O vivido não lido: quem tem medo de Lygia Bojunga?
Bianca Cardozo Flores (UFGD)
Profa. Dra. Alexandra Santos Pinheiro (UFGD)
Resumo: Mesmo que a morte, o sexo, o abandono e a violência façam parte da realidade de
muitos jovens, tais temas ainda são renegados e considerados tabus na Literatura
Infantojuvenil. Se a leitura literária está intimamente ligada à leitura de mundo, como negar às
crianças e aos adolescentes o direito de se enxergarem e se sentirem representados em uma
obra literária? A partir deste questionamento, o foco deste artigo recai para a análise da obra
Sapato de salto (2006), da renomada autora Lygia Bojunga, e a importância das representações
presentes. Nela, o narrador entra no universo infantojuvenil para abordar a morte, o suicídio, o
medo de crescer, a luta pela sobrevivência, a pedofilia, a carência afetiva e os preconceitos
vivenciados por Sabrina, uma menina de 11 anos. Para sustentar a análise, recorremos a estudos
acerca da representatividade e das relações de gêneros.
Palavras-chave: Lygia Bojunga; Literatura infantojuvenil; Representação; Recepção estética.
Introdução: escolhas
A Literatura Infanto-Juvenil atual procura trabalhar com temáticas que façam parte da
realidade dos leitores infantis e adolescentes. Violência urbana, morte, abandono, meninos e
meninas moradores de rua, amizade, e os conflitos familiares são alguns dos temas que podem
ser citados. O que se propõe, a partir de uma tendência que se inicia, no Brasil, na década de
80, com a chamada Literatura Realista, oposição à Literatura fantástica, é oferecer ao público
alvo desse tipo de produção a possibilidade de pensar a sua realidade a partir da leitura literária.
Com personagens que vivenciam situações similares a que eles enfrentam no mundo real, esses
leitores podem resolver os conflitos que os envolvem.
É interessante lembrar que a ideia de que a obra literária tinha o poder de mudar
comportamentos passou a ser mais forte depois do advento do romance, no século XVIII,
crença que se estende ao longo do século XIX, quando a palavra ainda era considerada por seu
poder ilimitado. A prática de Literatura, nesse sentido, representava uma espécie de veículo
tradutor da realidade, com o poder de espelhar o mundo e seus contornos. Hoje, a visão da
Literatura busca, como afirma Marisa Lajolo, a “grande aventura da significação provisória”,
transformando esse provisório na “arma de sua permanência”. A arte literária seria vista como
“instauração de uma realidade, apreensível apenas na medida em que permite o encontro de
escritor e leitor sem que, entre ambos, haja qualquer acordo prévio quanto a valores,
representações, etc.” (LAJOLO, 2002, 12). A concepção de literatura relaciona-se, então, com
a questão da leitura, entendendo-a como um processo de construção de sentidos. Antonio
Candido afirma que a Literatura tem a capacidade de “confirmar a humanidade do homem”,
derivando, entre suas funções a de “satisfazer à necessidade universal de fantasia, contribuir
para a formação da personalidade e ser uma forma de conhecimento do mundo e do ser” (Cf.
Ciência e Cultura).
O que encontramos na Literatura Infantojuvenil brasileira é um elenco significativo de
autores empenhados em dar voz aos sentimentos dos jovens leitores. Antes de Monteiro
Lobato, esse gênero literário era pensado a partir do olhar adulto, que ditava às normas de
conduta ao pequeno leitor, procurando moralizar seus sentimentos e seus atos. O autor de O
sítio do pica-pau amarelo é o primeiro a inserir a criança em suas histórias, dando a ela a
liberdade de expressão. Monteiro Lobato configura um marco divisor da Literatura infanto-
juvenil, depois dele, outros nomes marcaram (e marcam) a história da produção literária para
o público jovem e infantil. Hoje, ao lado de tantos outros escritores representativos, destaca-se
Lygia Bojunga Nunes.
Renomada escritora brasileira, Lygia Bojunga dispensa apresentações, apenas
lembramos que ela nasceu em pelotas no dia 26 de agosto de 1932 e que as suas obras rompem
barreiras entre o imaginário e a realidade. Ao todo, somam 22 produções aclamadas nacional
e internacionalmente. Foi a primeira escritora fora do eixo Europa- Estados Unidos a receber
o prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil. O olhar
mágico da criança surge como foco de uma maneira especial, onde animais podem falar e
bolsas carregam histórias de uma vida, mas que, por outro lado, também retratam as desilusões
e amarguras de uma infância perdida e de histórias trágicas para os adultos. O imaginário se
funde com o espetáculo do cotidiano e a fantasia salienta o real. Tais características fazem com
que suas obras alcancem a sensação de proximidade entre leitor e texto. Sobre a produção de
Bojunga, Laura Sandroni afirma que ela:
situa-se entre as que melhor evidenciam essa concepção inovadora: a de uma
Literatura Infantil suficientemente amadurecida para colocar-se lado a lado
com a produção artística na qual os valores estéticos preponderam. Seus
textos são essencialmente literários, originalmente metafóricos e
questionadores, realizam-se enquanto linguagem promovendo a empatia. A
distância Autor/Leitor é por ela anulada porque seu caminho é o da
introspecção: ela está em busca da criança dentro de si mesma e por isso sua
obra interessa ao leitor de qualquer idade (SANDRONI, 1987, p. 168).
No presente artigo, o foco recai para a análise da obra Sapato de Salto, lançada em
2006, pela editora Casa Lygia Bojunga, que narra a história de Sabrina, uma órfã que é abusada
sexualmente, vê a tia ser morta em sua frente, e se prostitui, com apenas onze anos de idade.
De forma realista, mas, ao mesmo tempo, delicada, o enredo reflete sobre marcas deixadas por
traumas e caminhos que não dependem de escolhas. Em Sapato de Salto, o leitor se depara com
mulheres que parecem conhecidas, próximas, pois são histórias já ouvidas antes: aquela vizinha
que é submissa ao marido, que já parece não ter voz ou a prima adolescente que está grávida e
não tem condições de ter uma criança sozinha. É fácil se conectar com as personagens, são
problemas atuais. Conforme Cândido:
[...] o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre
o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a
concretização deste.[...] a personagem, que representa a possibilidade de
adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações,
projeção, interferência, etc. A personagem vive o enredo e as ideias e os torna
vivos (CÂNDIDO, 2007, p.54-55).
Diante disso, vale ressaltar que viver, entender e contextualizar o enredo de um romance
é, simultaneamente, pensar nas personagens da obra. Ao lermos um romance, projetamos em
seu enredo e personagens os anseios da realidade, tanto da vida quanto dos seres. Na vida,
muitas vezes, não reconhecemos o outro de maneira plena. No romance, as personagens são
carregadas de recursos que as caracterizam para, assim, o leitor reconhecê-las através da
projeção, interna ou de observação, do ser real. No romance, as personagens são mais
delimitadas, o romancista a cria de forma que, em conjunto com o enredo, o leitor possa
compreendê-la e entender sua história e as intenções do romance. Conclui-se que discutir o
enredo da obra implica em, inevitavelmente, refletir sobre suas personagens.
No início da história de Sapato de salto, as cores para significar as emoções fazem com
que o leitor fique mais próximo do mundo infantil e ingênuo da personagem protagonista.
Apesar de Sabrina ser a personagem principal, a obra dialoga com várias outras realidades
através de suas personagens. A mulher em processo de desconstrução, representada por
Paloma; a mulher forte e destemida, representada por Tia Inês; e a adolescente grávida que se
responsabiliza pela culpa de ser mulher/mãe solteira, representada por Maristela. Em sapato
de salto, Lygia Bojunga constrói as personagens de uma forma em que é possível conhecê-las,
pensando em sua identificação para o leitor, em sua representação no mundo. Nesta obra, cada
personagem tem uma história, as personagens femininas são carregadas de realidade, cada uma
tem sua marca. Para Cândido, nas personagens, temos:
No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo
escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim
que é, na vida, o conhecimento do outro. (...)'‘... '' Daí a necessária
simplificação, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de
objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor
(CÂNDIDO, 2007, p. 50.).
Por meio desses conceitos, identifica-se, em Sapato de salto, a criação racional das
personagens: seja pelas cores como metáfora, ou trejeitos de certa personagem (Dona Matilde,
mulher de Seu Gonçalves, quem abusou de Sabrina, é narrada em fragmentos, não conhecemos
sua história, mas é possível saber que é uma mulher tensa, e que, não à toa, masca chicletes o
tempo inteiro). Enquanto tece a história de Sabrina, Bojunga convida à reflexão da vida e dos
dramas infantis que acompanham o personagem de papel e o personagem real.
Personagens femininas: sujeitos em construção
Lygia Bojunga escreve sobre a vida, e como toda realidade é uma representação, cada
personagem aqui apresentada traduz as dores de ser mulher. Em uma sociedade marcada por
uma história patriarcal, as mulheres são personificadas a partir de um modelo socialmente
construído: o de submissas, de frágeis, de dependentes de uma figura masculina e com
personalidades/identidades fragmentadas. O Brasil, vale destacar, é o 7ª país com as maiores
taxas de homicídio feminino entre 84 nações: a cada cinco minutos, uma mulher é agredida no
país, segundo o mapa da violência (Cf.WAISELFISZ, em 2012, sua última atualização até o
presente ano, 2015. Dados retirados do site mapadaviolencia.org em 16 de agosto de 2015). A
violência de gênero decorre de uma reafirmação da masculinidade e de sua relação de
superioridade pré-estabelecida sob as mulheres. Os dados reforçam a ideia de violência
simbólica, conceito de grande importância cunhado por Pierre Bourdieu, em sua obra A
dominação masculina, originalmente publicada em 1995. Segundo Bourdieu, “O corpo
biológico socialmente modelado é’’, ou seja, o poder masculino é algo que se reforça por meio
de nossas relações, infiltrando-se assim em nossa concepção de mundo.
Partindo desta perspectiva, Lygia Bojunga, por meio de suas personagens, assume um
papel poderoso: o de desmistificar a figura feminina, de questionar o seu papel e a sua
identidade de forma irreverente, e de dar visibilidade a personagens em formação diante de tais
questões. Sapato de salto dá a conhecer, de forma crítica, mulheres com histórias singulares
que, linearmente, reproduzem um conceito diferente da figura feminina durante a obra.
As relações de gênero, estabelecidas por convenções histórico-sociais, de que o
masculino é universal e o feminino é inessencial, marcam tudo aquilo que é produzido pelo
nosso sistema cultural. A reprodução desse sistema gera o processo de repressão do feminino
e o seu silêncio. Segundo Rita Terezinha (1995), discutir as relações de gênero implica em
ressignificar a percepção da vida. Repensar a vida também exige expor as distribuições de
poder que excluem e oprimem tudo aquilo de valor feminino. Mas, além do caráter político,
discutir gênero é também exercer alteridade. É olhar para o outro, para a outra. Portanto, a
personagem de uma obra literária, mesmo sendo um ser fictício, comunica-se com a expressão
e a relação entre o real e o imaginário.
A verossimilhança aparece como a concretização da personagem e da história que esta
carrega. Chartier, em O mundo como representação, salienta que tudo só existe enquanto
representado, o real ganha novos sentidos na representação. A partir deste conceito, percebe-
se que a leitura e a compreensão de que as obras fictícias assumem o papel de atribuir
significados e uma nova forma de olhar para a realidade: desde as mulheres como sexo inferior,
as dores do abuso, a incompreensão da homossexualidade, e o peso de se sentir mãe e sozinha.
Obras como Sapato de salto abrem caminhos para uma diferente realidade, em que as mulheres
atribuem sentidos a um cotidiano vivido por muitas, em que um narrador, de voz cansada (como
que acostumado ao trágico da obra), abre espaço para a representação e, consequentemente, a
aproximação do leitor com as personagens. A partir dos estudos de representação, é possível
propor uma construção do que é ser mulher e do que é ser criança em relação aos contextos
sociais, aproximando realidade e obra literária.
Logo no primeiro capítulo, “O segredo azul fraquinho”, surge dona Matilde: uma
mulher amargurada, traída e submissa ao marido, Seu Gonçalves, e que reproduz a opressão.
O leitor percebe o descontentamento de Dona Matilde por meio de como o narrador pincela
trejeitos e expressões à personagem. É possível conhecê-la por fragmentos, fazendo com que,
de certa forma, represente uma mulher sem voz: “Dona Matilde não respondeu, estalou uma
bala no dente’’ (p. 13); “Dona Matilde franziu a testa [...]” (p. 07).
Matilde é uma personagem misteriosa. Tudo o que conhecemos sobre ela é construído
a partir de pequenas nuances comportamentais no primeiro capítulo; o que leva o leitor a tentar
imaginar a sua história até ali. Afinal, a conhecemos em fragmentos, mas não é difícil notar
uma estrutura limitada organizada de modo que possamos enxergar certa lógica em seu espaço
e significação na obra. Trata-se de uma mulher que “aceita” ser calada por seu marido, que se
sente mais agredida pela menina abusada do que pelo próprio seu Gonçalves – o marido que
abusou de Sabrina- o que nos faz retornar para a realidade fora da obra, de mulheres que são
silenciadas perante os maridos, seja por medo, seja por uma dominação social e simbólica, e
pela ideia bíblica de que a mulher sempre é culpada. Em várias passagens da narrativa, o
narrador salienta o comportamento de dona Matilde: “Dona Matilde chupava muita bala, tinha
pressão baixa, dormia depois do almoço, de noite tinha um sono de pedra [...]. Ficou um tempo
parada, concentrada em aprimorar a frustração na cara de seu Gonçalves [...]’’ (BOJUNGA,
2006, p. 11-35).
É também através de Dona Matilde que o leitor tem o primeiro contato com a menina
Sabrina: é trazida de um orfanato, não tem família, entre 10 e 11 anos. Dona Matilde põe à
prova a inocência de Sabrina: “– Uma menina assim sem pai, sem mãe, sem nada, será que
presta?” (BOJUNGA, 2006, p.10).
A visão negativa de dona Matilde sobre Sabrina, desde a chegada da menina na casa,
pode ser explicada por um outro fator social, legado do machismo:o de que as mulheres devem
se sentir ameaçadas uma pela outra (mesmo que nesse caso seja representada por uma criança).
Assim que dona Matilde percebe os olhares diferentes de seu Gonçalves para Sabrina, o seu
instinto, pré-estabelecido socialmente, é de culpabilizar a menina, e não o marido.
No outro dia a dona Matilde não olhou pra Sabrina. Séria, ruga na testa,
enfiando a bala na boca, triturando ela depressa, mastigando outra em
seguida. ... Quando a Sabrina chegou mais perto pra dar um beijo de
despedida, recebeu uma bofetada na cara: - É pra você não se esquecer que
eu não vou me esquecer. – E bateu a porta com a mesma força da bofetada
(BOJUNGA, 2006, p. 23-36).
É válido lembrar aqui, sob o viés do feminismo contemporâneo, que não existem
mulheres machistas, mas sim mulheres que reproduzem aquilo que viveram durante séculos de
dominação patriarcal, e esta personagem representa isso, pois é nela que vemos a fragmentação
da mulher que se cala, e cala a menina em formação também.Tia Inês aparece como
contrapartida ao perfil de dona Matilde, e também como um exemplo de personagem feminina
forte, que ganha outro aspecto na narrativa. O narrador a descreve de forma minuciosa,
principalmente sua roupa, dando a entender a sua sensualidade, e com aspectos de uma mulher
bem diferente de dona Matilde. Num primeiro momento, o leitor a conhece pelo espanto de
Sabrina: “[...] o olho ganhou velocidade, atravessou o decote ousado, meio que tropeçou na
alça da bolsa e foi despencando pro cinto grosso (que cinturinha que ela tem!), e pro branco
apertado da saia, e pra perna morena e forte, que descansava o pé num sapato de salto”
(BOJUNGA, 2006, p. 27).
Tia Inês leva a menina Sabrina para morar na “casa amarela” com ela e a avó louca,
dona Gracinha. A personagem surge como uma nova esperança à menina que, até então, tinha
sofrido muito, desde abuso psicológico e físico ao sexual. Inês sustenta a mãe e a menina por
meio da dança, mas logo o narrador deixa claro que a tia de Sabrina não só vive da dança ao
descrever o quarto espaçoso e com espelhos grandes. No decorrer da narrativa, o narrador
entrega a história da Tia Inês por meio das lembranças da personagem. Após se mudar com
dona Gracinha para o Rio de Janeiro, Inês compra o seu primeiro sapato de salto e sente-se
mulher de verdade, conhece um homem mais velho que a faz abandonar Dona Gracinha e o
casarão em que viviam. Rapidamente passa a se prostituir nas ruas de Copacabana, aliciada
pelo homem que era sua “paixão”. Tia Inês aconselha Sabrina a ficar longe da paixão,
apresentando-a como algo perigoso.
O leitor acompanha a morte de Tia Inês sob o olhar de Sabrina, que, logo depois, sem
escolhas toma o lugar da tia e passa a se prostituir para sustentar a si e à avó. A morte de tia
Inês não marca a menina só pela violência, mas também pelo fim da esperança e o início de
uma nova fase, concretizada no sapato de salto, que dá nome ao livro:
Na trégua que o escudo deu, a tia Inês se levantou do chão, afastou Sabrina
com o braço e enfiou a mão no bolso de dentro do paletó do Assassino, onde
tantas vezes ela tinha visto a pistola que morava ali. Dirigiu a arma pra ele,
ao mesmo tempo que a dona Gracinha baixava a pedra outra vez. Num gesto
rápido, o assassino agarrou a mão que segurava a arma, desviou ela pra tia
Inês e, de dedo comandando o gatilho, disparou uma, duas, três vezes.
Durante um momento os quatro ficaram imóveis. Olho dilatado. Depois foi
tudo escorregando na tia Inês: o dedo pra fora do gatilho, a pálpebra pra cima
do olho, o corpo pro chão. Foi o corpo cair que o Assassino correu pra porta.
Sumiu lá fora (BOJUNGA, 2006, p. 40).
Percebemos a representação do assassino como a dominação masculina, aquele que
veio cobrar os erros do passado da personagem. Em um dos diálogos, enquanto o assassino
espanca tia Inês, é possível visualizar a espécie de relação entre os dois: ”– Durante sete anos
você tirou você tirou de mim tudo o que uma puta apaixonada pode dar, já tirou que chega!”.
E o assassino deixa claro: “[...] – Tá pensando o quê? Que mulher é páreo, é?’’ (BOJUNGA,
2006, p. 138-139).
Ao pesquisarmos sobre a recepção da obra, percebemos que tia Inês é uma das
personagens, junto a Sabrina, que mais cativa e gera comoção àquele que lê a história, sejam
mulheres ou homens, todos pareceram visualizá-la como um modelo de mulher forte, resistente
e sensível. O que nos leva a questionar aqui quais seriam os motivos de tal recepção. Pois, ao
pesquisarmos os índices de prostituição e a posição das pessoas sobre, nota-se uma séria
indicação de repúdio, negligência e indiferença às mulheres que vivem no submundo das ruas,
marginalizadas por não terem escolha. O narrador de Sapato de salto mantém uma distância
delicada entre a narrativa e o interior das personagens, não hesita em falar sobre morte ou sexo,
e dá a impressão de um narrador frio às tragédias relatadas. Apesar destas características,
percebemos um processo de criação totalmente racional voltado a aproximar o leitor dos
sentimentos da personagem. Diferentemente de um ser humano da vida real, em que nunca
conhecemos a sua totalidade, como o que sentem e o que os fizeram chegar até ali, a
personagem de um romance bem estruturado como a de uma obra de Lygia Bojunga, mesmo
sendo tão profunda quanto uma prostituta da vida real, tem a sua criação sentimental e de
sequencialidade de fatos, delimitada pelo romancista. Conforme Helenice Rodrigues da Silva,
em Representações, contribuição a um debate transdisciplinar:
o “texto’’ não é outra coisa senão a representação do real. Com efeito, a
reconstituição da realidade não passa de uma inferência, de uma dedução: ela
é o fruto de uma construção subjetiva, em outras palavras, ela reflete o ponto
de vista daquele que a relata.(...) Ao lado das interpretações mentais dos
indivíduos, as representações coletivas ou sociais constituem verdadeiros
sistemas de interpretação do meio social. Forjada por Mauss e Durkheim
(1898), a noção de representação se propõe explicar diferentes fenômenos
sociológicos, a partir do postulado segundo o qual a sociedade constitui uma
totalidade, isto é, uma entidade geral que difere da simples adição dos
indivíduos que a compõem (SILVA, 2000, p. 84-85).
Nesse momento da trama, após a morte de tia Inês, a narrativa agora é marcada por duas
personagens femininas marginalizadas: a avó gracinha e Sabrina. A avó ficou louca como
consequência do abandono do marido, da morte da filha Maristela e do tombo na partida de
Inês; e Sabrina, a criança que nunca conheceu os pais, que foi sexualmente abusada pelo “pai”
adotivo e que, assim como a avó, não tem condições de se cuidar sozinha. Por meio de uma
narrativa marcada pelo suspense, onde revelações acontecem com corte no tempo, sem
linearidade, por lembranças desconexas com o espaço/tempo da narrativa, muitas personagens
são descortinadas, como Maristela, a mãe biológica de Sabrina.
Maristela talvez seja a mais marcante das personagens, pensando no contexto de
representação da mulher e de sua realidade atual. A mãe de Sabrina, Maristela, aos 14 anos, se
vê grávida de um homem casado e que não tem intenção nenhuma de ajudá-la. Durante a
narrativa da história de Maristela, podemos perceber vários pontos a serem observados mais
atentamente, desde a sua gravidez e como a culpa direcionada à mulher é maior, pensando no
contexto da obra e em sua proximidade com a realidade. Em um dos diálogos, dona Gracinha
questiona Maristela sobre a gravidez e como ela tinha deixado aquilo acontecer:
– Isso não podia ter acontecido! Você não podia ter deixado isso acontecer!
(...)’’ ... “– Mas, e agora?! Vai virar mãe solteira, com quatorze anos? Ele vai
te sustentar? É isso? Todo o meu sacrifício de cada dia, cada mês, cada ano,
pra te dar estudo e uma vida arrumada, vai tudo pro ralo?! É isso? Mal começa
a vida e já abrindo perna pra homem! Foi isso que eu te ensinei? (BOJUNGA,
2006, p. 97).
Em um ato de desespero, para não envergonhar a mãe e também por não aguentar o
fardo de criar uma criança sozinha, sem a presença do homem pelo qual havia se apaixonado,
Maristela decide deixar Sabrina em uma casa de menores para, logo depois, se matar afogada,
abraçada a uma pedra. A reação intolerante de dona Gracinha, como explícito nas passagens e
nos diálogos da narrativa, é reflexo dos costumes morais, sob os moldes cristãos, com que a
personagem vivia: a concepção de Sabrina fora de um casamento foi encarada como
vergonhosa. “– [...] foi isso que Deus mandou, que a Igreja te ensinou? /[...] que não. – Foi isso
que tu aprendeu na escola?! [...] que não, que não [...] – E ainda por cima com homem casado
que, vai ver, tem até idade pra ser teu pai” (BOJUNGA, 2006, p.97).
Paloma é uma das personagens secundárias que, a partir da relação com Sabrina e o
desenrolar da narrativa, se descobre e descontrói a sua, até então, vida submissa com o marido
machista, Rodolfo, e torna-se parte essencial para o desfecho da história. No início da história,
o leitor se depara com uma Paloma presa aos conceitos, que ela mesma não concorda, do
marido, que a culpa por Andre Doria, filho de treze anos dos dois, ser homossexual:
[...] o Rodolfo começou a me acusar de ter criado o filho dele gay. Nessa hora
o Andrea Doria chegou em casa. E você pensa que o Rodolfo parou de falar?
Desatou a gritar. De propósito proAndre Doria ouvir. Disse que eu devia estar
muito satisfeita: eu não botava o menino pra lavar louça? Pra fazer a cama?
Eu nao vivia dizendo que machismo não da pé? (...) (BOJUNGA, 2006, p.
67).
Vemos em Rodolfo a representação de uma sociedade patriarcal e também
preconceituosa. Além de culpar Paloma e ditar que existem funções e características pré-
estabelecidas para homens e mulheres (a mulher, no caso, seria a única responsável pelos
afazeres domésticos e cuidados dos filhos, enquanto o homem seria o ‘’chefe’’ da família),
também não aceita a orientação sexual do próprio filho: “[...] disse que ia dar uma surra no
menino pra ele aprender que homem não é coisa de outro homem beijar na boca” (BOJUNGA,
2006, p. 71).
Mas é com Sabrina que Paloma tem a chance de se libertar e alcançar a liberdade. Após
decidir adotar a menina e a avó, dona Gracinha, a mãe de Andre Doria parece ganhar forças
para lutar contra a relação dominadora que tinha com Rodolfo e, junto a Sabrina, construir uma
nova história: “No dia em que você voltar a ser a Paloma que eu conheci [...] - Mas a Paloma
que você conheceu é exatamente esta que você está vendo agora. A outra, que veio depois, foi
uma Paloma fabricada para se ajustar a você” (BOJUNGA, 2006, p. 269). Em um universo de
escrita masculina em que a mulher era descrita como musa, criatura, ou qualquer coisa que
remetesse apenas a algo sem história, sem voz, sem desejos, sem defeitos, a uma criatura
meramente ilustrativa na trajetória de desejos e sentimentos unicamente masculinos. A mulher
não era vista como protagonista, apenas o homem era aquele que performava ação, como real
sujeito participante e atuante em sua própria história. A mulher, além de não ser atuante em sua
história, aparecia como objeto de ilustração na história do homem. Nesse sentido, Paloma é
uma personagem-mulher humanizada. Ela não é mais a esposa que aceita os termos do marido,
agora ela é uma mulher que busca recomeçar a vida, uma mulher com imperfeições, desejos e
com a história e a personalidade em desenvolvimento; o que representa essa construção da
identidade feminina na literatura e sua importância:
O feminino como passividade e conformidade dramatizado na “estética da
renúncia’’, na ‘’temática da invisibilidade e do silêncio’’ ou na “poética
do abandono’’ se desdobra na prática representacional de resistência do
sujeito consciente que estilhaça o discurso das exclusões, para lançar a
pergunta impensada: o que acontece quando o objeto começa a falar?
(SCHMIDT, 1995, p. 187).
Respondendo à pergunta de Rita Terezinha Schmidt: quando o objeto começa a falar
ele ultrapassa barreiras e rompe preconceitos, ganha vida e traza necessidade de redefinição de
cultura. A “mulher’’ se vê em reconstrução. Discutir gênero é político. Mulher “soltando a
voz’’ é revolução. É possível relacionar a história de Paloma com uma personagem de outro
livro de Lygia Bojunga, a Carolina, de Retratos de Carolina. Nesta obra, lançada em 2002, o
leitor acompanha os passos da personagem Carolina da infância à sua vida adulta. Carolina,
desde o início, é narrada como uma menina livre, questionadora e inteligente. Ela se apaixona,
casa com o homem pelo qual se apaixonou – assim como Paloma que, em várias passagens,
explicita estar presa a Rodolfo pelo amor que sentia por ele. Em determinada parte da narrativa,
Carolina é estuprada pelo marido, e começa a travar uma batalha consigo e com a mãe, que não
acreditava que um marido poderia abusar sexualmente da mulher, como se houvesse uma
relação de “propriedade’’ entre marido e mulher. Mas Carolina, assim como Paloma, reúne
forças e consegue se separar.
Paloma e Carolina, além das outras personagens também citadas, são exemplos da
narrativa intimista e de empoderamento da escritora Lygia Bojunga, que marcam a
subjetividade e a diferença na autoria feminina. Por fim desta etapa das figuras femininas,
segue uma das definições da perspectiva da autoria feminina, encontrada em Deslocamentos
de escritora brasileira, por Antônio de Pádua Dias da Silva:
[...] na escrita feminina, plasmam em seus mundos criados as várias
performances das mulheres que habitam as sociedades de hoje. Não é à toa
que essa escrita, consciente ou inconscientemente, é projetada para viabilizar
olhares sobre a cultura, o universo, as questões e problemas das mulheres,
sejam estes de base cultural, pessoal, social, antropológica, religiosa, moral
ou outras. As personagens mulheres e as narradoras ou vozes narrantes são
ou estão todas solícitas àquilo que faz parte da subjetividade das mulheres: o
seu universo ainda em construção; os seus medos sendo dissipados; as suas
alegrias extrapolando os limites do antes não permitido; a sua escrita
fundando mundos; o seu corpo sendo remodelado ao gosto de cada uma; a
busca por horizontes de expectativas longe dos desejos e mandos masculinos;
a construção de uma outra ordem pautada numa nova consciência para ler e
interpretar os sujeitos homens e mulheres dentro de uma base do tratamento
igual, mantendo-se as diferenças inerentes a cada um dos gêneros (SILVA,
2011, p. 243).
Em contrapartida às figuras femininas da obra, as personagens masculinas dão
vida a homens abusadores, preconceituosos, dominadores e assassinos. Seu Gonçalves abusou
sexualmente da criança Sabrina; Rodolfo é um marido machista e um pai que não consegue
aceitar o fato de o filho ser homossexual; o marido de dona gracinha abandonou a família; o
açougueiro se aproveita de sabrina e de sua necessidade financeira; o assassino, que nem
mesmo é denominado um nome, aproveita-se do amor de inês e a insere no mundo da
prostituição, reaparecendo apenas para matá-la.
Durante a narrativa, é possível perceber que só conhecemos as personagens masculinas
por meio do olhar das personagens femininas: ou por meio de lembranças, ou por meio de
algum diálogo das personagens mulheres em relação com os mesmos. A autora usou de
recursos simbólicos na construção das personagens masculinas e a visão que é dada ao leitor
pela perspectiva feminina. Como por exemplo, a escolha da profissão do homem que tirou
vantagem das dificuldades de Sabrina:
Paloma se aproximou já de olho investigando o avental branco do Landinho
pra ver se estava respingado de sangue. Estava. Aquilo incomodava ela tanto
quanto o açougueiro roubar no peso. E depois que a Sabrina contou o quanto
ele andava atrás dela pra um novo encontro, a aversão da Paloma cresceu
ainda mais (BOJUNGA, 2006, p. 167).
A autora criou significação para a imagem do açougueiro, uma imagem de um homem
com sangue nas roupas, que remete à carnificina e ao abate. O leitor tem essa visão sugerida
pela personagem Paloma, que faz conexão entre essa imagem e a concretização da mesma pelo
ato do açougueiro ao abusar de Sabrina.
Sabrina e Andrea Doria: a difícil arte de ser
Do alto dos seus dez anos de idade, Sabrina talvez não saiba, mas ela já vive em um
mundo marcado pelas diferenças de gênero. E é em Sabrina que percebemos a maior
representação de fragmentação da figura feminina. Sabrina ainda é uma criança, mas sua
condição a leva a assumir uma outra identidade social: ela é a mulher que, usando os saltos da
tia, precisa se prostituir e, consequentemente, carrega esse fardo com ela: “e disse que criança
eu também não era: conhecia homem melhor do que ela e era bom ela ficar entendendo que se
eu tinha família eu tinha mais é que tomar conta da minha família” (BOJUNGA, 2006, p.
218).A obra, ao dar voz e espaço para uma personagem em construção, problematiza o tornar-
se mulher em uma sociedade que deturpa sua identidade. Ainda que já tenha sido revisitada
pela crítica feminista contemporânea, vale retomar Simone de Beauvoir e a sua tese de que:
NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação
de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro (BEAUVOIR,1967,
p. 8).
Entende-se que a questão de identidade feminina tem mais a ver com a identificação da
sociedade, do que a formação de sua própria identidade. Sabrina, apenas uma menina, não viu
outra alternativa: tornou-se mulher, pois, segundo ela, já ''conhecia homem'', e sua tia e mãe
haviam sido prostitutas, a sua identificação era essa: de menina órfã à mulher que precisava
sustentar a avó.Apesar de serem histórias diferentes, podemos relacionar Sabrina e outra
personagem protagonista e criança de Lygia Bojunga. Em A bolsa amarela, Raquel também
vive os desprazeres das diferenças de gênero. Ela quer ser um menino, por perceber que as
meninas não podem fazer nada que querem. Reiterando a concepção de Beauvoir de que a
identidade feminina é construída a partir de modelos. Raquel, a menininha de nove anos, guarda
secretamente a vontade de ser menino: “– Porque eu acho muito melhor ser homem do que ser
mulher. [...] – É sim, vocês podem um monte de coisa que a gente não pode” (BOJUNGA,
1976, p. 16).
São realidades que se comunicam pelo debate acerca do gênero, no entanto, a realidade
da personagem Sabrina é mais perversa, pois se trata de um tema controverso e delicado: a
sexualidade infantil (sob a perspectiva do abuso de Sabrina, e também pela precocidade da
sexualidade de Andrea Doria), principalmente, quando este é discutido em uma obra
considerada para crianças e jovens. Em Sapato de Salto, o leitor encara essa realidade através
de Sabrina. O narrador, que usa de sua voz para assim dar voz à criança, não poupa detalhes ao
descrever uma realidade cruel. Rompendo o silêncio destinado às crianças nas obras literárias:
que deixam de ser personagens manipuladas por adultos, sem personalidade e sem realidade, e
ganham vida na pele de personagens complexas, que também sofrem e procuram sobreviver a
conflitos.
Mesmo dialogando com temas tão pesados, a personagem Sabrina não perde a
delicadeza do olhar infantil, da fantasia e da imaginação. O narrador usa recursos simbólicos
para que o leitor possa sentir a inocência em suas palavras e atos. Em contrapartida com
Sabrina, que tem a sua infância arrancada por um ato de abuso violento e repugnante, a
sexualidade de Andrea Doria, também personagem em construção, é discutida com mais
naturalidade: o garoto, que tem apenas treze anos, encontra-se em um conflito interno: por estar
apaixonado por Joel, rapaz seis anos mais velho, mas que ainda está se descobrindo como ser
sexual: “A delicadeza de Andréa Doria não morava só nos gestos e nos traços fisionômicos
perfeitos: morava também nos sentimentos e nas reações que ele tinha” (BOJUNGA, 2006, p.
76)
Andrea Doria não encontra conflito apenas na confusão da descoberta da sexualidade,
mas também com o pai machista, Rodolfo, que não aceita sua relação com Joel. No entanto, o
garoto parece encontrar refúgio na amizade com Sabrina. Andrea Doria e Sabrina tecem a
relação mais sutil do livro, marcada por um encontro dos dois após Sabrina ser aliciada pelo
açougueiro. Embora os problemas fossem diferentes, ambos sabiam da dor de serem jovens e
com conflitos a serem dissolvidos: Andrea, além da confusa descoberta de sua sexualidade,
também se preocupava com a mãe e a perda da irmã, que nem mesmo chegou a nascer; e
Sabrina, a garota órfã e violentada, que se encontrava prostituindo-se com o açougueiro para
sustentar a avó:
– Você viu a gente?
Ele fez que sim.
Sabrina respirou mais forte.
– Lá? – e fez um gesto de cabeça pro matagal.
– Não, não! Eu só vi vocês chegando e entrando. E depois saindo.
Sabrina ficou olhando pra ele e depois perguntou:
– E você viu que ele quis ir embora sem nem me pagar?
Andre Doria continuou olhando pro rio.
– É ... eu vi ele indo embora e você vindo sentar aqui. E aí, se lá! – meio
que riu – de repente, não sei por que, eu achei que você tava indo pro rio.
– Que nem a minha mãe?
Ele se virou. E ficou tão impressionado com a expressão doída que viu na
cara de Sabrina (ah! A mesma expressão que ele tinha visto na cara da
Paloma batendo com o punho na cama e repetindo sem parar, por quê?
por quê? por quê!), que mal teve coragem pra perguntar:
– Sua mãe? por quê?
– Ela quis acabar com a vida dela. Se jogou no rio. Amarrou uma pedra
no peito. Pra afundar mais depressa (BOJUNGA, 2006, p.167-168).
Ambos ganham a chance de reconstruir a vida juntos, como irmãos, junto a Paloma.
Em “Pra você que me lê’’, a autora bate um papo com o leitor antes de concluir o livro com a
esperança de um novo caminho. Não sabemos o que acontece às personagens, pois não estava
marcado ali o fim de suas vidas, mas sim o começo. Essas personagens quebram barreiras no
contexto da literatura infantojuvenil e da representação da criança e do adolescente em obras
literárias. Afinal, os problemas, os conflitos, as mágoas e o sofrimento não se restringem ao
espaço adulto, são questão humanas. E Lygia Bojunga, com traços de escrita sempre
simbólicos, cumpre um papel essencial: o de desmistificar temas tão silenciados e cortar a linha
divisória entre as crianças e jovens do mundo real e do fictício.
Palavras finais
Após muitos anos de repressão, em que a escrita feminina era esquecida, autoras como
Lygia Bojunga que, continuamente ganham mais espaço, devem ser celebradas. Por meio de
uma leitura agradável, de linguagem delicada, mas, ao mesmo tempo, forte, a autora nos leva
a um acesso sem fronteiras entre realidade e imaginação. A partir da análise da obra Sapato de
salto, conseguimos dialogar com temas obscuros, pesados e, por vezes, perversos, mas que,
embora ruins, não podem ser silenciados. Diante da evidente aproximação com a realidade, as
personagens dessa obra comunicam-se com o leitor disposto e atento à discussão.
Ao pensarmos sobre a transgressão que a fala feminina causa, recuperamos também a
conquista de passar de objeto a sujeito. E isso abre espaço para a mulher não só como escritora,
mas como um ser vivo, atuante na sociedade e com identidade em construção. Formada não
pelo patriarcado, mas pelas próprias mulheres, protagonistas e escritoras de suas histórias
A literatura pode oferecer uma nova visão de mundo aos leitores, pois permite visualizar
o ser humano e a realidade social de maneira mais ampla. Esta obra de Lygia Bojunga propõe
a reflexão sobre aquelas que vivem nas mazelas da sociedade, ou que vivem qualquer tipo de
opressão, desde as crianças às mulheres adultas. Em Sapato de salto, apesar de toda a opressão
e violência representada, Sabrina, personagem principal, surge como a significação de um
mártir: de menina órfã e violentada à representação da possibilidade de novos recomeços. Os
problemas das crianças não se resolvem com mágica, o sofrimento não dá lugar a uma narrativa
encantada. A criança tem problemas reais. A leitura de uma obra de Lygia Bojunga pede que
o leitor repense o que é ser criança. A obra deixa como marca a exposição de uma realidade
cruel, de dores e abusos que não podem ser esquecidos ou apagados com o tempo, mas que
podem simbolizar, por meio de uma obra que dialoga sensivelmente com a realidade, novas
chances àqueles que a lêem.
Referências:
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Nova fronteira, 2001.
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