Anais II Simpósio Gênero e Políticas Públicas ISSN2177-8248
Universidade Estadual de Londrina, 18 e 19 de agosto de 2011.
GT6- Gênero e Educação – Coordenação: Wagner Roberto do Amaral
O Problema do Gênero no Ensino da Leitura da Publicidade
Adenil Alfeu Domingos
“Mera ilusão auditiva, graças à qual ouvimos sempre tic-tac e nunca tac-tic.
Depois disso, como acreditar nos relógios?... ou na gente? (Mário Quintana)
Introdução
Em colaboração com as políticas públicas de educação, este artigo
pretende demonstrar aos educadores como o discurso da publicidade possui dois níveis
distintos de narrativa; o primeiro é a narrativa de um herói que se serve de um produto
para atingir seus objetivos na vida; o segundo é um nível mais profundo que desperta os
instintos primordiais do consumidor que são: a) a busca do parceiro sexual ideal, para a
perpetuação e aprimoramento da espécie; b) a fuga do predador, hoje, inimigo, rival ou
concorrente; c) a busca da presa que, na era do consumismo em que vivemos, são os
objetos fetichizados e à venda no mercado. Esses instintos escapam da consciência que
se concentra na região periférica superior do cérebro, onde está a razão humana. Cabe à
escola demonstrar aos alunos como esses discursos são veiculadores da ideologia da
classe dominante e que, aprender a ler essa camada profunda, é um meio de estar
consciente de persuasivas armadilhas linguísticas. Na verdade, de modo inconsciente,
esses instintos permanecem em todos os discursos do homem, mas são facilmente
identificáveis nos discurso da publicidade, como se comprova aqui com o corpus de
textos ora analisados.
Na publicidade atual, há uma ressignificação do corpo humano como
objeto estético erotizado e mostrado apenas em uma perfeição hiper-real, até mesmo
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quando estilhaçado e focado em partes sexuais do mesmo, em close-up (fig.1)1. Toda
publicidade é uma narrativa, com uma cena fixa ou em sequencialidade, chamada,
modernamente de storytelling, por ser muito próxima das narrativas orais da
antiguidade, principalmente quando circuladas nas mídias on ou off-line. Por isso
mesmo, quando um storytelling demonstra sensualidade, ele dá voz a uma entidade
narradora, que tende a falar com voz quente, aveludada e sensual representando o
produto à venda. Com o objetivo de chegar às camadas profundas instintivas e emotivas
no cérebro, ele passou a explorar imagens de corpos perfeitos ou antropomorfizar
objetos com essa finalidade (fig 1 e 2); modernamente, usam figuras queer (fig. 3) , ou
seja, pessoas dispostas a romper com ordem heterossexual compulsória imposta pela
sociedade que ainda discrimina gays, lésbicas, bissexuais, ou transgenéricos, em que a
feminilidade se masculiniza e a masculinidade se afeminiza, como se o produto fosse
também a arma para esse rompimento. O princípio é criar polêmica, ficar no imaginário
coletivo, estar em todas as mídias on ou off-line.
Por isso mesmo, onde houver congresso sobre storytelling, tratando do
tema de recuperar o ato de contar histórias oralmente, como meio de impor ideologias,
lá estarão as grandes marcas – como a Coca-cola, Apple, Nike, Nokia entre outras. Elas
perceberam que a narrativa oral tem um poder muito mais profundo de envolver
emocionalmente a audiência do que qualquer explicação racional que se faça do produto
à venda. Na disputa pela atenção do Outro, o marketing descobre que vence essa batalha
quem tiver a melhor história para contar e os melhores meios de difundi-las. Assim se
dá o boom das narrativas persuasivas, na era da oralidade midiada, principalmente na
web 2.0, com as mídias sociais que atuam em rede com princípios virais2.
Denominamos-se esse tipo de narrativa como sendo da era da literatura do consumismo,
*Professor de Semiótica da Comunicação, graduação e pós graduação, do Curso de Comunicação em Jornalismo e
Relações Públicas da Faculdade Unesp - Universidade estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Bauru 1 Os discursos publicitários, que servem como base para análise deste artigo, foram retirados do Google imagem ou
de revistas antigas e estão no final deste texto. Para vê-los, com mais facilidade, basta destacá-los e arrastar o mouse.
2 O Marketing viral tem como princípio contaminar o Outro (target= mercado alvo) para passar uma mensagem adiante, por meio das mídias sociais (twitter, Orkut, por exemplo) ou não, ou até mesmo boca a boca. A Heineken enviou porta copos destacáveis, pulseiras removíveis, semelhantes às usadas em áreas Vips de baladas, aplicativo super útil e funcional para iPhone que informava localidades próximas a você, onde pode ser encontrado cervejas da marca entre outros. Para se ter uma idéia, no seu lançamento, o aplicativo já obteve quase 5 mil downloads.
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com as histórias dos heróis do cotidiano que vencem na vida, tendo como arma um
objeto de consumo adquirido para esse fim. Sabemos que a alteridade é que constrói a
identidade e o herói desse tipo de discurso é imitado pelo consumidor que, ao adquirir o
mesmo objeto que o herói da narrativa publicitária possui, na crença que esse produto o
ajude a atingir seus objetivos de vida, como esse herói o fizera.
A classe de empresários que domina materialmente a sociedade atual
é, também, aquela que tem o poder de produzir ideologias para persuadir grandes
públicos, por meio da mída. Ela subsidia as mídias e os objetos à venda dos discursos
publicitários encontraram nas redes on e off-line um lugar cativo no fluxo contínuo de
narrativas da própria vida cotidiana. Assim, a classe dominante comanda também a
grande maioria das empresas de comunicação que compõem a sociedade atual, com
seus modos de falar e persuadir. Pode-se até admitir que elas dominem ainda a grande
maioria das instituições que compõem a sociedade, inclusive a escola. Por isso, a
importância de levar para a escola e discutir o discurso da publicidade.
Da Teoria
Para Levy-Strauss (2007: p.10), há certos elos perdidos na cadeia de
nossa evolução que deveríamos fazer um esforço para recuperá-los. É fato que o homem
nem sempre foi um ser cultural. Não se pode duvidar que ele tenha passado por uma era
em que tenha vivido de modo tão natural como os demais animais, como nos mostra o
evolucionismo. Os primeiros storytelling foram fábulas e mitos primordiais da
perplexidade do homem diante do desconhecido, narradas oralmente em torno de
fogueiras aos sujeitos de uma tribo. Hoje, as tribos se unem em torno da eletricidade,
mas com os mesmos ideias: contar histórias. As primeiras narrativas feitas pelos
homens, por certo, contavam façanhas das suas lutas ou alianças com os demais
animais, como resquícios da pré-história, anteriores ao aparecimento desse homem
cultural, que até hoje cria fábulas e mitos. Foi o aparecimento do homo narrans que dá
origem ao homem cultural, momento em que homens e animais deixam de dividir
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espaços, cumprindo ciclos de transformação, com o aparecimento e desaparecimento de
espécies na face da terra.
Para desenvolver a argumentação deste artigo, aliamos as idéias de
Strauss às do cérebro trino de McLean3 - réptil, emotivo, racional; depois, ligamos esses
pensamentos às tríades da semiótica do norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-
1914), para também nos servimos da tríade freudiana de pré-consciência, ego e
consciência. Peirce entendeu que nada há mente que não seja signo para a interação com
o Outro. Para ele, todo pensamento vem do mundo exterior, como estímulo, para criar,
de imediato, um novo objeto na mente, muito semelhante ao objeto observado que se
impôs à essa mente com sua plasticidade sensorial. O nosso entorno é a matéria prima
da mente, que, ao ser filtrado pelos nossos sentidos, aloja-se, na memória passiva, em
geral, sem passar pelo crivo do juízo perceptual. Por isso, as revistas são recheadas de
publicidade e a beira das estradas cobertas de outdoors, que aparentemente não se lê,
mas que ficam no nosso subconsciente, de modo icônico, ou seja, muito semelhante ao
apreendido. Um segundo grau operacional mais complexo do trabalho da mente é
relacionar signos por contiguidade, gerando índices (fig. 4)4. Só em um terceiro
instante, porém, esses signos são relacionados, em uma interpretação argumentativa em
que aparecem os porquês desses objetos observados, que se transformam em símbolos
culturais, eivados de valores ideológicos. Por isso, entendemos que a mente do homem
selvagem tinha como primazia sentir seu entorno de modo sensorial, sinestésico, com
signos mais naturais, enquanto o homem moderno relaciona-se com seu meio, pela
intermediação de signos inferenciais e abstrativos, convencionais e arbitrários,
colocando uma espécie de biombo ideológico tecido de signos culturais, entre o seu
corpo e o seu entorno.
As narrativas são transformações de estados e para tanto necessitam
de ações que se iniciam sempre na busca da satisfação de uma necessidade e terminam
3 A Teoria do cérebro trino: em 1990 Paul MacLean, mostra que os humanos têm cérebro dividido em três unidades funcionais diferentes em unidades a) cérebro réptil, responsável pelas funções vitais de sobrevivência, por comportamentos instintivos relacionados a sexo e marcação de território; b) cérebro límbico ou emocional responsáveis pela alegria e tristeza, já presentes na maioria dos mamíferos; c) a camada de superfície ou neocórtex, responsável pelo pensamento analítico, capaz de produzir linguagens, imagens, sons, já presentes nos golfinhos.
4 O gesto da modelo desse storytelling, remete seu público alvo a uma cena de cinema memorável de Marilyn Monroe; bem como o vermelho do mesmo lembra a bebida Campari. Nossa mente é associativa e basta mostrar uma parte do todo para que o cérebro a complete, segundo experiências passadas de vida.
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com a realização ou não desse desejo5. O objeto oferecido na publicidade é sempre um
passaporte para se chegar ao objeto do desejo, como, por exemplo, obter o prazer de
vencer as batalhas da vida e conquistar o parceiro ideal. Aliás, o homem não produziu
linguagens apenas para se comunicar, mas sim, como arma na luta pela sobrevivência.
Em suas fábulas, ele realiza todas as suas mais fantasiosas buscas, até mesmo as
impossíveis e consegue se projetar teleologicamente. Esse é o princípio fundamental do
discurso da publicidade. É desse modo que o narrador do discurso publicitário pode
antropomorfizar animais e objetos, ou zoomorfizar e/ou reificar (coisificar) (fig 5)6 um
ser humano, resgatando momentos ancestrais do homem na terra.
A produção do storytelling da publicidade envolve tecnologia de
ponta e linguagens em hibridismo feitas de verbal e não verbal. Embora a linguagem
verbal pareça ser a arma mais eficiente das técnicas de comunicação, a grande maioria
de nossos pensamentos é feito de signos não verbais. Por acreditar, por muito tempo,
quase que no exclusivo poder das palavras na mente, a escola só recentemente começa a
dar atenção, com mais contundência, à leitura do não verbal. Até mesmo a escrita,
sucedâneo do verbal, pode ser um não verbal, como aparece em uma publicidade de
perfume em que a sibilante repetida várias vezes, tem a intenção de reproduzir o som do
espargir do perfume (fig. 6). Com o advento das novas tecnologias e a facilidade de
produção e reprodução da imagem, aumenta o uso do não-verbal no storytelling
midiado, recuperando, assim, as possíveis aulas dadas pelos pintores das paredes das
cavernas ao interagir com seu público aliando verbal e não verbal, produzindo uma
linguagem mais universal e sintética. O princípio agora é atingir o maior número
possível de pessoas, em menor tempo de atenção da mesma, com o menor número
possível de signos.
Galimberti (2006) afirma que não é apenas a inteligência humana a
criadora da técnica, já que ela permitiu o desenvolvimento da inteligência humana,
usada na luta pela nossa sobrevivência. Para ele, a distinção entre homem e demais
5 “Sem dúvida os objetos desempenham um papel regulador na vida cotidiana, neles são abolidas muitas neuroses, anuladas muitas tensões e aflições, é isto que lhes dá uma „alma‟, é isto o que os torna „nossos‟ (Baudrillard, 2002: 98). BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. Tradução Zulmira Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2002. 6 Nessa imagem o corpo humano nãos só foi objetualizado, como sendo o próprio produto, como o objeto à venda foi antropomorfizado, em uma simbiose perfeita.O verbal também dança, sendo outra antropomorfização.
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seres, não é o poder racional e a inteligência do primeiro, mas sim, o que ele tem a
menos – pois o homem não dispõe de institutos que o orientem de forma direcionada,
plena e absoluta, na solução de suas necessidades. O homem criou técnicas de
interação7 como midiadoras do seu corpo com seu entorno, quando se sentiu na
iminência de rápida e fatal extinção e isso acelerou se modo de viver. A humanidade
construiu seu modo de agir e ser como hoje nos conhecemos, como consequência do
modo pensar acertos e erros. Ao se narrar, portanto, o homem se torna capaz de
sistematizar, não só seu entorno, mas também de se organizar e de se analisar
interiormente. O pragmatismo de Peirce (1965) assegura que o conceito que temos de
um objeto, não se dá pelo dicionário, mas sim, pela soma dos conceitos de todos os
efeitos concebíveis como decorrentes das implicações práticas do referido objeto na
vida.
As teorias da educação também mostram que, na criança, a memória,
a atenção e a conduta são regidas mais por processos biológicos e involuntários do que
conscientes. No processo educativo da linguagem recorre-se a instrumentos mediadores
que atuam no sentido de romper a conexão associativa direta entre dois estímulos, já
que um signo representante torna-se uma espécie de substituto do objeto representado.
A relação, orientada por mediadores culturais tem dois lados: um deles provoca um
salto qualitativo nas funções inicialmente regidas por processos biológicos, promovendo
uma completa modificação na evolução e na estrutura das funções psíquicas da criança
e o pensamento aprende a operacionalizar representantes convencionais e não objetos
reais, e desse também que se instala no outras idéias construídas como sendo verdades
inquestionáveis; o outro, se não incentivado e trabalhado sistematicamente, faz a criança
perder contatos com o sentir o mundo de modo sinestésico e isso pode impedir que ela
acione todos os seus sentidos no ato de ler, privilegiando apenas o sentido da
visualidade.
7 Sugerimos a leitura das idéias de Marshall McLuhan, principalmente de dois livro “os meios de comunicação como
extensões do homem”, da editora Cultrix,; e “o meio é a mensagem”, ed. Record. Ambos com várias edições.
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Todos os tipos de pensamento devem ser operacionalizados em sala de
aula. O homem místico/mítico dominou até meados do XVIII; depois disso, aparece o
homem do pensamento científico, afirmando que o pensamento primeiro foi ilusório e
que agora era preciso entender o mundo real da lógica, da matemática, do laboratório,
contradizendo o mundo sensorial (idem, p. 11). Entre o homem moderno do
pensamento científico e o homem do pensamento mítico, porém, a diferença é que
aquele acredita realmente que é possível explicar o universo a partir das suas partes - e
seu pensamento, assim, ficava limitado - enquanto o homem do mito via o mundo em
sua globalidade interativa de acordo com suas necessidades de sobrevivência. Levy-
Strauss, (idem), ao examinar diários de bordo dos navegadores da Idade Média,
assegurou que esses navegadores conseguiam ver a estrela Dalva até por volta do meio
dia. Com a existência da bússola, essa capacidade não precisou mais ser treinada e ela
se perdeu no tempo. A mente humana, apesar das diferenças culturais entre as diversas
frações da humanidade, tem sempre as mesmas capacidades (idem, p. 31)8, que
precisam ser treinadas para não desaparecerem.
Estamos, hoje, passando da antropocentria para a ciborguicentria, já
que a máquina também passou a memorizar e produzir discursos assim como o corpo
humano pode usar próteses. Mas só o pensamento científico ainda é o meio capaz de
demonstrar essa perda e fazer sua reconquista. Já inferimos aqui a existência de um
pensamento natural icônico/indicial, gerado por uma linguagem híbrida de grunhidos,
gestos, expressões faciais, mímicas, antes do pensamento mítico-narrativo. O homo-
sapiens sistematizou esse material, que no princípio era amorfo e cria os códigos, as
leis, as regras dos símbolos, a partir do seu uso cotidiano dando aos mesmos sentidos
convencionais e arbitrários, de modo tácito. No mundo mítico, o homem inteirava-se
com seu entorno por meio dos sentidos, cheirando, saboreando, tateando, vendo e
ouvindo de modo sensório; depois da criação dos signos simbólicos, aparece, por
emergência bottom-up e não top-down, complexos sistemas de signos das linguagens
8 Nas páginas 32/36 desse mesmo livro, Levy-Strauss trata do Mito Canadense da Arraia. Ele afirma que o pensamento mítico resolvia problemas de modo binário, na base de sim e não de modo semelhante ao do uso da linguagem do computador feita de 0, 1. Só entendemos o pensamento mítico em um “ tempo em que a cibernética e
os computadores apareceram no mundo científico, dando-nos o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido postas em prática de uma maneira bastante diferente, com objetos ou seres concretos, pelo pensamento mítico.
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convencionais. Se o mito servia-se dos animais e objetos para explicar pensamentos; se
a fábula mostrou resquícios dessa maneira de narrar, a narrativa moderna da publicidade
vai se servir de todos esses recursos ancestrais com o intuito de persuadir. Como as
linguagens se tornaram arma para a sobrevivência da espécie, os objetos simbólicos,
ilusoriamente, passaram a ser substitutos dos signos sensórios, como é o caso de se
dizer que “o presidente está na capa da revista x” quando nela só existem tinta e papel.
A leitura do discurso publicitário, entendido aqui como a literatura da era do
consumismo, feito linguagens em sincretismo entre o verbal e o não-verbal, demonstra
como o mesmo trata do gênero ora cristalizando mais a ordem heterossexual
compulsória imposta; ora tentando romper essas amarras, como veremos adiante.
O problema do gênero na publicidade
Temos a ilusória crença que nosso cérebro é todo consciente e que
essa consciência comanda as ações de nossa linguagem e, assim, ele dirige todos os
nossos pensamentos. Não se pode perder de vista a naturalidade e evolução do modo de
pensar já que as idéias nascem em campo sensório, para depois serem avaliadas no
intelectivo, como juízos, deixando, então, de serem simples sensações. Cenas de
violência e agressão veiculadas na mídia atingem diretamente o cérebro réptil,
promovendo sensações de ameaça, medo à integridade física e o pânico permanente
entre lutar ou fugir, causa de grande audiência na mídia. Além disso, os noticiários de
guerra, as guerras fictícias da indústria do entretenimento, como os jogos eletrônicos,
provoca ansiedade, instiga a adrenalina, como lutas entre gangues. Quanto ao corpo,
esse cérebro é responsável pela obesidade e doenças depressivas que levam ao consumo
de drogas e bebidas são relacionadas ao cérebro réptil. O principal é que ele é
estimulado e solicitado diante da publicidade que expõe o corpo humano.
Pela teoria do Cérebro Trino de Paul MacLean, a primeira camada a
ser formada foi o cérebro réptil é responsável pelas funções vitais de sobrevivência e
comportamentos relativos às atividades sexuais e até mesmo da delimitação de
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território; a segunda é o chamado sistema límbico, responsável pelas emoções, onde se
situam todas as satisfações, todos os prazeres; ele é responsável pela ansiedade e
apreensão e ele está fora do nosso controle. Isso prova que somos mais dirigidos pelos
instintos do que pelo raciocínio. Essas duas camadas tendem a coincidir com as idéia de
“inconsciente”, “pré-consciência” de Freud (1973), ou seja, o “id” (reservatório das
pulsões do prazer, de satisfações imediatas). Para ele o ego evolui do id e tem partes
inconscientes e conscientes sendo regido pela presentidade e realidade. O superego
(censor das funções do ego, fonte de sentimento, culpa e medo de punição) coincide
com o neocórtex, local onde as percepções apreendidas passam pelo crivo do juízo
perceptual e são lidas e avaliadas. É esse o local das linguagens simbólicas e coincide e
onde se efetua nãos só a leitura crítica9, a interpretação racional de todo e qualquer
discurso, mas também, onde acontecem as inferências e abstrações em argumentos
racionais. O corpus de publicidades, escolhido para esse fim, mostra que a maioria dos
signos que apreendemos da leitura relâmpago que se faz de um discurso publicitário,
aloja-se no fundo do lago da memória e sobe à sua tona quando solicitado, na hora da
compra.
Essas constatações é que nos levaram a procurar entender como
publicidade que se envolveu com o problema do gênero10
. Percebemos que a grande
maioria dos discursos publicitários reproduz o princípio do patriarcado, legitimando a
superioridade masculina, (fig. 7/8) próprio do ideário comum, historicamente construído
e incrustado principalmente nas instituições, como as religiosas e militares, sendo o
gênero o primeiro modo de dar significações às relações de poder (cf. SCOTT 1995, p.
86) na sociedade. De modo indireto, essa ideologia aparece camuflada na sociedade em
regras e leis11
, como, por exemplo, o predomínio do masculino sobre o feminino na
9 Não se compra uma revista para ler publicidades, mas sim, para se informar. Os storytelling publicitários são
absorvidos en passant ao se folhear a mesma. As mensagens dessas publicidades são absorvidas de modo inconsciente, assim como são apreendidas as mensagens de placas, cartazes, outdoors e outros meios de informação que povoam estradas e cidades. 10 Para Lauretis, gênero seria um signo social, portanto, ideológico, capaz de dar “a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Gênero é a representação de uma relação [...] o gênero constrói uma relação entre uma entidade e outras entidades previamente constituídas como uma classe, uma relação de pertencer [...]. Assim, gênero representa não um indivíduo e sim uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe (1994, p. 210). 11 Se o primeiro artigo da nossa constituição determina que todos são iguais perante a lei, “sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas”, estamos diante da prova mais cabal que as pessoas não são tratadas em igualdade, pois se elas o fossem, não haveria essa lei
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concordância gramatical, ou na idéia de que todos são iguais perante a lei na
constituição. Depois dos anos 60, com o ideário da contracultura, até as publicidades
modernas começam a romper o princípio do patriarcado, pois, ao ressignificar o corpo
humano, chamando atenção para o corpo sadio e belo, elas começam a afrouxar os nós
dos estereótipos sociais. Foi nos anos 70 que se iniciou a luta contra a idéia do gênero,
como produto ideologicamente construído, de modos diferentes em diferentes culturas.
O uso do termo gênero passou, então, a expressar um sistema de relações que incluem o
sexo, mas que transcende a simples diferença biológica. Descobre-se que o fator
biológico determina as reações inatas do indivíduo e é sobre essa base que se constitui
todo o sistema de reações adquiridas. Leontiev (1978) mostrou que a criança inicia sua
vida em um mundo repleto de objetos criados pelas gerações anteriores (bonecas para
meninas e carrinho para os meninos, por exemplo) que são direcionadores dos futuros
das crianças. Com propriedade, rejeitando a reflexicologia e o experimentalismo,
baseado em Marx, Vygotsky12
entendeu que o homem nasce apenas com as funções
psicológicas elementares prontas, como o reflexo e atenção involuntários, presentes em
todos os animais, mas que o aprendizado faria mudanças históricas na sociedade e na
vida material provocando mudanças na natureza humana e, desse modo, a mente se
desenvolveria, produzindo funções psicológicas superiores, a partir da interação com o
meio, como consciência, o planejamento e linguagem. Marx (1983, p. 71), por sua vez,
encontrou relações humanas por trás das relações mercadológicas e revelou a ilusão da
consciência humana, já que ela se origina na interação com os objetos, principalmente
na economia mercantil. Ele atribuiu aos objetos características que têm sua origem nas
relações sociais, no processo de produção dos objetos como mercadoria à venda e o
corpo perfeito tornou-se um objeto-fetiche, que deve ser semelhante ao ídolo como um
amuleto, algo enfeitiçado com origens misteriosas e inexplicáveis poderes.
Assim, o corpo se tornou uma mercadoria desejada, além de revelar
características sociais do próprio trabalho humano, como qualidades objetivas dos
próprios produtos de trabalho, juntando no mesmo objeto tanto propriedades naturais
12 “Quando passa a fazer uso de meios indiretos, como instrumentos e signos, e adquire as habilidades culturais necessárias, ela desenvolve a capacidade de refrear a satisfação imediata de seus impulsos e necessidades e de
retardar as reações imediatas a estímulos exteriores, e dá os primeiros passos na transição para o comportamento intelectual complexo” (Vygotsky, Luria, 1996)
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como sociais; o corpo fetichizado na publicidade não estabelece só a relação social dos
produtos com o trabalho total, como também demonstra a relação existente fora dele,
como corpos em relações entre si. Os anúncios de produtos, para atingir seus objetivos,
passaram a se servir do corpo como o mito da perfeita atração, e eles são exibidos
dentro dos storytelling sempre de modo convidativo e possuir o produto é o mesmo que
possuir o corpo em questão (fig.9). Como o imaginário coletivo, nesse instante, é de
fundamental importância, houve a fragmentação do corpo (ig. 10) idealizado que se
metamorfoseia ao sabor das suas condições financeiras do outro13
. Assim, prova-se
como o homem, ainda traz em si, vestígios de sua ancestralidade e que imagens e sons
são estimuladores das camadas mais primordiais do homem, de forma artificial. Ao ler o
texto publicitário, o sujeito se traveste do herói e entende que o objeto adquirido lhe dá
o poder desse herói e ele pode conquistar aquele parceiro sexual desejado.
À guisa de balanço geral.
Vimos aqui que a publicidade é um storytelling persuasivo. Seu
objetivo é vender emoções e que o objeto à venda da narrativa dada é a “espada
mágica”, como arma fetiche que dá ao sujeito que a possui a sensação de ser tornar
invencível. Não se trata mais do herói medieval que possuía um cavalo e armadura
poderosos, além de uma lança e um escudo, mas sim, do homem comum que deve
possuir um possante automóvel, uma roupa de grife, um cartão de crédito e um celular,
ou algo semelhante, para a conquista desse parceiro sexual.
O corpus de análise ora escolhido pretendeu demonstrar como esse
discurso é uma construção ideológica direcionada a públicos distintos, em que o gênero
tem sido considerado, como um dos elementos fundamentais. Procurou-se demonstrar
como o gênero pode ser definido por meio de publicidades que conservam ou não
estereótipos de classificação do homem, impondo crenças e hábitos ou desfazendo-os.
13 È interessante notar como certas escolhas de parceiros para acasalamento são semelhantes aos dos seres humanos. Há uma espécie de pingüim, por exemplo, que a fêmea se acasala com o macho que juntou mais pedrinhas. (fig. 11)
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Construindo modos de percepção de apreciação, de interesses e de gostos, mas sem
deixar de atingir as camadas mais inconscientes do homem. A publicidade é feita para
não ser lida racionalmente, mas sim, en passant, como os outdoors. Só a leitura crítica
pode desfazer as ideologias que elas trazem, e isso depende de aprendizagem que se
inicia no seio da família, passa pela escola e adentra toda a nossa vida. São discursos
silenciosos como esses que acabam criando até mesmo espécies de segregação, de
acordo com o sexo.
Não somos ilhas e nosso corpo jamais estará infenso as pressões
exteriores. De modo biológico e natural, nosso corpo desenvolveu um aparelho visual,
porque vive grande parte de sua vida na presença da luz. A energia que ocupa nosso
cérebro no instante em que percebemos nosso entorno e arquivamos as imagens
percebidas em nossa memória é uma transdução de sinais14
. Eles vêm do mundo
exterior, transforma-se em energia neuronal e se acoplam a nossa energia interior. A
energia dos sinais advindos dos discursos que percebemos em nosso entorno cicatrizam
nossa memória, atuam em todos os nossos órgãos e desse modo nosso entorno impõem
sua plasticidade à nossa mente. Assim, como quando ingerirmos uma fruta, a energia
nela existente torna-se energia biológica em nosso corpo, bem como a energia do nosso
corpo se transformam em energia para as raízes das árvores, completando um clico de
vida natural, somos afetados e afetamos o espaço em que habitamos, continuamente.
Todo discurso publicitário, portanto, vai atuar sobre o nosso corpo onde estão nossos
desejos, sensações, satisfações e insatisfações, todas as nossas necessidades e nada é
gratuito no universo. Só pensamos o que pensamos porque fomos levados a pensar
assim, embora o chamado livre-arbítrio possa fazer avaliações do que queremos ou não.
Depois de inserido em um determinado contexto social, o homem jamais poderá saltar
fora desse enredamento, mesmo quando desejar lutar contra o mesmo, já que essa ação é
apenas uma das possibilidades do próprio sistema.
14 Transdução de sinal é o processo pelo qual uma célula converte um sinal extracelular recebido em uma resposta
específica e pode acontecer de célula para célula, de célula como resposta ao ambiente, do ambiente para a célula e até intracelular chamada homeostase
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Universidade Estadual de Londrina, 18 e 19 de agosto de 2011.
GT6- Gênero e Educação – Coordenação: Wagner Roberto do Amaral
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Relação de figuras citadas
Fig. 1 fig 2 fig.3 fig. 4 fig 5 fig. 6 fig.7
Fig. 8 fig. 9 fig 10 fig 11