O serviço público de televisão numa perspectiva de fim de século * (Texto
de 1989)
Francisco Rui Cádima
Importantes ensinamentos têm sido colhidos nos laboratórios que dão
pelo nome de sistema audiovisual italiano e de sistema audiovisual francês. De
facto, o conhecimento da forma como têm evoluído os sistemas italiano e
francês, bem como os dados que nos vão chegando relativos a outros
sistemas, como por exemplo o inglês e, de um modo menos relevante, o
espanhol, conduzem-nos a conclusões de alguma forma inesperadas
relativamente às expectativas que tinham vindo a ser geradas: veja-se, por
exemplo, a crise existente nas diversas paisagens audiovisuais públicas e as
necessárias medidas de emagrecimento do sector que têm vindo a ser
propostas. Veja-se ainda a forte concorrência que se avizinha com os sistemas
de compressão de sinal, que permitirão a entrada na espaço europeu de
centenas de canais, provenientes dos Estados Unidos da América... Vejam-se,
finalmente, as propostas de liberalização dos sectores do audiovisual e das
telecomunicações, algumas delas com origem na própria Comissão Europeia,
que poderão reconfigurar as grandes estratégias previstas no início da década
para a Europa, nomeadamente no que se refere à questão "proteccionista" das
quotas de programas europeus.
Vejamos, para já, como têm evoluído, no essencial, os serviços públicos
de televisão da Europa do Sul, na tentativa de caracterizar, de uma forma mais
aproximada à realidade histórica, um processo de mudança sobre cuja
complexidade é imperioso reflectir.
* Publicado inicialmente na RCL nº 9 (1989), foi posteriormente actualizado como capítulo do livro O Fenómeno Televisivo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995.
1
Em primeiro lugar, o caso francês. Poder-se-ia pensar que a questão
das estratégias público/privado é algo que se tem vindo a verificar apenas na
fase de declínio da televisão enquanto monopólio de Estado, e nomeadamente
em países da Europa do Sul como a Itália e a França. Nada mais falso.
Considerando o caso francês, por exemplo, datam dos anos 20 as primeiras
polémicas em torno da questão dos estatutos dos então chamados postos de
TSF. Os debates eram, por essa altura, bem mais intensos e calorosos... Mas,
indo um pouco mais atrás na história, seria possível ver, quer no serviço postal,
quer nas primeiras gazetas, quer no telégrafo, modelos de organismos com um
estatuto típico de monopólio de Estado.
A primeira lei publicada em França relativa à radiodifusão, com data de 3
de Março de 1917, apoiava-se sobre legislação de 1837 e de 1851 para
justificar a obrigatoriedade dos particulares requererem autorização para
postos radioeléctricos, não estando sequer em dúvida que o monopólio da
transmissão de sinais continuaria sob a alçada do Estado. Mas as autorizações
acabavam por ser dadas e, no princípio dos anos 20, três estações de rádio
privadas difundem já com uma certa regularidade as suas emissões na região
de Paris, muito embora os anos subsequentes trouxessem constantes
dificuldades aos proponentes de novos postos.
Outra questão não menos importante, no caso francês, era o eterno
problema da apropriação que as forças políticas dominantes de então faziam
das rádios nacionais: em 1932, por exemplo, o então presidente do Conselho,
André Tardieu, de centro-direita, era acusado por Léon Blum de manipular a
rádio em seu benefício, em plena campanha eleitoral para as legislativas: «O
Sr. Tardieu, através de um insensato golpe arbitrário que, num outro país que
não a França provocaria um escândalo insustentável, apropriou-se do
monopólio da rádio (...). Não tendo nós um posto de emissão, é-nos interdito de
nos servirmos da telefonia: em França, a rádio pertence ao governo e à
2
reacção»1. Pouco depois, no entanto, era a Frente Popular a receber o mesmo
tipo de críticas, nomeadamente o ministro dos PTT, Robert Jardillier, do
governo socialista de então...
Uma panorâmica mais rápida, no entanto, sobre a questão da
liberalização em França, levar-nos-ia a concluir que algumas datas são de
referência inevitável para nos interrogarmos se de facto se assistiu
posteriormente «à atenuação progressiva da dominação aparente do Estado e
à desagregação por etapas da estrutura unitária do serviço público», como
defendeu Jean Autin2. De qualquer modo, em 1935, as nomeações, por
exemplo, dos comentadores políticos e económicos ainda são feitas pelo
ministro da tutela; e, em 1938, Jardillier impõe o controlo governamental da
informação radiofónica. Durante o período da guerra, obviamente que as
condições de controlo seriam agravadas: em 1941, os postos privados são
autorizados mas submetidos ao controlo dos seus conteúdos; e, em 1944, são
requisitados os locais, instalações e materiais das empresas privadas de
radiodifusão. Com o final da guerra, todas as autorizações anteriores de postos
privados são revogadas.
No que diz respeito à televisão propriamente dita, a guerra tinha
interrompido as primeiras experiências do estúdio da Rua Grenelle, com cerca
de quinze horas de programas por semana para cerca de 100 receptores, boa
parte deles instalados em lugares públicos. No pós-guerra, regressam as
emissões experimentais e, a partir de Outubro de 1947, a programação passa
a ser regular com 12 horas de programas por semana. Em Outubro de 1949, o
JT - Jornal Televisivo passa a diário e a década de 50 começa sem que haja
ainda um emissor regional, e com um parque de receptores de 3794 unidades.
1 Jean-Noel Jeanneney, Échec a Panurge - L'audiovisuel au service de la différence , Paris, Éditions du Seuil, 1986, p. 62.
2 Jean Autin, "Les organismes français de service publique face a l'avenir", Revue de l'UER , vol. XXXV, nº 5, Septembre, p.37.
3
Só em 1953 é afirmada a intenção de se estabelecer um monopólio da
produção e da programação, o que é confirmado no artigo 6 da Lei de 31 de
Dezembro. Dificilmente, no entanto, se pode considerar a genealogia do
audiovisual francês como uma progressiva atenuação do domínio do aparelho
de Estado. No final da década de 50, altura em que se começa a configurar um
sistema já evoluído, De Gaulle sobe ao poder e com ele aquilo a que já se
convencionou chamar o “monopólio do general” (1958-74). Iniciando-se então
um processo de dependência directa do ministro de Informação, a RTF (Radio-
Télévision Française) é dotada, a partir de 1959, de autonomia administrativa e
financeira.
Falso indício de liberalização do sistema é dado em 1964, com a
transformação em ORTF, sendo concedida à televisão o estatuto de organismo
público, ao qual foi conferido um carácter industrial e comercial, o que quereria
dizer que lhe era concedida uma maior autonomia face ao poder político.
Após a celebração de um contrato-programa entre a ORTF e o Estado
francês em 1971, a Lei de 3 de Julho de 1972 vem estabelecer o estatuto da
televisão, confirmando o monopólio mas prevendo que, em casos pontuais,
determinadas autorizações poderiam ser dadas para a difusão de programas
para públicos específicos. É ainda criada a figura do Presidente-Director-Geral,
nomeado pelo governo, cargo que, segundo algumas interpretações,
representaria um novo passo no sentido da autonomia, uma vez que as suas
atribuições revelavam uma capacidade de poder alargada.
A 7 de Agosto de 1974, a ORTF é extinta e transformada em sete
organismos: quatro sociedades de programas (três de TV e uma de Rádio);
dois organismos públicos, um para a difusão (TDF), outro para a conservação
dos arquivos, e formação profissional e a investigação (INA); e, por último, a
SFP, uma sociedade de produção. As redes de televisão criadas (TF1, Antenne
2, e FR3) anunciavam já um processo concorrencial que, como é conhecido, só
viria a ser da esfera privada apenas na década de 80.
4
De 1978 para 1981 opera-se à derradeira mudança: se a Lei de 28 de
Julho de 1981 reafirma o monopólio da radiodifusão e da televisão, a Lei de 9
de Novembro de 1981 derroga o monopólio de Estado da radiodifusão,
aceitando as rádios locais. Finalmente, a Lei de 29 de Julho de 1982 suprime o
monopólio da programação, permite a Televisão por Cabo e cria a Alta
Autoridade do Audiovisual, cuja função é não só nomear os presidentes das
sociedades de programas de serviço público como harmonizar os programas e
equilibrar o pluralismo da informação. A 6 de Dezembro de 1983, o Estado
francês assina um protocolo com a agência Havas para a criação do Canal
Plus, sociedade privada de economia mista. Só em 1986 viriam a ser
aprovadas as primeiras televisões privadas com carácter nacional e, pouco
depois, dar-se-ia a privatização da TF1.
Se o espectro do interesse público pairou desde sempre, pelo menos até
86, como forma de retardar a televisão privada, o certo é que esse interesse
era sobretudo político, relevava de uma visão estreita da opinião pública e de
uma estratégia censória de “imunizar” o público dos irreconciliados e da crítica
política, espécie de inimigos da nação. Os argumentos de Mitterrand em 1948
(«A radiodifusão francesa deve ter diariamente uma política nacional de defesa
dos interesses da França...», ou os de Roger Frey em 1959 («O Estado dispõe
de um meio de comunicação que o liga à opinião pública: seria absurdo dá-lo
àqueles que, pela imprensa ou de outro modo, procuram somente criticar as
suas acções»), ambos ministros da Informação em diferentes momentos,
retratam bem o espírito dos governantes ao longo de mais de três décadas.
Ainda que um historiador como Jean-Noel Jeanneney, PDG de Radio-
France a partir de Setembro de 1982, em pleno mandato socialista, afirme com
toda a transparência que só então se pode falar em independência dos media
relativamente do poder (“Não sou testemunha directa senão desde 1982, mas,
em relação a este período, foram-nos dados os meios para poder afirmar que
era doravante ilegítimo confundir o serviço de Estado, ou melhor o serviço da
5
Nação, com o serviço do governo» - Jeanneney, op. cit.: 75) , o facto é que
nem por isso a partir de então as críticas deixaram de ser mais acesas do que
eram antes...
O mercado, no entanto, encarregava-se de fazer inevitáveis
ajustamentos. A rede privada La Cinq é conduzida à falência e na frequência
disponibilizada vai aparecer um canal cultural franco-alemão, e, mais tarde, já
no final de 1994, a Cinquième, um canal dito "educativo". Se pensarmos que o
modelo audiovisual francês possui ainda a TV5 - o canal da francofonia -
vemos então que havia necessariamente um défice do audiovisual francês nos
domínios da língua, da cultura e da educação.
Enquanto o sistema audiovisual francês se caracterizava por uma
regulamentação eficaz e, salvo raras excepções, sempre cumprida, o sistema
audiovisual italiano, pelo contrário, caracterizava-se pela desregulamentação e
pela ausência de um quadro jurídico preciso. As décadas de 70/80 virão, por
isso, a sofrer efeitos directos de um vazio legal: o sistema audiovisual italiano
transforma-se numa verdadeira anarquia.
À semelhança do caso francês, também em Itália datam do princípio do
século as primeiras leis sobre o serviço público radiofónico. Exactamente a 30
de Junho de 1910 é aprovada no Parlamento italiano a lei das comunicações
“sem-fio”, que tinha sobretudo objectivos militares e de defesa nacional. O
Parlamento só interviria de novo em 1975. Ao longo de todo esse período
imperaram os decretos-leis governamentais.
Assim, logo em 1924 é criada a Unione Radiofonica Italiana, que terá
uma concessão de serviço radiofónico em regime de exclusividade ao longo de
seis anos, mais tarde alargada até 1952, já como Ente Italiano per la Audizione
Radiofoniche (EIAR). Ainda durante o período fascista, o EIAR, que chegou a
ser uma sociedade de economia mista, foi nacionalizado, concretamente em
1944, e passou a designar-se RAI (Radio Audizione Italia).
6
Após o 25 de Abril de 1945, com a democracia-cristã no poder, foram
mantidas as relações estreitas entre o audiovisual e o poder, e, em Janeiro de
1952, o governo concede à RAI (que passa em 1954, a designar-se
“Radiotelevisione Italiana”) a exclusividade dos serviços de radiodifusão e
televisão. Ao longo deste período, respeitaram-se de alguma forma os
princípios expostos na Constituição de 1948, e o serviço público da RAI não iria
ser posto em causa: o chamado “modelo pedagógico” que a democracia-cristã
havia adoptado para a RAI só a partir de finais dos anos 60 passa a ser
contestado, quer em termos formais quer em termos de conteúdo. Ainda assim,
datam de finais dos anos 50 os primeiros pedidos de operadores para
emissões privadas de televisão.
Tudo se complica, no entanto, a partir de 1969, ano do Outono quente
italiano, um pouco à imagem do Maio de 68 francês. A RAI é contestada de
dentro e fora com greves e ocupações das instalações. Por outro lado, estudos
encomendados pela própria direcção da RAI concluem pela urgência de uma
reforma do pesado aparelho. Finalmente, o início da década de 70 vê
aparecerem as primeiras televisões por cabo. O monopólio de Estado
começava a ser posto fortemente em causa. Apesar disso, os sindicatos da
RAI opõem-se frontalmente nesta altura a qualquer possibilidade de
concorrência privada ao serviço público de televisão.
Aparecem, pois, os primeiros pedidos de emissão por cabo. Após
desorientação inicial das instâncias competentes, a Telebiella acabará por ter
autorização para emitir, verificado o vazio jurídico existente no código das
Telecomunicações. A partir de Janeiro de 1973, a Telebiella é finalmente
autorizada a emitir regularmente. As telecomunicações tentarão ainda dar um
passo atrás, mas já seria tarde... A partir de então, as redes locais florescerão
por toda a parte... E, em finais de 1982, o Ministério dos Correios e
Telecomunicações italiano contabiliza um total de 1208 estações privadas de
televisão em toda a Itália! Obviamente que deste total apenas poucas centenas
7
teriam emissões regulares ou mesmo esporádicas, mas não deixa de ser um
número bem elucidativo do regime de “cacofonia”, como se dizia, que então
imperava.
Chega finalmente a reforma da RAI: o serviço público de radiotelevisão
passa da tutela do Governo para o Parlamento, sendo criada uma comissão
parlamentar de “vigilância e orientação” da televisão. É assegurada a
continuidade do monopólio de Estado à escala nacional durante um período de
seis anos. A publicidade é admitida como um recurso complementar
relativamente à taxa, não podendo, contudo, ultrapassar os 5 por cento da
totalidade do tempo de emissão e também 6 minutos por hora. Outro ponto
bem claro era a impossibilidade de emitir uma maior percentagem de
programas importados do que nacionais. Esta reforma não iria introduzir
substanciais alterações na questão de fundo: «A televisão é concebida por
todos os partidos políticos como um instrumento que é preciso dominar para
controlar a opinião: esta visão instrumental da televisão continuará dominante,
mesmo após a reforma de 1975».3
A partir de Julho de 1976, altura em que o Tribunal Constitucional
italiano declara ser ilegal interditar a particulares as emissões de TV a nível
local, o número de estações explode até atingir o seu número máximo em
1982. O final da década de 70 ficará caracterizado pelo aparecimento das
redes com grande capacidade de difusão, chegando-se a 1984 já com um
sistema, não de monopólio, mas de duopólio, entre a RAI e os diferentes
canais de Berlusconi. Dados de Fevereiro de 88, publicados em Prima
Comunicazione, apontavam para uma audiência de cerca de 12 milhões de
telespectadores para os três canais da RAI e de 9,2 milhões para o Canale 5, o
Itália 1 e a Rettequattro. Em termos de publicidade, os três canais de
Berlusconi facturavam no total quase cinco vezes mais do que os três canais
3 Chantal de Gournay, et altri, Télévisions déchainées - La déréglementation en Italie, en Grande-Bretagne et aux États-Units, La Documentation Française, 1985, Paris, p.37.
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da RAI. O mercado assim prosseguiu, ora dando a primazia à RAI, ora aos
canais de Berlusconi, até que o próprio Silvio Berlusconi é levado à presidência
do Conselho de ministros em Itália, com o apoio dos seus canais.
Um outro caso é o espanhol. Em Espanha, só no início dos anos 80 se
começa a colocar a questão da alternativa ao monopólio de Estado e, mais
concretamente, a questão da liberalização da lei de televisão.
Com a UCD no poder, claramente adepta da TV privada, a polémica
gerou-se em torno da forma através da qual deveria ser feita a concessão: no
próprio governo havia quem considerasse que a nova lei deveria ser
promulgada por simples decreto governamental (caso do ministro da
Presidência, Pio Cabanillas) e quem, como Francisco Ordonez, ministro da
Justiça, defendesse que a lei deveria ser discutida no Parlamento.
Quanto à oposição, ela era claramente contra a televisão privada. Felipe
Gonzalez, então dirigente da oposição, manifestava-se contrário à criação de
canais privados de televisão, «porque em países de forte tradição democrática
se reflectia sobre a possibilidade de ingerência estrangeira na soberania
nacional, através dos recursos tecnológicos que exigem as emissoras de
canais televisivos». 4
Ainda com a UCD no poder, é o próprio Tribunal Constitucional a admitir
a televisão privada. Com efeito, em resposta a um recurso extraordinário
interposto pela sociedade Antena 3 S.A. contra o “silêncio administrativo” ao
pedido da sociedade para “gerir e explorar a transmissão de imagens e som
através da TV”, o Tribunal Constitucional espanhol considerou que a «chamada
televisão privada não está necessariamente imposta nem é uma derivação
necessária do artigo 20 da Constituição, mas é óbvio que não está
constitucionalmente impedida. A implantação da televisão privada não é uma
4 “Televisão privada gera debate político”, Diário Popular, Lisboa, 29 de Agosto de 1981.
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exigência jurídico-constitucional, mas uma decisão política que pode adaptar-
se dentro dos limites da Constituição através de uma lei orgânica, na medida
em que respeite o desenvolvimento de alguns direitos constitucionais previstos
no artigo 20 e sempre que, na sua organização, sejam igualmente respeitados
os princípios de liberdade, igualdade e pluralismo como valores fundamentais
do Estado».
Ainda segundo a sentença do TC, «é correcta a consideração pelo
legislador da radiodifusão e da televisão como serviços públicos essenciais.
Isso não pressupõe necessariamente o monopólio da sua gestão por uma
empresa pública, mas estabelecer uma gestão indirecta exige uma decisão do
legislador e um desenvolvimento legislativo que o Tribunal não pode suprir (...).
Não sendo constitucionalmente legítimo o monopólio estatal de televisão, os
particulares têm direito a criar emissoras, nos termos estabelecidos pela
correspondente regulação legal, que terá de ser, forçosamente, uma lei
orgânica».
A UCD promete, entretanto, para o primeiro semestre de 1983, o
aparecimento da televisão privada em Espanha, existindo desde essa altura
diversas empresas que haviam sido criadas para o efeito.
O governo não deixava, no entanto, de criticar a oposição. Com um
sentido algo premonitório, Javier Rupérez, secretário das relações externas e
informação da UCD, dirigia criticas contundentes à oposição, por esta ser
contra a televisão privada: «(...) La izquierda se acerca, con un sentido
puramente instrumental y partidista al tema de la television estatal (...)» 5 .
Aproximadamente um ano após a sentença do Tribunal Constitucional e
após também a vitória eleitoral dos socialistas, o Congresso de Deputados
votava contra uma proposta de lei apresentada pela agora oposição, mais
concretamente pelo grupo parlamentar popular. O deputado socialista que
argumentou no Congresso em nome do seu partido, considerou «não chegado
5 “La Izquierda no quiere una TV privada”, Cambio 16, nº. 540, Madrid, 5 de Abril de 1982, p. 49.
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o momento de regulamentar a televisão privada por razões técnicas e
económicas» e defendeu a possibilidade de garantir o pluralismo apenas com a
televisão pública.
Ironia da história, pouco mais de quatro anos após se mostrar
declaradamente contra a televisão privada, o PSOE aprova, em Dezembro de
1977, a lei da televisão privada, no Congresso de Deputados, apenas com
votos do grupo socialista. Finalmente, a 14 de Abril de 1988, a lei é aprovada
na especialidade. Para que, no entanto, os três canais previstos começassem a
funcionar, seria necessária a aprovação de um Plano Técnico Nacional, cuja
elaboração estava a cargo do Ministério das Comunicações.
Vejamos um pouco mais em pormenor a sequência dos acontecimentos,
dada a proximidade com o caso português. As críticas específicas feitas à lei
não se fizeram esperar. Por exemplo, a Izquierda Unida, através de Ramón
Espasa, acusava o projecto governamental de invadir competências
específicas das comunidades autónomas. Quanto à Democracia Cristã, o
projecto instauraria “um oligopólio televisivo controlado e tutelado”. Com esta
tese coincidiu também o Partido Liberal, que qualificou a lei de «medíocre
artifício para fazer ver como liberalização televisiva o que na realidade não é
mais do que um conjunto de normas restritivas» 6 . Também os grupos
económicos interessados na TV privada se mostraram descontentes com a lei
aprovada, apontando-a como “restritiva e excessivamente regulamentadora”.
Dos dez grupos interessados antecipadamente na TV privada, apenas três
continuariam a mostrar interesse... Um dos desistentes foi a Prisa, empresa
editora do El País. Segundo um seu porta-voz, a lei não dava condições
objectivas para contar com a segurança jurídica necessária que permitisse
iniciar uma actividade deste tipo7 . De facto, em editorial publicado nesse
mesmo dia no El País, intitulado “Television muy poco privada”, a crítica
6 “La Oposición anuncia que recurrirá al Tribunal Constitucional contra la Ley de Televisión Privada”, El Pais, 15 de Abril de 1988.7 Idem.
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contundente era apresentada deste modo: “Según los optimistas, las nuevas
televisiones que se creen al amparo de esta ley no podrían comenzar a emitir
antes de dos años. Así, un documento que ya nace viejo, en desfase respecto
a la realidad social y tecnologica, amenaza con convertirse en cinturón de
cuaresma de esa realidad cuando comience a aplicarse. (...) El marco legal
ahora aprobado para la televisión privada está penetrado de una obsésion
reglamentista, lleno de cautelas ante lo nuevo y plagado de deseos de control.
Los interesses políticos han viciado de origen ese proyecto, destinado a que el
Gobierno no sólo controle la televisón pública, sinó también la privada.
E continuava: «(...) La televisión es considerada como servicio público -
y no como un derecho de los ciudadanos -, de lo que se deriva luego una lógica
manifestamiente intervencionista (...) Los limites a la publicidad o a la
nacionalidad de las producciones que se exigen a las privadas no existen en el
caso de TVE. (...)».
A sociedade proprietária do El País iria, inclusive, mais longe: «El tiempo
perdido y las dificultades señaladas parecen destinados sobre todo a abrir la
puerta a los grandes consorcios extrangeros de la comunicaión, socios de la
Internacional Socialista o de la Conservadora, dispuestos a pactar sin
verguenzas con los gobiernos locales para obtener tajada en el pastel
televisivo, y poseedores de una liquidez inversora que hace casi imposible
cualquier intento de competencia (...)».
Essencialmente, a lei aprovada autoriza o funcionamento de três canais
nacionais geridos em regime de concessão administrativa por outras tantas
sociedades anónimas cujos sócios não poderão concentrar mais de 25 por
cento do capital. O estatuto de “serviço público” é alargado a estas sociedades.
As emissões não poderão ter menos de 4 horas diárias nem menos de 32
semanais. Quinze por cento da programação deverá ser de produção própria
de cada canal, 40 por cento deverá ser proveniente dos países da CEE e 50
por cento em “expressão originária espanhola”. Quarenta por cento dos filmes
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exibidos por mês deverão ser de produção comunitária e pelo menos 50 por
cento deles produzidos em expressão originária espanhola. Em caso algum
poderão emitir-se filmes comerciais antes de passarem dois anos sobre a sua
estreia comercial em Espanha. Quanto à publicidade, não poderá superar os
10 por cento do total de horas de programação anual nem os 10 minutos de
duração em cada hora de emissão.
Mais tarde, já em 1995, e ao fim de quase dois anos de discussão em
torno do projecto de lei de televisão por cabo para Espanha, o Conselho de
Ministros aprovou a nova lei, sob a designação de Lei das Telecomunicações
por Cabo. Esta designação conferia à legislação novas competências,
designadamente no campo dos novos serviços. Com efeito, segundo o ministro
José Borrell, com esta lei a Espanha passava a destacar-se, na Europa, como
o país que mais tinha avançado em termos legislativos no domínio das auto-
estradas da informação, «tomando a iniciativa na liberalização das
infraestruturas do cabo, antecipando-se assim à própria Comissão Europeia».
Um dos aspectos particulares que a legislação integrava era a prioridade dada
aos municípios no desenvolvimento dos serviços uma vez que passavam a ser
as próprias câmaras a definir prioridades e a propor ao governo as zonas a
cablar e o número de licenças.
Outro aspecto de grande relevância neste negócio - que poderá gerar
um volume de negócios, até ao final do século, da ordem dos mil milhões de
contos - é o conjunto de serviços que estão para além da programação de
televisão. Nomeadamente os serviços de voz (emissoras de rádio, por
exemplo), imagens interactivas - desde os telejogos ao video on demand -,
dados (conexão com redes de computadores), e inclusivamente serviços
básicos telefónicos (embora estes só a partir de 1998).
Obrigatória era a transmissão pelos operadores do cabo da
programação da televisão pública espanhola - TVE1 e TVE2 -, e ainda dos três
canais de televisão privada - Antena 3 TV, Tele 5 e o próprio Canal +. Nas
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regiões, é obrigatório também incluir o canal ou canais de televisão local que
existam nessa mesma zona.
Vejamos agora as diferentes caracterizações do conceito de serviço
público de televisão. O aparecimento da noção de serviço público de televisão
remonta praticamente ao início da própria história da televisão na Europa,
concretamente ao caso inglês, pois desde o lançamento da BBC (TV), em
1936, passando pela criação da ITV em 1955, até ao momento presente -
altura em que se anunciam transformações profundas no sistema audiovisual
deste país - o conceito de “serviço público de televisão” sempre se fundou na
constatação de que as frequências são um recurso nacional, que o seu número
é limitado e que, portanto, devem ser objecto de disposições que garantam que
esse recurso seja utilizado no interesse de todos.
No ano em que Portugal reconquistou as liberdades democráticas, a
Comissão para a Cultura e a Educação do Conselho da Europa apresentava
um projecto de recomendação relativo à gestão e aos objectivos da televisão
pública nas sociedades democráticas.
Após uma análise circunstanciada de todo o passado recente europeu
nas telecomunicações em geral e, simultaneamente, favorecendo-se de uma
série de conclusões contidas em relatórios de várias reuniões internacionais
prévias, e noutros trabalhos e resoluções, a Comissão optou por recomendar
ao seu Comité de Ministros a análise de um “Projecto das Condições Mínimas
de um Serviço Nacional de Radiotelevisão”8, para além de várias outras
propostas a mais longo prazo, nomeadamente no que se referia a uma política
europeia global para o sector.
8 Rôle et Gestion des Télécommunications dns une Société Démocratique, Conseil de l’Europe, Assemblée Parlementaire, Strasbourg, 1975.
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A primeira parte desse projecto apresentava um conjunto de quatro
pontos prioritários, a saber:
1) Escolha múltipla de programas tendo claramente em conta os
interesses das regiões e das minorias, mas que não sejam exclusivamente
difundidos sobre um só canal;
2) A atribuição de um lugar de relevo às questões da educação e da
cultura;
3) A luta, através de programas apropriados e de uma forma equilibrada,
contra a poluição no domínio da cultura, das actividades comerciais e da
informação;
4) Estreita coordenação e larga cooperação com outras produções a
nível europeu.
Outros pontos chamavam ainda a atenção para as questões relativas ao
direito de autor, ao direito de resposta, à responsabilização pública de gestores
e produtores, liberdade de expressão, censura, transmissão dos debates
parlamentares, etc. Era ainda convicção profunda dos autores da proposta que
a televisão podia efectivamente constituir um importante meio de promoção da
unidade europeia, apesar de haver consciência de que, de uma forma geral, o
público europeu “era” apenas informado sobre uma gama de temas muito
limitada, de igual forma era notado o subaproveitamento do potencial educativo
e cultural da radiotelevisão.
O relatório do Conselho da Europa, bem como uma série de documentos
publicados no âmbito da Unesco e outros trabalhos de investigação nesta área,
apontavam então claramente para a necessidade de alargar o debate sobre as
numerosas questões levantadas pelo audiovisual e as telecomunicações: a
elaboração de uma política global europeia, uma maior interactividade entre
emissor e receptor, a participação activa de associações de telespectadores,
de conselhos de programas e de informação na própria gestão dos serviços
públicos de televisão eram então algumas das propostas mais em evidência
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nestes organismos europeus quanto ao papel e à gestão das telecomunicações
nas sociedades democráticas.
A um outro nível, o dos especialistas nestes domínios, e ainda na
primeira metade dos anos 70, é importante notar como Robert Wangermée
(Wangermée, 1973:19) defendia o estatuto do serviço público, numa altura em
que as pressões pela televisão privada se começavam a fazer sentir cada vez
mais: “(...) Se, apesar de todas as críticas, o princípio do monopólio foi mantido
na Europa, é porque os responsáveis políticos recearam que abdicar dele em
benefício de organismos privados, todo poderosos, gigantescos, mas nas mãos
de interesses comerciais por detrás dos quais se poderiam esconder lobbies
inquietantes e vontades políticas obscuras, devido aos constrangimentos
técnicos - a limitação de frequências - a ruptura do monopólio não poderia criar
senão outras televisões que teriam os mesmos defeitos que os organismos de
serviço público, sem darem as mesmas garantias de serviço de interesse
geral».
Curiosamente, esta posição, anterior à “febre” de liberalização na
Europa, vem a ser retomada após a fragmentação do sistema audiovisual
europeu, já em plena década de 80. Veja-se, por exemplo, como Sergio Borelli
via a questão em meados da década: «Será possível restabelecer o conceito
de serviço público no quadro das transformações tecnológicas que
atravessamos?».
«Se a resposta é não, poderíamos pensar que o serviço público - quer
dizer, a preservação dos interesses do público - é uma necessidade ainda
maior agora que em nenhum outro período, desde o princípio da televisão. É
um facto que as comunicações de massa electrónicas - televisão mais
telecomunicações - nunca tiveram, antes, um papel tão significativo nas nossas
vidas. Nunca sentimos, no passado, uma tal necessidade de guardar os nossos
canais de comunicação livres de interferências políticas ou económicas»
(Borelli, 1985).
16
O princípio da década de 80, no entanto, havia ficado marcado pelo
conhecido Relatório MacBride, proposta surgida no âmbito da Unesco e que se
apresentava como um documento para “uma nova ordem mundial mais justa e
eficaz da informação e da comunicação”. E, no que ao serviço público de
televisão dizia respeito, este “manual” - assim lhe chamou o seu autor -
propunha, entre outras coisas, uma espécie de “modelo pedagógico”, onde um
maior equilíbrio entre informação, cultura e divertimento fosse observado, onde,
no que diz respeito concretamente à informação, fosse aceite o princípio da
multiplicidade das fontes, a independência jornalística face aos grupos de
pressão, o acesso à informação de uma forma interactiva, dando um outro
tratamento às opiniões minoritárias e “dissidentes” e ao colectivo de uma
forma geral, e nomeadamente, no que diz respeito ao chamado terceiro mundo,
desenvolver um regime de solidariedade das televisões dos países
desenvolvidos para com as zonas mais carenciadas, dando prioridade a esse
tipo de informação.
Com propostas nalguns casos idênticas, surge em Junho de 1984,
precisamente no mês que a Comunidade Económica Europeia publica o seu
“Livro Verde” para o sector, um relatório da União Europeia de Radiodifusão,
aprovado na Assembleia Geral de Estocolmo, onde se reflectia quanto ao que
então se chamava “a essência do serviço público de televisão”, propondo-se,
no fundamental que no novo contexto de concorrência emergente cabia aos
radiodifusores públicos não abdicar de um “certo projecto cultural” e da
preservação de uma identidade própria face às tentações de carácter
comercial. Nesse sentido era importante «assegurar nas comunidades
nacionais, para o público em geral, uma programação diversificada,
equilibrada, destinada a todas as categorias da população, incluindo as
minorias»; ou «procurar que as diferentes correntes de opinião e pensamento
estejam representadas nos seus programas»; ou ainda «apoiar a produção
original de programas, servir o público pelos meios técnicos mais apropriados,
17
reinvestir o essencial dos resultados de exploração no desenvolvimento da
radiodifusão», etc.
A simultaneidade dos dois documentos - o da UER e o da CEE -
prenunciaria o que viria a tornar-se mais tarde uma autêntica guerrilha
institucional entre os dois organismos, a propósito exactamente da estratégia
da radiodifusão pública no novo contexto concorrencial, e ainda em torno das
respectivas competências no sector. Albert Scharf, presidente da UER,
sublinharia a sua demarcação face ao “Livro Verde” pela subestima do papel
dos radiodifusores nacionais e respectiva autonomia face a qualquer modelo
centralizador, pela política de livre acesso a todos os programas (o que traria
consequências negativas para os mercados dos pequenos países), e não uma
estratégia “industrial” que a comunidade acabaria por preferir relativamente à
“cultura”, esta defendida pela UER (Sharf, 1986:13-14).
Mais tarde, no entanto, a UER criticará a Comunidade no âmbito da
competência específica a que se propõe, porque «o projecto de directiva visa
estabelecer regras comuns aplicáveis, em cada Estado-membro, ao conteúdo
dos próprios programas» - o que seria entendido pela UER como uma
“ingerência” na dimensão cultural da radiodifusão, domínio que, segundo a
UER, não era da competência da CEE, mas exclusiva dos Estados-membros.9
Mais perto de nós, no tempo e no espaço, no 10º Encontro Internacional de
Televisões de Serviço Público (INPUT/87), que decorreu na vizinha Espanha,
em Granada, teve lugar um debate em torno das televisões públicas e
privadas. Aí, a questão era colocada como se de um processo de “resistência”
se tratasse - do público face ao privado. De facto, se Enrique Nicanor (TVE), o
organizador desse INPUT, afirmava que se aguardava com muito interesse a
participação de televisões privadas com uma produção de qualidade, como era
9 “Observations de L’Union Européenne de Radiodiffusion relatives à la proposition de directive de la CEE sur la ‘Télévision sans Frontières’”, Revue de UER, vol. XXXVIII, nº2, Mars 1987, pp. 32-33.
18
o caso da Globo, já Sergio Borelli, na sua introdução ao dossier distribuído aos
participantes, radicalizava desta forma o debate: «Podemos contar com os
dedos de uma mão os programas europeus que passam nos canais dos
Estados Unidos; mas, para contar os enlatados americanos nos nossos écrãs,
teríamos que ser miriápodes... A televisão industrializou-se e comercializou-se
muito mais do que inclusive as previsões mais selvagens da Madison Avenue
podiam imaginar. (...) Há algum tempo atrás, em Londres, Eckart Stein
propunha-nos “voltar para as montanhas”; suponho que, para nos
convertermos nos “partisans” da nossa herança cultural, porque as planícies -
segundo Eckart - tinham sido invadidas pelos magnatas da comunicação: os
Turners, Murdochs, Marinhos, Maxwelles, Berlusconis...».
Algumas das questões essenciais seriam mais claramente expostas
aquando do debate em torno do tema “Televisão Pública, Quem a Paga?”. A
discussão centrar-se-ia desde o início nas dificuldades da televisão pública
para encontrar um financiamento isento das contrapartidas políticas,
económicas e comerciais. Provavelmente, o “modelo ideal” seria avançado por
Michel Gelinas, da Société Radio-Canada: explicou que no seu país existe um
apoio estatal da ordem dos 80 por cento do orçamento anual, sendo os outros
20 por cento cobertos pela publicidade. «Se a televisão comercial é uma
tradição no Canadá, a televisão pública é um direito», acrescentava. Idêntica
foi a intervenção do representante da televisão pública norte-americana, James
Day (Publivision Inc.), que ainda se referiria aos “mecenas” que patrocinam
determinadas produções de qualidade, bem como ao apoio federal que as
cerca de 150 emissoras públicas têm. Mais grave era a situação em Espanha:
Sergio Schaff, director de programas do Centro de Televisão Espanhola da
Catalunha, afirmava ser imprescindível que o Estado voltasse a financiar a
televisão pública, uma vez que nas circunstâncias de então (a situação, se se
alterou, foi para pior...), sendo a TVE quase totalmente subvencionada pela
publicidade, verifica-se a obsessão pelos índices de audiência, tendo
19
desaparecido os programas “minoritários” em favor dos de “audiências
massivas”. Também Eckart Stein, da ZDF, alertava para o facto de se correr o
risco de abandono do princípio de serviço público, bem como da substituição
da noção de cidadão pela de consumidor.
A ideia final, em termos de consenso alargado, resumir-se-ia na
necessidade por todos sentida de se pugnar por um equilíbrio nos fluxos de
programas, por um sistema misto de suporte financeiro da televisão pública
com subvenção estatal e receitas de publicidade, e face à ameaça de
desagregação das televisões públicas, nomeadamente na Europa, pela criação
de um movimento de defesa da televisão pública como um direito do cidadão.
Mais recentemente, no relatório Europe 2000: What Kind of Television 10
novas contribuições sobre este debate foram avançadas pela European
Television Task Force, presidida por Giscard d’Estaing. Fazendo-se eco das
decisões tomadas pela conferência dos ministros europeus da Comunicação,
realizada em Viena, em Dezembro de 1986, seria também aí reconhecido, por
assim dizer, um novo conceito de “serviço público”, em proposta extensiva
agora aos operadores privados, o que na prática, aliás, já se verificava desde
1955 nos direitos e responsabilidades atribuídos à ITV no Reino Unido, mais
recentemente no caso da Alemanha Federal e também, por exemplo, na actual
legislação espanhola.
Caberá assim nesta proposta, indistintamente, a operadores públicos e
privados, respeitar as atribuições tradicionais do “serviço público” de televisão -
e não só as tradicionais como também novas atribuições essencialmente no
domínio da produção original de qualidade, contribuindo para a criação de uma
produção europeia forte e respeitadora da identidade na diversidade, quer
salvaguardando fenómenos de concentração excessiva, quer protegendo a
capacidade de produção dos países com uma indústria audiovisual pouco
10 Europe 2000: What Kind of Television, Report of the European Television Task Force, The European
Institute for the Media, Manchester, 1988.
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desenvolvida; no domínio também da publicidade, onde é imperioso distinguir
claramente a publicidade da programação, dotando-a de um quadro jurídico
adaptado ao desenvolvimento do audiovisual europeu e não propriamente
adaptado aos interesses publicitários; no domínio do apoio à industria
cinematográfica e ainda na pesquisa de métodos comuns de estudos de
audiência a nível europeu. Hoje, à distância, podemos ver que se ficou apenas
pelas boas intenções.
Definindo, finalmente, as funções do serviço público de televisão com
base no relatório apresentado pela delegação sueca à Conferência ministerial
europeia de Dezembro de 1986 sobre a política das comunicações de massa
na Europa, diríamos que no essencial se trata de enunciar um conjunto de
obrigações a respeitar em termos de um quase “contrato social”, cabendo ao
Estado garantir a independência deste serviço por forma a que «sejam
reduzidos ao mínimo os diferentes riscos de influências não desejáveis e não
toleráveis. 11
Assim, segundo o documento, as principais regras contidas num tal
contrato social são as seguintes: fornecer um serviço acessível a todos em
termos de cobertura territorial nacional; apresentar a informação de uma
maneira objectiva e independente face ao Estado e a outros centros de poder e
grupos de interesses - este um dos princípios fundamentais do serviço público
de televisão; garantir a liberdade de expressão reflectindo pontos de vista e
ideias variadas, bem como um leque amplo de assuntos, diversidade de
programas e, inclusive, assumir a responsabilidade de satisfazer necessidades
não expressas da população; promover a cultura nacional respeitando as
quotas fixadas, proteger a língua; difundir programas dirigidos aos diversos
grupos minoritários; limitar a apresentação de cenas cujo conteúdo seja de
carácter violento, inclua consumo de drogas; proteger o património cultural
11 L’Avenir de la Télévision en Europe - Radiodiffusion publique et privée en Europe, Conseil de l’Europe, Strasbourg, 1986.
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nacional e, para além do mais, a função do serviço público é, segundo o
relatório a que nos estamos a referir, apresentar uma gama completa de
programas de divertimento, filmes, peças de teatro, que formarão uma
alternativa importante face aos serviços transmitidos por satélite, tendo sempre
presente que um serviço público de radiodifusão não é um serviço como os
outros, isto é, não deve ser considerado como um serviço apenas económico,
ele é sobretudo um serviço que reúne interesses culturais, políticos e sociais
mais vastos no interesse do público em geral.
O que acabamos de enunciar poderia constituir um programa para o final
de século. Importa, no entanto, muito embora possamos subscrever parte ou
mesmo a totalidade dos argumentos e dos principais parâmetros aduzidos,
fazer uma outra reflexão que nos permita distanciarmo-nos um pouco do tipo
habitual de análise que se faz sobre a questão do serviço público de televisão.
Desregulamentar, isto é, criar condições legais ao aparecimento de
operadores privados no audiovisual, sem criar condições culturais, novas
formas de produção, novos formatos no âmbito, por exemplo, da educação,
sem reflectir sobre as linguagens, os modelos e as práticas discursivas, é, no
fundo, criar um sistema aparentemente “neutral”, mas em que se persegue
ainda um sistema esgotado de auto-referência do Estado, não permitindo deste
modo uma verdadeira abertura do sistema audiovisual. Corre-se assim o perigo
de conduzir o sistema televisivo a uma fragmentação verdadeiramente
enlouquecida, onde as regras de funcionamento, respeitando um código de
desregulamentação legal, se apresentarão, em termos dos seus conteúdos,
verdadeiramente desreguladas, isto é, na máxima entropia do sistema, em
pleno desfuncionamento.
Mas, apesar de tudo, é ainda possível acreditar na participação dos
media na emergência das sociedades solidárias que todos desejamos, isto é,
de serem agenciadores dos signos da história, das marcas da mudança, enfim,
da utopia. É um facto que não o têm conseguido de uma forma cabal.
22
Habermas dizia haver ainda uma possibilidade de um consenso racional e
intersubjectivo na “comunidade da comunicação”, quando propunha que a
mudança da ordem social deveria implicar não apenas a tecnologia mas mudar
sobretudo os processos discursivos.
Uma obra publicada em França, propunha uma renúncia ao tradicional
modelo televisivo e à sua “estrutura arcaica”, no sentido da partilha desse
“recurso raro” que é o espaço hertziano: a nova paisagem audiovisual deveria
ser, segundo os autores, integrada por um canal público concorrencial, em
termos de horário nobre, e educativo e cultural no resto do tempo; dois canais
privados ocupados pelas grandes redes no horário nobre e por redes locais e
regionais no resto do tempo; o resto dos espaços livres seria atribuído aos
“vídeo-serviços” mais diversos, incluindo o cabo, o teletexto, etc. (Coste-
Cerdan e Le Diberder, 1988).
As propostas de maior partilha, de fragmentação, de descentralização,
de novas estratégias discursivas, de reinvenção de um modelo de serviço
público, não podem assim ser colocadas fora do âmbito de reflexão sobre o
poder regulamentador estatal no campo dos media e da sua estratégia de
autolegitimação, uma vez que, abandonando o interdito tecnológico e infra-
estrutural, isto é, concedendo novas frequências, liberalizando, prescindindo
dos seus monopólios, tenderá a reforçar inevitavelmente o campo de
representação onde se joga a sua perpetuação, ou melhor, onde se pode
assegurar que os modelos estabelecidos não serão objecto de fracturas, numa
espécie de visão passadista das funções cometidas ao Estado na mudança de
século. Aqui poderá residir, por exemplo, a explicação para o "chumbo" da
candidatura da TV1, o projecto liderado por Proença de Carvalho.
Nesse sentido, poder-se-ia pensar a desregulamentação como uma
espécie de pseudo-liberalização e, necessariamente, a reactualização da
noção de serviço público, mesmo quando extensiva aos operadores privados,
como um reposicionamento e simultaneamente um eufemismo da sua
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estratégia de consolidação enquanto referente central das práticas sociais,
políticas e culturais (vejam-se as críticas feitas na altura à lei de televisão
privada em Espanha, por exemplo). A questão da desregulamentação torna-se
assim um novo discurso de legitimação, com todas as consequências que daí
resultam em termos de uma utilização do sistema televisivo (Kristen, 1985).
Neste caso, em nenhuma circunstância é crível que, nomeadamente as
propostas da UER, da UNESCO e do Conselho da Europa quanto às
orientações que devem presidir à gestão de um serviço público de televisão,
venham a ser seguidas no essencial. E os novos serviços públicos de televisão
transformar-se-ão inevitavelmente em poderosos complexos concorrenciais
disputando ferozmente o mercado publicitário e optando por conteúdos e por
uma estratégia de programação de tipo sensacionalista subserviente à
“ditadura das audiências”.
Mas se, por um lado, o Estado não vai alienar uma prática e a sua
função de vínculo social, e de meio de instrumentalização e de poder, essencial
à sua manutenção, essencial à continuidade dos processos de regulação que
instituiu como norma, procurando por isso preservar o modelo de serviço
público de televisão, por outro lado, ele cede neste mesmo campo quando
responde com iguais argumentos (leia-se: programas, conteúdos, modelos) à
estratégia concorrencial dos grupos económicos, a quem acaba por delegar a
tarefa de legitimação “civil” da ordem do mundo que quer neutralmente
perpetuar - e aí não cumprirá a sua missão tradicional de Estado, isto é, não só
sucumbe por não apresentar um modelo alternativo, como se demite de regular
o que naturalmente tem tendência a transformar-se na antítese de um “serviço
público”.
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Bibliografia
AUTIN, Jean (1984) "Les organismes français de service publique face a l'avenir", Revue de l'UER , vol. XXXV, nº 5, Septembre.
BORELLI, Sergio (1986) “Vers où Allons-nous?”, Lettre d’Information, nº 30, Circom, RTBF, Liége, Février.
COSTE-CERDAN, Nathalie, e LE DIBERDER, Alain (1988) Briser les Chaînes, Éditions La Découverte, Paris.
DE GOURNAY, Chantal, et altri (1985) Télévisions déchainées - La déréglementation en Italie, en Grande-Bretagne et aux États-Units, La Documentation Française, Paris.
JEANNENEY, Jean-Nöel (1986) Échec a Panurge - L'audiovisuel au service de la différence, Paris, Éditions du Seuil.
KRISTEN, Christian (1985) “La déréglementation: vers une nouvelle tolérance répressive”, Communication/Information, vol. VII, n.2.
SHARF, Albert (1986) “Le radiodiffuseur national dans une communauté: son rôle et sa contribution”, Revue de l’UER, vol. XXXVII, n º 6, Novembre.
WENGERMÉE, Robert (1973) L'après-télévision - une anti-mythologie de l'audiovisuel, Hachette, Paris.
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