O TAPETE E O BOUFFES: FORMA ESSENCIAL NA POTICA
DE BROOK
THE CARPET AND THE BOUFFES: ESSENCIAL FORM IN
BROOKS POETIC
Larissa Elias (UFRJ)
Resumo
Nos primeiros anos da dcada de 1970, o tapete surge, na produo teatral
de Peter Brook, como um elemento propiciador do jogo teatral. Com a
funo de demarcador do lugar de representao, ele um lugar que se
oferece como campo para produo de espaos simblicos e imaginrios.
Em 1974, Peter Brook e seu grupo internacional se instalam no Thtre des
Bouffes du Nord, em Paris. O encontro entre estes dois lugares o tapete e
o Bouffes acabaria por contribuir para a produo de uma esttica do
espao vazio e para a institucionalizao de uma potica.
Palavraschave | Peter Brook | Bouffes du Nord | espetculo no tapete
Abstract
In the early years of the 1970s, the carpet appears in the stage production
of Peter Brook as an element that favors the theatrical play. With the
function of bounding the place of representation, it is a place that offers
itself as a field for the production of symbolic and imaginary spaces. In
1974, Peter Brook and his international group settle at the Thtre des
Bouffes du Nord, in Paris. The meeting between these two places the
carpet and the Bouffes would eventually contribute to the production of an
aesthetic of empty space and to the institutionalization of a poetics.
ISSN 2176-7017
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Keywords | Peter Brook | Bouffes du Nord | carpet show
Larissa Elias doutora em Teatro pela UNIRIO, Professora Adjunta do
Curso de Artes Cnicas da Escola de Belas Artes EBA da Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ.
Larissa Elias holds a PhD in Theatre from UNIRIO. She is presently an
Adjunct Professor at the Federal University of Rio de Janeiro UFRJ.
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O tapete e o Thtre des Bouffes du Nord: forma essencial na
potica teatral de Peter Brook
Larissa Elias
Tapetes floridos e coloridos por todo o lado, atores sentados no cho,
sobre os tapetes. Aliada a esta imagem, outra: atores conversando,
brincando, gargalhando, falando alto, fazendo nmeros, correndo,
jogando, gritando, saltando sobre bastes, danando... Como crianas
deliciosamente irresponsveis e freneticamente abandonadas em suas
brincadeiras. Essas so impresses retidas de O cerejal, montagem
realizada por Peter Brook, em 1981, no Thtre des Bouffes du Nord, em
Paris. Delas emergem elementos rtmicos e espaciais fundamentais da
concepo do encenador para a pea O jardim das cerejeiras de Anton
Tchekhov.
As imagens descritas revelam tambm aspectos bsicos do teatro
improvisacional pesquisado por Peter Brook, notadamente a partir das
viagens ao Ir, a algumas regies da frica, e aos Estados Unidos, entre os
anos de 1971 e 1973, em que Brook e seu grupo internacional de atores e
colaboradores apresentavam os chamados espetculos no tapete (carpet
shows): os tapetes definindo a rea de representao; um teatro narrativo
contador de histrias; os atores como contadores agentes e peas do
jogo teatral; e a brincadeira como estrutura deste jogo. E mais, estas
imagens renem princpios elementares e recorrentes na obra teatral de
Peter Brook, desde ento.
O uso do tapete, nessas apresentaes, era um modo de romper com
a ideia de que teatro algo que se faz dentro de um edifcio teatral, era um
modo de flexibilizar, para aquele grupo, as formas teatrais conhecidas, e
coloc-lo em contato com outras possibilidades. O tapete, que tem um
determinado formato em geral retangular uma forma fsica e visvel
como uma construo, um edifcio que ali cumpria a funo de delimitar a
rea de representao, e, assim, oferecer espao para o jogo do imaginrio,
no qual se podiam inventar convenes, imagens, ideias, histrias. O tapete
era um lugar que se abria como um amplo espao simblico.
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O tapete passa a ser um elemento de repetio, estrutural, na
potica de Peter Brook, que materializa a noo de espao vazio termo
cunhado em fins dos anos 1960 e seus desdobramentos. uma de suas
formas visuais, talvez a mais importante ou a mais flagrante. 1 um
formato, para Brook, que contm a mesma flexibilidade do teatro
elisabetano. Caractersticas do espao elisabetano como: a estrutura
circular, sem teto; a rea de representao, com seus vrios planos,
cercada pelo pblico, frontal e lateralmente; parte da platia no cho, muito
prxima dos atores; e caractersticas da dramaturgia da poca como o
verso branco e o desrespeito de alguns autores, como Shakespeare e
Marlowe, s unidades de tempo e de ao, todos esses so aspectos que,
para Brook, traduzem a flexibilidade do teatro elisabetano. Durante as
viagens do incio da dcada de 1970, fazendo os espetculos no tapete, ele
e seu grupo internacional concluram que fazer improvisaes sobre o
tapete era a melhor maneira de estudar Shakespeare:
Descobrimos que o melhor modo de estudar Shakespeare
no era examinar reconstrues de teatros elisabetanos,
mas simplesmente fazer improvisaes sobre um tapete.
Percebemos que era possvel comear uma cena de p,
terminar sentados, e ao levantar de novo nos vermos num
outro pas, em outra poca, sem perder o ritmo da histria.
Em Shakespeare h cenas em que duas pessoas caminham
num espao fechado e de repente esto ao ar livre sem
nenhuma mudana aparente. Uma parte da cena no
interior, a outra externa, sem qualquer indicao do ponto
em que ocorre a transio (Brook, 1999: p. 24).
O tapete um formato mvel e, sendo assim, pode assumir a
forma de qualquer lugar, em qualquer tempo. A repetio estrutural
desse elemento material na obra de Peter Brook produz e anula formas,
sucessivamente. Porque o tapete aponta para um formato, mas um
formato que no define uma forma, e por isso oferece a possibilidade do
jogo. O formato do tapete, retangular, est presente, de algum modo, em
1 Em 1968, Peter Brook publicou seu famoso livro-manifesto The empty space, resultado de uma srie de conferncias realizadas em Universidades do norte da Inglaterra. O livro foi publicado no Brasil em 1970, com o ttulo O teatro e seu espao.
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quase todos os espetculos de Brook, a partir de 1974, sempre dentro de
uma forma circular, maior, que o abrange. H, e isso fica bastante visvel
em O cerejal, um movimento de convergncia, desse crculo maior, para o
centro, onde est o menor crculo, e vice-versa. Da circunferncia para o
centro o primeiro movimento e, de novo do centro irradiando para o
mundo (Banu, 2002: p. 77), explica Georges Banu. O Thtre des Bouffes
du Nord tem a mesma circularidade do espao elisabetano, sendo a planta
baixa do teatro, segundo afirma Brook, muito semelhante do teatro
elisabetano The Rose.
No caso de O cerejal, a simetria do Bouffes tambm a simetria da
casa. Tudo o que existe de um lado, existe como duplicata do outro: as
rampas, as portas, as paredes descascadas, os buracos no alto das paredes,
os espelhos. Volumes, ngulos, linhas, profundidade, proximidade,
continuidade, imagens e traados formados pelo jogo entre os tapetes: o
tapete de fundo paralelo aos biombos acarpetados, estes, por sua vez,
perpendiculares ao cho, erguendo-se como paredes. Tapetes enrolados e
amontoados. So movimentos e ritmos criados pela relao entre tapetes,
atores e a arquitetura do local:
O funcionamento do Bouffes se apia numa estrutura
dialtica viva, matriz de relaes e de pontos de vista
mltiplos (superfcie / volume, platitude / ascenso,
horizontalidade / verticalidade, continuidade / diferena,
contato / distncia), inserida numa circularidade marcada e
redundante (PiconVallin, 2002: p. 274).
As rampas, as escadas laterais, as paredes manchadas, as portas, os
corredores entre as arquibancadas e a galeria circular por trs delas, os
balces nos andares superiores: so todos elementos pertencentes
arquitetura do prprio teatro que so incorporados montagem. H,
segundo Batrice Picon-Vallin, uma coincidncia entre o prprio teatro e a
casa:
Brook procura criar uma respirao comum entre a vida e o
teatro e a encontra numa sutil superposio (que no
jamais uma identificao), interpretada numa perspectiva
no-dualista, da casa amada e degradada de Ranievskaia e
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dos atores, tudo igualmente amado e degradado
(PiconVallin, 2002: p. 274).
Os tapetes, por sua vez, se prestam produo de sentidos
especficos relacionados aos temas de O jardim das cerejeiras de Tchekhov.
De acordo com Batrice Picon-Vallin, O cerejal de Peter Brook se ergue
sobre a matriz espacial Teatro-Casa. O espao amplamente coberto por
tapetes, que, aliados ao uso global da arquitetura do Thtre des Bouffes du
Nord, conferem ao local o estatuto de casa. Os tapetes, em O cerejal,
materializam perspectivas atritantes: de um lado, a identidade de um
processo de ruptura (durante boa parte do espetculo, especialmente, nos
1 e 2 atos, os atores sentam-se no cho, como contadores de histrias
sobre tapetes persas), com relao a um teatro aprisionado ao edifcio
teatral e cenografia afastamento experimentado por Brook a partir dos
anos 1960 , e, de outro lado, um apagamento do prprio espao vazio, ao
se constiturem como uma forma de cenrio cenrio da montagem O
cerejal dentro de um edifcio teatral O Bouffes. Os tapetes, na
representao de Brook, tm vrias funes: simbolizam o interior burgus,
a riqueza da aristocracia rural russa ou dos cadveres vivos (os
burgueses), como os define Vsvolod Meierhold (Meyerhold, 1972: p. 134-
5) , presentificam as camadas temporais presentes no texto de Tchekhov,
e so, igualmente, o resto de uma vida passada ainda presente, assim
como os vestgios de seus habitantes. Alm de se apresentarem, tambm,
como uma (meta) citao do teatro feito por Brook.
Jean-Guy Lecat2 conta que
A atmosfera bsica do espao foi estabelecida por um mar
de tapetes persas [a Sea of Persian Carpets], estendendo-
se, s vezes, at os ps da primeira fila de espectadores.
Esses tapetes tocavam as paredes laterais do teatro e
percorriam quase todo o caminho para trs. O teatro virava
a casa: personagens falavam do balco, o constante
2 Jean-Guy Lecat trabalhou para Peter Brook, no perodo de 1976 a 2000, como diretor tcnico, com a funo de criar os ambientes teatrais para as apresentaes do grupo em suas turns. Em 2005 esteve no Brasil, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
UNIRIO, participando do evento O Crculo Aberto Jean-Guy Lecat. autor, juntamente com Andrew Todd, do livro The open circle: Peter Brook's theatre environments, no qual relata seu trabalho com Brook.
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movimento de idas e vindas foi canalizado pelo meio do
andar trreo do pblico, e as portas nas paredes laterais
eram colocadas em uso constante. A fbrica do teatro
pertencia muito fortemente ao mundo da pea! (Lecat;
Todd, 2003: p. 78).
O cerejal marca a chegada da designer Chlo Obolensky, como
colaboradora regular do Centro Internacional de Criaes Teatrais o
C.I.C.T.3 Pela primeira vez, o espao do Bouffes du Nord recebe tratamento
unificado dos figurinos e dos elementos cnicos. Tambm, neste espetculo,
o tapete tem sua funo de lugar da representao diluda, porque se
expande para alm das suas fronteiras (podamos nos imaginar convidados
na casa de Ranievskaia simplesmente porque os tapetes tocavam as
paredes e porque ns tambm os tocvamos com nossos ps, p. 79), se
estendendo pelo cho, e indo para o fundo, para os lados, para frente,
chegando aos ps da platia, cobrindo a parede de fundo e os biombos que
compe o cenrio, erguendo-se, assim, para o alto, produzindo movimentos
horizontais e verticais, criando conexes e continuidades, confundindo
assim as instncias da casa e do teatro.
O mar de tapetes uma organizao especfica de O cerejal, mas
todos os espetculos realizados no Bouffes, talvez com pouqussimas
excees, tm um tapete ou conjunto de tapetes ou variaes dele.
Persistem o formato retangular, e sua funo de lugar de representao, e a
circularidade, assim como as formas do Bouffes, com seus arcos, ritmos e
propores de um mosteiro: O trabalho no Centro permite a formulao de
uma esttica que, uma vez afirmada, tem podido se reconhecer em uma
arquitetura (Banu, 2002: p. 64).
O tapete e a arquitetura do Thtre des Bouffes du Nord (e, em
alguns casos, a arquitetura de outros espaos teatrais), passam, portanto, a
3 Em 1970 Peter Brook criou o Centro Internacional de Pesquisas Teatrais [Centre International de Recherches Thtrales] C.I.R.T. Dirigido por ele e por Micheline Rozan, o Centro era patrocinado pelas Fundaes Americanas Ford e Anderson, pela Fundao Gulbenkian, de Portugal, e pelo governo iraniano. O C.I.R.T. se estabeleceu no Mobilier National, numa sala de exposio de tapearias, cedida pelo governo francs. Em 1974,
Peter Brook e Micheline Rozan fundaram o Centro Internacional de Criaes Teatrais [Centre International de Crations Thtrales] o C.I.C.T. O Thtre des Bouffes du Nord, passaria a ser, desde aquele momento, a sede do C.I.R.T e do C.I.C.T.
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configurar uma forma essencial do teatro de Peter Brook e, em conjunto, se
constituem como cenrio, ideia que o tapete inicialmente negava.
Segundo Jean-Guy Lecat, o estilo do Bouffes, em certos aspectos, se
aproxima, enquanto construo, de vrios outros teatros parisienses, como
na decorao, nos nveis das arquibancadas e do primeiro balco, nas
molduras de gesso usadas para preencher os espaos entre os arcos
superiores, que ligam as colunas de ferro fundido abboda e assim por
diante. Mas o que o diferencia dos outros teatros o [...] vermelho e ouro
ornamentais, chamuscados no incndio (Lecat; Todd, 2003: p. 13), atual
forma do teatro.
Os espetculos realizados por Brook, a partir de 1974, foram, em sua
grande maioria, concebidos no Bouffes du Nord, e foram apresentados tanto
no Bouffes, como fora dele, em inmeras turns, pelo mundo, e algumas
(poucas) vezes no Brasil. A concepo dos espetculos fortemente
vinculada espacialidade do Bouffes e embora estes ganhem
necessariamente outras configuraes ao sarem de l, a concepo
original, em linhas gerais, mantida. Ainda que estes espetculos sejam
apresentados em edifcios teatrais tradicionais, italiana, que no sofram
qualquer alterao para receb-los. Foi esse o caso das apresentaes de A
tragdia de Hamlet, no Teatro Carlos Gomes (2002), e de Fragments, no
Teatro I do CCBB (2008), ambos no Rio de Janeiro.
Jean-Guy Lecat descreve, em seu livro The open circle (e o fez
tambm por ocasio do seminrio que apresentou no Rio de Janeiro), a
transformao por que passaram muitos teatros, por todo o mundo, para
receber os espetculos de Peter Brook. Os espaos, citados pelo autor,
eram inteiramente reformados para atender aos conceitos segundo os quais
foram concebidas as montagens. Muitos, inclusive, mantiveram as
modificaes. Considerando que todos os teatros, pensados em sua
totalidade arquitetnica, so um grande crculo, de acordo com Lecat, a
mudana, ento, consistia basicamente em demolir palco e platia,
deixando no seu lugar um retngulo, no nvel do cho, e construir
arquibancadas, em semicrculo, no entorno deste retngulo, formando uma
meia arena quase completa. O objetivo era torn-los semelhantes ao tipo
de concepo espacial do Bouffes. A rea de representao costumava ser
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no prprio cho, ao nvel da primeira fila da platia, e as arquibancadas se
elevavam, sendo algumas bastante ngremes. Em outros tipos de espaos
(como galpes, ginsios, fbricas, armazns, locais ao ar livre etc.) eram
construdas estruturas que reproduziam essa ordem espacial. Para Lecat,
Brook tomou duas decises fundamentais ao se apropriar da
forma do Bouffes: atores e platia deveriam estar juntos no
mesmo espao, e os novos assentos deveriam ser no
mesmo nvel da superfcie de atuao, sem nenhum limite
separando o mundo da pea do mundo da audincia. No
Bouffes du Nord a ao acontece muito perto da audincia: o
espao central est a apenas 10 metros de distncia do
espectador mais afastado, dentre os 250 que cabem no nvel
do solo (h mais 125 assentos em cada um dos dois balces
inferiores, fazendo um total de 500 num espao em que
aparentemente cabiam 1.000 em sua vida prvia) (Lecat;
Todd, 2003: p. 1921).
Em boa parte dos espetculos de Brook, o tapete, enquanto tal ou em
alguma variao, com o formato retangular ou em formato prximo, como
num quase quadrado, est visivelmente presente. A relao entre o uso
efetivo da totalidade do lugar (da construo, seja ela um teatro, galpo, ou
qualquer outro tipo de edificao) e o tapete assume dimenso fundadora
no teatro brookiano. Sendo que este tapete tem, por vezes, a funo
objetiva de ser o lugar de representao e, por vezes, o papel de definir o
lugar representado, como o caso de O cerejal.
A tragdia de Carmem se constri segundo o mesmo conceito de O
cerejal. A pera inclusive realizada no mesmo ano, pouco tempo depois.
Nela, a relao entre o lugar em que se d a representao (o teatro) e a
rea propriamente de representao o que de fato representado no
espetculo. A arquitetura do teatro totalmente incorporada aos sentidos
da obra. A zona de atuao coberta de terra e a expanso de tapetes foi
substituda por um mar de terra solta (Lecat; Todd, 2003: p. 13), com
alguns tapetes e panos retangulares definindo zonas especficas de ao. As
arquibancadas no entorno, formando uma quase meia arena, quase como
uma arena para touradas, mais retangular ou mais circular, dependendo do
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espao. No Bouffes, era um misto de retngulo e crculo; em Copenhagen,
na Ostre Gasvaerk, configurava-se um retngulo; e no Teatro Argentina,
em Roma, a arena era circular.
Quase meia arena um aspecto importante na composio da
narrativa espacial no teatro de Brook, pois define a presena de dois planos,
duas zonas de atuao, que exigem e, por vezes, opem diferentes
registros atoriais. Essa diviso do espao muito bem marcada no Bouffes
du Nord pelas paredes situadas na parte mais central da rea de
representao e pelo arco no alto do teatro, que atravessa todo o espao,
indo de uma parede outra. No se forma uma meia arena completa
justamente porque as arquibancadas formam um semicrculo, invadem as
laterais, mas no vo at a parede de fundo. E nos espaos transformados
para receber as montagens, essa configurao reproduzida, claro que de
acordo com as particularidades de cada um.
muito impressionante a imagem da montagem de A tragdia de
Carmem em Roma. O teatro foi desenhado em 1730 por Gerolamo Theodoli,
e diretamente inspirado pelo Teatro di Tordinona, que o primeiro teatro
pblico de Roma e o que deu origem ao teatro italiana, segundo comenta
Jean-Guy Lecat. um teatro impressionante, todo vermelho e dourado.
Para essa montagem, o palco e a plateia foram retirados, de modo que a
rea de representao chegava at o crculo onde antes terminava a
plateia. Nesse ponto, beirando a parte inferior da parede vertical dos
balces, foram erguidas pequenas arquibancadas que produziam a
impresso de continuidade da rea coberta pela terra. E a parede vertical
dos balces, altssima na foto do teatro vemos seis andares de balces
era trazida para dentro da pera.
Como no Bouffes, a arquitetura do Teatro Argentina foi
completamente integrada ao circuito do drama. Lecat conta, ironicamente,
que as ricas senhoras romanas, talvez inspiradas pelo tratamento
transgressivo do espao, casualmente penduravam seus casacos sobre os
balces, como se estivessem prestes a testemunhar uma tourada em
Sevilha (Lecat; Todd, 2003: p. 109).
Ao contrrio do que ocorre em O cerejal e em A tragdia de Carmem,
montagens nas quais o lugar est globalmente envolvido na ao, em A
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tempestade, de 1990, a ao criando-se um espao nico totalmente
concentrada num retngulo de areia demarcado por bambus. Um tapete de
areia, com a funo de definir o lugar de representao, e os espaos da
ao, na pea de Shakespeare: um navio em alto mar, durante uma
tempestade, e uma ilha. Muitas composies foram experimentadas at que
Brook e a cengrafa Chlo Obolensky pudessem chegar forma final, um
retorno, no final das contas, ao tapete numa variao em seu uso mais
estrito na potica de Brook, do lugar de representao. Brook e Chlo
fizeram um longo percurso de experimentaes com vrios materiais e
objetos, at chegarem ao tapete de areia.
No espao do Bouffes, a cengrafa disps cordas (que pendiam do
urdimento), escadas, pranchas e cubos de madeira, caixas de embalagem,
e tambm tapetes, montes de terra, de diversas cores, ps e enxadas,
objetos com inmeras possibilidades de uso e de jogo. Desde o incio Brook
tinha em mente a ideia de que o espetculo devia ter a forma de uma srie
de jogos jogos cnicos dos atores, no sentido mais literal realizados por
um pequeno grupo de atores/jogadores (Brook, 1999: p. 90).
A relao com o lugar era tambm um problema desde o comeo, por
conta, segundo Brook, de uma quase unidade de lugar em A tempestade.
Aspecto que ele se perguntava se seria necessrio violar para criar uma
imagem realista dos primeiros momentos da pea o navio, em meio
tempestade. Seguindo o princpio literal do jogo e, de antemo, com uma
dificuldade relativa representao do lugar, o processo partiu da relao
improvisacional, catica, entre os atores e os diversos elementos materiais
disponveis. Se houvesse um observador durante esse perodo, relembra
Brook, em A porta aberta, ele teria a impresso de uma confuso absoluta,
de decises que eram tomadas e logo depois abandonadas segundo um
mtodo absurdo (Brook, 1999: p. 93). Pois, do jogo inicial entre atores e
materiais, passou-se ao abandono de todos os materiais para se chegar, a
certo ponto, a uma arena rubra de propores picas (p. 97), que no
mais evocava uma ilha, mas que havia se tornado uma ilha de verdade a
cengrafa cobriu o cho do Bouffes com toneladas de terra vermelha, que
moldara, formando montes, relevos, e um grande buraco entre eles. Mais
tarde, alguns dos materiais, assim como algumas das relaes descobertas
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pelos atores com eles, foram sendo retomados, porque, como ressalta
Brook, nada se perde completamente permanece um vestgio que pode
ressurgir inesperadamente (p. 95).
medida que o trabalho avanava, conta Brook, parecia-nos
evidente que Shakespeare, ao escrever A tempestade como uma fbula,
queria manter uma leveza de tom em toda a obra, como um contador de
histrias do Oriente (p. 96). Foi, assim, que ele e Chlo Obolensky se
convenceram de que s precisavam de um espao vazio, de um campo
livre para o jogo da imaginao (p. 97). E foi ao se apresentarem em um
colgio, para crianas, sobre um tapete, num espao muito pequeno o
espao vazio e inusitado de uma sala qualquer que a pea ganhou vida
na mesma hora (p. 99).
A partir da montagem de Sonhos de uma noite de vero, em 1970,
apresentar os espetculos ainda inacabados para uma platia de crianas, e
num espao qualquer, no preparado para aquela experincia, servindo-se
do que o espao tivesse a oferecer, se tornou parte dos mtodos de
trabalho de Brook. Nessas apresentaes os atores no levavam figurinos,
objetos, apenas trabalhavam com o que estava mo, no espao vazio da
sala de aula. Segundo Brook, as crianas so uma tima forma de testar o
tdio, o melhor termmetro que se pode ter para uma pea; e trabalhar
num espao qualquer, pelo que ele tem de inusitado, surpreendente, e
requer dos atores grande disponibilidade e capacidade de improviso, tal
qual os bons contadores de histrias (Brook, 1999: p. 98).
As solues inventivas, surgidas ali, que fizeram emergir com clareza
os sentidos d A tempestade, trouxeram um problema e uma constatao:
no podiam ser literalmente carregadas para a amplitude do Bouffes, pois
pareceriam toscas, entretanto ratificavam um pensamento que j existia
entre eles, de que a pea deveria ser despojada de qualquer proposta
decorativa. Para Brook a soluo era retornar ao tapete.
Apesar de ser contra a proposta do encenador, a cengrafa
concordou com ele em experimentar. Da ao tapete de areia, um outro
caminho foi percorrido. De incio foi usado um grande tapete persa, o
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mesmo de A conferncia dos pssaros4 (e que tambm fora usado em O
cerejal), no meio de toda aquela terra vermelha, ficando a ao
concentrada nos limites do tapete, e no mais chegando at as paredes do
teatro. Desse modo, os objetos pequenos, que pareciam toscos na grandeza
do espao, voltavam a ganhar sentido numa rea limitada. Por fim, a
cengrafa que achava os desenhos no tapete dispersivos e que
descartaria, em seguida, a ideia de um tapete liso, pois ele poderia criar
ligaes fteis com a atualidade emoldurou o tapete com varas de bambu,
depois o retirou, permanecendo o formato marcado no cho, e cobriu o
espao com areia. Um retngulo perfeito demarcado por bambus, diria
Brook, que continuava sendo um tapete, mas um tapete de areia (p.
101). O espao do espetculo seria chamado por alguns crticos de playing
field ou playground, termos usados, o primeiro para se referir a campo para
prtica de esportes, e o segundo, tambm usado no Brasil, para nomear o
lugar onde as crianas brincam. O formato se prestava, como testemunham
essas denominaes, ao jogo cnico, o que era a inteno de Brook desde o
incio do processo de montagem.
Um processo algo semelhante ao de A tempestade conduziria a
montagem, no comeo dos anos 1990, da pera Impresses de Pellas, de
Debussy. Em sesses de conversas com estudantes americanos na
Southern Metodist University,5 Brook contaria como chegou concepo
cnica da pera, relatando todo o percurso da montagem, por meio do qual
reafirma sua opo pelo simples. No comeo, comenta Brook, o que
pautava a concepo de Pellas j era a simplicidade, pois o Bouffes du
Nord oferecia o vazio necessrio para a realizao da pera. Referindo-se
ao que pensava na poca, ele diz: O teatro em Paris [o Bouffes] o mais
magnfico e emocionante espao quando est vazio. As paredes so lindas,
ele cheio de vida, tem uma linda proporo, e eu pensei Aqui est uma
pera de grande pureza (Moffitt, 1999: p. 93).
4 A verso definitiva de A conferncia dos pssaros, de acordo com a fonte The open circle, foi criada em Avignon, em 1979, e estreou no Bouffes no mesmo ano. 5 O livro Between two silences: talking with Peter Brook, organizado pelo professor de teatro Dale Moffitt, resultou desta srie de 12 horas de conversas de Brook com estudantes universitrios e tambm do ensino colegial, realizada na Southern Methodist University, em
Dallas, no Texas. O livro de 1999, entretanto os editores no especificam o ano em que aconteceu o encontro. Pode-se supor pelas informaes registradas no livro que tenha acontecido no ano de 1998.
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No primeiro ms de trabalho, o princpio da simplicidade foi seguido,
porm, ao fim deste perodo, ao fazer um corrido (um tipo de ensaio
geral), a simplicidade [...] no era simples. Era nua. Era rida. Era sem
vida (p. 94). Ecoava em Brook aquilo que ele dizia ouvir a respeito de sua
obra (ele se refere genericamente a pessoas e imprensa): de que tudo o
que ele fazia era simples. E, nesse ponto da montagem de Pellas, ele se
sentiu realmente parte daquela multido que comea por fazer produes
simples.
Meses depois recomeariam os trabalhos. Desta vez, a cengrafa,
Chlo Obolensky, a mesma de O cerejal e de A tempestade, trouxe grande
quantidade de elementos (como pianos, cadeiras, sofs, pequenas mesas,
vasos com palmeiras, aqurio) e o trabalho comeou em meio a essa
variedade de objetos, que, segundo Brook, foi fantstica, no incio,
sobretudo pelas possibilidades criativas que proporcionou. Aos poucos,
porm, medida que o trabalho avanava, eles foram retirando do espao
os excessos, livrando-se do que no lhes parecia necessrio: Gradualmente
aquilo tudo desapareceu, deixando-nos com alguns tapetes, dois pianos,
duas cadeiras [...]. Ns mantivemos uma coisa que estava l desde o incio,
que era o aqurio, com um peixe real dentro. Todo o resto foi embora (p.
945). E quando espetculo veio a pblico, diz Brook, foi como se
reafirmasse algo que intura desde o comeo da produo. No por acaso,
todos disseram: Oh, its simple (p. 95).
Essa trajetria que se repete aqui, que se repetiu em A tempestade,
parece um eterno retorno de Brook a um sentido originrio, e, como
sempre, retorna a Shakespeare e ao teatro elisabetano, atribuindo a eles o
carter definitivo e irrevogvel de teatro vivo, variado, flexvel, e acima de
tudo simples.
Do modo mesmo como relata sua tentativa de romper com essa
simplicidade, ele deixa claro que a experincia de comear com um excesso
de coisas serviu, fundamentalmente, para provar que, seja qual for o
caminho, , afinal, o tapete, com alguns poucos objetos, o que melhor se
oferece como espao para a obra. Lembrando, ainda, que essa percepo
do tapete como espao vazio para o acontecimento, se vincularia, desde
1974, indissoluvelmente, ao Bouffes du Nord. Referindo-se a essas duas
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montagens A tempestade (de 1990) e Impresses de Pellas Jean-Guy
Lecat diz, na mesma direo, que elas fundaram suas formas no Bouffes
du Nord, e desenharam-se fortemente sobre aspectos do espao explorados
em trabalhos anteriores (Lecat; Todd, 2003: p. 182).
O prprio Brook se encarregaria de associar a montagem de O cerejal
da pera de Debussy: Impresses de Pellas foi encenada num estilo
similar ao de O cerejal: tapetes, umas poucas poltronas, um aqurio, um
vaso de flores, e figurinos que davam o tom do mundo de fim de sculo da
pera de Debussy (p. 185).
Este mesmo princpio presidir a encenao de Hamlet, tanto no que
diz respeito ao cenrio quanto adaptao do texto de Shakespeare. A
tragdia de Hamlet realizada, primeiro, em 2000, numa verso em ingls,
e, em 2002, numa verso em francs, a que tive a oportunidade de assistir,
neste mesmo ano, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro.
Alguns anos antes, em 1995, Brook montou Qui est l, que no
exatamente uma verso de Hamlet, mas uma montagem, cuja dramaturgia,
tendo Hamlet como ponto de partida, produzia uma interlocuo entre
fragmentos do Hamlet e pensamentos de alguns encenadores de teatro
como Stanislavski, Meyerhold, Artaud, Gordon Craig, Brecht e Zeami
Motokiyo (ator e dramaturgo japons), numa costura que no explicitava as
fontes das reflexes, como assinalou Silvana Garcia, em Quintessncia e
p. O Hamlet de Brook (2002).
Para Jean-Guy Lecat, nos trabalhos da ltima metade da dcada de
1990, entre os quais se incluiriam, na sua opinio, O homem que (1997),
Eu sou um fenmeno (1998) e A tragdia de Hamlet (2000-2002), Brook
trabalha com ilhas de atuao, cujo princpio regulador a concentrao. A
seu ver, nesses trabalhos, se tem operado uma espcie de diminuio da
arquitetura do Bouffes du Nord, tornada pura, abstrata, continente em si do
mundo do gesto teatral preciso (Lecat; Todd, 2003: p. 211). H, nos trs
espetculos, um tapete. No mais colorido como os gobelins e os persas, da
poca do Mobilier ou da viagem frica ou d A conferncia dos pssaros.
Ou como os de O cerejal e de Impresses de Pellas. Trata-se, agora, de
tapetes lisos, de confeco industrial, com pouqussimos objetos, tapetes
que nos conduzem para a percepo do seu formato retangular. Esse
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formato tambm se presentifica em Qui est l, onde havia um tapete
dobrado, em torno de uma cadeira, denotando, segundo Lecat, a sepultura
de Oflia. Na pera Don Giovanni (1998) de Mozart, h igualmente um
tablado sobre o palco, que avana um pouco para frente, indo alm dos
seus limites, num formato quadrado, lembrando um tapete.
Os retngulos se repetiriam na montagem de Fragments (2008),
onde so encenados cinco textos de Beckett (a este espetculo tambm
assisti no Centro Cultural do Banco do Brasil CCBB, no ano de 2008).
Nele, alm de um pequeno tablado retangular, de espessura fina, cujos
contornos eram, s vezes, ressaltados pela luz, outros retngulos se
desenhavam na parede de fundo, na verdade duas portas, eventualmente
delineadas tambm pela luz. Em Fragments, a luz, em determinados
momentos, tinge inteiramente o palco de uma s cor, e delineia estes
retngulos com outra tonalidade, em geral o branco, criando essas imagens
retangulares que remetem inevitavelmente a exerccios pictricos abstratos
que lembram s vezes as composies de Mondrian ou Barnett Newman. Ao
ser tingido, o palco transforma-se num grande volume de cor, numa
mancha de cor, cortada, s vezes, pelo traado de uma outra cor que
desenha o retngulo. As cores que tingem vo do preto, ao vermelho, ao
azul e ao violeta.
Os tapetes de O homem que, assim como os de Eu sou um fenmeno
so alaranjados, e sobre eles h alguns poucos objetos. Predomina uma
nica cor. Em A tragdia de Hamlet, h, alm do tapete vermelhssimo,
delimitando a rea maior, agora chamada de ilha de atuao, outros
pequenos tapetes dourado, alaranjado, em diferentes tons de vermelho
que ficam sobre aquele maior, definindo ilhas menores dentro dele. Neste
caso tambm predomina uma nica tonalidade, o vermelho.
O movimento de concentrao, no caso deste Hamlet, se d a ver
no s no cenrio, mas tambm na adaptao do texto. A natureza dessa
concentrao parece aproximar-se cada vez mais de um sentido de
sintetizao ou de uma forma prpria de minimalismo. Sobre a nova
verso de Hamlet, Silvana Garcia argumenta que configura no um
testamento, mas talvez uma sntese, um novo shifting point (Garcia, 2002:
p. 39) no trabalho de Brook.
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A reconstruo do texto, como j se esboara em Qui est l, impe
um recorte que elimina praticamente toda referncia exterior ao drama
vivido pelo protagonista. No encontramos no Hamlet brookiano nem os
desdobramentos polticos representados pela figura de Fortimbrs, nem os
pequenos enredos ligados famlia do conselheiro Polnio. Tambm
minimizam-se as referncias ao desterro do protagonista rumo Inglaterra.
Alm disso, todo o primeiro ato reduz-se ao encontro de Hamlet com o
espectro do seu pai. Nenhum personagem suprfluo; alm do fantasma,
apenas Hamlet e Horcio (p. 40). Ainda segundo Silvana Garcia, os
principais momentos do texto foram preservados. Como os dilogos com
Oflia e com a Rainha, que sofreriam apenas pequenos cortes. O solilquio
que Hamlet pronuncia a caminho da Inglaterra foi, no entanto, cortado. Mas
a alterao mais significativa talvez tenha sido o deslocamento do solilquio
Ser ou no ser do seu lugar original.
Brook procedeu a uma adaptao que elimina justamente o carter
mltiplo e variado que exaltava em Shakespeare, enveredando por um
minucioso esquadrinhamento do que Hamlet, no seu entender, teria de
essencial. Alm disso, o carter metalingstico que Silvana Garcia diz
persistir impregnando todo o espetculo (p. 41), como uma herana de
Qui est l, no modifica o fato de, em A tragdia de Hamlet, todos os fios,
que, em Shakespeare, se dirigem para pontos variados, se acharem, na
verso brookiana, amarrados, exclusivamente, na figura do personagem
Hamlet. disso, pois, que trata Hamlet: dele mesmo, de suas dvidas, de
seus exames e inquiries (p. 39-40), sintetizaria Silvana Garcia,
sublinhando talvez revelia o movimento de homogeneizao a que o
encenador submete o texto shakespeariano.
Ao cortar os excessos, deixando o essencial, Brook vai ratificando
uma concepo que privilegia a linearidade, que conduz o espectador a uma
imerso no num universo variegado, mltiplo, explosivo, mas no indivduo,
uma imerso de carter existencialista.
Isso pode nos levar de volta s consideraes de Brook sobre o
espetculo A conexo, do Living Theatre. Voltemos ao que ele dizia a
respeito daquela montagem na poca em que foi realizada, em 1959. Ao
seu comentrio de que ali se produzia um tipo de iluso, devido
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principalmente a dois fatores. O primeiro deles seria a utilizao de todo o
volume do espao, incorporando o espectador na obra, coisa que passa a
acontecer tambm na trajetria teatral de Brook. Acentuadamente depois
que ele se estabelece no Bouffes e incorpora o espao vazio do tapete. O
segundo fator era o foco no indivduo. Isso Brook dizia ser o futuro do
naturalismo, pois, para ele, aquele espetculo do Living Theatre
apresentava-se j como um tipo de evoluo do naturalismo, ou como um
naturalismo saturado, de acordo com a denominao que ele empregava na
poca.
O cenrio de A tragdia de Hamlet (assim como o de O homem que e
o de Eu sou um fenmeno), nas palavras de Lecat, como uma
concentrao do Bouffes, capaz de conter o gesto teatral preciso. A meu
ver, ao contrrio, parece a ratificao de um esteticismo do espao vazio. O
tapete, como qualquer lugar entendido como construo, edificao
pode oferecer-se como espao vazio como habitao, para usar as
definies de Martin Heidegger relativas ao construir e ao habitar: Espao
[...] diz o lugar arrumado, liberado para um povoado, para um depsito.
Espao algo espaado [...]. O espaado [...] o que se rene de forma
integradora atravs de um lugar, ou seja, atravs de uma coisa do tipo
ponte (Heidegger, 2002: p. 134).
Entretanto, no conjunto da obra de Brook, o tapete, a partir no da
sua utilizao, mas da sua assimilao, de sua incurso no Bouffes e em
outros teatros, tornou-se uma conveno acrtica, uma representao do
que quer que se materialize sob o a pecha do espao vazio. Um tipo
tambm de parede, que, como uma moldura horizontal, emoldura um
espao vazio onde se quer produzir um gesto essencial. O novo ponto de
vista a que se refere Silvana Garcia talvez seja mesmo o da sntese que
conduz ao convencional, que rene num conjunto unvoco, o essencial.
A carta de Artaud a Ren Daumal, de 14 de julho de 1931, citada por
Batrice Picon-Vallin em ensaio sobre Jacques Polieri, se confrontada com
os ltimos espetculos de Brook, soa proftica ou anacrnica:
Todos os meios de expresso especificamente teatrais
cederam, pouco a pouco, lugar ao texto que, por sua vez,
absorveu a ao de tal maneira que, no final das contas, viu-
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se o espetculo teatral reduzido a uma s pessoa
monologando na frente de um biombo (PiconVallin, 2006:
p. 72).
Esse parece o caminho para um teatro essencial concentrado
exclusivamente na relao entre o ator e espectador, por meio do texto.
Artaud talvez pudesse visualizar criticamente essa reduo exatamente
porque caminhava em outra direo.
A obra teatral de Peter Brook, em direo oposta formulao em
seus textos da mudana de ponto de vista [shifting view point] como
aspecto fundamental de sua trajetria e de sua potica teatral, tende, a
partir do estabelecimento no Bouffes du Nord, para uma esttica
unificadora. Mas somente a partir desse momento, pois toda sua obra
anterior desmente tal fato. Embora seu discurso objetivo seja o da
multifocalidade, seja invariavelmente marcado pela referncia s mudanas
de ponto de vista, seus ensaios e artigos (desde os mais antigos, de 1946),
deixam transparecer a presena de uma inflexo no sentido de uma certa
unificao.
Essa restritiva, entretanto, no que se refere cena, s se far sentir
em sua obra teatral posterior aos espetculos no tapete, desde a fixao do
C.I.R.T. e do C.I.C.T. no Bouffes, a partir de 1974, quando ento, comea a
se definir essa espcie de unificao esttica, o que no se via em sua obra
nos perodos antecedentes, isto , de 1973 para trs, at 1942.
Em Marat/Sade espetculo, 1964, e filme, 1967 vemos migradas
referncias de pintores renascentistas como Hieronymus Bosch (1450-
1516) e Pieter Bruegel (1525-1569). Uma pintura de Bosch, em particular,
parece presentificada na montagem de Brook: Cristo carregando a cruz.
Peter Brook, entretanto, no faz nenhuma meno a esse respeito. J para
a montagem de Medida por medida, de Shakespeare, em 1956, Brook conta
que se inspirou em obras dos dois artistas: pensava que a funo do
diretor era criar uma imagem que permitisse platia penetrar no mago
da pea e por isso reconstru os mundos de Bosch e Brueghel, assim como
havia me inspirado em Watteau ao dirigir Trabalhos de amor perdidos
(Brook, 1994: p. 29).
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Ele relata as duas situaes citadas da inspirao em Bosch e
Bruegel, e em Antoine Watteau (1684-1721) como equvocos. possvel
que as imagens plsticas pinturas, nesse caso servissem apenas como
suportes para um jovem diretor inexperiente, e que seu uso tenha resultado
na nfase em meras ilustraes. Contudo, notvel, em sua obra, a
insistncia em referncias pictoriais como na encenao de Fragments e,
particularmente, a presena de imagens das chamadas festas galantes
fte galante , retratadas por Watteau na concepo de Brook para O
jardim das cerejeiras de Anton Tchekhov.
Brook vai estabelecer uma oposio dentro de sua obra oposio
que comea a se construir por volta do incio dos anos 1960 (ele explicita
essa percepo quando conta o episdio da quase destruio completa da
maquete do cenrio de Rei Lear, em 1962) entre a produo de imagens
impactantes e o simples, isto , um algo, ainda embrionrio no momento
em que ele escreve, que ir se definindo ao longo dos prximos anos como
concentrao na relao ator-espectador, na contao da histria, e no jogo
com o imaginrio, propiciada por um lugar vazio, que, por sua vez, o que
d condio ao espao vazio, aberto ao ato criativo, campo de produo
simblica. O caminho de Brook, que tento retraar, processual e circular,
e, inevitavelmente, cheio de contradies.
As questes apresentadas at aqui corroboram, de um lado, um perfil
que se delineia desde o incio da carreira de Brook, que o da
multiplicidade de perspectivas e o da rejeio a escolhas nicas. Essa
pluralidade , contudo, contrariada, a partir do encontro do tapete com a
arquitetura do Bouffes, por uma marca de estilo, marca que, por sua vez,
se insinua num discurso que comeara a se construir bem antes. Essa
potica do espao vazio que vai se constituindo, desde fins dos anos 1950,
e incio dos 1960, a partir de experincias e prticas distintas, vai conduzir,
mais adiante, todos os espetculos a um caminho esttico semelhante. As
experincias que o produziram, todavia, no carregam qualquer marca
estilstica, muito pelo contrrio, so dominadas pela diversidade.
Do ponto de vista das peas encenadas, a obra teatral brookiana
continuar, a partir do Bouffes, extremamente diversificada. A alguns
Shakespeares inditos em sua carreira, assim como a novas verses de
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montagens j realizadas de obras shakespearianas, se acrescentariam Dias
felizes, de Samuel Beckett, o Ubu Rei, de Alfred Jarry, O cerejal, de
Tchekhov, a pea Os Ik, baseada em livro do etnlogo Colin Turnbull, o
pico Mahabharata, o poema sufi de Farid ud-Din Attar: Conferncia dos
pssaros, as peras Carmem, de Bizet, Don Giovanni, de Mozart, e as
Impresses de Pellas, de Debussy, alm de O osso, de Birago Diop, O
homem que, texto baseado em O homem que confundiu sua mulher com
um chapu, do neurologista Oliver Sacks, O grande inquisidor, adaptao
de Os irmos Karamazov de Dostoivski. Montaria, igualmente, o Kaspar,
de Peter Handke, Far away, pea de Caryl Churchill, Eu sou um fenmeno,
baseado no relato, pelo neuropsiclogo Alexander Luria, do caso de
Solomon Shereshevsky, homem dotado de memria prodigiosa e de
sinestesia, alm do chamado teatro das favelas sul-africano, com Sizwe
Banzi morreu, da reunio de cinco peas curtas de Beckett em Fragments, e
de vrias outras adaptaes e peas.
Observando os comentrios de Brook (em entrevistas, artigos, livros
etc.), verifica-se que, se, por um lado, ele sempre reafirma sua mudana de
ponto de vista, por outro, ele repetidamente reitera suas convices sobre o
espao vazio e sua busca pelo simples. Essas convices tornaram-se, ps-
Bouffes, comprometimentos que se assemelham quelas mesmas crenas
engessadas contra as quais ele se opunha. O movimento que o levou a
rejeitar os cenrios e a produo de imagens impactantes, como ele mesmo
assinala, e a encontrar na simplicidade do tapete um tipo de plenitude e de
campo aberto para o acontecimento teatral, no fluxo das prprias
experincias, foi se transformando num movimento de fixao da forma.
Nos espetculos no tapete, feitos na frica, o tapete, na sua vacuidade, se
oferecia como um espao para histria, isto , nele, erguiam-se espaos
imaginrios e esse era o vnculo entre os atores e os espectadores. O
problema que o tapete foi carregado para dentro do teatro, e essa
conjuno entre tapete e Bouffes acabaria se impondo invariavelmente
sobre toda e qualquer variedade de sentidos.
John Heilpern, autor de The conference of the birds: the story of
Peter Brook in Africa, assinala o seguinte:
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Voc pode ver a frica na produo de Brook [...]. O pomar
de cerejas tem lugar sem cenrios, em tapetes. O
Mahabharata no tem cenrios, tambm. representado em
tapetes e terra. [...] toda produo que Brook tem feito
desde a frica tem sido a mesma produo (Heilpern, 1999:
p. 1-2).
A perspectiva dele, ao dizer isso, inteiramente diferente da leitura
que fao dessa reiterao que, a meu ver, Brook faz de sua obra a cada
nova obra. O tapete originalmente era apenas um delimitador da rea de
representao num espao qualquer praa, mercado etc. , onde,
utilizando um objeto, um som, um fragmento de tema, o ator podia
explorar diretamente a relao com o espectador. Entretanto, ao unir-se
indissoluvelmente ao teatro, o tapete se enrijece e torna-se mais uma
parede, perdendo a funo de lugar que se oferece como espao vazio.
Em entrevista a Denis Bablet, em novembro de 1972, um pouco
antes da viagem a frica, mas j depois da viagem ao Ir, onde Brook e o
seu grupo de atores internacionais fazem o primeiro espetculo no tapete,
Brook diz o seguinte: Hoje, eu digo ao eletricista: Holofote! Quero de
qualquer jeito, que tudo fique claro, que no haja a menor sombra. pelo
mesmo processo que ns chegamos ao tapete, sem nada mais (Bablet,
1973: p. 28). A declarao de Brook, nesse incio da dcada de 1970,
resume, de certo modo, uma potica que acabaria por se institucionalizar,
por ampliar a sua normatividade, a meu ver, principalmente depois de seu
estabelecimento no Thtre des Bouffes du Nord.
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