sociais, a formação de um capital social entre os participantes bem como as
concepções de controle e estruturas normativas que inibem a competição indicam como
a idéia da construção social dos mercados é altamente relevante para identificar o
funcionamento destes. O caso dos mercados locais, atravessadores e restaurantes, por
sua vez, demonstram também que embora a comercialização e os ganhos econômicos
dela decorrentes sejam as finalidades últimas do acesso a estes mercados, as relações
pessoais, o ciclo de contatos, a confiança e a reputação dos agentes representam
influencia significativa para a compreensão da prática mercantil que acontece nesses
espaços.
Assim, como sugerem os novos sociólogos econômicos, a perspectiva do
enraizamento social que se manifesta nas relações econômicas desenvolvidas nos
mercados encontra-se diretamente ligada à relação dialética que se dá entre os
agricultores familiares e os canais de comercialização do segmento FLV de Viçosa,
como observado na presente pesquisa. A observação das etapas que envolvem o ato da
compra e venda em cada um dos mercados estudados corrobora ainda a noção de
enraizamento, observada nas estratégias utilizadas pelos agricultores para viabilizar o
transporte de mercadorias, estabelecer uma boa reputação junto aos clientes, definir
preços e quantidades, por exemplo. Evidencia-se como uma análise mais ampla dos
mercados da agricultura familiar viçosense demanda uma compreensão intimamente
83
relacional entre as principais variáveis estudadas: a ação mercantil dos agricultores, e as
estruturas sociais dos mercados acessados.
A adoção dessa perspectiva possibilitou-nos um olhar atento sobre as práticas
dos agricultores familiares para acessarem mercados. Assim, observou-se o
acionamento de estratégias distintas, baseadas num repertório de habilidades diferentes,
por parte dos agricultores para acessarem os mercados de FLV no município. Dessa
forma, o esforço envidado para identificar essas habilidades dos atores sociais indicou
ainda o quão amplo é o leque de estratégias adotadas, que perpassa desde iniciativas de
diferenciação de mercados e diferenciação de produtos, à construção de relações de
cooperação, mobilização e formação de redes sociais.
Com base na análise dessas habilidades ficou clara a existência de diversas
racionalidades que orientam a ação econômica, socialmente enraizada, desses sujeitos.
Nesse sentido, não há como negar que as motivações de maximização do ganho
individual orientam essas habilidades, no entanto aspectos de ordem cultural, social, e
política (como a produção agroecológica, as relações sociais da FL e as mobilizações
junto às organizações políticas, como o STR) demonstram como essas outras
racionalidades são capazes de direcionar significativamente o êxito econômico
decorrente do desenvolvimento das habilidades.
É possível afirmarmos também que a conjuntura da comercialização da
agricultura familiar no município tem sofrido um processo de ampliação das
possibilidades de relações comerciais. A Rede Raizes da Mata, o PNAE,e o PAA são
relativamente recentes em Viçosa e, ao passo que estes trouxeram um relevante
aumento da demanda efetiva dos produtos da agricultura familiar, aquela, embora pouco
representativa em termos de participação dos agricultores do município, representa uma
transformação simbólica, política e também econômica contribuindo para o fomento e
ampliação do padrão produtivo agroecológico.
Em síntese, ao contrastarmos as exigências, características e instituições dos
mercados estudados com as habilidades desenvolvidas pelos agricultores trazemos à
tona contribuições fundamentais para a construção dos processos de intervenção social
realizados por técnicos e extensionistas rurais, sob o intuito de potencializar as
estratégias de comercialização da agricultura familiar.
As análises aqui realizadas permitiram evidenciar que o acesso aos mercados da
agricultura familiar do município de Viçosa, no segmento FLV, tanto aos novos
84
mercados como também aos velhos, requer mais do que habilidades de caráter técnico-
produtivas, como preconiza o modelo da extensão convencional. Portanto, as principais
características relativas às habilidades de fidelização dos clientes, adequação de
estratégias de gestão e comercialização as diferentes dinâmicas mercantis, e
principalmente, às práticas de cooperação e articulação social explicitam subsídios
importantes para o desenvolvimento das ações que visem à geração de renda aos
agricultores familiares.
Também, observou-se nos mercados institucionais e na Rede da Mata que o
papel dos mediadores (técnicos de Emater, estudantes da UFV vinculados a projetos de
extensão, técnicos da Prefeitura Municipal) é relevante, sobretudo em atividades de
suporte que viabilizam os intercâmbios comerciais, participação esta que, às vezes, tira
protagonismo dos agricultores familiares e cria dependências dificilmente superáveis
sem ações específicas para tal (as que não foram observadas durante a pesquisa).
Assim essa diversidade, e heterogeneidade que caracterizam tanto as dinâmicas
mercantis quanto as habilidades dos agricultores identificadas aqui possibilitam a
abertura de novos caminhos para estudos futuros que intentem enveredar-se para a
compreensão de cada uma dessas especificidades apontadas, eventualmente valendo-se
de outros referenciais analíticos a fim de gerar novas contribuições para as práticas de
extensão rural.
Finalmente, é fundamental esclarecer que de acordo com os dados levantados
neste trabalho podemos afirmar que a relação entre as estruturas dos mercados e a ação
dos agricultores não se apresenta apenas de forma unilateral e hierárquica, onde esta
condiciona aquela, ou vice versa. Ao contrário, as informações aqui apresentadas e
discutidas revelam a dialogicidade dessa relação, através da qual seja pela habilidade
social de incitar a cooperação ou pela ação intencional de direcionar o curso dos
acontecimentos, os atores conseguem influenciar as estruturas mercantis tanto quanto,
simultaneamente, são por ela influenciados, uma vez que são estas que determinam o
campo de possibilidades de ação desses sujeitos.
85
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