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Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
Oferenda e Lixo Religioso: como um grupo de sacerdotes do
candombl angola de Nova Iguau faz o social.
Mariana Vitor Renou
2011
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Oferenda e Lixo Religioso: como um grupo de sacerdotes docandombl angola de Nova Iguau faz o social.
Mariana Vitor Renou
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dosrequisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre emAntropologia Social.Orientadora: Dra. Olvia Maria Gomes da Cunha
Rio de Janeiro
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Oferenda e Lixo Religioso: como um grupo de sacerdotes docandombl angola de Nova Iguau faz o social.
Mariana Vitor Renou
Orientadora: Dra. Olvia Maria Gomes da Cunha
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em AntropologiaSocial, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dosrequisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por:
_______________________________Presidente, Prof. Dra. Olvia Maria Gomes da Cunha (orientadora)
_______________________________Prof. Dra. Ana Cludia Cruz da Silva
_______________________________Prof. Dr. Moacir Palmeira
_______________________________Prof. Dra. Giralda Seyferth (Suplente)
_______________________________Prof. Dra. Sonia Maria Giacomini (Suplente)
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RENOU, MarianaOferenda e Lixo Religioso: como um grupo de sacerdotes do
candombl angola de Nova Iguau faz o social./ Mariana Vitor Renou Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2011.
192 f.Orientador: Olvia Maria Gomes da CunhaDissertao (Mestrado em Antropologia Social)UFRJ, Museu
Nacional, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social,2011.
1. Religies de matriz africana 2. Candombl angola 3. TrabalhosSociais 4. Poltica 5. Meio Ambiente I. Cunha, Olvia.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III.Ttulo.
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RESUMO
Oferenda e Lixo Religioso: como um grupo de sacerdotes do
candombl angola de Nova Iguau faz o social.
Mariana Vitor Renou
Orientadora: Olvia Maria Gomes da Cunha
Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao emAntropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Este trabalho uma etnografia desenvolvida com um grupo de sacerdotes de quatroterreiros de candombl angola de Nova Iguau, municpio do Rio de Janeiro. Nela exploro ostrabalhos sociais desenvolvidos pelos sacerdotes e, no percurso, concentro as reflexes emdebates e atividades em torno da conciliao da preservao do meio ambiente e do direito realizao de prticas religiosas em ambientes pblicos e naturais. Atividades denominadasMutiro de Limpeza, realizadas no Parque Natural Municipal de Nova Iguau, e a propostade criao de um Espao Sagrado destinado s prticas religiosas no local, por exemplo. Essaatividade no apenas reuniu os sacerdotes em um grupo, mas os colocou em relao com
pessoas de secretarias e de rgos do governo municipal, membros de organizaes nogovernamentais, intelectuais, entre outros atores. Colocou em evidncia a conexo com outrosactantesconceito tomado de Bruno Latour (2005) , configurando associaes e coletivosdiversos. Essas e outras aes sociais dos sacerdotes so exploradas, bem como as relaes einseres na e com a poltica e polticos, juntamente com as relaes, associaes eagrupamentos diversos que integravam e eram gerados nesses movimentos.
Essa observao permitiu a reflexo acerca de definies, relaes e modos defuncionamento de instncias como a poltica, o social, a naturezae a religio, segundoas concepes e as prticas dos sacerdotes do candombl angola. Ademais, a observao da
presena e da participao de atores no humanos nesses movimentos e aes permitiucontinuar a perceber as articulaes e relaes entre os mundos da poltica, da religio, danatureza e do social, questionando divises pautadas por campos.
Palavras-chave: candombl angola; trabalhos sociais; poltica; meio ambiente; oferenda; lixoreligioso; associaes
Rio de Janeiro
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ABSTRACT
Oferenda e Lixo Religioso: como um grupo de sacerdotes do
candombl angola de Nova Iguau faz o social.
Mariana Vitor Renou
Orientadora: Olvia Maria Gomes da Cunha
Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao emAntropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
This dissertation is the result of a research carried out with a group of four priests fromCandombl Angola in the city of Nova Iguacu (Rio de Janeiro state, Brazil). Through thedescription of the political engagements and religious activities that aimed the creation of asacred space at the Parque Natural Municipal de Nova Iguau, the goal of this work is toexplore the diverse meanings of practices referred by the priests as social work. Theobservation of the priests mobilization revealed a broad set of situations, relationships,
practices, and networks of actors. They encompass the priests involvement not only withpolitics on local and federal level, with politicians, social movements, nongovernamental
organizations, and other Candombls practitioners and religious communities representants,but also, with objects, and non-human and sacred forces.
By focusing the organization of the Mutires de Limpeza - gatherings held at thePark to promote an ecological approach of the religious practices - these and other 'socialactions' of the priests are explored through an ethnographic account. The dissertation seeks todescribes how diverse actants - a concept taken from Bruno Latour (2005) - interact in aextense network of associations as well as how they make the social through heterogeneous
practices and relationships. The analysis allows to reflect on the definitions given to therelations and the modes of operation of the worlds of politics, religion, nature, and society, byquestioning their understanding as fields apart.
Key-words:
Rio de Janeiro
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SUMRIO
Introduo, 1
1. Fazendo o Social: sacerdotes, grupos e eventos, 26
1.1 Os Sacerdotes, 29
1.2 Grupo, reagrupamento, coletivo, 48
1.3 II Mutiro de Limpeza, 68
2. As comunidades de terreiro devem conquistar e ocupar seus espaos, 81
2.1 Projetos, 82
2.2Criar um espao sagrado, 92
2.3Ter visibilidade: ser visto, reconhecido e respeitado, 99
2.4 Polticas e direitos: criar documentos e fazer contato, 108
2.5 A poltica, os polticos, 117
3. Oferendas, Lixo Religioso e Oferenda Ecolgica, 137
3.1 Oferendas, 1373.2 De volta aos Mutires de Limpeza: das oferendas ao lixo religioso, 152
3.3 A Oferenda Ecolgica, 160
Consideraes Finais, 175
Bibliografia, 185
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AGRADECIMENTOS
Comeo do inicio, agradecendo aos meus pais queridos, Tereza e Marcel, que noapenas me criaram com amor e dedicao, mas despertaram meu interesse em estudar e
conhecer cada vez mais tudo que h no mundo. A eles se juntam minhas irms Maira eOrlanda, e toda minha grande famlia, sangunia ou de corao, de So Paulo, Minas Gerais,Esprito Santo, chegando at a Frana. minha afilhada, Priscila, pelo companheirismo,diverso e amor de sempre.
Aos meus amigos, que compreenderam minhas ausncias, me apoiaram sempre, forammeus grandes companheiros, fonte de divertimento e alegria. Em especial Sarah, Vivian,Aline, Arthur, Leonardo, Tauma, Paulinho, Wanderley, Jssica, Monique, Carlos Rafael,Juliana, entre outros amigos prximos e distantes. Aos novos e queridos amigos feitos noMuseu Nacional, amigos de discusses srias, de desabafos, de descobertas, de dvidas, dedebates, de papo furado, de risadas e de muita diverso. Tiago, meu amigo querido, meuombro, meu companheiro, meu interlocutor preferencial, minha companhia nas festas de
candombl e na descoberta de seus muitos mistrios, meu amor.Aos meus alunos, ex e atuais, que me instigam sempre a saber cada vez mais.Aos meus professores do curso de histria, fundamentais para minha formao e inicio
da minha vida acadmica, em especial Flvio Gomes, grande incentivador do mergulho naAntropologia Social.
toda comunidade do Museu Nacional, docentes, discentes e funcionrios, essenciaisem vrios momentos do percurso dessa pesquisa.
Ao CNPQ pela bolsa concedida que possibilitou as condies materiais de realizaodessa pesquisa.
Olvia Cunha, que me orientou com muita pacincia e dedicao e foiabsolutamente fundamental para a realizao deste trabalho.
Aos professores doutores: Ana Silva, Giralda Seyferth, Moacir Palmeira, MarcioGoldman e Sonia Giacomini, que aceitaram participar da minha banca e foram compreensivoscom os imprevistos.
Agradeo a Lusa e seus filhos por terem me apresentado ao candombl angola doBate-Folha, em Salvador. Maria Lourdes Siqueira, a Lourdinha, grande incentivadora desta
pesquisa, mesmo antes dela existir como ideia bem acabada. Zambifurama, sua me-de-santo Matambenganga e todos os membros de sua casa, por terem me apresentado aocandombl angola no Rio de Janeiro, e sempre me tratarem com muito carinho. Pessoas quemesmo no fazendo parte da pesquisa diretamente, me conduziram nos primeiros passos nomundo do candombl.
E por fim, e o mais importante, queles que tornaram possvel no apenas a pesquisa eesse trabalho, mas uma nova viso e relao com o mundo. Aos mais que informantes ouinterlocutores, os verdadeiros amigos Arlene, Me Margarida, Roberto, Seu Eduardo, PaiSrgio e todos aqueles que os cercavam, parentes, amigos, filhos de santo, colegas de trabalhoe seus vrios interlocutores no municpio. Obrigada pela acolhida e pelo carinho. Obrigada
pelos ensinamentos, pelas discusses, conversas, momentos de descontrao e diverso. Essessacerdotes so os grandes responsveis pelos possveis mritos desse trabalho, e seus erros,evidentemente, so de minha inteira responsabilidade.
todas as foras sagradas que possibilitaram a realizao desse trabalho.
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LISTA DE SIGLAS
ABESNI - Associao de Blocos e Escolas de Samba de Nova Iguau
APArea de Proteo Ambiental
CISINCentro de Integrao Social Inzo Ia Nzambi
CMCNI Conselho Municipal de Cultura
CNCACTBB - Confederao Nacional dos Candombls de Angola e dos Costumes e
Tradies Bantu no Brasil
CODENI - Companhia de Desenvolvimento de Nova Iguau
COMDEDINE - Conselho Municipal de Defesa dos Direitos dos Negros
COPPIRCoordenadoria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
CRBNDM- Casa Raiz do Bengu Ngola Djanga Ria Matamba
EMLURB - Empresa de Limpeza Urbana
IBGEInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IBAMAInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
LEAFRO- Laboratrio de Estudos Afro-brasileiros, do Instituto Multidisciplinar da
UFRRJ
MNUMovimento Negro UnificadoNINova Iguau
PDTPartido Democrtico Trabalhista
PNMNIParque Natural Municipal de Nova Iguau
PTPartido dos Trabalhadores
SEMAM - Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Agricultura
SEMCTUR - Secretaria Municipal de Cultura e Turismo
SEMED - Secretaria Municipal de EducaoSEMEL - Secretaria Municipal de Esporte e Lazer
SEMPPSecretaria Municipal de Participao Popular
SEMTE - Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego
SEMUS - Secretaria Municipal de Sade, Cidadania e Qualidade de Vida
SEPPIR - Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
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Introduo
Em uma manh de sbado de outubro de 2010, me dirigi a casa e terreiro de Tata
Luazemi (Roberto Braga),1em Nova Iguau, para ter com ele e o pai pequeno da Casa, Pai
Srgio. Vestia uma camisa em que constavam as inscries: Parque Municipal de Nova
Iguau e Mutiro de Limpeza. Juntos, seguiramos para mais um dia de trabalho.2 Em
trabalho de campo, acompanhando um dos principais trabalhos que um grupo de
comunidades de terreiro do municpio tem desenvolvido em conjunto: o recolhimento do
chamado lixo religioso,3 restos de trabalhos realizados por adeptos de religies de matriz
africana nos acessos do Parque Natural Municipal de Nova Iguau (PNMNI).
Encontrei os Tatas4e os auxiliei a carregar o carro com o lanche que seria servido s
pessoas que participariam da atividade. Os dois haviam providenciado tudo: molho e pes
1Todos os membros do grupo de sacerdotes que acompanhei acharam completamente desnecessrio qualquer
alterao de nomes, destacando inclusive a importncia de serem identificados, assim como de ter seus trabalhose aes apresentados e reconhecidos publicamente. Por esse motivo, todos os nomes citados no texto soverdadeiros, tanto os nomes civis quanto as diginas (nome que a pessoa adquire quando se inicia no candombl).Os sacerdotes no se importaram que eu utilizasse as ltimas e, pelo contrrio, at recomendaram. Os sacerdotesso conhecidos e chamados de diversas maneiras conforme as ocasies e as pessoas com as quais se relacionam.Quando esto com um grupo cuja maioria de religiosos, todos se tratam pelas diginas. J quando esto emgrupos com muitos no religiosos, so chamados pelos nomes civis ou pelo nome que ficaram conhecidos
publicamente, que so, frequentemente, os nomes civis, somados ao tratamento Pai ou Me e algum outrotermo religioso, notadamente o santo a que pertencem. Os nomes que irei usar so aqueles pelos quais tomei ohbito de cham-los a partir da relao que travei com cada um. Com Me Arlene de Katend e Pai Robertoestabeleci uma relao de maior proximidade, e me habituei a cham-los apenas por Arlene e Roberto. J emrelao aos demais sacerdotes, cuja relao foi um pouco mais distante e teve encontros menos frequentes,habituei-me a cham-los da maneira como eram conhecidos e chamados publicamente: Me Margarida, Seu
Eduardo, Pai Srgio e Tata Anangu, por exemplo.2Coloco este termo em itlico, porque usado em muitas ocasies e com sentidos diferenciados pelo grupo queacompanhei. Trabalho pode designar atividade em emprego regular remunerado; pode significar trabalho social,atividades que os sacerdotes desenvolvem no municpio pelas quais no so remunerados e que visam a melhorara vida de religiosos e no religiosos em algum aspecto; pode designar trabalho religioso, tudo que envolve aatividade religiosa, alm de trabalho no sentido de oferenda ou de ritual especfico que deve ser feito. Almdisso, acompanhava os sacerdotes realizando o trabalho de campo que resultou nesta dissertao.3 Itlicos referem-se a termos com mltiplos significados, para os quais quero de alguma maneira atentar, etermos de outras lnguas. Aspas simples referem-se a termos, expresses, falas e frases ditas pelos informantes.Quando existirem termos de uso corrente com aspas simples, isso significa que o grupo que acompanho atribuium significado particular para este termo, que se diferencia dos demais sentidos que ele possa ter, o que serevidenciado ao longo do texto. Aspas duplas utilizarei para termos e trechos retirados da literatura, em dilogoscom outros autores, e para categorias que pretendo problematizar antes de serem vistas em funcionamento no
contexto estudado.4Maneira pela qual se designam pais no candombl angola. Tata de Nkisi significa pai de santo. Babalorix ocorrespondente no candombl ketu-nag. Os correspondentes femininos nas duas tradies so, respectivamente,Mama de Nkisi ou Mametu (nossa me) de Nkisi e Yalorix. As principais divindades cultuadas no candombl
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para fazer cachorros-quentes e caixas de refrescos de guaran em copo. Arrumando o carro,
Roberto comentou que no dia anterior havia ido Secretaria do Meio Ambiente e Agricultura
do Municpio (SEMAM) para ver se tudo tinha sido providenciado para a atividade. Recebeu
respostas afirmativas, mas nenhuma informao concreta sobre o que estava ou no
providenciado, o que o deixou bastante irritado. Seguimos em direo ao Parque, conversando
sobre a atividade e outros assuntos. Comentamos sobre as eleies, que haviam acontecido
havia duas semanas; Roberto e Pai Srgio observaram o outdoor de um candidato
agradecendo aos eleitores o nmero expressivo de votos. Pai Srgio perguntou se o candidato
havia sido eleito, e Roberto respondeu que no, que Mesquita municpio vizinho e recm-
emancipado de Nova Iguau, rea pela qual estvamos passando no conseguira eleger
nenhum deputado estadual, mas que provavelmente o candidato j estava antecipando sua
campanha para as eleies a vereador, nos prximos dois anos. Eles no so mole no..., um
deles comentou. Lembraram como Mesquita cresceu nos ltimos anos, comparando ao que
tinham tempos atrs, e quanto a cidade ainda precisa crescer.
Continuamos o caminho. Ao chegar na entrada do PNMNI, encontramos um grupo de
seis funcionrios da Empresa de Limpeza Urbana (EMLURB). Cumprimentamos e ficamos
aguardando os outros responsveis e participantes da atividade. O vigia que estava na guarita
que d acesso ao Parque informou que o responsvel da EMLURB j estava a caminho. Ns
ficamos dando uma olhada no entorno, observando possveis caminhos e entradas abertas nabeira da estrada principal, procura de sinais de oferendas realizadas e/ou depositadas.
No demorou muito e o responsvel da EMLURB, Lincoln, chegou. Cumprimentou-
nos e informou que s tinha conseguido seis funcionrios para o trabalho. Roberto sugeriu que
de angola so denominadas Nkisi (referncia equivalente ao Orix das tradies de origem yorub). Adotei estagrafiaNkisi , no lugar de Inquice, mais comumente usado, pois a forma que meus informantes utilizam e
consideram correta, segundo as normas ortogrficas da lngua kimbundu, principal lngua bantu utilizada nocandombl de angola. O plural de Nkisi Jinkisi, segundo as normas do kimbundu que os sacerdotes meensinaram; mas, como eles usam Nkisis, mais frequentemente, quando se trata de plural, ser essa a forma queirei utilizar.
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distribussemos o lanche enquanto aguardvamos a chegada de outras pessoas. Comeamos
preparar os cachorros-quentes. Roberto estava preocupado e comentou que, enquanto eles,
referindo-se aos rgos da prefeitura envolvidos na atividade, cumpriram ao menos em parte
com o compromisso, era provvel que as pessoas das comunidades de terreiro no
comparecessem. Pai Srgio argumentou que aquele Mutiro tinha sido planejado muito em
cima da hora. No houve tempo para insistir na propaganda, divulgar o evento e mobilizar as
pessoas, muitas j tinham outros compromissos.
Roberto e Lincoln resolveram ir at um trecho da estrada principal que leva ao Parque,
um acesso fcil cachoeira.5Esta rea a mais utilizada para rituais de religies de matriz
africana, possui um largo caminho no meio da mata, fora da estrada principal, por onde as
pessoas e os veculos no passam. Est fora do permetro do Parque, onde h proibio e certo
controle em relao a essas prticas. Ao retornarem, Roberto e Lincoln sugeriram que o
Mutiro concentrasse os esforos naquele local, pois estava extremamente sujo. O
coordenador do PNMNI e outros membros da SEMAM recm-chegados concordaram com a
ideia.
Aps o lanche, todos se equiparam para o trabalho com luvas, sacos, espetos,
vassouras e ps. Durante a preparao, Roberto disse aos funcionrios da EMLURB que eles
no deveriam ter medo de mexer nos trabalhosque estavam depositados, que no havia
mais nada sagrado ali, j era tudo lixo, lixo religioso, como as prprias pessoas de santodizem.6O sacerdote argumentou que, passados 15 minutos, depois de arriar7o carrego, o
5Maneira pela qual as pessoas chamam o Rio Santa Eugnia com suas inmeras cachoeiras e quedas dgua, quecorta o PNMNI. O Parque Municipal como um todo, inclusive, conhecido e denominado popularmente comoCachoeira do Caonze, bairro de Nova Iguau onde se localiza a maior parte do Parque. Por outro lado, paraestudantes e acadmicos que visitam o Parque para pesquisa, estudos e excurses escolares e acadmicas, o lugar conhecido como Geoparque.6 Pessoas de santo o termo nativo que designa pessoas adeptas do candombl. Referncias evitao do
contato com as oferendas aparecero em outro momento. Diante dos comentrios de que um funcionrio queacompanhou Roberto na limpeza do espao em que um grupo de religiosos realizava rituais estaria com medo,seu outro colega respondeu que no deveria, j que ele estava cheio de moedas no bolso recolhidas de umaoferenda.
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material deixava de ser oferenda sagrada. A oferenda j havia sido recebida pelas divindades e
se tornava a mesma coisa que os funcionrios recolhiam na porta das casas das pessoas. Antes
de fazer a comparao dos restos das oferendas com o lixo ordinrio, o Tata se desculpou:
Desculpe eu dizer isso... Os funcionrios demonstraram preocupao. Alguns encaravam
seriamente o problema, enquanto outros brincavam e se divertiam s custas daqueles que
demonstravam certo receio. De qualquer maneira, Roberto e Pai Srgio estavam presentes
para assegurar que a empreitada era segura e para tranquilizar aqueles que pareciam se
importar com a questo, o que no impediu que alguns se mantivessem o mais afastados
possvel do lixo religioso.
O Mutiro comeou. Fizemos a limpeza da estrada principal e de seu entorno at
chegarmos ao macumbdromo.8Nesta primeira etapa, o lixo encontrado era ordinrio, dos
visitantes que vo ao parque para lazer, para praticar esportes, em excurses escolares, para
realizar acampamentos e treinamentos militares. Consistia basicamente em embalagens de
alimentos, sacos plsticos e garrafas pet. No macumbdromo, constatamos que,
efetivamente, desde a entrada na beira da estrada principal at muito longe dentro da mata, no
rio, nas pedras, no caminho, nas encostas e na vegetao, havia uma quantidade de materiais,
de lixo religioso, impressionante.
7Termo nativo que significa colocar no cho, depositar, abaixar. Possui toda uma significao sagrada, uma vezque o ato de depositar a oferenda significa que ela est sendo enviada e recebida pelas divindades.8 Este termo usado pelos adeptos de religies de matriz africana que acompanhei para designar espaosexclusivos, delimitados e estruturados existentes ou apenas em projeto especificamente para a prtica derituais dessas religies. O termo usado, sobretudo, em conversas informais entre adeptos dessas religies, mas possvel perceber a sua inadequao; por isso, rivaliza com expresses como espao sagrado, termo queaparece como mais adequado na fala dos atores. Por outro lado, a palavra utilizada por diversas instituies
pblicas, organizaes civis, no adeptos das religies de matriz africana para fazer referncia a reasconstrudasou que devem ser criadaspara concentrar as prticas das religies de matriz africana que devemser feitas na natureza e/ou em espaos pblicos. O termo tambm utilizado de maneira pejorativa e acusatria
pela populao no adepta para designar reasno oficiais ou no regulamentadas para este fim usadas pararituais de religies de matriz africana, e pelos prprios praticantes das religies de matriz africana, ao tratar
dessas reas muito utilizadas para os rituais. Assim, uso o termo para me referir tanto ao fato de que o grupo desacerdotes que acompanhei quer transformar o local, com o apoio do poder pblico, em um macumbdromo, oumelhor, um Espao Sagrado oficial, quanto para mostrar de que maneira o local j designado pela populaoem geral e at por adeptos.
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Fiquei um pouco na entrada recolhendo sacos plsticos, garrafas, alguidares, cestos,
dentre outros materiais, enquanto o resto do grupo estava fazendo a limpeza a partir do final
do caminho seguindo rumo entrada. Quando j tinha enchido todo o saco de lixo, fui at o
grupo auxili-los e me surpreendi com algumas pessoas realizando rituais na outra margem do
rioque facilmente se podia atravessar. Comentei com Pai Srgio sobre a grande quantidade
de sacos plsticos e ele me disse que tambm costuma levar as comidas em sacos quando vai
fazer rituais nesses locais, mas que os leva para casa depois. Antes de chegar ao local, quando
limpvamos a estrada, j tinha observado que, mais ainda que os alguidares de barro, os sacos
tinham um impacto muito negativo para o meio ambiente. Pai Srgio concordou e disse no
haver problema em deixar comidas e animais na natureza. Podem dar um pouco de mau
cheiro mas, da mesma forma que o barro e os pedaos de alguidares, degradam-se e acabam
sendo absorvidos, disse ele. Pela conversa dos dois sacerdotes ao longo da limpeza, percebi
que recipientes como alguidares de barro, travessas de loua, balaios, garrafas de vidro,
roupas, utenslios de ferro, esteiras, instrumentos musicais como atabaques e berrantes, velas
acesas, imagens de gesso de diversos santos catlicos e outras entidades, sacos plsticos,
caixas de ovos e os elementos no utilizados diretamente nos rituais no deveriam ser
deixados aps sua realizao. Isso no significava que no poderiam ou no deveriam ser
utilizados.
Mais tarde, Roberto foi at o grupo que continuava a fazer seus rituais e l permaneceuum bom tempo conversando com as pessoas. Apesar de ter escutado pouco, percebi que o
sacerdote explicava o trabalho que estava sendo realizado e convidava os irmos a se unirem
ao esforo de preservar e cuidar da natureza. Roberto destacava que o povo de santo era o
principal acusado de poluir e degradar a natureza. Toda vez que tem um incndio aqui, os
bombeiros dizem que foi por causa de velas acesas deixadas pelo povo de santo... Desta
maneira, apontava para a necessidade de cuidar dos espaos utilizados pelo povo de santo
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para seus rituais, de modificar as formar de faz-los, recolhendo e reciclando os materiais
utilizados, por exemplo, ou usando alternativas de suporte para apoiar as oferendas. Contou
ainda sobre a ideia de se montar ali um Espao Sagrado. No demorou muito, o sacerdote
pegou os recipientes que tinham sido usados pelo grupo em suas oferendas, esvaziou-os,
dizendo que os guardaria para reutiliz-los, e entregou a Pai Srgio.
Este, por sua vez, limpava e recitava um ponto de umbanda. Vov no quer / casca de
coco no terreiro... Foi ento que percebi que Roberto no conversava apenas com adeptos
sobre a atividade e os objetivos do Mutiro. Constatei que tambm conversava com uma
entidade. Pai Srgio quis saber o nome e ela disse que era Vov Maria Conga do Rosrio.
Pelo visto, Vov parecia estar aprovando a iniciativa, j que Roberto perguntava, no estou
certo, V?, e ela assentia, balanando a cabea. Quando o sacerdote deixou o grupo, Vov
Maria Conga chamou Lincoln e ficou conversando com ele longamente.
Pai Srgio sugeriu que preparssemos o que sobrara de lanches para podermos ir
embora, pois Roberto tinha um compromisso. Fui designada para preparar os lanches;
enquanto isso, nosso grupo foi se aglomerando na beira da estrada principal comentando
diversos assuntos. Roberto falou da importncia de providenciar placas educativas para serem
colocadas no local. Ao mesmo tempo, passantes suspeitos de serem de religies de matriz
africana seguiam para realizar rituais no entorno do Parque. O grupo do Mutiro fez
recomendaes para que fizessem o trabalhonaquela rea e deixassem limpinho. Um senhor,que subia com um saco e uma bacia, disse que no estava indo fazer trabalho. Pai Srgio
olhou para ns comentando que no prximo Mutiro recolheria a bacia. Pouco depois o
senhor retornou, talvez impedido de entrar no Parque pelo guarda. Roberto lhe explicou o que
estvamos fazendo e disse que ele poderia ir ao local fazer o que desejava, mas o homem no
quis.
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Roberto comentou sobre algumas oferendas que observou, fez crticas a muitos
procedimentos, ressaltando, por exemplo, que a comida de santo deve ser feita tal qual fosse
feita para ser comida por ns, com temperos e produtos de boa qualidade. Observou oferendas
colocadas em locais muito inusitados, de difcil acesso, em cima de rvores, por exemplo. Se
eu fosse o santo, ficaria muito puto de ter que subir at l em cima pra comer.. . Fez outros
comentrios mas, por fim, no quis mais falar, dizendo que cada um sabe o que faz.
Roberto falou para os demais sobre o projeto do Espao Sagrado. Os membros da
SEMAM alegaram que o problema era que aquele espao era privado. O sacerdote
argumentou ento que deveria se tomar uma providncia, cobrar do dono cuidado, mult-lo,
faz-lo proibir e controlar a entrada ou, finalmente, fazer uma parceria para a criao do
Espao Sagrado. Os membros da SEMAM demonstraram que achavam que a iniciativa no
podia dar certo. Roberto ento citou um espao que existe em Caxias, outro na subida de
Petrpolis e um em Coroa Grande, espaos particulares que cobram entrada para ajudar a
manter o local, pagar funcionrios e remunerar os donos. Ele reforou que o projeto deveria
contar com o auxlio da prefeitura para sua estruturao, mas que em um segundo momento
seria autossustentvel pela colaborao dos prprios religiosos.
Roberto tambm contou sobre reunies de que participou, com Tata Eduardo
Adjiberu, com um fabricante que havia criado um alguidar de casca de coco, que custaria
R$18,00. Comparou esse preo com aquele que pago pelos alguidares de barro, mais oumenos R$3,00, e mostrou a inviabilidade do preo para as comunidades de terreiro. Na
ocasio, sugeriu: Ento por que no utilizarmos folha de mamona? Ele riu e comentou que
os fabricantes ficaram bastante irritados.
Lincoln retornou da conversa com a Vov, comentando que ela disse ter pedido para
conversar com ele, pois ele estava olhando muito para ela. Ela o aconselhara e ele comentou
sobre alguns problemas que tem enfrentado na prefeitura ao coibir irregularidades. Roberto,
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ento, reforou os conselhos da Vov. Vov Maria Conga do Rosrio disse que ficaria ali at
terminarmos o trabalho, nos protegendo, mostrando concordar com a ideia do Mutiro.
Depois do lanche e de mais bate-papo, segui caminho com Roberto e Pai Srgio.
No carro, Pai Srgio me mostrou o material que estavam levando: trs tigelas de loua
novas. Perguntei se era o que tinham recolhido com o grupo de Vov Maria Conga e ele disse
que sim. Fiquei pensando e ento comentei que se a Vov deixou, a mesmo que no tem
problema, n... Roberto disse haver perguntado ao grupo se eles levariam embora os
utenslios e eles responderam que Vov disse que faz parte do carrego. Ainda assim, pediu
licena, esvaziou os recipientes, recolheu-os e levou embora. Vov, por sua vez, no fez
nenhuma objeo. Pai Srgio comentou que esses recipientes eram como os pratos que
utilizamos para comer. No comemos na mesa? Colocamos a comida no prato, tudo
direitinho, mas depois que se come se recolhe o prato, no deixa ele l. O alguidar e outros
recipientes so a mesma coisa.
***
Este relato pretende recuperar um pouco do que foi o III Mutiro de Limpeza no
Parque Natural Municipal de Nova Iguau, atividade de que participei quando j estava
afastada do campo e iniciando o trabalho de redao da dissertao, em outubro de 2010.Durante todo o trabalho de campo, desde fevereiro daquele ano, acompanhei um grupo de
sacerdotes do candombl angola de Nova Iguau, municpio do Rio de Janeiro localizado na
chamada Baixada Fluminense, em vrias de suas atividades e trabalhos sociais.Os Mutires
de Limpeza so exemplos de atividades que poderamos denominar, a princpio, no
religiosas.
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A ideia da pesquisa de dissertao surgiu a partir de notcias de jornais, revistas,
vdeos e conversas com praticantes das religies de matriz africana9da Baixada Fluminense e
do Rio de Janeiro, que evidenciavam aes que as comunidades de terreiro desenvolviam fora
da esfera propriamente religiosa, no meu entender. Essas aes eram qualificadas
frequentemente por imprensa, membros de governos, militantes de ONGs e pelos prprios
adeptos como sociais, e at polticas,por alguns atores, como polticos e intelectuais. De
fato, mesmo que no fossem qualificadas pelos adeptos como aes polticas, elas
evidenciavam certas relaes e inseres com e na poltica. O adjetivo social, no entanto,
parecia qualificar melhor as variadas aes e atividades das comunidades de terreiro em prol
dos adeptos e/ou da populao como um todo, atendendo as mais variadas necessidades e
problemas. Um observador externo poderia facilmente qualific-las separadamente das
atividades religiosas dos terreiros, o que tambm podia ser observado, por vezes, no discurso
dos prprios religiosos. Uma pgina de notcias do governo federal, por exemplo, que tratava
de um programa desenvolvido por comunidades de terreiro, definia-as como consagrados
centros de referncia espiritual e social,10 dividindo, de certa maneira, os dois tipos de
trabalho.
9A referncia s religies de matriz africana refere-se a um conjunto de prticas de cunho religioso que, demaneiras diversas, reivindica a pertena e a origem de elementos de procedncia africana, apesar de no negar aincluso de elementos de tradies indgenas, do catolicismo e do espiritismo europeu, presentes de diferentesmaneiras e intensidades, de acordo com cada modalidade de culto. Era desta maneira que meus informantes se
referiam a um conjunto heterogneo de religies, que abriga, essencialmente, o candombl e a umbanda, e suasmltiplas modalidades. Religies afro-brasileiras tambm era denominao usada para identificar esseconjunto, mas com menor intensidade; quando isso ocorria, quase sempre usava-se a expresso religies afro.O fato que os sacerdotes que acompanhei buscavam marcar com frequncia a procedncia africana da religioque praticavam o candombl angola , somando-a a um conjunto de outras religies que reivindicam essamesma caracterstica, ainda que apontassem para os processos de mudana e recriaes em solo brasileiro.Roberto dizia: Eu sempre digo que o candombl brasileiro, aqui se criou outra coisa, muito diferente do que setinha na frica.10 Disponvel em www.presidencia.gov.br/estrututra_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_terreiros_
capacitacao/ Acessado em 05 de dezembro de 2009. O termo comunidades de terreiro frequentementeutilizado pelas pessoas que acompanhei ao se referirem aos grupos que praticam as religies de matriz africana.O termo designa o conjunto de adeptos reunidos em uma casa/terreiro sede do culto organizados de acordocom os diferentes cargos e funes, constituindo uma comunidade especfica, e faz referncia ao conjunto das
comunidades das religies de matriz africana que, apesar de reunir uma grande diversidade de modalidades, seidentifica como grupo especfico quando relacionado a outros grupos, religiosos ou no. Observei o uso do termo
predominantemente na referncia ao conjunto de comunidades e mais raramente referindo-se a um terreiro oucasa, termos mais frequentemente utilizados, no lugar de comunidade de terreiro.
http://www.presidencia.gov.br/estrututra_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_terreiros_%20capacitacao/http://www.presidencia.gov.br/estrututra_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_terreiros_%20capacitacao/http://www.presidencia.gov.br/estrututra_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_terreiros_%20capacitacao/http://www.presidencia.gov.br/estrututra_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_terreiros_%20capacitacao/8/14/2019 Oferenda e Lixo Museu Nacional
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Comecei o trabalho de campo com o intuito de travar conhecimento com comunidades
de terreiros do Rio de Janeiro que estivessem envolvidas, a partir de seus sacerdotes e/ou
adeptos, nessas atividades extrarreligiosas ou fora do mbito qualificado pelos adeptos e
no adeptos como propriamente religioso. Pretendia no qualificar essas atividades a priori.
No entanto, mesmo antes de iniciar o trabalho de campo, percebia a existncia de um conjunto
diversificado de atividades referidas como trabalhos sociais, caracterizando aes
polticas, inseres e formas de participao na e com a poltica e os polticos que se
direcionavam a questes e problemas variados, importantes para religiosos e no religiosos.
Acompanhando essas atividades, pretendia observar as relaes travadas pelos religiosos com
outros atores, grupos, com e em instncias no religiosas, como a da poltica. Minha
inteno era refletir sobre as relaes, os novos agrupamentos, os agenciamentos e as
associaes que essas modalidades de atuao poderiam gerar, integrar ou colocar em
evidncia. Alm disso, partindo do universo da religio, seria interessante perceber a partir de
que forma os religiosos se mobilizavam nessas aes, de que maneira as compreendiam e
definiam. Ao privilegiar entender essas questes a partir de um ponto de vista etnogrfico,
seria possvel problematizar as divises entre religioso e no religioso de que partia
inicialmente, alm da prpria definio de religio. E, caso verificasse que eram atividades
definidas como sociais, culturais e polticas, seria necessrio compreender de que
maneira essas categorias eram concebidas e utilizadas pelos religiosos. A partir dasperspectivas e prticas dos sacerdotes esses conceitos ganhariam novos sentidos, poderiam ser
questionados nas suas acepes mais correntes, suas divises problematizadas e novos tipos
de funcionamento, da religio e da poltica, por exemplo, evidenciados. Finalmente, minha
inteno era conhecer diferentes modalidades de articulaes, fluxos e associaes de pessoas
e ideias resultantes de certas atividades, perceber algumas relaes das quais as comunidades
de terreiro participavam e articulavam.
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Dei incio ao trabalho de campo em fevereiro de 2010. A princpio, s tinha dois
contatos, que eram em Nova Iguau. Um era um ex-colega de trabalho, filho de santo de uma
famosa yalorix, cujo terreiro de candombl ketu localizava-se em Nova Iguau, que era
conhecida por seus trabalhos sociais e por sua atuao poltica at internacionalmente. O
outro, um amigo de universidade, og de uma pequena casa de candombl angola de Nova
Iguau e neto de santo de um sacerdote envolvido em projetos com a SEPPIR (Secretaria de
Polticas de Promoo da Igualdade Racial)11 pela defesa, resgate e valorizao do
candombl bantu no Brasil, segundo dizia. Esses contatos iniciais, contudo, no deram
nenhum resultado, pois os sacerdotes estavam impossibilitados de me receber por diversos
motivos. Decidi entrar em contato com a Coordenadoria de Polticas de Promoo da
Igualdade Racial de Nova Iguau (COPPIR-NI), j que eu tinha notcias de trabalhos que esse
rgo da prefeitura desenvolvera junto s comunidades de terreiro do municpio. Esperava,
portanto, a partir dessa instituio, conseguir outros contatos com praticantes de religies de
matriz africana. No dia 03 de fevereiro de 2010, aps agendamento prvio, fui at a COPPIR
e l pude conversar com o secretrio e a subsecretria da pasta. Estive primeiro com o
secretrio, expus minhas intenes de pesquisa, e logo o secretrio da coordenadoria destacou
que os terreiros funcionam muitas vezes como ONGs, atendendo comunidade do entorno.
Em Nova Iguau, ele completou, muitas comunidades estavam engajadas no programa de
distribuio de cestas bsicas fornecidas pelo governo federal, que contava com participaodireta da COPPIR.
Alm disso, o secretrio me explicou um pouco do trabalho da coordenadoria,
ressaltando o apoio poltico oferecido s iniciativas e aos projetos que as comunidades de
terreiro vez por outra apresentavam e buscavam desenvolver. Relatou exemplos de algumas
atividades realizadas em conjunto com esses grupos, como o Mapeamento das Casas de
11Ministrio do Governo Federal criado no dia 21 de maro de 2003, no mandato do presidente Luis Incio Lulada Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Disponvel emhttp://www.seppir.gov.br/.Acessado em 15/11/2010
http://www.seppir.gov.br/http://www.seppir.gov.br/http://www.seppir.gov.br/8/14/2019 Oferenda e Lixo Museu Nacional
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Religies de Matriz Africana de Nova Iguau e a Semana dos Cultos Afro. A ltima resultava
de uma lei (lei municipal n. 3707, de 2005) posta em prtica por aquela gesto da COPPIR. O
secretrio me apresentou subsecretria, responsvel pelos contatos dos sacerdotes.
Apresentei-me e expliquei os objetivos da pesquisa. Prontamente, ela me convidou a
participar de uma reunio com zeladores de santo naquele dia, para discutir e avaliar a
atividade denominada Mutiro de Limpeza, realizada no Parque Natural Municipal de Nova
Iguau, em novembro do ano anterior, e para planejar novas aes para o ano de 2010. Assim
pude conhecer de imediato quatro sacerdotes: Me Margarida, Arlene de Katend (Mama
Ladeji), Roberto Braga (Tata Luazemi) e Giovanni d Oxumar. Comeava a meu trabalho de
campo.
Consegui me aproximar dos trs primeiros sacerdotes a partir de contatos posteriores.
O ltimo, nico representante do candombl ketu, se afastou do Estado devido a problemas
pessoais, e acabei, assim, me deparando com um grupo de sacerdotes do candombl angola.
Estes me colocaram em contato com outros sacerdotes e adeptos do candombl, sobretudo do
angola, como Seu Eduardo de Adjiberu, que tambm fez parte da organizao e da realizao
do I Mutiro de Limpeza. Arlene, Me Margarida e Roberto se dispuseram a me receber para
a realizao da pesquisa e demonstraram, ao longo da reunio, estar envolvidos,
separadamente ou em conjunto, em vrios projetos e atividades com outras comunidades de
terreiro, com o poder pblico e outras parcerias.A discusso da reunio com a subsecretria da COPPIR girou em torno dos Mutires
de Limpeza: a avaliao do primeiro, que havia ocorrido no final de 2009, e o planejamento
do II Mutiro. Ao longo do ano, essa foi a nica atividade que reuniu todos esses sacerdotes
com secretarias e rgos de governo, organizaes no governamentais, intelectuais, entre
outros.
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Mesmo sem deixar de atentar para outras questes, aos poucos os debates, a
preparao, a realizao dos mutires e as discusses em torno da necessidade de conciliar a
preservao do meio ambiente defesa da liberdade da prtica religiosa foram se
conformando como pontos centrais na configurao de meu objeto de pesquisa. A atividade
evidenciava as aes sociais dos sacerdotes, as relaes e inseres na e com a poltica, as
relaes, as associaes e os agrupamentos diversos que integravam e eram gerados por essas
atividades e, por fim, permitia a reflexo acerca das definies e dos modos de funcionamento
de instncias como a poltica, o social e a religio segundo as concepes e as prticas
dos sacerdotes do candombl angola.
Logo depois daquela primeira reunio, marquei encontros com os trs sacerdotes. Me
Margarida me recebeu em sua casa, que era tambm seu terreiro e a sede da instituio civil
por ela dirigida, o Centro Social Raiz. Como as atividades do Centro Social Raiz ainda no
tinham iniciado e durante todo o ano a instituio no conseguiu funcionar com regularidade,
passei a encontrar a sacerdotisa essencialmente nas mobilizaes do II Mutiro de Limpeza,
nos grupos que integrava junto prefeitura, em eventos promovidos pelo Centro em parceria
com outras organizaes no governamentais, instituies e secretarias de governo, alm de
outras visitas informais e festas religiosas. Com Arlene e Roberto, encontrei-me no escritrio
onde Roberto desenvolvia seu trabalho civil, mas organizava tambm seus outros trabalhos,
por vezes em parceria com Arlene e outros e/ou auxiliando nas atividades e trabalhos dasacerdotisa, que ia constantemente ao escritrio. Inicialmente, combinei acompanh-los nas
atividades de organizao do II Mutiro e em outras que pudessem estar desenvolvendo.
Arlene, por exemplo, estava realizando um projeto nas Escolas Municipais aprovado pela
Secretaria de Cultura.
Contudo, nesses encontros, Arlene demonstrou a necessidade de montar uma
apresentao um portfliosobre seus trabalhos, que pudesse apresentar para o pblico em
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encontros, seminrios e reunies de que participava. Dispus-me a auxili-la, vendo uma
oportunidade de estabelecer um contato mais prximo e uma relao mais cotidiana, ao
mesmo tempo em que realizava meu trabalho de campo. De fato, a partir de ento,
praticamente todos os dias estava no escritrio de Roberto. Ao portflio de Arlene se seguiu o
portflio de Roberto; depois, passei definitivamente a auxili-los em vrios tipos de atividade,
redigindo textos, documentos, enviando e-mails, ajudando nas vrias etapas de preparao e
realizao de eventos e projetos, organizando arquivos de fotos e msicas, entre outras coisas.
Tornei-me a secretria dos dois sacerdotes, o que de incio causava visvel incmodo a eles,
pois diziam que no me pagavam pelo meu trabalho. Diante do meu argumento de que esse
contato dirio era importante para o meu trabalho, de que ali com eles aprendia muito e de
que se tratava de uma troca, eles passaram a se sentir mais vontade com a situao.
Alm desse contato dirio, acompanhava as atividades e eventos que desenvolviam,
realizavam e participavam no municpio, as reunies dos grupos que integravam junto
prefeitura com outras instituies e eventos religiosos. Pelo fato de reunir os sacerdotes que
conheci em que nico grupo e colocar em evidncia diferentes relaes com instituies
governamentais, movimentos sociais, lideranas polticas, intelectuais, outros atores, humanos
e no humanos, os Mutires de Limpeza pareceram a melhor atividade a ser observada.
Como possvel observar a partir da descrio da entidade que acompanhou o III
MutiroVov Maria Conga , outros atores, no humanos, participavam das aes. Comoatores, nele participaram pais e mes de santo do candombl, entidades sagradas, secretarias
de governo, funcionrios pblicos e a pesquisadora, em espaos sagrados e/ou de lazer e
preservao ambiental. Toda a montagem dessas atividades consistiu na reunio dos variados
personagens em escritrios, escolas, secretarias, terreiros e espaos sociais, no
desenvolvimento de rituais, oferendas, eventos, projetos, reunies. Privilegiar os mutires me
permitia, portanto, refletir sobre o trabalho social dos sacerdotes e suas relaes com e na
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poltica, problematizando no apenas as divises atividades religiosas e atividades no
religiosas, como religio, social, poltica e natureza.
Quando partimos para refletir sobre as atuaes dos religiosos fora do mbito
propriamente religioso, na concepo de observadores externos e at na maneira pela qual os
religiosos explicam suas aes para os no religiosos, o que se observa so cruzamentos e
associaes de pessoas, agncias, objetos, locais, esferas e instncias. A diviso entre planos e
instncias, tais como dentro e fora, e religiosa e social, parece resistir a classificaes
apressadas. As experincias dos praticantes das chamadas religies afro-brasileiras, ou
religies de matriz africana, presentes no Brasil foram objeto de diversas pesquisas
antropolgicas, sociolgicas, psiquitricas e criminolgicas, inscritas e compreendidas a partir
de diversos paradigmas interpretativos.
Como observou Marcio Goldman, uma certa histria do que seria uma primeira fase
de estudos antropolgicos sobre o tema (em geral delimitada a partir do final do sculo XIX
aos anos 1970), aparece marcada por uma viso interna, ou seja, que busca adentrar e
compreender os diversos aspectos do culto, de forma a detectar sobrevivncias africanas.
Uma segunda fase, situada nos anos 1970, caracterizaria, em contrapartida, uma viso
externa, pois buscaria analisar os cultos e as experincias a eles associados como reflexos
ou expresses das relaes sociais contemporneas e da sociedade abrangente. A primeira
fase estaria marcada por perspectivas evolucionistas e culturalistas, e a segunda, pelainfluncia da antropologia social britnica (GOLDMAN, 2009: 106).
Goldman critica essa diviso, apontando para seu carter linear e evolucionista,
demonstrando que os autores da primeira fase, mesmo aqueles claramente identificados a uma
perspectiva evolucionista, buscavam estabelecer conexes das religies com a sociedade
abrangente. O exemplo mais significativo Roger Bastide, com seu estudo verdadeiramente
sociolgico e a tentativa de perceber as relaes entre estrutura e superestrutura
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(BASTIDE, 1971). Do mesmo modo, a caracterizao da segunda fase com uma nfase
externalista e sociolgica parece comprometida, pois, depois dos anos 1970, como aponta
Goldman, o sistema de culto, a cosmologia, os rituais, os mitos e os simbolismos no
deixaram de ser tratados em diversos estudos e, sobretudo mais recentemente, ocuparam
espao em etnografias que, cada qual a sua maneira, negavam a separao entre uma base
sociolgica e as representaes coletivas (p. ex., LIMA, 1977; SERRA, 1978; WAFER,
1991; SEGATO, 1995; IRIART, 1998; OPIPARI, 2004; CARDOSO, 2004; ANJOS, 2006).
Ademais a crtica ao bloco de estudos que definiu a chamada segunda fase est presente em
trabalhos do mesmo perodo, sem, contudo, fazer uso de teorias, metodologias e conceitos que
povoaram os estudos da primeira fase.
O tema das religies de matriz africana continua at hoje a suscitar interesse e ser
objeto de trabalhos que tratam dos mais variados aspectos e dimenses. Como uma reflexo
sobre concepes, aes e relaes de um grupo praticante do candombl angola da cidade de
Nova Iguau, no Rio de Janeiro, a partir de sua insero em atividades classificadas como
sociais e envolvimentos com a poltica municipal, esse estudo no se afasta de questes
problematizadas pela literatura antropolgica contempornea sobre as chamadas religies de
matriz africana, como veremos. primeira vista, esse estudo poderia ser encarado como de
nfase externalista.
Ao propor refletir sobre aspectos sociopolticos mais amplos, relaes e formas deinterao e convivncia dessas religies com a sociedade abrangente, esse estudo poderia ser
facilmente associado a uma tendncia externalista. Contudo, alm de questionar, como
Goldman, tal diviso e tal classificao dos estudos sobre o universo das religies afro-
brasileiras, creio que assumir uma perspectiva interna ou assumir uma perspectiva
externa nos coloca diante do problema de como definir esses domnios precisamente, o que,
no meu caso especfico, se mostraria contrrio prpria experincia etnogrfica. O que minha
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experincia etnogrfica tornou evidente que, do ponto de vista e da prtica dos agentes, as
coisas do mundo esto articuladas. As diversas experincias vividas, em constante relao,
fazem parte de um mesmo movimento, mesmo que s vezes expressem certas separaes.
Portanto, embora eu pretendesse centrar a reflexo em coisas que os praticantes de religies
de matriz africana fazem que no so pensadas correntemente como religio ou religioso, esse
percurso me levou a questes da religio, articulao e imbricao das instncias e
experincias diversas da vida.
A partir do momento em que decidi realizar uma pesquisa sobre religies de matriz
africana, de antemo me impus o limite de no tratar dos aspectos pertinentes ao culto
propriamente dito. Isto porque reconhecia ser necessrio um tempo longo de contato e
convvio. Como religio inicitica, muitos conhecimentos s podem ser adquiridos no e aps
o processo de iniciao e/ou pressupem certa maturidade e contato com a vida religiosa.
Efetivamente, iniciados ou no, os saberes no so transmitidos direta ou sistematicamente,
mas dependem da capacidade de cada um perceber e captar contedos e sentidos, a partir das
vivncias no interior do culto ao longo dos anos. Diante disso, considerando que minha
experincia era apenas de expectadora ocasional e que meus conhecimentos eram oriundos
basicamente de leituras e algumas conversas com praticantes, no concebia que com uma
pesquisa de menos de um ano seria capaz de tratar qualquer aspecto litrgico, cosmolgico,
ritual, mtico ou simblico das religies de matriz africana da maneira adequada.Meu interesse primordial, desde minhas pesquisas na graduao em histria, era
refletir sobre essas religies como maneiras pelas quais seus praticantes podiam se constituir
como grupos mais ou menos independentes, com concepes, sociabilidades e identidades
prprias, que os permitissem resistir em contextos adversos no perodo da escravido, por
exemplo , agir e se relacionar de determinadas maneiras na sociedade, evidenciando que a
religio era uma dimenso que possibilitava, inscrevia, estava presente e se relacionava com
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uma srie de outras atividades e esferas da vida. Pretendia ento partir da religio para ver de
que maneira ela articulava, perpassava, se relacionava e possibilitava outras prticas, que no
aquelas religiosas.
Logo comecei a observar algumas comunidades de terreiro do Rio de Janeiro e as
aes definidas como sociais e culturais que colocavam em prtica, bem como aes e
relaes que travavam com e na poltica. Surgia assim a ideia de refletir sobre essa dinmica,
sobre essas prticas, o carter e as relaes, fluxos e associaes que elas possibilitavam.
Repensar e refletir, a partir das concepes e aes dos grupos estudados, sobre a definio, o
carter, os contedos do que compem e inscrito no mbito da religio, do social e da
poltica parecia necessrio, assim como repensar as divises, separaes e relaes entre essas
esferas, entre o religioso e o no religioso, o interno e o externo.
Dei incio pesquisa travando contato com lideranas religiosas que possuam
bastante atuao social e relao com e na poltica no municpio de Nova Iguau, todas do
candombl angola. Sempre ao apresentar meus interesses de pesquisas, tentava me posicionar
do lado de fora dos contedos religiosos, mesmo que a religio e os religiosos de algumas
comunidades de matriz africana fossem o ponto de partida, o ponto de vista a partir do qual
pretendia refletir. As pessoas pareciam entender muito bem meus objetivos de no adentrar na
religio, mas na verdade o que acontecia era que constantemente passei a estar de frente com
contedos, princpios e sentidos das religies de matriz africana, no caso, do candomblangola. Nas palavras dos meus informantes ao me apresentar para outras pessoas, eu estava
estudando o candombl em Nova Iguau ao acompanhar o trabalho deles, portanto,
determinadas dinmicas, que mesmo que postas de fora, integravam, participavam e se
relacionavam com a religio propriamente dita.
Percebi que, mesmo pensando que seria necessrio problematizar as divises, os
praticantes do candombl me mostraram de maneira concreta o que isso significava,
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permitindo tecer e me movimentar por fluxos que me faziam vir de um lado para outro, ver as
coisas em funcionamento, onde separaes pareciam arbitrrias e ineficazes, onde a religio
perpassava e estava em tudo. A experincia dos atores demonstrou o quanto as coisas esto
imbricadas e relacionadas, em movimentos conjuntos, gerando e inscrevendo composies
diversas.
Portanto, este trabalho busca lanar um olhar sobre religies de matriz africana,
comunidades de candombl angola de Nova Iguau, especificamente, inseridas em certas
atividades, relaes e aes. Ele prope olhar para as coisas de maneira que se possa v-las
em funcionamento e movimento, em conjunto, entrelaadas, relacionadas, superando divises.
Prope, assim, perceber e pensar em associaes e redes, pensar como as religies de matriz
africana no se definem e se limitam ao espao do terreiro e, ao mesmo tempo, como, em suas
diversas atividades e trabalhos, seus praticantes so capazes de colocar em evidncia formas e
perspectivas sobre o que , do que feito e como funciona a sociedade, a cultura, a
poltica, a natureza, alm da prpria religio.
Em seus trabalhos sociais, ideias e prticas, os sacerdotes, acabavam evidenciando
que tanto a sociedade quanto o social poderiam ser muito maiores e mais complexos do
que pensamos tradicionalmente. Isso porque dessa instncia participavam outros atores, no
humanos. Foram esses novos atores, somados s concepes e prticas dos informantes ao
longo dos trabalhos, que permitiram perceber as articulaes e relaes entre os mundos dapoltica, da religio, da natureza e do social. A ideia de privilegiar a etnografia e as
concepes nativas na reflexo sobre as relaes entre poltica e religio articulava, de
certa forma, um conjunto de anlises apartadas sobre essas duas esferas mas que
enfatizavam as experincias vividas. Ou seja, de um lado prope produzir uma antropologia
da poltica (PALMEIRA,1991, 1992, 2006; PALMEIRA & GOLDMAN, 1996;
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GOLDMAN, 2006) e, de outro, investe na etnografia das prticas e dos modos atravs dos
quais as coisas so feitas (GOLDMAN, 2006; ANJOS, 2006).
A ideia de repensar o que o social e o que a sociedade a partir das perspectivas
dos atores foi particularmente beneficiada pela leitura da teoria do ator-rede de Bruno Latour.
Em Re-assembling The Social: An Introduction to actor-network theory (2005), o autor
demonstrou que as cincias sociais trabalham com uma definio de social e sociedade
que pressupe um conjunto de coisas j reunidas e no questionadas em relao a seus
contedos. Trata-se de um ingrediente especfico que serve para explicar tudo, os domnios
sociais e as dimenses sociais de outros domnios: tudo pode ter uma explicao social.
Tentando se distanciar dessa interpretao, Latour se debrua sobre as controvrsias sobre o
social, a fim de chegar a uma nova definio de social e sociedade.
Para Latour, a sociedade no pode ser vista como algo dado, estabelecido e definido
a priori, ou como um ingrediente especfico, um domnio particular destinado a explicar tudo,
inclusive o que fazem e como vivem os atores. Sociedade e social seriam antes de tudo
reunies, associaes compostas por ligaes no sociais, um tipo de conexo de entidades
no propriamente sociais. Seriam mais um movimento que permite reunir e estabelecer novas
conexes e, para estabelecer e pensar nessas associaes, necessrio seguir os atores, pois
so os atores que devem desdobrar o prprio mundo, defini-lo e coloc-lo em ordem. Ao
pesquisador, resta pergunt-los como fizeram.Partindo para o que chama de controvrsias sobre o social, Latour demonstra que
no se deve comear a pensar no social elegendo um grupo ou agrupamento privilegiado que
o defina, e sim pensar nos processos contraditrios de formao e desmantelamento dos
diversos grupos aos quais se pode estar submetido simultaneamente. O autor toma o processo
de reagrupamento e formao dos grupos, feitos e refeitos constantemente, e as prticas
utilizadas para mant-los de maneira constante. Em seguida, indica a necessidade de explorar
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as incertezas sobre o que provocam as aes, o que age quando agimos, o que nos faz agir.
Partindo da ideia tradicional das cincias sociais de que ao resultado de algo que a
ultrapassa, o autor prope seguir o discurso dos atores, destacando que somos levados a fazer
coisas por entidades que no temos controle, at por no humanos. J que no se pode saber
com certeza o que nos faz agir, ele lista o que est sempre presente nos argumentos
contraditrios que relatam uma ao. Com isso, Latour formula e utiliza o conceito de
actante para englobar tudo que provoca uma ao, que age, no importa a figurao que
tenha: pode ser um ideomorfismo ou um antropomorfismo, ou seja, uma ideia ou um ser
humano, por exemplo (LATOUR, 2006: 78-79). Esses actantes, dotados de existncia e
figurao, devem ser analisados para serem classificados como intermedirios, ou seja,
veiculando sentidos e foras sem transformao, sendo causas veiculando efeitos esperados,
ou mediadores, traduzindo, transformando, modificando o que se transporta, gerando coisas
inesperadas, criando outros mediadores, que fazem fazer outras coisas inesperadas. A
sociologia do ator-rede que Latour prope quer substituir as causas por associaes de
actantes, concatenao de mediadores, na qual cada ponto passa a ser visto como agente,
fazendo fazer coisas, agindo e produzindo coisas inesperadas, criando novos mediadores.
Dessa forma, na teoria do ator-rede, na sociologia das associaes, fundamental
incluir objetos. Tudo que vem modificar uma situao torna-se um ator, ou melhor, um
actante, quando se opta pelas controvrsias sobre as formas de existncia que participam deum curso de ao. Para Latour, importante considerar entidades participantes da ao;
mesmo que isso inclua no humanos, em sua teoria os objetos so tornados atores. O autor
substitui sociedade, que designa aquilo que j est reunido, por coletivo, ao que rene
diferentes tipos de foras que so associadas porque so diferentes, um projeto de reunir
novas entidades que ainda no foram coletadas. Para ele, a incluso dos objetos e o coletivo
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so fundamentais para a compreenso de novas dinmicas e para levar a srio os informantes.
Ademais, os objetos desdobram outras maneiras de agir.
Neste trabalho, assumo o conceito de actantes de maneira a inventariar certa
variedade daquilo que participa das aes que acompanhei, seja humanos ou no humanos,
em suas mltiplas figuraes. O termo atores ter seu uso limitado, j que, como coloca
Latour, alm de no incluir tipos variados de agentes, refere-se a um tipo especfico de
cincias sociais.
Ao tratar da quarta fonte de incerteza, o autor apresenta de que maneira pensou na
teoria do ator-rede a partir de suas pesquisas sobre a cincia. Retoma, ento, a ideia de
conexo e associao. Social passa ser um movimento quecoloca em relao elementos no
sociais, e actantes estaro de tal maneira associados que fazem agir os outros. Nestas
associaes, o que se percebe o lugar no habitual conferido aos objetos naturais. Tanto
quanto social, termos como natural e natureza devem ser questionados naquilo que o
compe e define, e no se devem reunir sob esta ideia fatos indiscutveis, prematuramente.
Fatos indiscutveis tornam-se fatos disputados, toda entidade nova a ser includa um fato
disputado (LATOUR, 2006: 166-175).
A ltima controvrsia apontada por Latour diz respeito produo dos textos
cientficos, que tambm agem como um mediador, mesmo sem deixar de lado veracidade e
objetividade. Capaz de apreender e transmitir o social, que um fluido que circula, o textorepresenta o social, com os participantes que o performam e lhe do forma. Um bom texto
cientfico aquele que traa uma rede. Para Latour, rede o que traado nos relatrios
dos pesquisadores pelas conexes que veiculam transformaes e pressupem coexistncia de
dois mediadores, o que chama de traduo. corrente de aes em que cada participante
tratado como mediador, em que cada actante capaz de fazer fazer coisas inesperadas. A
rede um conceito e uma ferramenta descritiva, e no algo objetivo. Os movimentos, fluxos
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e mudanas que so privilegiados nessa ideia de rede. Ela permite ver as transformaes
acontecendo e depende da ao que se desdobra entre cada mediador. A ideia de ator-rede
surge justamente da necessidade de desdobrar atores enquanto redes de mediao.
Uma vez j tendo exposto as controvrsias do social, negado o social como um tipo de
substncia e material, e assumido social como um movimento que religa ingredientes que no
so a princpio de natureza social, assinalando que social o que deve ser explicado e no
tomado a priori para explicar outras coisas, Latour apresenta a maneira pela qual se pode
chegar s associaes. Ou seja, depois de alargar as controvrsias para perceber o que pode
participar das associaes e de que maneira, o autor debrua sobre a forma como os atores
estabilizam as incertezas. Latour apresenta trs procedimentos que partem da crtica s
cincias sociais que oscilou entre as interaes dos atores e os aspectos estruturais, a fim de
reencontrar as associaes. Trata-se de localizar o global que deixa de ser algo que engloba
tudo e explica aquilo que engloba; trata-se de redistribuir o local, pois cada lugar, cada ao e
indivduo passam a ser compostos por uma infinidade de elementos; finalmente, trata-se de
conectar as coisas.
Seguindo algumas das indicaes de Latour, esse texto tambm pretende ver o
social como movimento de reassociao, deslocamento, transformao, traduo e
recrutamento, pois pretende considerar diversos actantes e tentar perceber associaes e redes
que pressupem ao e movimento entre mediadores que provocam transformaes. A teoriado ator-rede de Bruno Latour um mtodo que no parte de uma forma ou de estrutura
preestabelecida para compreender o objeto de estudo, ou toma um social dadopara explicar
todas as coisas, mas busca seguir a maneira pela qual os atores estabelecem e restabelecem
continuamente e de maneiras variadas as formas nas quais esto inseridos, o que constitui suas
associaes, o que os mantm unidos, o que os faz agir, e assim por diante. O trabalho de
composio do social feito pelos atores. Seguindo os atores em suas aes, sobretudo
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quando trataremos de maneira mais detalhada o trabalho que realizaram como grupo, talvez
seja possvel comear a pensar nas associaes que estabelecem, no social que compem em
suas aes sociais. A sociologia das associaes explora controvrsias do que pode estar
associado em um curso de ao dado, e no curso dessas aes e considerando controvrsias
que pretendemos tentar perceber algumas associaes.
Finalmente, refletir sobre as aes sociais e a insero poltica de comunidades de
terreiro pode contribuir no apenas para entendermos como determinados grupos religiosos se
inserem, concebem e agem em relao a fazer o social, mas tambm para evidenciar
dinmicas que complexifiquem vises correntes e de senso comum relativas ao
funcionamento desses coletivos. Isso abrir espao para inscrever a discusso e as vises
sobre poltica e movimentos sociais, e evidenciar o carter dinmico dos contedos e das
prticas caractersticos das religies de matriz africana.
Explorando essas possibilidades tericas e suas implicaes metodolgicas, mas
substancialmente seguindo os atores e os engajamentos experimentados ao longo de oito
meses de trabalho de campo, a dissertao composta por trs captulos seguidos de algumas
consideraes finais. No primeiro captulo, farei uma apresentao dos sacerdotes que
acompanhei no trabalho de campo, descrevendo alguns dos trabalhos que desenvolvem na
esfera pblica do municpio. Nesse momento, ser possvel perceber alguns envolvimentos e
relaes com diversos actantes, alm dos diferentes tipos de aes nas quais esto envolvidose de que maneira as definem. Ao final do primeiro captulo, retomo os Mutires de Limpeza
com a descrio do II Mutiro, desde o processo de sua articulao, que ir servir para que
possamos olhar no curso da ao os diversos actantes em movimento, em conjunto, em
relao, dialogando e disputando concepes.
O segundo captulo tratar de outras mobilizaes das comunidades de terreiro que
acompanhei a partir de prticas e discursos em torno da reivindicao por ocupao de
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espaos de atuao e existncia. Nesses movimentos, destacam-se a construo de projetos,
objeto e mediador que colocar o grupo de sacerdotes em relao a vrios actantes no
exerccio das prticas. no decorrer da confeco, da discusso, da submisso e do
acompanhamento da tramitao de projetos que podemos perceber a relao com os polticos,
com a poltica e na poltica do municpio. A busca e a conquista por espaos, fsicos, como na
tentativa de criao de um espao sagrado, ou em outros sentidos, apontam para tentativas
de conformar e ocupar certos lugares como territrios existenciais na cidade, neste caso
territrios religiosos, das comunidades de terreiro (ROLNIK, 1989).12
O terceiro captulo ir retomar os Mutires de Limpeza, mas com um enfoque nas
oferendas, no lixo religioso e na oferenda ecolgica, de forma a articular as prticas e os
significados a elas relacionados no candombl angola e as aes propostas pelos religiosos.
Ser, sobretudo, o momento de inserir os objetos nas associaes observadas, mostrando de
que maneira participam da ao e evidenciam a participao de outros actantes que
conformam os coletivos analisados. Ser o momento de refletir sobre o que faz agir os
sacerdotes, o que cada actante associado faz os demais fazerem e, como mediadores,
provocam transformaes e resultados inesperados, conformando uma rede de conexes e
tradues.
12 Como define Rolnik (1989), as experincias de ocupao de criao de territrios negros se referem construo de singularidades e elaborao de um repertrio comum. A autora chamou ateno para oflorescimento de um devir negro, a afirmao da vontade de solidariedade e autopreservao que fundamentavaa existncia de uma comunidade africana em terras brasileiras (ROLNIK, 1989:30), desenvolvendo-se nascidades ao longo da histria. Enfatizando territrios urbanos negros, como espao vivido e obra coletiva
construda pelo grupo social, proponho tomar esta ideia para territrio religioso, e pensar em tipos variados deterritrios, no apenas espaos fsicos, mas que se constituam como espaos vividos e obras coletivas, espaos deexistncia e atuao, conquistados e construdos por um grupo que se define por repertrios comuns esingularidades.
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Captulo IFazendo o Social: sacerdotes, grupos e eventos
Quando me propus a estudar aes que mobilizavam os religiosos do candombl e que
poderiam ser classificadas como estando fora do mbito religioso, tive receio em nome-
las. No quis limit-las ou classific-las a priori. Ao iniciar o trabalho de campo e expor meus
objetivos de pesquisa aos sacerdotes que queria acompanhar, acabei dizendo que pretendia
estudar as atividades e trabalhos sociais e polticos de algumas comunidades de terreiro do
municpio de Nova Iguau. Essa dificuldade no foi sem motivo. Era resultado das primeiras
tentativas de construo do objeto de pesquisa, que partia da observao de atividades
referidas como sociais.
Sem pretender amenizar as consequncias desta dificuldade e sua influncia no
trabalho de campo e na pesquisa como um todo, acredito que o que, primeira vista, poderia
ser encarado como um uso de conceitos externos s redes de ao nativas, teve respostas.
Logo no incio do trabalho de campo me deparei com comentrios do tipo: voc quer estudar
o trabalho religioso ou social?, nosso trabalho social, agente faz o social ou nosso
trabalho no poltico, no sentido de poltica partidria, os polticos passam, vo embora da
cidade, mas meu trabalho, que social e cultural, permanece. Mesmo de sacerdotes que no
pertenciam ao grupo que pretendia acompanhar e que no conheciam a mim nem a minha
pesquisa, pude ouvir comentrios como o candombl, as comunidades de terreiro,
desenvolvem um trabalho social que inerente religio.
Referncias ao trabalho social no candombl, de fato, no so raras, e podem ser
percebidas por qualquer um que entre em contato com os sacerdotes e adeptos.13Ao longo do
13Apesar de existirem poucos trabalhos com um enfoque privilegiado a essa questo na literatura sobre religiesafrobrasileiras, os trabalhos sociais dos terreiros aparecem frequentemente como dados suplementares nas
pesquisas. Alm disso, a corrente hegemnica dos trabalhos produzidos a partir da dcada de 1970 analisou asrelaes que esses cultos tinham com a sociedade brasileira, observando que no candombl ou na umbandano se fazia apenas religio, e mltiplas construes tinham lugar. (Temos, por exemplo, MAGGIE, 1975;ORTIZ, 1977; 1978; FRY, 1978; BIRMAN,1980; 1995). Estudos sobre a umbanda enfatizaram que demandas
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trabalho de campo observei algumas atividades que os sacerdotes desenvolviam como uma
rede extensa de aes e relaes que afetavam diretamente os espaos e as prticas das
religies de matriz africana (temas como o da luta contra a intolerncia religiosa e a
preservao do patrimnio religioso, por exemplo), articulados a questes associadas ao
bem-estar da sociedade. Esse era o caso dos Mutires de Limpeza, aos quais o grupo se
referia sem utilizar qualquer tipo de definio, classificao ou adjetivao. As prticas
associadas a sua organizao seriam atividades sociais, culturais, religiosas ou
polticas? Arriscaria usar todas essas possibilidades de caracterizao na tentativa de
descrev-las e compreend-la. Foi ao observar, participar e acompanhar a atuao destas
pessoas nessas atividades que percebi a dificuldade de empreender qualquer tentativa de
distino pautada em certas concepes sobre campos ou esferas polticas e religiosas, por
exemploseparados.
Fazer o social refere-se a atividades que beneficiam grupos diversos da populao ao
atender vrias necessidades e enfrentar questes diversas, e que pressupe aes, relaes e
articulaes na esfera pblica. Mesmo atividades que no sejam definidas dessa maneira
diretamente podem ser vistas nessa direo e integrando esse conjunto dos trabalhos sociais.
Isso porque so atividades que beneficiam diversos grupos, de alguma maneira, e que no s
visam contemplar demandas dos grupos religiosos e/ou outros, mas tambm conect-los com
outros actantes, configurando uma rede heterognea de relaes. Desta maneira, preciso
por espao e liberdade de culto estavam associadas a aes filantrpicas e agenciamentos polticos (p. ex.,BIRMAN, 1985). A partir desses estudos temos uma grande diversidade de textos que tratam das religiesafrobrasileiras em seus mltiplos aspectos e no separando religio e sociedade. Em relao aos trabalhossociais, estudos recentes como os de Silva, 1998 e Goldman, 2006, analisando um grupo denominadoafrocultural em Ilhus intimamente ligado a um terreiro de candombl, apontam para esses tipos de trabalho.Silva destaca referncias ao trabalho social, trabalho comunitrioque compreendem uma srie de atividadesque vo desde a montagem de uma banda de crianas e adolescentes, um grupo de dana, a organizao deensaios do bloco, festivais de msica e concursos de beleza negra, at gincanas com arrecadao de alimentos. Otrabalho inclui tambm projetos, oficinas, palestras e trabalho de formao que jamais saram do papel ou que
permanecem apenas na ideia. Trabalho social uma categoria nativa que se refere a todas as atividades que
melhorem a qualidade de vida das pessoas e promovam a autoestima na popula o negra (SILVA, 1998).Tratando de outras questes, mas perpassando por trabalhos e projetos sociais, Ralf Mesquita apresenta algumasiniciativas relacionadas a portadores de HIV desenvolvidas por um terreiro de candombl de Nova Iguau(MESQUITA, 2002).
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ampliar nossa compreenso acerca dos modos pelos quais essas relaes so produzidas e
diversas associaes, conformadas. Proponho, portanto, tomar a expresso fazer o social,
usada pelos informantes, em sentido amplo, atentando para os diferentes sentidos e prticas
que ela descreve e sinaliza a partir da observao de determinados eventos.
Na primeira parte do captulo apresentarei os atores que compem o grupo de
sacerdotes angola. A relevncia das prticas e modos de fazer o social nesse estudo faz com
que tenha preferido apresent-los a partir das atividades que desenvolvem, das aes, dos
trabalhos sociais. atravs delas tambm que veremos os sacerdotes reunidos como grupo e
em diferentes relaes e experincias no campo da poltica e da religio. Na segunda parte do
captulo, descreverei o envolvimento do grupo, sua participao na organizao e feitura dos
mutires de limpeza.
As atividades que tornaram possvel os mutires comearam a ser elaboradas e
conduzidas por um grupo de sacerdotes e adeptos maior do que aquele que acompanhei nos
eventos de 2010, ao qual me referi na introduo. No saberia precisar quem e quantos eram,
pois todo o processo que deu origem ao I Mutiro de Limpeza aconteceu no final de 2009,
antes do incio do trabalho de campo e de ter travado conhecimento com os sacerdotes.
Comeo, portanto, descrevendo a configurao do grupo envolvido na preparao do II
Mutiro de Limpeza, quando comecei a pesquisa. Arlene de Katend, Me Margarida e
Roberto Braga atuaram intensamente na organizao do evento.Alm desses, outro sacerdote foi uma das referncias fundamentais para os debates e
aes sobre as relaes entre o meio ambiente e as religies de matriz africana. Apesar de no
ter participado do II Mutiro, Seu Eduardo Adjiberu esteve presente no primeiro evento. Sua
ausncia nas aes e debates desenvolvidos ao longo de 2010 revelava um descontentamento
em relao ao curso das atividades das quais havia participado anteriormente, ressalvas
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quanto a algumas pessoas, instituies envolvidas e relaes estabelecidas. No incio da
pesquisa o conheci por intermdio de Arlene de Katend e Roberto Braga.
Se o grupo de sacerdotes envolvido no II Mutiro no era o mesmo daquele que
participou do I, no III Mutiro, realizado em outubro de 2010, s dois sacerdotes estavam
presentes: Tata Luazemi (Pai Roberto Braga) e Pai Srgio. A escolha desse evento como
ponto de partida residia no fato de reunir elementos importantes da problemtica que
pretendia analisar, alm de ter ocorrido num momento em que estava mais bem preparada
para pensar e perceber questes importantes que surgiram. Se os Mutires no reuniram todos
os integrantes do grupo que acompanhei, isso no pode ser visto como erro quanto
relevncia da escolha, mas como uma primeira evidncia da maneira pela qual aquele grupo
de sacerdotes se constitua como um coletivo e um actante poltico. Retorno descrio de
eventos como os Mutires para entender como este grupo de actantes criado e recriado em
torno de projetos e eventos e como as delicadas e complexas relaes entre os sacerdotes e os
interlocutores referidos entre eles como poder pblico so construdas.
1.1 Os sacerdotes
Ar lene de Katend(Mama Ladeji )
Arlene Maria Camargo, Mama Ladeji ou, como conhecida no municpio, Arlene de
Katend e Me Arlene de Katend uma sacerdotisa do candombl angola que completou 38
anos de iniciao em 2010. Pertencente raiz Gomia, neta de santo do famoso pai de santo
Joozinho da Gomia. Pai Joo, diz Arlene, conseguiu unir o candombl angola, conquistou
espao, reconhecimento e respeito para esses grupos na esfera pblica, influenciou a poltica
e polticos importantes, como Getlio Vargas. Com a morte de Pai Joo, o candombl angola
sofreu um grande golpe e, para Arlene, foi perdendo espao e fora pelo menos no Rio de
Janeiropara o candombl ketu.
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Arlene teve uma formao catlica, foi criada no sul do pas e ainda na adolescncia
viu-se com srios problemas de sade. Depois de tentar encontrar a cura na medicina
tradicional, foi ento levada por uma tia ao terreiro de uma filha de santo de Joozinho da
Gomia e descobriu que o problema era espiritual. Tendo Katend, Nkisi das matas,
florestas e folhas sagradas como seu primeiro santo, Arlene conta que se iniciou sem saber
nada da religio e s com o passar do tempo que foi aprendendo. Tornou-se sacerdotisa aps
cumprir o perodo necessrio e as obrigaes. Foi me-pequena do terreiro de candombl em
que se iniciara e, aps a morte de sua me de santo e do sacerdote que deveria suced-la,
assumiu o posto de sacerdotisa da casa.
Conta Arlene que durante algum tempo teve casa de candombl aberta.Apesar de
nunca ter abandonado, como dizia, as atividades de mede santo, cuidando dos meus filhos
de santo e de uma clientela que me acompanha faz muitos anos, em 2010 no possua terreiro
aberto. A este intenso trabalho religioso ou trabalho de me de santo, somava-se aquele
que desenvolvia no municpio atravs de sua instituio, o Centro de Integrao Social Inzo Ia
Nzambi o CISIN.14 Nem sempre foi fcil conciliar as atividades. Nas palavras da
sacerdotisa, o trabalho frente a uma instituio civil era resultado direto de sua condio de
me de santo do candombl. Arlene dizia:
Foi a partir da minha iniciao que me aproximei, conheci e comecei a admirar acultura afro. Foi a partir da que senti a necessidade de trabalhar para o resgate e adivulgao da nossa cultura, foi a que todo o meu trabalho comeou de alguma
maneira. Apesar das dificuldades encontradas e dos preconceitos por ser de corbranca, iniciei esse trabalho que hoje me traz muita satisfao. Atravs destetrabalho, tenho encontrado apoio dos meus irmos e do poder pblico. Buscotrabalhar... como mesmo a palavra... aquilo que rene, liga, atravessa muitas
14Quando comecei a pesquisa de campo CISIN significava Centro de Integrao Social Inzo Ria Nzambi, Casade Deus na traduo do kimbundu. Entretanto, a instituio organizou uma oficina de lngua kimbundu, com umog pertencente ao candombl angola, reconhecido por seus contnuos estudos da lngua. Foi l que eu e Arleneaprendemos que o conectivo correto seria I ae no Ria, o que a provocou mudana no nome da instituio exigindo um trabalho burocrtico intenso para regularizar toda a documentao. O interessante foi que Arlenecontou que havia sido aquele mesmo sacerdote que verificara a grafia correta dos termos em kimbundu no nome
de sua instituio, e que agora estava mudando de ideia. Diante de alguns comentrios desconfiados sobre apertinncia das informaes do sacerdote, Arlene argumentou que natural que as coisas mudem em decorrnciados avanos nos estudos e que no via nenhum problema quanto a isso. A lngua tambm dinmica, elatambm muda.
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coisas, era uma coisa que nosso ex-secretrio de Igualdade Racial sempre dizia... Ahsim, transversalidade, trabalhar na transversalidade cultural e religiosa.
A prpria criao do CISIN resultava de um outro envolvimento importante e no qualo trabalho no mbito da poltica, da cultura e da religio era indissocivel o Afox
Maxambomba. A ideia e o estmulo para a criao de um afox veio de um amigo de Arlene,
um conhecido mestre de capoeira de Nova Iguau adepto do candombl.15Pelo regulamento
oficial que rege a organizao de blocos e grupos de afoxs nacionalmente, segundo Arlene,
s um sacerdote do candombl pode presidir um afox. O capoeirista amigo insistia para que
Arlene assumisse essa funo. Ela argumentava, contudo, que j era bastante trabalho ter um
terreiro em Nova Iguau enquanto morava no Rio de Janeiro. Quando seu marido se
aposentou, Arlene veio definitivamente para Nova Iguau para ficar mais prxima ao terreiro,
localizado perto da casa de seu amigo. Muito tempo se passou at que finalmente ela cedeu
insistente sugesto e com apoio de vrias pessoas do candombl decidiu assumir a tarefa de
criar o Afox com o intuito de valorizar, divulgar e resgatar a cultura afro.
Foi em 2002 que comeou todo o processo de montagem do Afox, batizado de
Maxambomba por sugesto do ento secretrio de Cultura, em aluso ao antigo nome da
cidade de Nova Iguau. O Afox Maxambomba tornou-se realidade em novembro de 2003, ao
fazer sua primeira apresentao nas comemoraes da Semana de Conscincia Negra. Arlene
dizia que na poca obteve apoio do ento prefeito Mrio Marques e das secretarias
municipais, em particular a da cultura, e parece ter comeado a toda uma relao que mantm
at hoje com o poder pblico, com polticos do municpio e com a poltica.
15Afox um cortejo de rua que desfila no carnaval, cantando e danando. No entanto, como seus organizadorese a maioria dos membros esto vinculados a terreiros de candombl, distinguem-se de blocos e outros gruposculturais e carnavalescos, definindo-se frequentemente como candombl de rua. O aparecimento e adisseminao dos afoxs no carnaval baiano no incio do sculo discutido por Carrara, Fry & Martins, 1986. As
transformaes ocorridas nos afoxs tradicionais, bem como a criao de grupos semelhantes, como os blocosafro e sua associao com os movimentos negros nos anos 70 e 80 em Salvador discutido por Risrio (1981),Morales (1988) e Cunha (1991). A expanso e a reapropriao dos modelos dos blocos afro e afoxs em outrascidades descrita por Goldman, 2006; Silva, 1998, 2004.
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O Afox Maxambomba foi o que tornou Arlene conhecida em toda a regio. Ao contar
essa histria, contudo, sempre destaca as dificuldades que teve para ergu-lo e torn-lo
reconhecido.
Quando fu
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