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O real revelado: uma crtica a dEspagnat a partir de Werner Heisenberg
Uma antiga metfora, cujas origens no se pode precisar com rigor, diz que
sobre a natureza repousam vus1. Se a natureza ama se esconder por sob vus, ento a
metfora expressa igualmente que os seus investigadores, com um misto de pudor e
reverncia, tm por tarefa erguer ao mximo possvel essa cobertura. Contudo, aqueles
que usaram tal metfora jamais deixaram de indicar as razes pelas quais a natureza se
furtava aos nossos olhos, assim como buscaram expor em que consistia o tecido que
dela nos separa. Em sua obra O real velado2, Bernard dEspagnat considera a
impossibilidade de que a cincia apresente a realidade em si, tal concluso sendo a mais
acertada e verossmil diante das descobertas advindas com a fsica moderna,
particularmente conforme a interpretao clssica da mecnica quntica. Uma de suas
afirmaes mais impactantes concerne necessidade de que uma realidade em si seja
postulada, a fim de se explicar a correo e funcionamento das teorias cientficas. No
entanto, o acesso a tal mbito julgado como infinitamente problemtico, ao mesmo
tempo em que torna evidente a impossibilidade de que a cincia exponha a ontologia da
natureza. Nosso trabalho no consistir em apresentar toda a srie de argumentos do
autor que justificam as suas teses, mas sim as linhas gerais que fundamentam suas
principais concluses. Evidentemente, seus argumentos sero acompanhados por nossas
crticas, as quais tm como alvo principal o entendimento do autor sobre o que
ontologia. Igualmente cabe assinalar que muitas das objees aqui levantadas so
inspiradas em Werner Heisenberg, particularmente em sua obra intitulada Manuscrito
de 1942, tambm conhecida como Ordenao da Realidade3.
1 HADOT, Pierre. O Vu de sis: ensaio sobre a histria de idia de natureza. Traduo de Mariana Srvulo. So Paulo: Edies Loyola, 2006.
2 DESPAGNAT, Bernard. Le rel voil: Analyse des concepts quantiques. Paris: Fayard, 1994.
3 A primeira publicao do Manuscrito ocorre em 1984, sob os cuidados de W. Blum, H.P. Dr e H. Rechenberg, no primeiro volume da srie C de suas obras completas. Entre 1985 e 1989, esses mesmo editores publicaram todas as obras de Heisenberg, em nove volumes: Werner Heisenberg: Gesammelte Werke / Collected Works. Munich: Piper. Os nove volumes esto divididos em sries A, B e C. A
2
Podemos dizer que os aspectos gerais das transformaes conceituais advindas
com a mecnica quntica, em relao ao modo de compreenso da natureza prprio
fsica clssica, j possuem uma ampla difuso e notoriedade. A mecnica quntica
reconhece que os resultados obtidos durante os processos de determinao das variveis
dinmicas so frutos da relao entre o sistema fsico representado pela aparelhagem e o
sistema que objeto de mensurao. Nesta medida, no se poderia afirmar que o valor
encontrado um atributo previamente pertencente ao sistema, fator esse que retira dos
conceitos de posio, velocidade e momentum o seu carter clssico de propriedade
pertencente ao objeto em si. Por outro lado, a dualidade entre onda e partcula, a qual se
pode afigurar pelo experimento das fendas de Young, presumidamente destri a
suposio de que a realidade constituda por partculas indivisveis. Tal afirmao
apoiada pela mecnica quntica de campos, ao observar que o processo de criao e
aniquilao das partculas no passa de uma modificao do vetor de estado do espao
de Fock. Somente esses fatores j indicariam o carter estocstico dos processos
subatmicos, sendo assim impossvel o emprego da causalidade determinstica, por
meio da qual possvel precisar o valor de todas as variveis no curso de um sistema
fsico. Por fim, deve-se acrescentar a todas essas novidades o carter no-local dos
fenmenos qunticos, visto que a determinao do spin de uma partcula A, a qual pode
estar a incontveis quilmetros de distncia do seu par B, acaba por determinar tambm
o spin desta ltima. Tal no significa, porm, que haja transmisso de informaes em
velocidade superior a da luz, fato este que iria de encontro teoria da relatividade
restrita.
Diante desse conjunto de novidades, coadunado com a antiga pretenso da fsica
clssica, segundo a qual seria ao menos possvel uma descrio completa de natureza,
dEspagnat lana as seguintes questes: 1) possvel um conhecimento da realidade em
si mesma, tal como ela verdadeiramente, e independentemente dos processos humanos
de mensurao, os quais poderiam ser julgados como um aspecto subjetivo? 2)
possvel que a mecnica quntica erga pretenses ontolgicas? 3) necessrio ainda
utilizar e justificar a idia de realidade? Por fim, a pergunta capaz de resumir todas as
primeira srie rene os trabalhos cientficos originais; a srie B abriga resumos, conferncias e obras cientficas; por fim, esto contidos na srie C os escritos filosficos e gerais.
3
demais poderia ser formulada do seguinte modo: qual a necessidade e a prova de uma
realidade externa a ns?
O livro de dEspagnat tem como objetivo claro discutir alguns problemas
filosficos a partir das descobertas da fsica moderna. Concomitantemente, o que est
em jogo marcar a relao prpria que a cincia mantm com a natureza, exatamente a
partir de problemas concernentes relao entre o intelecto e a realidade. Para tanto, o
autor julga necessrio rever as posies clssicas assumidas por filsofos como
Berkeley, Hume, Kant, Poincar e outros. Uma de suas justificativas mais incisivas para
estabelecer a relao entre cincia e filosofia, particularmente com temas historicamente
pertencentes metafsica, talvez tenha a sua melhor expresso nas declaraes que se
seguem:
a prpria cincia, ou melhor dizendo, certos resultados da cincia, que agora
batem porta da metafsica: no para tomar emprestado dela tais e tais elementos que
serviriam ao progresso da pesquisa cientfica propriamente dita, mas, ao contrrio, para
trazer a ela certas informaes novas, das quais a metafsica poderia fazer uso.4
Exatamente aqui comea o fio das nossas crticas em relao s afirmaes do
autor: um percurso que no deixar de explicitar os argumentos contra os quais se ope.
Tal fio se inicia pelo fato de que a investigao mais aprofundada da metafsica clssica
talvez traga informaes mais precisas para todos aqueles que tentam traar relaes
entre a filosofia e a cincia. Em primeiro lugar, a pergunta pela realidade externa da
natureza s pode ser formulada a partir de uma suposio claramente ontolgica, a qual
geralmente se mantm pouco explicitada. Antes que adentremos nesse tema, tambm se
faz necessrio apontar para o fato de que o conceito de realidade classicamente no
significa a simples afirmao de que algo est simplesmente dado. Se em seu sentido
amplo a ontologia tem como tema o real, no interior do qual se investiga a natureza do
ente em geral, ela deve igualmente tratar dos seguintes pontos: 1) o que confere o
carter de subsistncia do ente; 2) qual princpio confere a unidade do ente, no sentido
4 DESPAGNAT, Bernard. Le rel voil: Analyse des concepts quantiques. Paris: Fayard, 1994. p.436.
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daquilo que esclarece a natureza da sua identidade e individuao; 3) quais so as
caractersticas que pertencem ao ente em geral; 4) quais so as relaes fundamentais
que os entes estabelecem entre si, e quais sos os fundamentos delas. Cabe ainda
ressaltar que esse sentido amplo de ontologia, ao qual se dava o nome de metafsica
geral, ainda recebia uma circunscrio, esta denominada como metafsica estrita, por
sua vez dividida em psicologia, cosmologia e teologia natural.
No por simples exposio erudita que se faz meno a esses campos
pertencentes metafsica clssica, mas sim porque dEspagnat parece coloc-los em
jogo, mas sem o devido cuidado de uma anlise mais apurada. Comecemos ento por
observar que o seu conceito de ontolgico bastante estreito, visto que este campo por
ele reduzido ao que foi produzido pela fsica clssica, a partir de alguns dos seus
pressupostos filosficos. O conceito de um espao por si subsistente de mtrica
euclidiana, um tempo linear uniforme de transcurso pontual, uma causalidade
convertida em causa eficiente de carter determinstico e, por fim, a suposio ainda
que controversa por um longo tempo da constituio corpuscular da matria: tudo
isso apenas comporta uma tentativa especfica de soluo para os problemas
ontolgicos. Cabe lembrar, por exemplo, que Newton, tanto no esclio geral dos
Principia5, quanto no texto O peso e o equilbrio dos fludos6, tenta oferecer
justificativas que traam uma via de mo dupla entre ontologia e epistemologia. Se
notarmos com maior ateno, ento verificaremos que seu apelo a Deus em suas
explicaes no tem o carter de um argumento como prova emprica, mas sim serve
como base para esboar uma soluo para um problema clssico: como o espao e o
tempo, os quais muito duvidosamente apresentam caractersticas de substncia ou de
corporeidade, podem ainda assim ter alguma subsistncia. Ao longo dos sculos, tais
solues ontolgicas foram amplamente discutidas no interior da metafsica, bastando
5 NEWTON, Isaac. Princpios Matemticos da Filosofia Natural, in Coleo Os Pensadores. Traduo de Carlos Lopes de Mattos, Pablo Rubn Mariconda e Luiz Pessoa. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. 6 NEWTON, Isaac. O peso e o equilbrio dos fludos, in Coleo Os Pensadores. Traduo de Carlos Lopes de Mattos, Pablo Rubn Mariconda e Luiz Pessoa. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.
5
que ns nos lembremos dos debates entre Clarke e Leibniz7 sobre a natureza do espao,
do tempo e do ponto material.
Todavia, esse recurso histria apenas serve para mostrar que as crticas tecidas
por dEspagnat contra a teoria das variveis ocultas no bastam para que se vislumbre o
fim da ontologia. Alega o nosso autor que tais teorias no so capazes de produzir
provas que acrescentem dados novos mecnica quntica clssica, ou que refutem as
suas previses. Tambm elas seriam incapazes de explicar fenmenos relacionados a
no-localidade, sem introduzir elementos que destrussem o princpio da teoria da
relatividade sobre a impossibilidade de transmisso de informaes acima da velocidade
da luz. Assim, parece que a fsica fica incapacitada de atribuir a maior parte do que era
julgado como qualidade primria s coisas mesmas. Tal constatao serve como base
para que dEspagnat traga tona o problema da necessidade de um conceito de
realidade, assim como a sua justificativa. Tendo a realidade a condio de postulado
para esse autor, suas razes podem ser apresentadas sob quatro aspectos gerais: 1) o real
explica a razo pela qual um conceito pode ser aplicado natureza, e outro no funciona
para a sua investigao; 2) necessrio que a existncia preceda o ato de conhecimento,
tanto por parte do objeto cognoscvel quanto por parte do sujeito cognoscente; 3) vrios
conceitos so refutados pela experincia; 4) partindo da idia de que o nosso universo
finito, ou seja, teve uma origem, constata-se no somente a histria das refutaes que a
natureza realizou em relao aos nossos conceitos, mas tambm uma precedncia da
existncia em relao cognio.
O que se deseja com tal postulao da realidade, calcada nos argumentos acima
mencionados, nada mais do que uma refutao s teorias idealistas e operacionalistas.
De forma resumida, pode-se afirmar que as objees assinaladas apenas afirmam a
existncia de algo simplesmente dado, sem esclarecer o que propriamente se deve
entender por existncia, assim como apenas qualifica a realidade como resistncia. Ora,
no possvel sua qualificao em conformidade com os conceitos clssicos, julgados
7 LEIBNIZ, G.W. Correspondncia com Clarke. In: Coleo Os Pensadores. Vol. XIX. Traduo de Carlos Lopes de Mattos. So Paulo: Editora Abril, 1974.
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como ontolgicos por definio; ainda menos cabe estabelecer os operadores da
mecnica quntica como capazes de expressar atributos, exatamente por conta dos
processos de mensurao; tampouco o espao em suas mltiplas mtricas e o
tempo qualquer que seja o seu modo de curso podem ser qualificados como reais,
visto que igualmente desempenham o papel de simples operadores. Essa situao recebe
a sua melhor expresso exatamente por parte de uma figura reconhecida como marcante
para a histria da metafsica. Diante desta concepo de ser, Hegel afirma em sua
Enciclopdia das Cincias Filosficas:
Ora, esse puro ser pura abstrao, e portanto o absolutamente negativo que,
tomado de modo igualmente imediato, o nada.
Da se segue a definio do absoluto: a saber, que ele o nada. De fato essa
definio est contida quando se diz que a coisa em si o indeterminado, de modo
absoluto, carente de forma e, por isso, de contedo. Ou ainda, que Deus somente o ser
supremo, e nada mais alm disso; pois enquanto tal ele expresso como exatamente a
mesma negatividade: o nada que os budistas fazem o princpio de tudo, a mesma
abstrao.8
No devemos estranhar que Hegel aqui mencione o problema de Deus, nem
mesmo desconfiar da inconvenincia do emprego deste argumento ao tratarmos de uma
obra sobre fsica quntica. Lembremos que aquele campo da metafsica estrita, o qual
denominado como teologia natural, calca sua especificidade no tratamento do ente
supremo, daquele que maximamente real: a realidade aqui deve ser entendida como o
conjunto de perfeies que constituem um ente de suprema simplicidade, na mesma
medida em que tal grau mximo traz a necessidade interna da posio desse ente, ou
seja, sua existncia necessria. Observemos que a realidade independente de dEspagnat
carrega consigo algumas das caractersticas clssicas do ser supremo: est fora do
espao e do tempo; absoltamente simples; sua natureza incriada e no submetida a
alteraes. Em verdade, nosso autor explicitamente deixa ao gosto do seu leitor a
escolha sobre a caracterizao da realidade independente, podendo ela ser o Deus de
8 HEGEL, G. W. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Compndio (1830). Vol. I. Traduo de Paulo Meneses, com a colaborao de Pe. Jos Machado.So Paulo: Loyola, 1995. p. 178.
7
Spinoza, uma fora suprema que move o desdobramento da natureza, as idias
platnicas, um simples substrato dos entes em geral. Mas essa arbitrariedade no se
deve a uma tentativa de conferir liberdade para o leitor, a fim de que ele escolha o ser
perfeitssimo conforme o seu gosto metafsico. O arbitrrio se deve a um problema h
tempos diagnosticado pelos filsofos, um obstculo que deveria ser imediatamente
superando com o intuito de investigar o que se chama o real por antonomsia: deve
haver alguma relao entre o intelecto humano e a realidade suprema a fim de que seja
possvel a sua inteligibilidade:
Esse real velado excede em parte as possibilidades da inteligncia humana, e
sobre essa base (e no somente sobre o indeterminismo, que no parece ser um
argumento suficiente) se pode entrar em acordo com Pauli, quando (em diversas
passagens de sua correspondncia) fala da irracionalidade do real.9
O real independente no pode ser qualificado, tal como indica nosso autor,
como o irracional, j que assim qualquer possibilidade de um discurso sobre ele, ainda
que de carter negativo, fica completamente vedado. Assim como era apontado pelos
telogos cristos como um grave problema, aquele que concerne aos nomes divinos, ou
sobre os modos como o intelecto e a linguagem humanos podem predicar Deus, a
indeterminabilidade do real transfere para o interior da cincia um problema metafsico,
para o qual no observa as suas implicaes e conseqncias. Mais uma vez, no se
trata de abrir caminho para uma teologia natural, inteno essa tambm recusada por
dEspagnat, mas sim observar a falta de cuidado quando se avana do mbito cientfico
para as especulaes metafsicas. Curiosamente, no caso aqui apresentado, no a
cincia que pe freio s elucubraes dos metafsicos, mas sim a prpria metafsica que
tenta colocar esteios a especulaes arbitrrias. Talvez por falta de conhecimento,
muitos so levados a julgar que a metafsica uma espcie de terra selvagem, na qual
idias so usadas e exploradas sem que se tenha de prestar contas a nada.
No entanto, uma qualificao positiva pode ser encontrada em nosso autor sobre
o real, aquela que afirma a resistncia por parte da realidade em relao aos conceitos e
9 DESPAGNAT, Bernard. Le rel voil: Analyse des concepts quantiques. Paris: Fayard, 1994. p.377.
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intervenes tericas, algo que pode ser considerado como a negao da validade para
todas as arbitrrias especulaes sobre a natureza. A realidade caracterizada como
resistncia tambm um elemento encontrado pela metafsica clssica, o qual j fora
denominada como atividade, vis ativa e vis passiva, dando origem ao que na fsica
clssica ficou conhecido como o conceito de fora. graas a essa resistncia que nosso
autor traa a diferena entre realidade em si e a realidade emprica, assim constituindo
aquilo que ele chama de realismo aberto. A realidade emprica se refere ao conjunto de
fenmenos regulados pelas leis fsicas. O conhecimento de tal regularidade no significa
que o investigador tenha alcanado o discernimento sobre as propriedades pertencentes
s coisas mesmas. A realidade emprica apenas o mbito de uma objetividade fraca,
calcada em um acordo intersubjetivo sobre os processos naturais. Mas isso no significa
que tal acordo tenha a sua origem em uma estrutura transcendental compartilhada pelos
sujeitos, porquanto dEspagnat deseja superar, como j foi mencionado, todas as teorias
idealistas. Para tal, atravs da figura de Kant, nosso autor abandona o idealismo por
intermdio de uma constatao j realizada pelos primeiros formuladores da mecnica
quntica: as formas puras da sensibilidade, assim como as categorias, no podem ser
julgadas como o fundamento de toda e qualquer compreenso dos fenmenos,
exatamente na medida em que as teorias cientficas lanam mo de conceitos sobre o
espao, o tempo e, por exemplo, sobre a causalidade, os quais ultrapassam os modos de
compreenso kantianos. Assim sendo, parece que as coisas mesmas indicam os
conceitos cabveis para a investigao da natureza, sem que isso signifique que tais
conceitos sejam a caracterizao da realidade em si.
O realismo aberto tem por tarefa apresentar as estruturas dessa realidade
emprica, as quais so formadas pelas regularidades que se encontra na natureza. A
condio aberta de tal realismo est calcada na situao problemtica infindvel de se
atribuir realidade independente o carter constitutivo das regularidades. Neste passo
dos argumentos tambm nos deparamos com antigos problemas da metafsica: 1) se a
realidade independente possui o carter de indeterminao acima apresentado, como
ento explicar a determinao no somente dos entes, mas tambm das leis: problema
classicamente conhecido como a passagem da unidade para a multiplicidade; 2) em qual
instncia se encontra a exigncia por uma unidade das leis da natureza, de tal maneira
que forme uma totalidade das regularidades. Ainda um terceiro problema mais grave se
9
apresenta, na medida em que lana a ponte que liga os temas do idealismo, da realidade
como resistncia, do conceito de fora na fsica clssica e da constituio do sujeito.
Observemos a seguir a natureza desse problema e suas inter-relaes.
Variadas so as interpretaes historiogrficas, psicolgicas, antropolgicas e
filosficas que encontram naquilo que se chama de povos primitivos a contnua
tendncia a atribuir caractersticas subjetivas aos entes em geral: tendncia essa que
pode ser chamada de animismo, vitalismos ou antropomorfismo. Curiosamente, Max
Jammer, na obra intitulada O conceito de fora, encontra nesse animismo os primrdios
de certa compreenso da natureza, a qual em alguns aspectos percorreu a histria do
conceito de fora. Julga este autor que a longa histria do conceito de fora parte de
uma transferncia humana para as coisas daquelas suas caractersticas de padecer e de
agir. A tentativa de explicar tal poder apenas paulatinamente foi desaparecendo da
fsica, na medida em que a ligao entre os fenmenos que o conceito de fora exercia,
muito bem poderia ser substituda pela simples constatao das relaes matemticas
travadas pelos objetos: desta forma, a fora no seria uma entidade, mas simples
conceito matemtico relacional. Exemplo dessa empresa de pr fim ao carter de ente
da fora pode ser encontrado na mecnica de Hertz. Contudo, aqui temos um grande
problema, que afeta no somente o emprego do termo resistncia por dEspagnat, mas
tambm as teses animistas e as afirmaes de vertente idealista, as quais estipulam que
o homem transfere seus conceitos para as coisas:
1) Tal explicao pressupe como auto-evidente que aquilo que pertence
interioridade do sujeito mais fcil e garantidamente compreendido do que
aquilo que se encontra externamente como objeto.
2) Pressupe sem base que aquilo que se experimenta primeiramente e com
maior evidncia a subjetividade, de tal modo que se constri o modelo de
um ponto de partida do interior que ruma para a exterioridade.
3) No h demonstrao das formas segundo as quais tal transferncia entre
subjetivo e objetivo ocorre.
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4) No levado em considerao que, se os objetos mesmos, em acordo com o
seu contedo intrnseco e seu modo de ser, requerem tal transferncia a fim
de ser tratados, por exemplo, como foras, poderes e capacidades, ento de
fato uma transferncia no em primeiro lugar necessria; porque nesse caso
ns j teramos encontrado nas coisas aquilo que a elas atribuiramos.
5) No demonstrada a fonte ou constituio de tais foras, capacidade e
poderes na prpria esfera subjetiva.
Os argumentos acima listados servem para demonstrar de forma patente que o
ponto de partida assumido por dEspagnat, por intermdio do qual ele apresenta seus
conceitos de realidade emprica e realidade independente, est calcado em uma
concepo ontolgica pouco explicitada, na qual estabelecida a distino entre
subjetividade e objetividade. Jamais ns devemos empregar esses termos gerais sem
conferir uma slida base daquilo que eles compreendem. No caso do nosso autor,
deixamos j claro que o aspecto objetivo enquanto constituio das coisas se
pauta nos pressupostos ontolgicos da fsica clssica, no cabendo que se reduza toda a
ontologia a essas respostas especficas. A caracterstica da realidade como resistncia
simplesmente deixada em sua absoluta indeterminao, ao passo em que durante toda a
histria da metafsica tal tema continuamente requisita compreenso para que o termo
realidade no caia em uma abstrao vazia. A resistncia do real independente
mantida em sua vagueza no por simples arbitrariedade, mas fundamentalmente porque
previamente o autor lana mo de um modo especfico de compreenso da
subjetividade, por meio do qual se cria a ciso entre externo e interno.
No devemos deixar passar sem estranhamento o fato de que nosso autor retoma
antigas crticas ao kantismo, sem em nenhum momento lanar suspeita sobre dois
princpios que alimentaram grande parte da filosofia moderna, bem como da psicologia.
O primeiro diz respeito ao modo primrio pelo qual os homens tm acesso aos entes,
sendo esse modo entendido como feixes de sensaes. Essa teoria sempre teve diante de
si a grande dificuldade de explicitar uma estrutura hipottica responsvel pela sntese
dessa multiplicidade de percepes. Uma estrita anlise fenomenolgica seria capaz de
demonstrar que no percebemos estmulos puros, mas sim que previamente eles j se
encontram sob alguma forma, o que no significa que um molde transposto da esfera
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subjetiva para os estmulos. Os sons j chegam audio determinados por modulaes
e intensidades, assim como as cores apresentam a forma da tonalidade, do jogo entre
sombra e luz, da intensidade e profundidade. Por outro lado, continuamente aquilo que
chamamos de estmulos puros j se encontram determinados por imbricaes entre vias
distintas de percepo, o que torna costumeiro falar em sons pesados, cores quentes,
odores suaves. Caso essa antiga teoria da percepo fosse correta, ento teramos de crer
que os bebs teriam a sua ateno e compreenso despertas exatamente por tais
estmulos puros, situao esta que pesquisas realizadas h um bom tempo comprovaram
no ser o caso10. Os bebs em seus dois primeiros anos de vida retm a ateno em
figuras, particularmente as humanas, sendo as suas reaes estimuladas exatamente pela
condio expressiva dos rostos, vozes e corpos. Talvez ns fssemos levados a crer que
as antigas teorias da percepo so por si evidentes, mas a suposta evidncia tem como
fonte a hiptese inquestionada do mtodo investigativo da anlise, segundo o qual
necessrio decompor os fenmenos em suas partes irredutveis. No campo da teoria do
conhecimento, Mach pode representar aqui o papel de exemplar no que concerne a tal
teoria das sensaes indecomponveis que, por associaes, ao fim conformam as
nossas percepes. Se dEspagnat criticou com tanto vigor todas as tentativas de se
aplicar o mtodo analtico aos processos qunticos, porquanto estes apresentam
mltiplos aspectos de interao, por qual razo no voltar essas crticas tambm ao
modelo de percepo alimentado durante a filosofia moderna? esse o ponto que talvez
crie mais embaraos para a compreenso da relao do homem com os entes, na medida
em que um dos fatores responsveis pela sustentao da fico expressa nos termos de
interioridade e exterioridade. Aquele que teme o fim desses dois extremos, sob a
alegao de que isso implicaria em uma fuso do subjetivo com o objetivo, apenas reage
assim j no interior dessa teoria, pois tal conseqncia somente inevitvel quando j
assumido esse modelo. Portanto, o temor despropositado, e no permite enxergar a
necessidade de uma nova compreenso da relao entre homem e ente, como bem foi
assinalado por Werner Heisenberg:
10 As duas obras que se seguem rene uma grande quantidade de referncias sobre o tema. JASPERS, Karl. Psicopatologia Geral. Traduo de Samuel Penna Aarao Reis; reviso de Paulo da Costa Rzezinski. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1973. CASSIRER. Ernest. Filosofia de las formas simblicas: fenomenologia del reconocimiento. Vol III. Traduo de Armando Morones. Mxico: Fundo de Cultura Econmica, 1998.
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claro que a ordenao da realidade deveria substituir a diviso grosseira do
mundo em uma realidade objetiva e uma realidade subjetiva, e se desdobrar entre esses
plos do sujeito e do objeto de tal forma que no seu limite inferior se mantm as regies
nas quais podemos objetivar de maneira completa. Em seguida, a elas deveriam se
juntar as regies nas quais os estados de coisas no podem ser completamente separados
do processo de conhecimento atravs do qual viemos a coloc-los. Enfim, deveria se
manter no mais alto o nvel da realidade no qual os estados de coisas somente so
criados em conexo com o processo de conhecimento.11
Como ns podemos notar finalmente, as crticas lanadas a dEspagnat tm
como base este momento em que Heisenberg por intermdio das recentes
descobertas da fsica moderna obrigado a se haver com a tradio filosfica e
cientfica. No apresentaremos aqui os desdobramentos dos conceitos de Heisenberg
sobre a realidade, mas j na citao apresentada possvel vislumbrar que o seu desejo
fundamental, tambm expresso em diferentes conferncias e na sua autobiografia
intelectual12, nada mais do que encontrar o caminho para a unificao ou ordenao da
realidade. Parece um percurso equivocado aquele tomado por dEspagnat, fato este que
mais claro se torna exatamente no momento em que trata da causalidade. O princpio de
causalidade no simples regra de ao e reao, ou a ele no se deve conferir a
compreenso estrita de princpio de causalidade determinstico como nexo efetivo, ou
seja, como simples causa eficiente. O princpio de causalidade tem como fundamento a
tentativa de explicar aquilo que antigamente se denominava como o comrcio dos entes
em geral, os modos gerais pelos quais os entes travam relao. Conseqentemente, o
mesmo princpio a base para explicitar a unidade do ente em geral, o qual serve como
sustentculo para a exposio de como a unidade das relaes constitui mundo, ou
cosmo, enquanto a relao de ordem dos entes. No interior desse tema, dEspagnat
abandona a causalidade determinstica, em consonncia com a sua negao da teoria das
variveis ocultas e da causalidade da fsica clssica. O que ele permanece sustentando
11 Manuscrito, p. 372.
12Cf. HEISENBERG, Werner. A Parte e o Todo: encontros e conversas sobre fsica, filosofia, religio e poltica. Traduo de Vera Ribeiro; reviso da traduo de Antonio Augusto Passos Videira e Luciana Muniz; reviso tcnica de Ildeu de Castro Moreira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
13
uma causalidade do tipo estrutural, a qual deve ser entendida como a contnua
unificao das leis naturais constitutivas da realidade chamada emprica. Ora, mas
conveniente deixar sem resposta a inescapvel pergunta sobre a razo pela qual as leis
da natureza necessariamente devem formar um todo articulado, uma totalidade que no
permite rupturas e incongruncias? Seria isso uma simples peculiaridade do intelecto
humano, ou os entes em geral para a sua compreenso exigem tal unidade? Os temas
relacionados com o princpio de causalidade so continuamente ignorados por
dEspagnat, principalmente quando trata do uso do verbo ser. Uma caracterizao
equivocada de imediato confere palavra ser um sentido unvoco bastante dubitvel,
como a afirmao de algo simplesmente dado, cujo modo de ser dado se encontra
determinado pela fsica clssica, como atribuio de uma varivel coisa mesma. Fica
esquecido que esse sentido de ser, como posio absoluta, no necessariamente tem de
ser assumido em conformidade com a mecnica clssica, ao passo que o sentido de ser
expresso na cpula, como seu carter relacional, bem como o sentido de ser como
atribuio de identidade, todos eles ficam absolutamente obscurecidos nos argumentos
do autor.
Por fim, o objetivo do nosso trabalho no era apresentar uma compreenso do
real que refutasse aquela oferecida por dEspagnat. O que desejvamos era expor com
clareza o conjunto de problemas que necessariamente tm de ser encobertos sem
questionamentos para que a diviso entre realidade emprica e realidade em si seja
sustentadas pelo autor. No empreendemos aqui uma crtica estrita idia de velamento
do real. Aquele que se volta para Galileu tambm nele encontrar esta idia. Em seus
dilogos sobre os dois sistemas encontramos o velamento do real expresso no momento
em que o autor trata da diferena entre intelecto divino e humano. Para Deus, cujo
intelecto de natureza intuitiva, h a possibilidade de conhecer o cerne de constituio
de todas as coisas por um ato intelectivo nico. Para o homem, de intelecto finito e
discursivo, no h tal possibilidade. Contudo, apesar de no ter o carter extensivo do
intelecto divino, o ser humano compartilha como a divindade a mesma capacidade
intensiva de conhecer, j que por meio da matemtica os atributos da natureza poderiam
ser entendidos com certeza e segurana. Nesse caso, o vu da natureza nada mais do
que sua prpria imensidade. O mesmo tipo de vu apresentado por Newton, quando
representa a sua tarefa de cientista como sendo aquele que recolhe pequenas conchas
14
diante de um grande oceano. Em ambos os casos, a natureza dos entes em geral
passvel de conhecimento, convertendo-se em tarefa infinita a descoberta de suas
especificidades. O caso de dEspagnat ligeiramente diferente, na medida em que no
se trata de mera estreiteza cognitiva humana a ser superada paulatinamente ao longo do
tempo, mas sim como condio imposta pela mecnica quntica de um limite
intransponvel do conhecimento. No entanto, ao fim e ao cabo, esse mesmo limite
sustentado no interior de uma srie de problemas diante da qual o autor no se detm.
Parece que ento, nesse caso, o real no est propriamente velado, antes, parece que
retomamos a fbula do rei nu. Somente um grande constrangimento impede que nos
lancemos ao confronto com questes to patentes. Aparentemente, a cincia
permanecer em seus progressos sem ter de se confrontar com assuntos que mais se
assemelham a relquias empoeiradas pertencentes ao museu da metafsica. Essa
imagem, porm, cai por terra quando observamos as seguintes consideraes de Lee
Smolin, ao tratar da fsica contempornea:
O que eu creio estar falhando no tanto uma teoria particular, mas um estilo de
fazer cincia que foi amplamente seguido para os problemas que ns encaramos na
metade do sculo XX, mas que raramente seguido para os tipos de problemas que
enfrentamos agora. O modelo padro de fsica de partculas foi o triunfo de uma
maneira particular de fazer cincia que veio a dominar a fsica em 1940. Esse estilo
pragmtico, teimoso e favorece o virtuosismo de calcular em detrimento da reflexo
sobre problemas conceituais difceis. Isso profundamente diferente da maneira como
Albert Einstein, Niels Bohr, Werner Heisenberg, Erwin Schrdinger, e outros
revolucionrios do incio do sculo XX fizeram cincia. O trabalho deles surgiu de um
profundo pensamento sobre as questes mais bsicas envolvendo espao, tempo e
matria, e eles viram que faziam parte de uma ampla tradio filosfica, na qual
estavam em casa.13
13 SMOLIN, Lee. The trouble with Physics: The rise of string theory, the fall of a science, and what comes next. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006. pp. XXII - XXIII
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