Contra Capa
Neste livro, os ltimos dias do imprio brasileiro e o amanhecer incerto da repblica
desfilam na tela grande: h corpos nus, sales empoeirados, militares vacilantes que conspiram,
jornalistas inflamados, nobres que arrotam, princesas que menstruam. D quase para sentir o
cheiro do ralo enquanto o elenco de carne e osso vai construindo uma histria viva, voltil, vibrante.
A nossa histria (...).
J faz algum tempo que a histria do Brasil vem sendo libertada dos grilhes que a
aprisionaram aos bancos escolares. Mas o alcance deste O Prncipe Maldito parece ainda maior,
pois o livro subverte, virtualmente destroa, a frase arrogante de Norman Mailer de acordo com a
qual a histria escrita por maus romancistas. Aqui est, de corpo inteiro e alma aberta, um
romance de no-fico: a vida sem obras de Pedro Augusto de Saxe e Coburgo o prncipe que
sonhou ser D. Pedro III, mas virou sapo quando o imprio das circunstncias cedeu lugar
repblica dos fatos.
Eduardo Bueno
Jornalista e escritor
Este livro traa um rico painel das ltimas dcadas do sculo XIX, no Brasil. A
escritora e historiadora Mary Del Priore expe a intimidade da famlia imperial
brasileira consumida por intrigas, traies e uma profunda melancolia , ao nos
revelar um personagem fascinante e trgico.
Orelhas do livro
Era uma vez, h muito tempo, em um reino sem encanto, um palcio
recendendo a mofo por onde circulavam um conde odiado, uma princesa carola,
criados mudos, conspiradores baratos e, claro, um jovem prncipe louco todos
tramando sob as barbas de um imperador que, embora no vestisse roupas novas, ia
ficando cada vez mais desnudo aos olhos da corte.
Sim, voc est diante de um conto de fadas s que s avessas. Primeiro,
porque no aumenta nem um ponto conta como as coisas foram. Depois,
porque se passa em um mundo real. Real at demais: comezinho, limitado, medocre
e, ainda assim, ou por isso mesmo, espantosamente prximo. Se voc, de incio,
ficar com a impresso de que a trama se desenrola no reino de To, To Distante,
s porque a histria do Brasil, embora to perto, ainda se mantm to longe de ns.
Mas eis que ento, como num passe de mgica, surge a obra de Mary Del
Priore e tudo aquilo que parecia adormecido volta vida com um sopro. Neste O
Prncipe Maldito, os ltimos dias do imprio brasileiro e o amanhecer incerto da
repblica desfilam na tela grande: h corpos nus, sales empoeirados, militares
vacilantes que conspiram, jornalistas inflamados, nobres que arrotam, princesas que
menstruam. D quase para sentir o cheiro do ralo enquanto o elenco de carne e osso
vai construindo uma histria viva, voltil, vibrante. A nossa histria.
Se a torre de marfim do academicismo no for lenda, Mary Del Priore
funciona ento como Rapunzel, jogando no as tranas, mas as tramas de uma
narrativa vivaz, que varre para longe aquele amontoado inspido de datas vazias e
nomes solenes e arranca as cortinas do palco para nos fazer entender como que
este pas deu no que deu...
J faz algum tempo que a histria do Brasil vem sendo libertada dos grilhes
que a aprisionaram aos bancos escolares. Mas o alcance deste O Prncipe Maldito
parece ainda maior, pois o livro subverte, virtualmente destroa, a frase arrogante de
Norman Mailer de acordo com a qual a histria escrita por maus romancistas.
Aqui est, de corpo inteiro e alma aberta, um romance de no-fico: a vida sem
obras de Pedro Augusto de Saxe e Coburgo o prncipe que sonhou ser D. Pedro
III, mas virou sapo quando o imprio das circunstncias cedeu lugar repblica dos
fatos.
Se Mary Del Priore e a leva de historiadores da qual ela faz parte continuarem
escrevendo tanto e to bem, talvez algum dia o Brasil deixe de ser um pas de faz-
de-conta e ns sejamos felizes para sempre.
Eduardo Bueno
Mary Del Priore, autora de 21 livros sobre
Histria do Brasil, entre eles Histria das Mulheres no Brasil e Histria da Vida Privada,
foi duas vezes vencedora do Prmio Casa Grande & Senzala e do Prmio Jabuti,
para obra de relevo em Cincias Sociais.
Historiadora com ps-doutorado na Frana, scia honorria do Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro e colabora com revistas nacionais e internacionais,
alm de ser cronista do jornal O Estado de S.Paulo. Lecionou nos departamentos de
Histria da USP e da PUC/RJ e, atualmente, d aulas de ps-graduao.
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Era noite. O mar parecia um caldo em ebulio. Fazia calor. Mais calor ainda
dentro da pequena cabine do velho navio. Na parte inferior do beliche, o
jovem tentava dormir. Mas no dormia. Delirava. Cuspia palavras incoerentes.
Sob as plpebras, os globos oculares rolavam como bolas de gude. Como
bolas de gude, os olhos eram azuis. Um fio de saliva grossa se misturava s
lgrimas dando ao fino travesseiro um cheiro azedo. Ele soluava, o belo
rosto de boneca enfiado na fronha. Coberto pelo pesado costume escuro, o
corpo se encolhia sobre o colcho. [pg. 01]
Na cabine estreita, tudo era suor. A pequena janela apenas deixava passar
o ar aquecido por lampies de querosene. O beliche em madeira acoplava uma
escarradeira em loua para enjos. Ela fedia. No cubculo no havia lavatrio
em pedra mrmore, cama de vinhtico Lus XV, paredes forradas, retrete ou
espelho, como nas viagens anteriores no Gironde. Nada. O Parnaba, um
cruzador, fabricado em 1874, com 73,2 metros de comprimento, no oferecia
acomodaes de luxo. No tivera passageiros de primeira classe em trajes de
viagem com bolsas a tiracolo, binculos e bons de seda debruados pelas
amuradas dando adeus aos que ficavam no cais do Arsenal. Abrigava, sim,
[pg. 02] seis canhes e duas metralhadoras: Ser forte! Voltar! Atacar!
Canhonear a capital! Vencer!, era o que comandava entre lamentos o jovem
enfurnado na cama.
Em meio s lgrimas e marcado por contraes doentias, o rosto do
rapaz era o espelho de uma alma atormentada. J antes de subir a bordo, ele
ficara agitado, o corpo sacudido por tremores. O diagnstico do mdico do
imperador pesava como uma pedra: hiperexcitao nervosa e escapamento do juzo.
Mal se lembrava de que tentara estrangular o capito Pestana, diante do olhar
horrorizado da av, a imperatriz do Brasil. Foi impedido pelo baro de
Muritiba. O jovem no recebeu injees de [pg. 03] arsnico ou cafena ento
usados normalmente como tranqilizantes. O vidro de valeriana fizera efeito.
Trancado no camarote, pouco a pouco, acalmou. Lgrimas e soluos pareciam
alivi-lo.
E uma imagem de mulher nasceu do seu choro. Pela porta estreita ele
ouvia o farfalhar das rendas contra a seda pesada do vestido. Ela vinha beija-
lo, desejando-lhe boa-noite. Sua figura enternecida se debruava sobre o leito
trazendo certo conforto ao desespero do jovem. Ele dormia ou acordara? O
rosto redondo e risonho, emoldurado por cabelos louros repartidos e presos
na nuca, parecia fazer uma concesso a tanta agitao e tristeza. Me beije,
[pg. 04] pedia baixinho. O queixo um tanto comprido e quadrado, as
bochechas coradas, as sobrancelhas acompanhando os olhos claros e fundos,
um perfume intraduzvel definiam a figura que se aconchegava diante dele. Os
braos rolios da bela mulher pareciam se estender para aninh-lo. Um beijo
de paz podia ser o remdio para acalm-lo. Mas o sossego no vinha. A
escurido da cabine no lhe permitia adivinhar as horas.
A presena da mulher, contudo, convidava sua alma a fluir para fora do
corpo. Deslocando-se para outras paragens, ele agora sobrevoava uma plancie
tambm escura. No porque fazia noite, mas porque a floresta de abetos
vermelhos [pg. 05] e pinheiros fechava sua carranca em torno de um grande
castelo. Um vento despojara as rvores de sua cobertura de neve e elas se
dobravam, negras e sinistras, na luz que definhava. Castelo? No. Era mais
uma fortaleza. Trs torres coroadas por telhados de ardsia se elevavam na
monumental muralha. Um arremedo de jardim manchava de verde o centro
do ptio. Passava-se porta de entrada, primeiro por uma ponte; depois, por
um prtico renascentista. Dentro da construo principal, ele procurava a
mulher, atordoado, entre as inmeras imagens que se sucediam nos estuques
da Sala de Caa. Os tetos profusamente pintados, a marqueteria das paredes,
os inmeros quadros [pg. 06] e vitrines com toda sorte de objetos preciosos
confundiam com suas formas e cores seu senso de orientao. Ele a via
atravessar, silenciosa e rpida, a Grande Sala de Banquetes: o rostinho infantil
tinha a sua mesma idade. A luz do inverno filtrava atravs de grandes janelas
com vitrais opacos, confundindo seus movimentos. Agora, ela corria. Em seu
delrio, ele ia atrs. Do lado de fora do castelo as rvores se contraam no frio.
Ele tambm se contraa no beliche ftido: de medo. De raiva. Maman!
Maman!, gemia, enquanto Leopoldina Teresa Francisca Carolina Micaela
Gabriela Rafaela Gonzaga se dissolvia nos corredores de uma das maiores
fortalezas [pg. 07] da ustria. Prostrao nesta madrugada do dia 17 de
novembro de 1889. O jovem no beliche era Pedro de Alcntara Augusto Luis
Maria Miguel Rafael Gonzaga de Bragana Saxe e Coburgo, seu filho
primognito. E ele nunca estivera to perto, e ao mesmo tempo to longe, de
se tornar o monarca do III Reinado no Brasil. [pg. 08]
O prncipe
maldito
traio e loucura na famlia imperial
O prncipe
Mary Del Priore
maldito
Captulo I
O menino que queria ser rei
O Po de Acar velava sobre a entrada da baa, quando o Boyne cruzou a chegada.
Eram sete horas da manh do dia 1 de abril de 1872. O Rio de Janeiro era, ainda,
uma cidade onde africanos fugidos eram caados nas ruas. Onde a febre amarela e a
varola eram a maior causa de mortes na populao, enquanto poderosos tomavam
o vapor e atravessavam o Atlntico para tratar de seus incmodos
hemorroidrios. Onde se tomava leite ao p da vaca e os perus andavam em
bandos pelas ruas, tangidos pelo vendedor.
A famlia imperial que chegava da Europa foi recebida com entusiasmo. No
convs, ao lado do av, o prncipe Pedro Augusto ouvia o distante clamor vindo das
praias. Dos vapores, escaleres e canoas que aguardavam no canal partiam saudaes.
Em torno do Arsenal da Marinha, milhares de cabeas, lenos, sombrinhas, chapus
pareciam lhe acenar. Eram vivas de amor e regozijo, diriam os jornais. Da costa,
chegava o som de metais e tambores das bandas navais. Das janelas, choviam flores.
O menino bebia a cena. Era assim, ser imperador? O povo aguardava a famlia
imperial comprimindo-se ao longo da rua Primeiro de Maro. Acenos, gritos de
boas-vindas, e os membros do ministrio e os altos funcionrios em fila para o
beija-mo informal. Tudo era alegria no rosto de D. Pedro II e D. Teresa Cristina.
Ele mesmo tambm se sentia feliz. Feliz, talvez, pela primeira vez desde que a me
morrera.
O av abraava o neto com ternura. Afinal, era o seu menino. A sua cara.
Durante o primeiro ano em que o pequeno estivera na Europa, como se queixara,
com saudades. Pedro era o neto to bonitinho, o neto que alegrava, o chibante
netinho, o galante que promete ser muito inteligente. Agora em suas mos, a
criana de 6 anos, fluente em [pg. 13] alemo, estava prestes a ser modelada. Caso o
organismo de Isabel no operasse um milagre, Pedrinho substituiria Pedro. Seria
Pedro III. Melhor prepar-lo.
De Paris, seu pai, Luis Augusto Maria Eudes de Saxe e Coburgo, conhecido
como Gusty, escrevia para a querida mame, ou seja, a av Teresa Cristina: Tive
medo que os pequenos sofressem em funo do calor do Rio, mas tambm
verdade que eles devem se acostumar ao calor. Os outros dois pequenos vo muito
bem, se desenvolvendo de maneira satisfatria. Os estudos de Jos um pouco mais
adiantados do que pensei. Assinava Seu obediente filho. As cartas eram curtas,
quase bilhetes. Contudo, ele se preocupava com a sorte dos dois filhos imigrados.
Mas o que era ser pai na segunda metade do sculo XIX? Duas caractersticas se
somavam. Na literatura, eram figuras autoritrias. A severidade era a imagem mais
comum associada ao genitor.
Mesmo na simplicidade domstica, os privilgios do pai todo-poderoso no
eram jamais abolidos. S que o sculo XIX era, tambm, o sculo da
supervalorizao da afetividade. Ocorria uma espcie de proclamao da
paternidade como forma de cidadania ao mesmo tempo em que se via a heroizao
dos papis paternos: Meu pai, meu heri. So Jos entrava no rol do protetor da
famlia. D. Pedro II no deu o exemplo, escolhendo os professores e gerenciando a
formao moral de suas meninas? No disse vrias vezes que considerava a leitura,
junto com a educao das filhas, o maior prazer de sua vida? A ltima etapa desta
caminhada era a sucesso paterna nos negcios. Ou numa Coroa.
Era vitoriana, poca, portanto, de valorizao da paternidade. Mas, muito mais
forte, de valorizao da masculinidade. Masculinidade que era o oposto da
feminilidade da me. Sem o culto mulher, que era central para a cultura vitoriana, a
virilidade ficava incompleta. A masculinidade era celebrada com exibicionismo.
Alguns crticos, entre eles Goethe, se queixavam da presena de efeminados nos
meios cultivados. Desde cedo, os meninos eram treinados para brigar, boxear, lutar,
duelar e caar. A [pg. 14] luta pela sobrevivncia este era o sculo de Darwin
justificava que o mundo animal servisse de exemplo para prticas que se repetiam no
exerccio burgus da acumulao. Ou no aristocrtico, de acumulao de trofus.
Gusty passava o tempo atrs de ursos, raposas e lebres. A frouxido de gestos e de
atos era impensvel. Da a ginstica. A me, princesa Leopoldina, combateu desde
cedo as pernas de manteiga, o andar de papagaio e a barriga de Pedro Augusto.
Exerccios, muitos. At os mais violentos. Nas escolas alems e austracas, o duelo
com facas e espadas era emblema de civilizao. As noes de honra antes
morto do que desonrado enchiam as cabeas e ditavam a moda.
As irmandades nas universidades anglo-saxnicas eram a regra. Bem
organizada, a camaradagem masculina estabelecia laos com conseqncias no
mundo poltico e social. Um rosto marcado por cicatrizes de lutas era reconhecido
como um rosto viril. Nesta poca, Sigmund Freud inaugurou a descoberta do
inconsciente, debruado sobre a dupla sexo e agresso, enquanto a literatura
romntica contava a saga de heris msculos e bravos. Foi este misto de virilidade e
afetividade que Pedro Augusto deixou para trs ao deixar seu pai. Foi deste ninho de
autoridade e calor que ele alou vo, abandonando o palcio de colunatas brancas e
os invernos que cobriam os parques vienenses de neve. Por seu lado, Gusty aceitou
que os avs viessem buscar os meninos mais velhos. Afinal, com a esterilidade de
Isabel, era preciso preparar o futuro Pedro III para assumir o trono brasileiro. Um
Saxe e Coburgo nas Amricas, no imenso imprio de caf e acar, consolidava um
sonho familiar: o de Leopoldo I da Blgica, de Maximiliano do Mxico, de seu pai e
o seu prprio.
Depois do desembarque, a boca escura da capela imperial engoliu os mais
velhos. Mas Augustinho tinha dor de barriga e por isso os dois irmos foram
levados, em carro aberto, para So Cristvo. Pedro Augusto ainda teve tempo de se
impressionar com os drages que sustentavam o primeiro arco, com as figuras que
representavam o comrcio, a indstria, a agricultura e as artes, com os coloridos
emblemas martimos. S no [pg. 15] conseguiu ler as inscries Gratido e
Trabalho, na decorao oferecida pelo banco Mau. Os meninos tambm no
viram os coretos enfeitados pelas luminrias a gs que, noite, se acenderam. E
acenderam a cidade.
A convite do imperador, o reitor do Externato D. Pedro II deixara as suas
funes para tornar-se preceptor de Suas Altezas. Ele era o Joaquim Pacheco da
Silva, futuro baro de Pacheco: mdico sisudo e educado. Ficaria muito grato se o
Sr. Pacheco tomasse a seu cargo a educao de meus netos, Pedro Augusto e
Augusto, ainda na infncia e rfos de me. [...] Bem sei os meninos, muito
travessos, esto atrasados e falam pessimamente o portugus, apenas conhecem a
lngua alem, lhe dizia o av.
Os primeiros anos passaram rpido. Aos 9 anos incompletos, Pedro Augusto
foi matriculado na escola. Nas fotos com uniforme, exibia um lindo rosto de anjo.
Anjo de olhar triste. Na imagem no se viam as cicatrizes internas. O colgio era o
Pedro II. Mantido pelo imperador e inspirado nos liceus franceses, era o padro de
ensino secundrio e a nica instituio que possibilitava o ingresso nos cursos
superiores. Seus exames de admisso, to disputados, eram publicados nos jornais.
O aluno que completasse o curso recebia o ttulo de Bacharel em Cincias e Letras
baga do carvalho e ramo de loureiro, a Bacca et laurea e tinha acesso direto s
Academias. D. Pedro, que costumava se referir a ele como seu colgio, escolhia os
professores, sabatinava os alunos, assistia s provas e conferia as mdias.
No incio orfanato, depois seminrio, o colgio era a glria do ensino na
Corte. Cpia de Eton, na Inglaterra, do Louis-Le-Grand, em Paris, as listas de
chamadas atestavam a elite que por ali passava. A fachada do externato dava sobre a
rua Larga e um pouco da paralela, a Camerino. Por trs, salas e corredores se
espichavam em velhas construes do sculo XVIII. No interior do prdio, se ouvia
o repique dos sinos da igreja de So Joaquim, anunciando a visita do imperador
escola. Durante [pg. 16] o recreio, os alunos acompanhavam as acrobacias do velho
sineiro, um africano de nome Pirro, que caava corujas na torre.
J o internato, onde meteram o pequeno prncipe, ficava no Engenho Velho,
na Chcara da Mata: um sobrado com sete palmeiras na frente, prximo ao Largo
da Segunda-feira. Pintado em azul-anil com alegorias na platibanda e estuques
imitando bronze, exibia um letreiro colossal: INTERNATO DO COLGIO
PEDRO II. A entrada central era lavrada em cantaria em meio s nove portas,
encimadas por nove janelas. O vestbulo branco e cirrgico recebia pais e filhos. As
aulas comeavam em meados de fevereiro. A entrada era solenizada. Neste dia, se
enfeitava a palmatria, posta em lugar de destaque. Alm das salas de aula, a
biblioteca impressionava: mapas, estampas de histria santa, colees botnicas e
zoolgicas pendiam das paredes. Na sala comum de estudos, grandes armrios de
portas numeradas permitiam ao aluno guardar cadernos, livros e pertences pessoais.
Mas, tambm, folhas rendadas, caveiras de passarinho, ovos vazados, cobras em
cachaa. O pequeno prncipe gostava de pedras. Logo viu onde ia esconder as suas.
A bagagem era pouca. Toda a roupa e as botinas eram marcadas com o
mesmo nmero. Guardadas na rouparia, eram arrumadas num escaninho com o dito
nmero. As camas de ferro, tambm numeradas, traziam plaquinhas identificando
os ocupantes. Nos quartos, baldes de mijo ficavam dentro de mveis especiais,
perto das portas e janelas. O cheiro de creolina mal disfarava o de urina. O
refeitrio se compunha de quatro imensas mesas de mrmore volta das quais se
sentavam cinqenta alunos.
Durante as refeies, um deles lia as cartas que escrevera para a famlia,
maneira de entreter os demais. Guardar o po da merenda vespertina era maneira de
ter rao extra, frente ao magro caf-da-manh. Uma sineta estridente marcava a
passagem do tempo. Uniformes dirios eram fardas verdes, trazendo o PII do
monarca. As provas exigiam casaca, gravata branca, punhos rendados e luvas de
pelica. Atrs das mesas cobertas [pg. 17] de veludo bordado a ouro, nos exames de
fim de ano, se enfileiravam as tnicas pretas do reitor e dos examinadores. Para o
menino Pedro Augusto, a entrada no colgio foi a passagem para a vida comunitria.
Dormir junto, comer junto, brincar junto, estudar junto. Chorar... s!
Ele teria que estudar. E muito. A reprovao nos exames do Pedro II era
sinnimo de luto familiar. De aluno pestiferado! Sem frias, encerrava-se o menino
em casa, portas e janelas fechadas. Um chefe da disciplina era o senhor absoluto dos
destinos: controlava os castigos e as sadas: Comunico-vos que o aluno tal
perturbou o estudo da noite com cacholetas e besouradas. Sbado, o moleque no
iria para casa. A cafua priso escolar fora, contudo, suspensa pelo Dr.
Pacheco. No recreio, cuidados. Nos primeiros dias no faltava o bolo humano!
Bolo humano!. O novato era enterrado sobre uma montanha de ndegas. Os
veteranos vinham correndo e se jogavam sobre ele. A chulipa era o cascudo que se
tinha que passar adiante. Os trotes eram obrigatrios nas semanas iniciais, e,
esquecido de que era prncipe, o menino no escapou do ritual.
Entre as aulas, havia um recreio de dez minutos. Servia para correr s privadas,
para o cigarrinho escondido, para matar a sede nos bebedouros. Em sala de aula, os
ritos eram de praxe: o arrasta-p demonstrava reao coletiva de insatisfao com o
mestre ou de riso de um colega. O ensino era fraco. Os alunos bocejavam,
bestavam, sonolentos. Os professores, com honrosas excees, eram funcionrios
mal pagos, geralmente pertencendo a um nvel social e de instruo inferior aos
prprios alunos. Tinham, portanto, que se bater contra eles. Revidavam com
castigos terrveis as piadas, as caricaturas nas latrinas e a gozao que fermentavam
entre os jovens. E no faltavam crticas de alunos a Benjamim Constant que
lecionou na casa por sab-lo protegido de D. Pedro, mas capaz de maldizer a
monarquia na frente da garotada.
Havia amores platnicos. Alguns alunos veteranos sabiam ser paternais,
fraternais, mesmo maternais. As obsesses erticas, tpicas da idade, [pg. 18] eram
saciadas em folhetos que circulavam das mos de funcionrios para as dos alunos,
mediante alguma propina. Saciavam-se melhor ainda nas colees de livros de arte.
Pinturas e esculturas prolongavam a esfera do que era possvel ver ou imaginar:
sobretudo, os quadris e seios marmreos. As cabines ticas, nos feriados e frias,
alimentavam a viso do corpo feminino nu. As feiras populares exibiam
reprodues anatmicas em cera. As peas erticas encontradas em Pompia
circulavam em fotografias, instruindo sobre a matria arqueolgica e,
principalmente, sobre sexo. Completava-se a formao sexual pela contemplao de
todas as Vnus possveis, em mrmore ou papel. Para se excitar, havia os cabelos
femininos, to longos que eram capazes de vestir peitos e quadris, verdadeiro fetiche
vendido a metro na rua do Ouvidor: cabelos de meninas mortas, de meninas virgens
com os quais os garotos sonhavam. E a lingerie? Seu perfume ou a simples exibio
de uma pea tinha uma incrvel carga ertica.
Esta foi a poca dos ladres de lenos femininos, cujo perfume embalava o
sono dos rapazes adolescentes e adultos. J o leno masculino era o companheiro
dos punheteiros. Quase nada se dizia, mas os professores estavam alerta para o que
consideravam uma praga. A masturbao e as perdas seminais influam no
rendimento escolar. Os meninos emagreciam. Cobriam-se de espinhas. O vcio
solitrio degenerava em diarrias brabas. Inspecionava-se o dormitrio. Investia-se
na prtica da ginstica. Era o erotismo romntico ensinado desde a puberdade. Pois
a meninice dos netos do imperador transcorreu sem maiores problemas entre o
colgio e a casa do av.
Instalados no velho Pao, os dois irmos descobriam a casa onde as princesas
Isabel e Leopoldina passaram a infncia. Nas noites mergulhadas no silncio do
grande palcio, Pedro Augusto se revirava na cama. Ao lado, Augustinho ressonava,
exausto, mas ele tinha dificuldade para dormir. Era um suplcio esperar a me que
no vinha mais para lhe dar o beijo noturno. Para distra-lo da dor, os avs tinham
comprado uma lanterna mgica. O aparelho era colocado sobre a luminria a gs, e,
como [pg. 19] por encanto, as paredes cansadas se revestiam de pequenas aparies
sobrenaturais, de luzes e cores em forma de arco-ris ou estrelas. Lutando contra o
cansao, o menino retroagia no tempo.
Algum lhe contara sobre o bigode espesso, o queixo msculo, o cabelo curto,
a gravata fina e as mos hbeis. Parecia um homem. Mas era Josefina Durocher,
parteira e mulher-macho, a pux-lo entre as coxas da me. Era francesa, atendia em
casa e tinha toda a confiana da famlia imperial. Foi a primeira a demonstrar que
no se provava virgindade em mulher enfiando um ovo vagina adentro. Era a tarde
do 19 de maro do ano de 1866. Os canhes das fortalezas e navios no porto da
Mui Herica e Leal Cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro anunciaram seu nas-
cimento. Era o primeiro neto de um av de 40 anos que, na juventude, enterrara
dois herdeiros.
A luz na palmatria de nquel presa na parede avivou outra imagem: a de um
crio esculpido e ornado de ouro com quatro peas de dez mil-ris cravadas em
forma de cruz. Ele iluminava um aparador coberto de veludo verde, sobre o qual
esticaram a veste alva que o cobriria. J tinha quase um ms quando atravessou o
cais do Carmo que ligava o pao capela imperial. A penugem dourada da cabea
sobressaa entre os membros do cortejo solene, gente morena e vestida de escuro.
Com os pais, igualmente louros, mais pareciam uma trinca de cisnes a atravessar um
charco de rs pardacentas.
A fila compenetrada de membros da famlia imperial caminhava sob o badalo
dos sinos e os vivas do povo. A gente se apinhava nas janelas do hotel Pharoux ou
nas sacadas que se enfileiravam do largo da Assemblia rua do Cotovelo, da So
Jos ao beco da Fidalga. Belo como um cromo, ia viver o cerimonial minucioso
prescrito pelas normas das cortes. Seus padrinhos: o av, Pedro II, e a rainha dos
franceses, Maria Amlia de Bourbon-Npoles, representada pela imperatriz Teresa
Cristina. A lentido nas comunicaes os cabos telegrficos submarinos seriam
instalados somente em 1874 impedia, todavia, de saber que a dinda morrera 16
dias antes da festa. [pg. 20]
Emocionados, todos cruzaram a portada em lioz, vinda de Mafra, encimada
por um medalho, com a Virgem do Carmelo. Emocionados, sim. Afinal, a falta de
herdeiros vares era um perigo para a Coroa brasileira. A jovem me, Leopoldina,
perdera dois irmos: Afonso, falecido aos 2 anos, e Pedro, antes de completar um.
Sua irm, Isabel, fora doente na infncia e, por duas vezes, esteve em perigo de
morte.
Sob a abbada dourada da S, acariciando a nuca leitosa da mulher, com a
criana no colo, Gusty no podia deixar de pensar que era este o quinto imprio no
qual pisavam os Saxe e Coburgo. De um pequeno ducado, ou melhor, de dois
pequenos ducados geminados que compreendiam, em 1867, no mais do que
168.851 almas, contando somente duas cidades, Gotha e Coburgo, saram, no correr
do sculo, vrias casas reais ou prncipes para dinastias em crise de varonia. De fato,
seu pai, Augusto Carlos, duque de Saxe e Coburgo, era aparentado com diversas
cabeas coroadas; primo-irmo do prncipe consorte da Inglaterra, o famoso
Alberto, casado com Vitria; primo-irmo do rei honorrio de Portugal, D.
Fernando; primo do rei Ferdinando, dos blgaros; e, finalmente, sobrinho do rei
Leopoldo, dos belgas, um dos maiores articula-dores polticos do sculo. Seu sangue
j pulsava em cinco casas reinantes. Por pouco no fora coroado, aos 19 anos, rei da
Grcia. Se no fosse to jovem e catlico, as ilhas do mar Jnico no teriam ido
parar nas mos de um dinamarqus: o duque Cristiano de Sonderburg-Glcksburg.
Por que no encontraria um trono, para si e para os seus, na longnqua Amrica
tropical, o Brasil do fumo e do caf?
Contida ao lado da princesa-me, a mana Isabel sofria. Ah! A envidia. A
felicidade da irm lhe fazia mal como um espinho enterrado no corao. Trazia
irritao, vergonha, pois a alegria de Leopoldina era, para ela, um copo de veneno.
O prazer de uma tornava-se ferida na outra. Inveja no olhar carregado de amargura.
Olho gordo, olho grande sobre a pequena criatura causadora deste conflito ntimo.
Frustrao quanto a [pg. 21] este objeto no possudo: um filho! Casara primeiro.
Seria estril? Maldio. Quantas vezes no fora a Caxambu e Lambari tomar banhos
de guas milagrosas. O bid de loua inglesa transbordando, e as ablues repetidas,
na tentativa de tornar o solo fecundo.
Frialdade ou frigidez era o nome que davam a esta doena. Com quantos
remdios no tentara solucionar o problema, at os mais populares: ch de erva de
carrapato ou de figueira-do-inferno. Novenas santa Ana e santa Comba,
padroeiras da fertilidade conjugal. Defumadouro das partes ntimas com a erva
chamada pombinha. No ousara pedir ao marido, Gaston, que urinasse num
cemitrio pela argola de uma campa. Que untasse a regio pbica com sebo de
bode, ou que bebesse garrafadas de catuaba. Ele a tomaria por uma primitiva. Riria-
se dela. Ainda assim, escrevera ao marido: Eu quero tanto ser a me do teu filho,
ter um filho de quem eu amo tanto, de quem eu amo acima de tudo, meu amor!!!.
O menino no seio direito da irm, e uma serpente, no seu seio esquerdo. Uma
sorria, a outra sangrava. Que prazer maior do que a destruio do objeto invejado?
Minha maninha do corao, mana e amiga, queridinha, nariz de telha, senhora
laranjeira. Amigas? Desde pequenas, as desavenas entre as princesas eram feitas de
silncio e discrio. Leopoldina, a bela. Isabel, a feia, destituda de sobrancelhas, o
que aumentava o seu j comprido nariz. Feia, mas boa e angelical, segundo a
condessa de Barrai, aia das princesas. Isabel merecia toda a ateno da dita condessa
e, tambm, da governanta francesa, Madame Templier. Afinal, era a sucessora do
trono e descrita como muito inteligente. Leopoldina, a segunda na linha de sucesso,
tinha que viver com as desvantagens de ser a mais moa. Dava o troco: era rebelde,
irascvel, difcil. Quando no se bicavam era de causar espanto, segundo conta a
Barrai imperatriz Teresa Cristina por ocasio da viagem do casal imperial ao
Nordeste.
A mana foi Glria, queixava-se ao pai Leopoldina, divertimento, e bom
divertimento; eu j ouvi missa, no acha que eu devo me divertir [pg. 22] a tempo
que ela se diverte? E a resposta paterna: No tem obrigao de estudar seno
durante o tempo que marquei; porm quem estuda mais sabe mais... Adeus, seja boa
menina! Pois, sim, boa menina. Difcil dobrar esta personalidade forte. Minha
travessa Leopoldina, a chamava a Barrai.
Pois da mais moa viera o primeiro herdeiro. Da bela, nascera a fera. De
sangue turings e no francs, era o primeiro herdeiro, promessa de futuro
imperador do Brasil. Criana gerada sob o signo de La Guerra Grande, a Guerra do
Paraguai. Da, talvez, ter nascido frgil. Um primeiro batismo, sob comoo dos
avs e pais, foi in extremis. Depois ganhou cores e fora. Gusty ainda guardava as
impresses da partida, nove meses antes, com o sogro para Porto Alegre. Viajaram
na segunda quinzena de julho, logo depois que a notcia da invaso inimiga chegara
Corte: Uruguaiana fora ocupada a mando de Solano Lopez. A sada no vapor Santa
Maria, comboiado por dois transportes cheios de tropas e o povo a acenar das
praias: inesquecvel. Mas, se perguntava, quando teriam concebido este filho? Os
anjos na talha do altar-mor da S fizeram-no pensar nos outros. Naqueles outros
que os vigiavam entalhados na cama de casal, quando ele a procurara, to formosa e
doce, de quatro, sob metros de pano do camisolo.
E a cruz, a toda-poderosa cruz do altar-mor, lembrava as missas a cu aberto,
celebradas nos hospitais de campanha para os combatentes, ou as pequenas igrejas
caiadas de branco, to pobrezinhas em comparao com a S da capital, igrejas que
serviam de hospitais aos feridos nos campos de batalha. Lembrou-se de si mesmo,
um europeu em contraste com os morenos voluntrios da ptria, os zuavos da
Bahia, negros vestidos com o fardamento do Exrcito francs na Arglia, os
gachos peludos que compunham os Guardas Nacionais da cavalaria ligeira. J os
fogos que estouravam do lado de fora da catedral para saudar seu menino
lembravam o espocar das espingardas a mini, das clavinas e das pistolas usadas pela
cavalaria no cerco de Uruguaiana.
O casamento no qual nascera esta criana se realizara um ano antes. Duas
irms unidas a dois primos, direto do interior da famlia real para o [pg. 23] noivado
e o casamento. Unies dinsticas eram planejadas com anos de antecedncia.
Quando Isabel e Leopoldina tinham apenas 9 e 8 anos, D. Pedro especulava sobre
seus maridos. Um portugus? Nem pensar. Teria a oposio dos brasileiros. Seria
como voltar aos tempos da colonizao. No havendo nobres brasileiros, os
maridos tinham que vir de casas reais europias de religio catlica. O importante
que, dentro dos limites de um casamento arranjado, houvesse pelo menos simpatia
entre os companheiros escolhidos.
Escrevendo ao cunhado, o prncipe de Joinville, casado com Francisca, sua
irm mais moa, a quem encarregara de arranjar maridos para as meninas, D. Pedro
afirmava que no as obrigaria a casar contra a vontade. Ele jamais esquecera sua
decepo ao ser apresentado a Teresa Cristina: feia, sem graa e coxa. Diante da
decepcionante viso, ele passou mal. Quase desmaiou. E ela, por seu lado, chorou
desesperadamente. Envergonhava-se, pois sabia que no correspondia, nem de
longe, imagem na miniatura que da corte napolitana tinham enviado ao noivo no
Brasil.
Em maio de 1864, a fala do trono anunciou o casamento das princesas. J
estavam ambas, como se dizia, ento, colocadas. Nenhuma palavra sobre os
possveis pretendentes. Uma lei foi baixada, assegurando s duas irms dotes e
rendas. Na mira, os sobrinhos do cunhado Joinville. Um filho de sua irm,
Clementina, e outro do irmo, prncipe de Nemours. Para sorte das duas jovens, as
descries e fotografias mais aproximavam os rapazes da imagem de prncipes de
contos de fadas do que de sapos. Gusty, belo, bem batido, um pouco frvolo.
Gaston, o futuro conde dEu, como sua futura noiva, alis, bom, amigvel,
inteligente. E, como ningum perfeito, um pouco surdo. No se sabia quem
ficaria com quem.
Pois a 2 de setembro de 1864 chegavam ao Rio o conde dEu e o duque de
Saxe. Meu pai desejava essa viagem tendo em vista nossos casamentos. Pensava-se
no conde dEu para minha irm e no duque de Saxe para mim. Deus e nossos
coraes decidiram diferentemente, escreveu [pg. 24] Isabel em seu dirio.
Enquanto isto, Gaston se correspondia com a irm, preparando-a para conhecer a
noiva: nada tem de bonito no rosto, mas o conjunto, afirmava, gracioso.
Isabel estaria mais apta do que Leopoldina para assegurar-lhe a felicidade
domstica. Em resumo: os bonitos, entre eles. E os feios, entre eles. A 15 de
outubro deste mesmo ano, Isabel se casava com o conde dEu, elevado a marechal
do Exrcito brasileiro. Em 15 de dezembro, na mesma capela real, os sinos tocavam
para Leopoldina e Gusty, nomeado almirante da Esquadra Imperial. Eram duas
crianas: ela, com 17 anos, e ele, com 20. Ele, nem maioridade possua. Foi mesmo
preciso enviar um diplomata a Viena, a fim de obter do chefe da famlia do jovem
prncipe os plenos poderes necessrios.
Incumbindo-me Sua Majestade o imperador de convidar para assistir de
grande gala, em uma das tribunas da imperial capela, ao ato solene do feliz
consrcio... Deus guarde V. Exa., dizia o convite.
Para as irms, o casamento significava o adeus Quinta da Boa Vista, com sua
alameda de bambus e mangueiras onde brincavam de esconde-esconde e de
bonecas. Mas, tambm, adeus s aulas de histria do Brasil, ingls, alemo, msica,
filosofia, botnica, bordado, caligrafia, desenho, fotografia e dana. Era o fim das
festas de meninas que rompiam o clima carrancudo do palcio, festas que
excluam polticos e nas quais encenavam com amigos peas de teatro escolhidas de
um livro francs o Thtre des Petits Chataux, alternando-se em vrios papis:
flores falantes, fadas, bruxas. Era o adeus canja de galinha quase diria,
carruagem de gala fora de moda, voz bem timbrada da imperatriz, que, cada vez
menos, solfejava Una Voce Poco F de Rossini.
Deixavam para trs o velho palcio, quase um convento, onde tinham
crescido, com suas plantas, pssaros, animais favoritos. Era preciso deixar o ninho
onde se sacrificavam aos ritos familiares. Deixar-se uma outra. Deixar os pais.
Deixar os quartos e as camas onde sonharam com estes companheiros prometidos.
Percorriam as peas da casa onde passaram a infncia, que abandonariam para
sempre. Diziam adeus a cada objeto, ao [pg. 25] piano, aos livros, s caixas de
costura, aos velhos brinquedos. Em pouco tempo, o assunto tornou-se o cuidado
com a futura casa, os filhos que viriam, o amor aos maridos. Agora, depois de
casadas, poderiam, tambm, ir a bailes e teatros que nunca freqentaram. Escutavam
de olhos baixos, dceis, submissas, tudo o que dizia respeito a tais questes. Sabiam,
contudo, que estavam sendo empurradas para uma vida nova. E para o nico
exerccio que dava ento sentido vida das mulheres: a maternidade. O que era,
ento, uma mulher casada? Algum que desejasse ser me, amar seu marido e
praticar a arte de agradar.
Tudo o que se ensinava a respeito da maternidade era contraditrio. Sim, a
criana era uma graa de Deus. Mas era, igualmente, o comprovante de atos
grosseiros. Atos quase que repreensveis, mesmo entre esposos, se a procriao no
os justificasse. A moral ditava as regras para as mulheres. Em vez de lhes ensinar
apenas o pudor, se lhes impunha a inocncia. Ou seja, a absoluta ignorncia do sexo
fsico. Eram privadas de qualquer olhar sobre o prprio corpo. Fechar os olhos para
trocar de roupa era obrigatrio. E a toalete ntima? Esta era tida por algo prximo
libertinagem. Para estimular o instinto materno, ganhavam bonecas, pequenos
cachorros e gatos. Encarnavam todo o frescor do mundo, toda a pureza,
comparadas a lrios, pombas, anjos. Branco era o vestido da primeira comunho, da
primeira festa e do casamento. Branco era o enxoval. A rosa branca era smbolo de
virtude, castidade e abnegao, flor da mocidade.
O ardor do noivado era feito de negativas. O requinte consistia em resistir
cedendo a um afago, um suspiro, um olhar, at ousadia de um gesto impaciente de
ternura. E as surpresas da primeira menstruao ou da noite de npcias? Alguns
mdicos sugeriam usar a ave-maria e a passagem o fruto do vosso ventre para
explicaes superficiais e mnimas. As mes? Recuavam. No queriam macular a
timidez de suas virgens filhas com muita informao. Os maridos? Eram os nicos
qualificados para iniciar a jovem esposa. Eles buscavam as ignorantes dos jogos
erticos, a quem iriam despertar com prudncia. [pg. 26]
As funes que decorriam do casamento se realizavam por instinto, como que
sob o imprio do sono. A qumica fisiolgica, to complicada, percorria seu
caminho sem pedir conselhos. A perpetuao da espcie, a continuao da
linhagem, operada pelo amor e o matrimnio, a constituio da famlia eram, enfim,
o nico objetivo. O casamento era o sonho legtimo. Mas no s. Para dar ao amor
conjugai o infinito prazer era preciso sofrer na prpria carne. Quantos filhos
arrancados do fundo das entranhas? E depois dos gritos e da agonia do parto, do
permanente cansao e da inquietao, das ansiedades e tristezas em torno de um
bero, para que servia a mulher seno para engravidar de novo? A medicina, por
meio das leis da ovologia, at recomendava que uma jovem s se casasse dez dias
depois do trabalho de ovulao. Era preciso peg-la num momento de esterilidade,
do contrrio ela ficaria grvida no primeiro ms de casamento. No sobraria tempo
nem para conhecer o marido.
Para Leopoldina e Gusty, a cincia do amor tinha ento um recado simples:
era preciso amar, sem nada precipitar. Deixar fluir as coisas, os passos se sucedendo
na ordem natural, evitando toda irritao duradoura. Mo na mo. Olhos nos olhos.
Enquanto o dia D no chegava, os jovens se achegavam. Trocavam bilhetes
amorosos, pequenas lembranas, ainda tenho que escrever muito a Gusty,
explicava ao pai, desculpando-se pela falta de tempo... cordiais saudaes e
saudades a Augusto, a quem no tive ainda o prazer de ver. D-lhe este amor-
perfeito da parte de Mme. Pica-pau. O que no exprimiam por palavras, diziam,
um ao outro, com a gramtica do corpo: rubores, piscadelas, olhos brilhantes,
tremores. Ou era revelado em carta para Isabel:
No creia que a carta que Augusto escreveu foi ditada por mim; ele
escreveu sozinho. O portugus dele tem feito progressos. As soires tm se
tornado escola. Cada vez eu gosto mais dele como ele a mim. Voc deve, sem
dvida, sentir o mesmo por Gaston. Eu no [pg. 27] posso mais dizer uma
coisa a Augusto sem que o papai ou a mame queiram saber. E agora vejo-me
perpetuamente em calas curtas. [...] Em Petrpolis, hei de ter o prazer de
almoar com meu benzinho todos os dias que ele no for caa.
Fragmentos desse processo amoroso revelavam mais alm da felicidade dos
encontros. Expunham a matriarca por trs das filhas: zelosa, dominadora e,
provavelmente, ciumenta. Matriarca como as muitas que Freud ir denunciar,
algumas dcadas mais tarde, como mes castradoras. Mes sufocantes. Maman, as
slabas midas invocadas na mais extrema dependncia, dolo reclamando preces.
Mes capazes de expor a ambivalncia dos sentimentos maternos. Como elas, a
imperatriz colava-se s jovens mulheres. Bebia-lhes a felicidade, num copo de fel.
Lembrava-se com amargura dos primeiros meses do seu prprio casamento, tempos
marcados por estranho acanhamento do marido. Na Corte, at correram rumores
registrados em correspondncia diplomtica uma vergonha! Se ouvira dizer que
o Daiser escrevera oficialmente a Metternich comunicando que o imperador tem
impedimento fsico para as funes matrimoniais, com o adendo: a comunicao
fora documentada com uma atestao do Dr. Sigaud. Um ms depois das bodas, os
criados que lhes mudavam os lenis murmuravam que no havia sinal de
intimidade entre eles. O matrimnio das filhas lhe enchiam destas terrveis
lembranas. Mas havia um alvio nisto tudo.
Exultava por ver-se, finalmente, livre como confessou a uma dama do pao
que a cumprimentou , livre insistia da Senhora Barrai. A aia de Isabel e
Leopoldina, sobre quem corriam rumores de uma ligao amorosa com D. Pedro II,
foi sempre uma sombra sobre ela. Teria Teresa Cristina jamais entendido que era
preciso renunciar aos seus desejos de dominao, adaptar-se, reduzir-se figura
humana, encontrando um meio-termo entre a intruso destrutiva e o devotamento
sem limites? Doente, envelhecida, nunca bela, me de dois filhos mortos,
observadora sofrida dos amores concretos ou imaginrios do marido, com quais
sentimentos via a felicidade de Leopoldina? [pg. 28]
Durante o noivado, esta desabafava com a irm: Eu estou com inveja sua por
causa do bom tempo que voc h de estar passando s com seu Gaston e no sendo
vigiada pelos olhos incomodativos de mame, que ontem no deixou de despreg-
los de ns ambos. Eu no posso dizer uma palavra a Augusto sem que mame
queira saber o que eu disse... Queixava-se tambm sua confidente, a condessa de
Barrai: Mame muito boa pessoa, mas muito dominadora, gosta que tudo v
como ela quer. Mesmo papai deve fazer o que ela quer, apesar de que Deus no
Evangelho diz que a mulher tem que se submeter ao homem... mas voc conhece
mame e sabe que ns nunca lhe dizamos alguma coisa sem que a Josefina e toda a
viscondessada soubessem. O que lhe posso dizer que as duas pessoas com que
meu gnio vai melhor so voc e Gusty.
Ou ainda:
Muito querida Isabel
Voc sabe que quando uma pessoa tem vontade de chorar e lhe dizem
que ela chore isto ainda d mais vontade. Depois mame est perpetuamente
dizendo que eu tenho cimes da amizade que ela tem com ele. Diz tambm
que eu no quero fazer prazer a ele. Como! Eu! Que gosto tanto dele. A minha
vontade s de agradar a ele. Ele gosta tambm muito de mim. Mas ainda no
pudemos falar de nossos negcios. Esta cartinha uma lengalenga, mas voc
sabe que depois de Augusto a voc e condessa que quero contar minhas
misrias... Tomara j ir para Petrpolis para que Augusto possa se divertir um
pouco caando e passeando. Coitado, at agora ele tem estado condenado a
ficar sozinho naquele imenso palcio da cidade. J sei que tem um co
emprestado e que este chora a separao de sua mulher. Eu compreendo isto
pela largura do tempo quando no estou com o Augusto. As saudades so
muitas.
Todos lhe beijam a mo. [pg. 29]
Leopoldina e Gusty se casaram. A lua-de-mel foi em Petrpolis. Os
pombinhos comearam a reformar um palcio prximo ao dos imperadores. O
chamado pao Leopoldina ficava entre a rua So Cristvo e a rua So Francisco
Xavier, comunicando com a Mariz e Barros toda calma neste recanto sossegado
do chamado Engenho Velho, antiga propriedade rural dos padres jesutas. O lugar
deve ter agradado ao duque de Saxe. Acostumado a cavalgadas e caadas na regio
de Ebenthal, onde residia na Europa, soube reconhecer no caminho que passava
frente da igreja de So Francisco Xavier a trilha para a mata da Tijuca. O governo
coibira o desmatamento, proibindo a derrubada de rvores nos mananciais dos rios
Paineiras e Carioca. Quando o casal se mudou, o major Archer j comeara o
reflorestamento com espcies nativas e exticas.
A presena da gua, bem como a mata remanescente nas encostas, atraa,
sobretudo, macacos, papagaios e preguias. Na vizinhana, s chcaras e vivendas.
Plantaes de caf, aqui e ali, ainda manchavam o pequeno vale. A cidade na qual se
estabeleceram os recm-casados ainda tinha muito de uma paisagem rural. A frente
do palcio passava, puxado a burros, o bonde da Companhia Vila Isabel, trazendo o
dstico Parque Imperial. A campainha da parelha de animais quebrava, de quando em
quando, a algazarra da passarada.
Incrustado num lindo parque, de frente para quatro palmeiras, o imvel nada
tinha de espetaculoso. De estilo neoclssico, parecia uma das construes que os
discpulos do arquiteto Grandjean de Montigny espalharam pelo Rio de Janeiro na
segunda metade do sculo XIX. O frontispcio, que ocupava dois andares, era
dividido em sete janelas sisudas, mas elegantes. Uma escadaria, cortando o prdio ao
meio, levava ao vestbulo de entrada. Em lugar de telhado, uma fieira de colunatas
fazia as vezes da cimalha. O interior era decorado ao gosto da poca, com pinturas
cenogrficas ou de naturezas-mortas. Nos tetos, o estuque trabalhado por artesos
recm-imigrados da Itlia. Bairros como o Catumbi, Rio Comprido e Tijuca
comeavam a ser ocupados por manses. [pg. 30]
Na correspondncia das manas constatava-se o aucarado do dia-a-dia. Um
mundo a construir. Se Gusty saa para cavalgar ou caar, Leopoldina se recolhia,
quase que religiosamente. Acalentava seu maravilhoso sonho. Reproduzia cada
detalhe de um marido terno, generoso e gentil. Ela repassava com doura sua alegria
e a energia explosiva. Recordava seu rosto, seus gestos. Enrubescia. Queria
pertencer e depender dele exclusivamente. Saboreava solitariamente as marcas
humildes da paixo. Se ele atrasava, derramava uma lgrima de impacincia, a
imaginao transbordava em imagens torrenciais as flores sobre a mesa arrumada
e rearranjada no o faziam chegar mais depressa. Mas, de repente, os passos na
escadaria, e, de dois em dois degraus, o jovem irrompia no salo. Eram felizes.
Minha querida Isabel
Como vai passando com seu maridinho? Eu estou em perfeita sade
assim como o meu. Eu vivo muito feliz com o meu Caro; Gusty excelente
para mim. Eu fao tudo o que quero, ele quer, bem entendido, porque a
vontade dele a minha... Mon bien assorti poux meu marido cheio de
qualidades tem feito lindas caas de pssaros... O tempo que passei sem
Gusty pareceu-me compridssimo.
Adeus... saudades a D. Gaston e meus cumprimentos mais afetuosos aos
outros.
Sua mana muito do corao e madrinha.
Como passava uma boa esposa o tempo? Cuidando da casa, dando ordens aos
domsticos, fazendo a lista da despensa, conhecendo todos os pontos de tapearia e
bordado, evitando frouxos de riso ou bocejos. E, alm de boa, uma honesta?
Devotando-se castidade e represso sexual. provvel que as duas jovens
princesas seguissem as regras da poca vitoriana. A felicidade domstica era o lema
que pendia sobre o leito conjugai. Maridos tambm tendiam a ser prestimosos e
devotados. [pg. 31]
O casal passava temporadas em Petrpolis. L no se tinha vida de castelo e,
ao contrrio, vivia-se numa exagerada simplicidade. A severidade do cerimonial era
substituda por um burguesismo sem etiqueta e, segundo alguns, sem gosto. Essa
falta de afetao era malvista por observadores estrangeiros ou mesmo nacionais,
que julgavam ter o casal imperial que dar o exemplo. As ms lnguas murmuravam
que tanta naturalidade amesquinhava a instituio monrquica. Um deles dizia entre
dentes: Oh! Ce nest pas la cour, cest la basse cour (no a corte, o galinheiro). O
programa dirio variava entre aguardar na estao os viajantes vindos do Rio,
passeios por entre chcaras, reunir-se para as celebraes do ms de Maria na igreja
Matriz, exposies hortculas no Palcio de Cristal, visitas ao hotel Orlans e
encontros nas duchas. O jornalista e escritor teuto-rio-grandense Karl von Koseritz
descreveu, menos cido, o cenrio: Uma populao elegante se acotovela na
estao; ligeiros cabs, puxados por cavalos de raa, so guiados por senhoras;
esbeltos cavaleiros caracolam sobre lindos meios-sangues, com um criado de libr, a
retro. A carruagem imperial circula, seguida de um carro a quatro, com veadores de
servio e uma dama da imperatriz.
Em grupos se comentavam produes literrias nacionais e francesas, a
estao do Theatro Lrico, a impresso dos ltimos espetculos, a voz das cantoras,
a plstica das atrizes, o valor musical das peas. Crtica fcil e aluses maliciosas
envolviam o nome de divas como Adelina Patti, Maria Durand, Salvini, Coquelin,
Sara Bernhardt. Discorria-se sobre os artigos publicados no Dirio de Notcias ou no
Jornal do Commercio. Ria-se discretamente de mais uma caricatura do imperador na
Semana Ilustrada. A evoluo das anquinhas e mangas bufantes ocupava as mulheres.
A sociedade se encontrava e convivia menos nas moradias quietas do que nas
ruas, na estao, na igreja, nos hotis e nos bailes. A chamada petite tiquette, uma
etiqueta com menos cerimnias, inspirada na corte [pg. 32] de Napoleo III, se
harmonizava com o cenrio buclico de montanhas, crregos e hortnsias,
reduzindo a famlia imperial sua expresso mais singela. Em sua correspondncia,
Leopoldina se queixava da chuva insuportvel e comentava os passeios a cavalo que
levavam o casal do Palatinato Rennia, os concertos de sapos ao cair da tarde. Em
casa, lia-se muito e at exageradamente. No poucas vezes, os moos escondiam os
livros do imperador, evitando que ele fizesse leituras em voz alta, quando todos
seriam obrigados a escut-lo, fingindo ateno. Passava-se tempo, tambm,
adivinhando provrbios, fazendo mmica, olhando lbuns de fotografia, jogando
prendas, o whist ou o voltarete. s 21 horas, noite calada.
Se na serra tudo era calma, nos confins do pas rugia a guerra. Era, apenas, o
seu incio. A rendio de Uruguaiana no fora o fim, mas o comeo de uma
prolongada luta. Foras e mais foras a Caxias, escrevia o imperador. Acabe-se
com honra a guerra... cumpre mandar soldados e mais soldados aos nossos
generais. Escrevendo condessa de Barrai, o imperador anunciava o fim do
conflito. Ledo engano. A guerra iria durar ainda cinco longos anos.
Mas foi em fevereiro que veio o sinal. Leopoldina trazia as marcas do amor de
Gusty. Muito sono e muitos vmitos. Doravante, o brinquedo seria com bonecas de
verdade. Este era o sculo da boa me, sculo em que o amor materno tornava-se
um cdigo de boa conduta para as mulheres. Considerado um valor vitoriano, ele
idealizava as relaes entre mes e filhos. Leopoldina, aos 18 anos, estava pronta a
enfrentar a agenda. Enquanto isto, nas academias de medicina, mdicos discutiam se
as mulheres frias no concebiam mais facilmente do que as amorosas. A
tranqilidade as ajudaria a guardar o esperma. De repente, o prazer feminino no era
necessrio procriao, se mostrando no apenas intil, como suspeito. O
importante era valorizar o pudor: o corao distante dos desejos lbricos. Manter-se
casta apesar da aproximao do companheiro. O pudor consistindo em no ter sexo
ou a ignorar que se tinha [pg. 33] um. Desviar a mulher de sua prpria sexualidade
era consagr-la exclusivamente maternidade.
Minha querida Isabel
Digo-lhe tambm que quando h dias passados estava muito enjoada e
toda mole e tonta, veio o Bonifcio de Abreu me ver e disse que isto era um
sinal de gravidez... Petrpolis insuportvel com a chuva... Os enjos
continuam... Hoje estou horrivelmente enjoada. Penso que ser l pelo ms de
setembro que o duquinho ou a duquesinha de Saxe far sua apario no Brasil,
mas por ora no sei... o que certo que eu o encomendei para que chegue de
Paris... Se lembra da asneira que nos diziam quando alguma pessoa tinha tido
um filho? Por exemplo: veio por este paquete uma criana de Paris... S a
voc, por ora, que Gusty deu licena para anunci-lo, mas por ora no sei se
eu vou ter um ou uma como j lhe disse... H de ser muito engraado Gusty
papai e eu mame, pobre criana, quantas palmadas no levar talvez de papai.
Eu antes dizia que havia de dar muita palmada, mas agora sei que as palmadas
se convertero em beijos. Hoje dia de visitas e eu com uma vontade horrvel
de lanar... Muito enjoada... Meus vestidos esto ficando largos em cima e na
cintura no posso mais abotoar. Trago por cima cintos largos com fivelonas.
Cada vez estou mais contente com o meu bom e bonito Gusty. Ele gosta
muito de mim, tomara que nosso filhinho ou filhinha seja parecido com ele.
Peo-lhe no dizer nada a ningum do que lhe anunciei.
Tempo de silncio e segredo. Era preciso conservar o fruto. Faz-lo
amadurecer at o fim. O ideal seria uma gravidez vivida na ponta dos ps, como
entre parnteses, ao abrigo de olhares. Melhor impedir toda agitao, retirando-se da
cidade para viver a tranqilidade do campo. Nada de cruzar as pernas, evitando
estrangular a criana. Nada de chaves na [pg. 34] cintura, para evitar lbio fendido.
Nada de tristezas ou de agonias, para no faz-lo sofrer ou nascer feio. Infinitas
crenas deviam proteger a criatura em seu ninho. Ninho, tero, matriz: objeto de
um respeito quase religioso, lugar sagrado onde se reproduzia a vida, onde se
elaborava um novo ser. Junto com a barriga, crescia o medo e a ansiedade em torno
do parto. Ou em torno do sexo da criana a chegar. Supersties feitas luz da lua
deveriam responder a esta questo: menino ou menina? Na Corte, a mulata do
Castelo, vidente respeitada, previa o futuro da criana a chegar. Homens garantiam a
linhagem, coisa fundamental numa famlia em que os vares pouco duravam.
Consultavam-se, ento, as urinas ou a cor dos mamilos da grvida.
No durou. A 21 de maio de 1865, Leopoldina relatava a perda do Beb:
Eu esperava fazer-lhe titia no fim deste ano, mas infelizmente o seu
sobrinho ou sobrinha nasceu muito cedo. No dia 2 de maio s cinco e meia da
manh, sem que eu sentisse nenhuma dor, comecei a sentir-me molhada e a
pr sangue. Eu logo disse a Gusty que pensava que eu estava desarranjada.
Gusty imaginou que devia ser o que tenho todos os meses. Quem dera que o
fosse. Mas eu fui remexer-me na cama e senti sair uma posta de sangue. Eu
pus-me a chorar dizendo a Gusty que julgava que aquilo era nossa pobre
criana. Ele disse que no chorasse porque pensava que isto era impossvel.
Ele mandou chamar Touvel para ver-me e ele disse que era um sinal de
aborto. Infelizmente o foi. Eu pus-me a chorar quando recebi a sua carta
escrita Minha querida Mamezinha... Apesar de ter tido a infelicidade que
tive, ainda sou a mesma pessoa alegre que voc conhece.
De fato, muito alegre e, tambm, uma deliciosa mistura de ignorncia e
desinibio. Apesar da represso sexual, podiam-se enfrentar as [pg. 35]
conseqncias do funcionamento do corpo sadio ou doente. Uma diarria na cama
ou um jorro de mnstruo? Nada de vergonhas. Eram como duas crianas grandes
brincando. Crianas grandes que at faziam uso da linguagem escatolgica como
crianas pequenas. A coprolalia servia para identificar as pessoas que circulavam
volta do casal. Machado Jos Machado Coelho de Castro, fidalgo da Casa
Imperial era jocosamente apelidado de ma chiade (minha caganeira). De Lamare
o vice-almirante Joaquim Raimundo, veador do imperador era o lamiral de la
merde (almirante de merda). E mana, Leopoldina perguntava em bilhetinho, voc
se borrou com as pastilhas de chocolate? borrou substituindo burrer, que em
francs significa entupir-se. Assinava-se Leopoldina de Cagaburro!
Apesar do mau tempo de guerra e sombras, estes eram, para o jovem casal,
tempos venturosos. Eu vivo muito feliz com meu caro e bom e tudo que h de
melhor Gusty. Estou ficando um pouco menos elefante. Viviam como se dizia,
ento em inteligncia entre si. Viviam na multiplicao de alegrias. E, por isto
mesmo, Pedro Augusto nasceu dez meses depois.
No quarto, os terrores da jovem me eram vagos. Sendo a ignorncia uma
parte indispensvel da pureza feminina, ela pouco sabia sobre a concepo ou sobre
dar luz. Regime alimentar e ternas exortaes serviam para induzi-la a crer que era
preciso amar aquela criaturinha que sairia de sua via mais secreta. Criaturinha igual
aos Meninos Jesus de cera que dormiam, envoltos em rendas, nos prespios. A
orao era um recurso forte. Os conventos da cidade faziam novenas em inteno
do bom parto da princesa. Milagre que a me no tenha morrido de febre de parto,
maldio que vitimava milhes, empurrando vivos para um segundo e rpido
casamento. Esposas eram um recurso renovvel, nesta poca.
Era conversa feminina falar de receitas para partos complicados, de crianas
mortas antes de receber o batismo, de jovens mes levadas pela [pg. 36] febre do
leite. Milagre que a criana no tenha morrido de crupe! Na cozinha e na lavanderia
do palcio, numa pausa de trabalho, as criadas, molhando a rapadura no caf,
comentavam sobre a sade da parturiente e do pequeno. De incio houve forte
hemorragia, assustando a todos. Depois, tudo correu bem.
As ordens do imperador tinham sido claras:
Havendo Sua Majestade o imperador por bem que, quando S. A. a Sra.
D. Leopoldina se achar prximo a dar luz, seja de dia ou de noite, o Senhor
prncipe ou princesa, cujo feliz nascimento se espera, os ministros de Estado,
os conselheiros de Estado e os grandes do Imprio concorram ao palcio da
residncia de Sua Alteza, para o que lhes servir de sinal uma girndola de
foguetes soltada da Imperial Quinta da Boa Vista e correspondida por outra
no morro do Castelo.
O Jornal do Commercio noticiou a reunio dos grandes no palcio: alm dos
membros da famlia, ministros de Estado, presidentes das duas Cmaras legislativas,
conselheiros e oficiais da Casa Imperial. No houve sesso no Senado e uma
deputao de 14 membros foi felicitar Suas Majestades Imperiais pela chegada do
neto varo. A moa, gabava-se o av, portara-se com sangue-frio, boa para com
todos. s 4 horas e 10 minutos nascera um belo rapaz. D. Pedro se derretia: era
o Pedrinho. [pg. 37]
Captulo II
A dourada esfera da intimidade
Logo depois do batizado, o casal embarcou com Pedro Augusto no paquete ingls
Rhone. Via Southampton, porto ao sul da Inglaterra, percorreriam pases europeus,
apresentando o herdeiro. Leopoldina descobria a Europa e descobria tambm
aqueles que chamaria de minha gente: os outros membros da famlia Saxe e
Coburgo. A primavera chegava junto com o pequeno grupo vindo dos trpicos. A
princesa brasileira conheceria o velho continente que mergulhara em guerras e delas
saa em sua melhor forma. A Frana vivia uma das pocas de desenvolvimento e
prosperidade mais importantes da sua histria: o II Imprio. Graas poltica
voluntarista de Napoleo III, e de sua escolha em favor do livre-comrcio, o pas se
dotava de infra-estrutura moderna, de um sistema financeiro, bancrio e comercial
inovador. Em alguns anos, seu atraso frente Gr-Bretanha seria largamente
compensado.
Sob a batuta do baro de Haussmann, prefeito de Paris, a cidade que era
conhecida pela sujeira se transformou numa das mais belas capitais do mundo,
pontilhada por praas e cortada por largas avenidas. A pera Garnier, verdadeira
usina de sonhos iniciada em 1861, ilustrava a importncia dada ao mundo do teatro
e das artes cnicas, elemento dos espetculos em que o imperador afirmava seu
poder. Apaixonado por histria de sua autoria uma monumental Histria de Jlio
Csar , Napoleo III desencadeou a febre da arqueologia, criando o Museu de
Antiguidades Nacionais e inaugurando uma srie de escavaes. Nas livrarias,
exibiam-se os volumes recm-editados de Flaubert, George Sand, Edmond e Jules
de Goncourt.
Os progressos sociais eram inegveis e chamavam a ateno da ilustre
moradora do ltimo pas escravista nas Amricas: direito greve e organizao dos
assalariados, sopas populares para conter a fome, primeiros [pg. 39] sistemas de
aposentadoria, desenvolvimento da educao em massa, sobretudo, para mulheres.
Esta inovao, ento, fazia-se sob a proteo direta da imperatriz Eugenia, uma bela
de olhos claros que se deixava fotografar, em posies lnguidas, por Pierre le Grey,
inventor do negativo sobre vidro.
Sobrava estmulo para as pesquisas de Louis Pasteur, amigo de Pedro II,
inventor da vacina contra a raiva. E apoio aos trabalhos de Ferdinand de Lesseps,
amigo dos Saxe e Coburgo, construtor do canal de Suez e que faria Leopoldina se
entusiasmar pelo projeto de abertura do rio Amazonas navegao estrangeira. A
jovem princesa tambm se assombrava com as novidades do consumo: as jias que
Chaumet criava para o casal imperial, com as pedras que pertenciam ao tesouro
francs. Encantava-se com as catedrais de comrcio que eram os grands magazins,
como o Samaritaine e o Bon March, este ltimo com sua cpula de vidro
desenhada pelo engenheiro Gustave Eiffel e uma enorme escadaria capaz de criar
um efeito teatral nesses espaos que serviam ao mesmo tempo para compras,
exibio e passeio. Na frente das lojas, burricos e carrocinhas entretinham as
crianas enquanto as mes gastavam. A baixa dos preos dos tecidos e o aumento
do poder de compra das novas classes sociais incentivavam a multiplicao dos
primeiros templos de consumo feminino. Eles tambm ofereciam objetos de
perfumaria, toalete, meias, chapus, armarinho por correspondncia, e entregavam
em domiclio, graas aos trens que aproximavam a provncia da capital.
A caminho da Turngia, o jovem casal de prncipes encontrou, na Viena do
final dos anos 1860, outro cenrio de progresso. Uma nova monarquia
constitucional nascia, tendo frente Francisco Jos. Os ventos do liberalismo
sopravam sobre todos os aspectos da vida poltica e econmica, passando pelas
artes, a msica e a arquitetura. Como um sol poente, declinava suavemente o poder
da aristocracia e emergia, cheia de sade, uma burguesia culturalmente dominante.
Audcia financeira, valores liberais, desenvolvimento industrial e dinheiro fresco se
davam as mos numa ciranda alegre cuja msica era o som do prego da Bolsa. Ou
[pg. 40] as populares valsas. A vida noturna florescia: bailes de mscaras, moda
frvola, tudo regado a champanhe, smbolo do sucesso.
As velhas fortificaes que abraavam a cidade foram destrudas num evento
que o compositor Richard Strauss comemorou na Polka da Demolio! Um gigantesco
sistema de ruas, o Ringstrasse, novo corao da urbe, era o palco para as construes
que simbolizam o imprio austraco: o palcio Hofburg, a catedral de Santo Estevo,
museus, teatros, prdios administrativos se encadeavam como um colar de pedras
raras e caras. No palcio de Coburgo conhecido na cidade como Forte Aspargos,
graas colunata de mrmore branco que, ainda nos dias de hoje, orna a fachada ,
o casal teria suas dependncias. Por meio de uma escada suntuosa atravessavam os
sales Azul e Chins, cujo piso de mrmore rosa e amarelo foi polido pelas valsas
que a regeu, pessoalmente, Strauss.
Da, Leopoldina e Gusty seguiram com Pedro Augusto para Ebenthal, vilarejo
da Carntia, a dois passos da fronteira eslovena. Cerejeiras selvagens pontilhavam os
caminhos. Velhas fortalezas medievais apontavam suas torres em meio aos
pinheirais e cortinas de carvalhos. Lagos transparentes se alimentavam do degelo das
montanhas, que cortavam os morros em cascatas. Umas poucas fazendolas, com os
telhados cobertos de colmo, se abrigavam nas clareiras das florestas, e delas se
erguia perfumada fumaa de lenha queimada. A construo neoclssica, recortada
por enormes janelas com seu salo de festas decorado com afrescos mitolgicos
pintados por J. F. Fomiller, se assentava beira do lago de Millstttersee. Nas
fronteiras desta paisagem buclica, contudo, se afiavam as baionetas.
A pequena corte dos Saxe e Coburgo vira a Europa se transformar a partir da
Revoluo Francesa. Muitos refugiados vieram se abrigar nas terras tranqilas de
Coburgo e Saafeld, se beneficiando do socorro oferecido pelo duque Francisco.
Mais tarde, durante a guerra franco-prussiana, o pequeno ducado pagou um alto
preo por sua atitude independente frente s vontades de Napoleo III.
Indenizaes e impostos empobreceram a famlia ducal, que, pressionada pelo
imperador dos franceses, se aliou [pg. 41] Confederao do Reno. Desde 1862,
Francisco Jos realizava negociaes secretas com os hngaros tendo em vista
assumir uma dupla monarquia. A esperana de manter sua influncia na Alemanha
era grande.
Os estados germnicos eram 25, e Saxe um deles preferiam uma ustria
enfraquecida a uma Prssia dominadora e, desde 1862, governada por Bismarck.
Tarde demais. A ascenso do gigante comeava com a anexao de alguns estados,
como o Holstein, e o reforo austraco no controle da Confederao da Alemanha
do Norte. Os estados do Sul, como a Baviera, malgrado uma existncia
independente, orbitavam comercialmente em torno da Prssia. Apesar do mau
tratamento dispensado pelo invasor houve Saxe e Coburgo, como o futuro rei da
Blgica, Leopoldo, confinados em partes minsculas e geladas de seus prprios
castelos , os membros da famlia conservaram suas colees de gravuras, de livros
raros de botnica, de geologia e astronomia.
Dentre eles, alguns se destacariam entre os mais importantes soberanos
europeus na primeira metade do sculo XIX. Eles eram a gente de Leopoldina.
Viajados, conhecedores do grand monde, bem-educados, elegantes, chamavam a
ateno nas cortes de Viena, Bonn, Londres, Berlim ou Paris. Eram homens
belssimos, altos, louros ou morenos de olhos azuis ou verdes, considerados pela
correspondncia diplomtica da primeira metade do sculo XIX pretendentes ideais
para princesas casadoiras. E foram, de maneira geral, maridos dedicados, capazes de
gerenciar casamentos felizes. Um exemplo: Charlotte, princesa de Gales, foi
loucamente apaixonada por Leopoldo de Saxe e Coburgo, a quem escrevia, em
1816, no teremos que um s corao e uma s alma. Viveram uma bela histria
de amor. E mais de uma vez a casa reinante de Portugal e Brasil fora alvo do
interesse do cl.
Ferdinando de Saxe e Coburgo, mais tarde conhecido como Fernando, tio de
Gusty, foi o consorte de Maria da Glria, filha primognita de D. Pedro I e tia de
Leopoldina. As vsperas do casamento, quando do seu primeiro encontro, a jovem
portuguesa o encantou com sua meiguice e gentileza. Alm do mais, vestira azul, cor
preferida do futuro marido, s [pg. 42] para agrad-lo. Quanto a ele, era
apresentado como algum de bom corao, engraado, verdadeiro e natural. Foi,
em parte, graas aos exrcitos belgas enviados por tio Leopoldo que a batalha do
Porto foi vencida pelos adeptos de Maria da Glria. Tambm foram felizes.
O interesse do cl persistia. O rei da Blgica tentou unir, sem sucesso, sua filha
com D. Pedro V, de Portugal. Mas a bela morena fora mal aconselhada por sua
governanta. Esta passava o tempo a lhe dizer que Portugal era habitado por
orangotangos. Carlota preferiu o arquiduque Maximiliano. Irmo de Francisco Jos,
imperador da ustria, era homem do mundo, jovem almirante sem coroa, cuja
ambio poltica terminou numa terrvel experincia no Mxico.
Uma segunda tentativa de aproximao com o Novo Mundo colocou na mira
outra unio. A do pai de Gusty, Augusto Carlos, herdeiro presuntivo do maiorato
dos Koharv, com Januria, tia de Leopoldina. Nos arquivos belgas descansa uma
carta que no deixa mentir sobre as intenes precoces dos Saxe e Coburgo, desde
1840 e escrita pelo conselheiro do rei:
Madame a duquesa de Kent [irm de Leopoldo], vendo o quanto seria
vantajoso para a famlia transatlntica de Bragana aliar-se duplamente
famlia de Portugal, assim quanto s famlias da Inglaterra, da Frana e da
Blgica, no hesitou em me recomendar que escutasse a proposio que
oferece uma conexo brilhante para a Casa dos Saxe e Coburgo. [...] Sua Alteza
Imperial tem 16 anos, sua pessoa das mais agradveis e seu carter dos mais
amveis. Ela tem direito de sucesso ao trono. O imperador um menor de 12
anos e possvel que ela seja um dia chamada ao trono do Brasil, agora,
consolidado e baseado sobre princpios aristocrticos. Quanto ao casamento
proposto, Sua Alteza Imperial, como esposa do prncipe Augusto de Saxe e
Coburgo, partilharia sua posio na ustria, aportando-lhe por apangio o
dote a que tem direito, e uma prxima parentela com a famlia imperial
austraca. [pg. 43]
Mas Augusto encontrou em Clementina, a filha do rei dos franceses, Lus
Felipe de Orlans, uma companheira que no se importou em casar com um simples
major, dando-lhe acesso a um dote que montava a milhes de francos. Ela Alteza
Real e ele simples Alteza. Mas como escreveu Leopoldo I rainha Vitria: Clem
est contente com o casamento! Viveram entre Paris, Viena e Coburgo. A
mensagem, contudo, era clara: o Brasil interessava ao cl Saxe e Coburgo e haveria
sempre a possibilidade de algum com seu sangue ocupar o trono.
Mas se a estratgia falhara com a tia, o que dizer das sobrinhas? Quando de
sua passagem pelo Brasil, o olhar crtico de Maximiliano aprovara Isabel e
Leopoldina. Quatro anos antes do nascimento de Pedro Augusto, as duas manas
tambm foram cobiadas pelo rei da Blgica. E por que o poderoso chefe do cl
voltou seu olhar para o Novo Continente? O Brasil foi dos primeiros estados a
reconhecer a independncia da Blgica, com quem assinou, desde 1834, um tratado
de comrcio. Dez anos depois, uma colnia flamenga se instalou no estado de Santa
Catarina, dirigida pela Sociedade Belgo-Brasileira. O costume de dotar as princesas
brasileiras de territrios importantes para promover a colonizao com populaes
vindas da Europa era um poderoso atrativo. A unio de Felipe, segundo herdeiro do
recm-criado Reino da Blgica, filho de Leopoldo I, com uma das princesas
brasileiras teria mltiplas vantagens. Entre elas, oferecer Blgica oportunidades de
investimentos alm-mar. Afinal, como dizia Leopoldo I, que soberbo imprio!.
Em 1861, ele tentou convencer o filho de ir ver a terra de promisso e as
princesas com os prprios olhos. Ambicioso, seu irmo primognito, o duque de
Brabante, incentivava: estou a par dos planos para levantar nossa estrela e estend-
la ao Novo Mundo... Qualquer uma, Isabel ou Leopoldina, consideradas ricas,
charmosas e bem-educadas, conviria. A correspondncia familiar revelou, contudo,
que se temia, e muito, que a vida de Felipe ficasse restrita a dar tiros em macacos e
periquitos. Ele deixou o caminho aberto para que os dois rapazes, Gusty e Gaston,
viessem [pg. 44] depois. O filho de Gusty e Leopoldina cresceria nesse ambiente.
Ambiente no qual a aspirao era a de ver um Saxe e Coburgo no trono americano.
Ele jamais esqueceria as primeiras lies. Quem sabe elas no corressem no sangue.
Da ustria, Leopoldina escrevia num ir-e-vir do tempo de maneira quase
instantnea: Ns vamos muito bem e o Pedro j foi vacinado; a vacina pegou. Eu
estou tendo lies de aquarela. A minha gente de c excelente para mim e me
divirto muito. Saudades da mana nariz de telha. E num fluxo, em vrias pequenas
cartas: Com a guerra estamos todos dessous dessus (de pernas para o ar). Tomara
que acabe a guerra l no nosso Brasil. Espero a partida dos prussianos para voltar ao
palcio de Ebenthal e desinfet-lo. Grassava o clera. O Pedro est muito
bonitinho... X est em estado interessante assim como la mre Gigone femme Gusty
(me cegonha mulher do Gusty), brincava, com Isabel, para dizer que estava,
novamente, grvida!
Fomos passear no Prather e em Schombrnn [...] D. Gaston, o que traz
o D. Gaston, um gran narigo [...] o Pedro est ficando muito engraadinho,
gosta muito de brincar com um coelhinho branco com olhos escarlates, mas a
bonne [a criada] no o deixa brincar, pois ele joga o pobre coelhinho com tanta
fora que ele poderia morrer. Gusty caa ursos [...] Pedro j fica sentado
sozinho, hoje ele ps um vestido curto pela primeira vez.
Graas a Deus eu no estou num estado interessante como pensara [...]
mame Clementina diz que isto acontece muito quando se muda de
temperatura [...] Gusty mandou fazer um vesturio de eslavo para ele e um de
paisana hngara para mim [...] Enquanto escrevo para voc, Gusty est
deleitando os meus ouvidos com uma escala aromtica na sua trombeta [...]
Em Pohorella: um lugar lindo, tem uma quantidade de flores nos campos e a
casa rodeada de altas montanhas cobertas de pinheiros, entre outros o
Knigsberg [...] Ele j come sopa e gosta [...] O clera ainda anda em Viena e
[pg. 45] nos arrabaldes de Ebenthal [...] Est ficando muitssimo manhoso.
Chora e grita como um leito quando se no lhe fazem o que quer [...] Temo
que a guerra v comear outra vez graas ao senhor Bismarck que uma
grande cabea, mas juntamente um grande traste ... Gusty faz grande matana
de lebres, enquanto Papai faz bem em no aceitar as condies de Lopez, que
um traste. Dizem que minha casa est bastante adiantada. Ns temos
comprado aqui lindas coisas para ela.
Aprendendo Barbe Bleu de Offenbach [...] o meu Pedro est florescente,
j se pe de p nos meus joelhos quando eu o seguro e quebra todos os
bonecos que lhe damos [...] a criada Teresa muitssimo indiscreta, pois
remexe em todos os papis de Gusty e meus e repete o que l neles. E h
ainda outros defeitos. Gusty diz que ela s serve para as crianas muito
pequeninas, pois ela tem muito cuidado quanto ao fsico, mas quando as
crianas so maiores ela no pode ficar com elas pois muitssimo malcriada
nas suas expresses e faons [maneiras]. Deus queira que o Caxias faa andar
aquilo a Guerra do Paraguai. O Pedro j tem dois dentes e j se pe de p
quando lhe dou as mos. Minha cara D. Isabel de D. Gaston, o grande conde
dovos de comiches [...] Pedro Malasartes obrigado a beber leite de cabra com
gua de arroz. A ama enjoada uma senhora veio lhe dar de mamar.
Vrias informaes sobre o cotidiano de uma famlia aristocrtica se sucediam
na correspondncia com a mana nariz de telha. Era comum na casa de Saxe e
Coburgo que os filhos ficassem sob cuidados diretos da me. A duquesa Sofia, uma
das matriarcas importantes do grupo, fazia seus filhos dormirem em seu prprio
quarto, orientava pessoalmente as amas-de-leite, a governanta e os escudeiros que
serviam aos pequenos. A presena das amas-de-leite, hbito da aristocracia, era
obrigatria. No era incomum que uma jovem pobre se deixasse engravidar para
ganhar a vida usando a touca com fitas que as distinguia, aleitando os filhos dos
ricos. Eram vistas como animais domsticos, mas com uma diferena: detinham
[pg. 46] um saber antigo sobre o preparo de mingaus e sopas, sobre o tratamento
do umbigo ou o enfeixamento das costinhas do Beb. No Brasil, o trabalho ainda
era feito por escravas, amas-de-leite. A vida familiar, entre as classes altas, era
facilitada por comodidades at ento desconhecidas, como a gua encanada, a
eletricidade, o aquecimento a gs ou o water closet.
Neste clima burgus, de consumo e prosperidade, havia espao de sobra para
frias, festas familiares como aniversrios, batizados e o Natal. Esta, uma ocasio
nica para mimar os pequenos e surpreend-los com rvores iluminadas por velas.
A privacidade, esta descoberta maravilhosa, era vivida pelos ricos com todos os
artefatos do conforto: casas agradavelmente decoradas com madeiras polidas,
tapetes, pinturas e afrescos. Aos adornos se somava a ampla oferta de roupas e
mveis. Quadros, estatuetas e presentes que despertassem lembranas sentimentais
eram bem-vindos. Acessrios em porcelana, cristal e prata criavam um clima sensual
durante as refeies. A limpeza e o perfume, alm do banho semanal, satisfaziam os
sentidos. Tudo era deleite: a msica mesmo a trombeta de Gusty ou as operetas
de Offenbach , o paladar, o olfato as flores de Pohorella. A riqueza estimulava
o companheirismo entre marido e mulher, bem como entre pais e filhos.
A tranqilidade, a disponibilidade, a doura de viver, a paz eram valores
cultivados. A jovem me desmamava o filho somente ao aparecer os primeiros
dentes, dando-lhe caldo de miolo de po e creme de arroz. Para aliviar as dores da
gengiva, em vez do mordedor sujo, cascas de po, frutas secas e bastonetes de
alcauz. O banho era dirio, diminuindo o uso da gua quente, at que a criana
fosse lavada, inverno e vero, com gua fria. Havia abundante literatura sobre
exerccios fsicos e se recomendava engatinhar sem amarras, nem andadeiras.
Segundo Balzac, a rotina de uma me consistia em saber se a criana estava bem ou
no. O mais importante: um despertar cheio de beijos, brincadeiras. Uma mulher
sem filhos era uma monstruosidade!
E a voz de Leopoldina a contar mana laranjeira: [pg. 47]
O Pedro cada vez mais espertinho. Ele j tem quatro dentes de cima.
Pedro bom do catarral. Ele gosta muito de vir comigo. Quando ele quer sair
do quarto pega no capote e mostra a porta. Ele por ora no fala seno a lngua
c dele. [...] J engatinha e tem seis dentes. Hoje chegou Mimi de Fernando
para tomar conta do Pedro. E apesar de ser necessrio para o bem de Pedro
mandar a throlifus (a ama) embora, me fez muitssima pena despedir-me dela.
Pedro j se pe de p segurando-se na grade de seu parque e anda segurando-
se parede. Ele est muito engraadinho mas emagreceu um pouco, creio que
porque ele foi desmamado. Agora ele come muito. E eu brincalhona como
sempre. Minha casa, quando estiver pronta, h de ser muito bonita, pena que
o Brasil no seja ali, j estaria bem contente se fosse assim. Estou fazendo um
mvel de tapisserie. Cada cadeira tem flores diferentes. Gusty comprou lindos
quadros para a nossa casa. No pense que no penso na volta. Apesar de estar
me divertindo muito aqui, tenho bastante saudade de l. Espero que antes do
fim do ano entre no convento de So Cristvo. Tomara que esta maldita
guerra com o Paraguai acabe-se bem [...] Pedro muito engraadinho j diz
Papai, ele grita muito para brincar e corre segurando na beira de seu parque
quando algum o quer apanhar [...] viu o retrato de Gusty, disse Papai e deu
um beijo ele est delicioso e se voc o visse havia de se divertir muitssimo. Ele
se parece muito com Gusty, tem os mesmssimos cabelos encarapinhados.
Dezenove de maro, um ano de Pedro Malasartes:
Urubus coroados vm visitar mame. Pedro chama passarinhos pipi. Eu
no sei que lngua ele falar primeiro, pois ele houve falar como se estivesse na
torre de babel. Mimi inglesa, tomamos uma sous bonne [uma criada] que irm
da retreta da Amelie a qual fala s alemo. Mame fala em francs, Aldina em
portugus e eu na mistura [pg. 48] de modo que eu creio que ele comear
por um pot-pourri de lnguas. Tomara que esta Guerra do Paraguai acabe bem
depressa. Quanto minha volta ao Rio, Gusty conta partir em julho passando
por Frana, Espanha e Portugal, e embarcar em Lisboa. Gusty tem comprado
lindos quadros para pr na sala de baile, comprou gravuras de veados de
Lanzier para pr no corredor, lindssimas. Tudo h de ficar lindssimo.
Encomendei mveis, canaps, fauteils en tapisserie [poltronas de tapearia]
em seda e ouro. Partimos pelo paquete ingls de agosto. Pedro muito
incomodado com febre terrvel e tremores de que eu tive muito medo
pensando ser convulses, mas felizmente no era nada, uma perturbao da
digesto. Est andando s. Ficando com apetite de ogro. Fez hoje marcha
acelerada dando a mo mame para buscar um pedao de po. Quando se
lhe diz em ingls, beije a mo de mame, ele logo beija a minha. E quando
Mimi lhe pergunta em ingls o que que o papai disse que fazia se Pedro fosse
mau, ele logo sacode a mo como se fosse palmada. Pedro abaixou-se perto do
canap e pegou alguma coisa, eu pensava que era um pedao de papei pintado,
mas no. Que vontade se me deu de rir quando eu o vi sair do canto
triunfalmente segurando o penico dele com as duas mos, no sei como este
carrapato teve fora. Ns iremos trs dias para Paris incgnitos sob o nome de
baro e baronesa de Esereb, Hotel Mirabeau. Adeus, mana laranjeira.
Voltaram ao Brasil, em setembro de 1867. Ela j vinha com nova barriga.
Augusto Leopoldo, o Augustinho, nascia meses depois. O ritual milenar se repetia:
criadas enchiam a bacia dgua, a parteira molhava as mos para ver que no
estivesse muito quente, nem muito fria, o sorriso exausto da me quando lhe
apresentavam o filho. Instalaram-no num bero azul em honra de Nossa Senhora.
Mais um herdeiro. Sua agonia em relao esterilidade da mana no podia ser
maior: Tomara j que o Gro-Par [pg. 49] esteja en train, ou seja, chegando. O
ttulo de prncipe do Gro-Par caberia ao primognito da princesa Isabel que daria
continuidade monarquia. Mas, nada! No ano seguinte, em 17 de julho de 1868:
Eu estou com dvida que voc vai ter um outro sobrinho, que eu trocaria bem por
um filho para voc. Outra vez, quase culpada, a 12 de dezembro de 1868: Espero
que as guas virtuosas lhe dem as suas virtudes. Sem mentir, a coisa que desejo
mais nesta vida que voc tenha um bonito menininho.
Mas o bonito menininho no chegava, enquanto chegava o vero, em
Petrpolis. A tia mandava coelhos de presente para o pequeno Pedro, tratado como
futuro imperador. Leopoldina se queixava das maantes reunies sociais, da chuva,
da neblina verde, da falta do marido que fora visitar Morro Velho, em Minas, onde,
ouvira dizer, havia quantidades imensas de ouro. A jovem me lia... Lia a Ilustratton
Horticole de Binot, aderindo moda das mulheres se interessarem por hortas, pomares
e cultivo de flores. De volta ao Rio, escrevia mana:
Lhe mando um cachinho do Pedro. As crianas vo bem. Pedro sempre
gordo, mas cheio de brotoejas o que o faz muito feio. O Augustinho j est
desmamado e muito gordinho, ele j quer andar, mas por ora no vai bem seno
quando se agarra s cadeiras. Passou o ano: Ns fazemos este ano uma rvore de
Natal para os pequenos. Eles se ho de divertir muito, pois que ambos tm a paixo
dos brinquedos. Eles j brigam por acharem a galinha do vizinho mais gorda do que
a minha. E em maio de 1868, de novo, a coisa que mais desejo nesta vida que
voc tenha um bonito menininho bem parecido com quem sei s. E a criana no
chegava... Gaston se admirava de sua mulher no ter inveja da irm.
Aos 3 anos, Pedro comeou a ser ensinado a falar portugus, pois isso far
gosto a papai. Todos dizem que voc vai viajar para a Europa; eu respondo que no
sei de nada [...] Augustinho d
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