DOSSIÊ
O IMPACTO DA REGRA SOBRE A IMPRESCRITIBILIDADE NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS DOS ESTADOS SE JUSTIFICA?
Fabíola Girão MonteconradoProfessora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso (Chile)
1. INTRODUÇÃO
O problema da imprescritibilidade dos denominados crimes internacionais1 não está resolvido,
apesar de sua consagração em tratados internacionais sobre direitos humanos e de Direito Penal
Internacional, particularmente, no Estatuto de Roma. Conforme demonstraremos, existe uma
importante controvérsia doutrinária a respeito do tema.
Entendemos que é necessário explicar a evolução do instituto da prescrição para comprovar que
ela é resultado do processo de racionalização do direito penal e da humanização das penas, e que
funciona, como se verá, como verdadeiro limite ao ius puniendi do Estado. Neste sentido, a regra
absoluta sobre a imprescritibilidade no Direito penal internacional acaba gerando problemas não
menores, na medida em que causa um impacto bastante negativo nos ordenamentos jurídicos
dos Estados. Isto porque cria, em alguns casos, um subsistema penal de funcionamento distinto
para os crimes de caráter internacional. E, ainda, avança e acaba contaminando os chamados
“crimes comuns”.
Concluiremos que a prescrição é um instituto que encontra fundamento em razões de segurança
jurídica e empresta racionalidade ao sistema penal. E, se bem apresenta inconvenientes ao
1 Usaremos o termo “crimes internacionais” para referirmo-nos àqueles delitos atualmente previstos no artigo 5º do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, quais sejam: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.374
castigo dos delitos internacionais, estes podem ser superados e provavelmente são menos
danosos que aqueles gerados pela regra da imprescritibilidade.
2. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DOS INSTITUTOS DA PRESCRIÇÃO E DA IMPRESCRITIBILIDADE DOS DELITOS INTERNACIONAIS
Ao analisarmos a evolução histórica da prescrição, verificamos que este instituto já era conhecido
na Grécia. Demóstenes e Lisías narraram que, com exceção de alguns delitos imprescritíveis, a
prescrição da ação penal era conhecida em razão da dificuldade que representava o transcurso
do tempo para as provas e, principalmente, para a demonstração da inocência2.
No entanto, as disposições mais antigas sobre a prescrição se encontram na Lex Julia de
adulteriis (18 a. C., no período de Augusto), em que era fixado o prazo de cinco anos para a
prescrição dos delitos de estupro, adultério e lenocínio3. Posteriormente, na era dos grandes
jurisconsultos, surgiu a prescrição da ação penal nos crimina publica e, vinte anos depois,
tornou-se regra geral.
No entanto, tem-se duas exceções que passaram a ser admitidas: a) por um lado, a prescrição
quinquenal, mais curta, para os delitos contra a honestidade e outros de escassa significação; b)
por outro, a imprescritibilidade de alguns delitos graves, como o parricídio, por sua atrocidade,
a suposição de parto, pela imprescritibilidade do estado das pessoas, e a apostasia (renegação
da religião), em razão do Cristianismo haver chegado a ser a religião do Estado. Com Teodosio II,
muitas destas ações ficaram submetidas à prescrição geral de trinta anos.
Na Idade Média, salvo no direito inglês, a prescrição foi acolhida pelo direito positivo, inspirado
no direito romano. No direito germânico, a Constituição Carolina (1530-1532) silenciou sobre a
prescrição, que não foi aceita por aquele ordenamento jurídico. Apesar disto, Pessina argumenta
que nas origens primitivas do direito germânico se admitia a prescrição da ação penal aos oitenta
anos, “para assegurar a tranquilidade do indivíduo livrando-o do perigo de juízos incertos”.
2 VERA BARROS, Oscar N., La prescripción penal en el Código Penal – leyes especiales – tratados internacionales, 2 ed., Lerner Edito-ra, Buenos Aires, 1997, p. 40.
3 MORILLAS CUEVA, Lorenzo, Prescripción del delito y de la pena, em Nueva Enciclopedia Jurídica, T. XX, 1993, p. 269 e ss. 375
Somente nos séculos XVI e XVII a prescrição foi inserida nos estados alemães. Neste sentido, Vera
Barros destaca o surgimento da exigência da não comissão de outros delitos como pressuposto
da prescrição, o que, segundo ele, responde ao fundamento na presunção de emenda do
delinquente. Esta mesma exigência de correção ou emenda do autor aparece, posteriormente,
no código prussiano de 1794; no código austríaco de 1852; no Código da Baviera de 1813 e nos
códigos italiano e argentino vigentes4.
Na Espanha, no Fuero Juzgo, estava contemplada a prescrição no prazo de trinta anos, e nas
Partidas se encontravam disposições isoladas sobre a prescrição das sanções penais.
Segundo Morillas Cueva, não houve aceitação da prescrição da pena até o aparecimento do
Código penal francês de 1791, apesar de que se admite o seu estabelecimento na França já
em 1642, pelo Decreto do Parlamento de Paris de 29 de abril daquele ano5. Vera Barros, por
outro lado, sugere que a aplicação da prescrição da pena já era realidade e que o código de
1791 “converteu em lei a jurisprudência já existente elaborada, provavelmente, sobre a base
do antecedente estabelecido pelo Decreto do Parlamento de Paris, de 29 de abril de 1642, que
admitia a prescrição da pena com um prazo de 30 anos”6.
O certo é que a partir do Code des delits et des peines, a prescrição da ação penal e da pena
passaram ao Code d´instrucción creiminelle de 1808, que teve importância capital nas legislações
posteriores, vez que muitas delas se estruturaram tomando-o como modelo. O resultado
incorporado aos códigos penais em geral foi: a) a prescrição se funda no transcurso do tempo; b)
todos os delitos são prescritíveis; c) a incorporação da prescrição da execução da pena7.
Assim, ao final do Século XVIII e princípio do XIX, por meio da influência da legislação francesa
de 1791 e do posterior Código de Instrução Criminal de 1808, a prescrição do delito e da pena foi
introduzida paulatinamente na grande maioria dos códigos modernos.
Conforme destaca Vera Barros, enquanto a imprescritibilidade era generalizada na primeira
época, passou a ser excepcional a partir da codificação do século XIX, perdurando somente em
alguns códigos contemporâneos, como o italiano de 1930, os códigos penais das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, de 1926, e da Dinamarca, de 1930. Como exemplo de crime imprescritível,
está o delito contrarrevolucionário, cuja prescrição “fica entregue ao arbítrio do tribunal. Se este a
4 VERA BARROS, cit. (n. 2), p. 44.
5 MORILLAS CUEVA, cit. (n. 3), p. 270.
6 VERA BARROS, cit. (n. 2), p. 40.
7 Idem, p. 45.376
nega, procede-se, em lugar do fuzilamento, à declaração de inimigo dos trabalhadores e à perda
da nacionalidade, como também relegado permanente do território soviético o à privação da
liberdade por tempo não inferior a dois anos”.
No código da Dinamarca, “os fatos puníveis cometidos no desempenho de um cargo ou função
pública, ou em caso de subministro de dados inexatos sobre as relações de sociedades por
ações e outras de caráter patrimonial” também são considerados imprescritíveis8.
De fato, Morillas Cueva adverte que alguns textos punitivos mantiveram a imprescritibilidade de
forma expressa ou tácita. Assim, o Código da República Democrática Alemã excluiu do rol de
crimes prescritíveis os crimes contra a paz, contra a humanidade e contra os direitos do homem,
bem como os crimes de guerra, em seu artigo 84; o de Cuba não a aplica aos crimes para os
quais está prevista a pena de morte (art. 64, n. 5); o da República Federal Alemã determina
que são imprescritíveis os delitos de genocídio, em seu art. 78.2, e o Código italiano considera
imprescritíveis os crimes cuja pena privativa de liberdade seja superior a 24 anos. Neste sentido,
cabe destacar que Bettiol não admitia a prescrição para os crimes cuja pena fosse a de morte, ou
de prisão perpétua, sob o argumento de que a gravidade de tais crimes não apaga sua lembrança
entre os homens9.
No âmbito dos crimes internacionais, a ideia da imprescritibilidade não coincide com a criação
do Tribunal Penal Militar para Nuremberg que julgou os crimes praticados pelo estado alemão
durante a Segunda Guerra Mundial, surgindo expressamente com a Convenção sobre a
imprescritibilidade em 196810. Isso se deve ao fato de que, à época dos juízos de Nuremberg, a
proximidade da ocorrência dos fatos tornava a discussão desnecessária.
Além disso, conforme destaca Bazán Chacón, a prescrição não era a regra de todos os estados
signatários do Acordo de Londres, como Estados Unidos e Reino Unido. Finalmente, também
se pode apontar como razão para a falta de declaração expressa de imprescritibilidade, naquele
momento, o fato de que Nuremberg deu primazia ao direito internacional sobre o direito interno11.
8 Vera Barros, cit. (n. 2), p. 41.
9 BETTIOL, Giuseppe, Diritto penale. Parte generale. 12ª ed., cuidada por Luciano Pettoello Mantovani, Cedam, Padova, 1986 p. 272
10 Em sentido contrário, o Digesto de la jurisprudencia latinoamericana sobre crímenes de derecho internacional, onde consta que o “principio de la imprescriptibilidad fue enunciado por primera vez por los Principios de Derecho Internacional Reconocidos en el Estatuto del Tribunal de Nüremberg y en la Sentencia del Tribunal, Asamblea General de las Naciones Unidas, Quincuagésima quinta reunión plena-ria, RES/AG/95(I), 11 de diciembre de 1946”. Sem embargo, não há, entre eles, pelo menos de forma expressa, uma referencia à imprescri-tibilidade dos crimes internacionais. Fundación para el Debido proceso legal, Digesto de la jurisprudencia latinoamericana sobre crímenes de derecho internacional, Washington, D.C., Fundación para el debido proceso legal, 2009. Disponível em http://www.dplf.org. Acesso em 10.10.2011.
11 BAZÁN CHACON, Iván, Los delitos de genocidio y de lesa humanidad. La cuestión de la imprescriptibilidad, Derecho & Sociedad, nº 21. Disponível em http://blog.pucp.edu.pe/. Acesso em 02.10.2011. 377
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A esse respeito, também é importante lembrar que a sentença israelita de 12 de dezembro
de 1961, no paradigmático caso Eichmann, não acolheu o pedido de prescrição dos delitos. A
decisão foi fundamentada na legislação argentina, onde o ex-dirigente nazista foi capturado,
tendo sido argumentado que “as regras da prescrição não deverão ser aplicadas às ofensas a
esta lei”12.
Desta feita, somente cerca de duas décadas depois de Nuremberg é que surgiu a discussão na
Europa sobre a prescrição dos crimes cometidos pelo regime nazista durante a Segunda Guerra.
E, neste contexto, foi criada a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e
crimes contra a humanidade, de 26 de novembro de 1968.
O preâmbulo do referido instrumento ressalta as resoluções da Assembleia Geral das Nações
Unidas que confirmam os princípios de direito internacional, reconhecidos pelo Estatuto daquele
tribunal militar internacional. E, ainda, reconhecido por suas sentenças, como também se faz
referência expressa ao silêncio de ditas normas sobre a prescrição13. Concluiu-se, então, que os
crimes de guerra e contra a humanidade, cometidos em tempos de guerra ou de paz, definidos no
Estatuto de Londres, as infrações graves enumeradas nos Convênios de Genebra para proteção
das vítimas de 1949 – assim como a expulsão por ataque armado ou ocupação, os atos desumanos
devidos à política de apartheid e o delito de genocídio, definido na Convenção sobre a matéria de
1948 – “são imprescritíveis, qualquer que seja a data em que se tenham sido cometidos (...)”14.
A Convenção sobre a imprescritibilidade não esteve a salvo de críticas. Enquanto se sustentava o
caráter excepcional dos crimes de guerra, eximindo-os das regras do direito penal comum – entre
elas, a prescrição – países como o Brasil, a Grécia, Honduras, Chipre e Suécia expressaram sua
objeção à aplicação retroativa das regras da convenção por violarem o princípio de irretroatividade
penal. Além de colidir com as regras internas dos Estados que estabeleciam a prescrição como
princípio geral15.
De fato, foram necessárias várias resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas para sua
entrada em vigor, em 1970. Ao longo deste processo, se registrou um número considerável de
abstenções e votos negativos de Estados membros das Nações Unidas preocupados com a falta
de clareza das definições dos delitos de guerra e contra a humanidade.
12 Sentença de 12 de dezembro de 1961 da Corte Distrital de Jerusalém no caso A.G Israel vs Eichmann.
13 Conforme o preâmbulo da Convenção: “Observando que em nenhuma das declarações solenes, instrumentos ou convenções para a persecução e castigo dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade foi prevista limitação no tempo”.
14 Artigo 1º da Convenção.
15 HENCKAERTS, Jean-Marie, DOSWALD-BECK, Louise, El derecho internacional humanitario consuetudinario, Normas, volume 1, Trad. Margarita Serrano García, Comité Internacional de la Cruz Roja, Buenos Aires, 2007, p. 695.378
A respeito da regra sobre a imprescritibilidade, se abstiveram Colômbia, Noruega, França e
Turquia – porque havia colisão com suas legislações internas16 – ao mesmo tempo em que a
representação da Bolívia declarou que “a imprescritibilidade é claramente abominável” e que
está “em desacordo com o princípio de não retroatividade do direito penal”17.
A despeito dos inconvenientes apontados, era inevitável o reconhecimento da imprescritibilidade
da ação penal e da pena para tais delitos, além da aplicação retroativa da referida Convenção18,
pese a que o artigo 15 do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966 já havia reconhecido o
princípio de irretroatividade da lei penal. Já em 25 de janeiro de 1974, foi adotada a Convenção
Europeia sobre a Imprescritibilidade dos Crimes contra a Humanidade e dos Crimes de Guerra
que, no entanto, somente entrou em vigor em 23 de junho de 2003.
No campo do sistema regional americano, em
9 de junho de 1994 foi aprovada a Convenção
Interamericana sobre Desaparecimento
Forçado de Pessoas, a qual contém uma
disposição específica sobre a prescrição, na
mesma linha do tratado geral mencionado19.
Ressalta-se, no entanto, que existe limite nas
previsões constitucionais sobre a prescrição.
Neste caso, a convenção estabelece como
limite de tempo para a persecução do delito o
término do prazo prescricional do delito mais
grave no âmbito doméstico do Estado.
Já na seara do Direito penal internacional,
a imprescritibilidade foi consagrada como
regra geral pelo artigo 29 do Estatuto de
16 As abstenções da Colômbia e da Noruega se deram durante a votação da Res. 2583 (UN. Doc. A/C. 3/SR. 1723, 3 de dezembro de 1969, UN Doc. A/C.3/SR. 1724, 3 de dezembro de 1969, parágrafos 36 y 60 y UN. Doc. A/C. 3/SR.1725, 4 de dezembro de 1969).
17 Res. 2583 (UN. Doc. A/C. 3/SR. 1725, 4 de dezembro de 1969, parágrafo 19).
18 Como destacou o Relator Especial, Sr. Doudou Tiam, da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, no que se refere à imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, esta convenção é de “caráter simplesmente declaratório (pois) as infrações a que se refere, ao constituírem crimes que por sua natureza são imprescritíveis qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos”. Quarto informe sobre o projeto de Código de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade, documento das Nações Unidas A/CN.4/398, de 11 de março de 1986, parágrafo 172. Citado por ANDREU-GUZMÁN, Federico, Imprescriptibilidad de los crímenes de lesa humanidad versus irretroactividad de la ley penal: un falso dilema, en AAVV. Retos de la judicialización. En el proceso de verdad, justicia, reparación y reconciliación, Lima, Coordinadora Nacional de Derechos Humanos, 2005, p. 157.
19 Artigo 7º: A ação penal decorrente do desaparecimento forçado de pessoas e a pena que for imposta judicialmente ao respon-sável por ela não estarão sujeitas a prescrição. No entanto, quando existir uma norma de caráter fundamental que impeça a aplicação do estipulado no parágrafo anterior, o prazo da prescrição deverá ser igual ao do delito mais grave na legislação interna do respectivo Estado-Parte.
[...] a prescrição, que foi expressão do processo de racionalização do direito penal no século XIX, passa a ser considerada, depois dos acontecimentos atrozes da Segunda Guerra Mundial, um empecilho ao cumprimento das obrigações internacionais contraídas pelos estados.
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Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, para todos os crimes de sua competência20. No
entanto, tampouco neste contexto, a questão foi pacífica. Além do fato de que as propostas
apresentadas propunham a prescrição como regra, ainda que mitigada em alguns aspectos21, é
sabido que, durante os trabalhos preparatórios daquele tratado, foi discutida a possibilidade de
estabelecer-se um período de limitação para a persecução dos crimes de guerra. Tal argumento,
como se sabe, foi vencido pela cláusula de suspensão temporária da competência para os
Estados que manifestem tal pretensão.
Finalmente, vale registrar, como signo da latente expansão da ideia de imprescritibilidade, a
aprovação do Conjunto de princípios atualizado para a proteção e promoção dos direitos humanos
mediante a luta contra a criminalidade, pela Comissão de Direitos Humanos, em sua sessão número
61 das Nações Unidas, de 8 de fevereiro de 2005. Naquele documento, a imprescritibilidade dos
crimes internacionais foi alçada à categoria de “direito da vítima” (princípios IV e XXIII), deixando
de ser, em nosso sentir, um instituto jurídico penal com função limitadora do ius puniendi do
Estado para se projetar como uma espécie de instrumento de reparação das vítimas.
Com efeito, a prescrição, que foi expressão do processo de racionalização do direito penal no
século XIX, passa a ser considerada, depois dos acontecimentos atrozes da Segunda Guerra
Mundial, um empecilho ao cumprimento das obrigações internacionais contraídas pelos estados.
Isto porque representa um obstáculo para a investigação, persecução e sanção de graves
violações aos direitos humanos, objetivos que parecem justificar, inclusive, a relativização do
princípio da irretroatividade penal.
Assim, se observa que a regra da imprescritibilidade foi finalmente imposta pelos tratados
internacionais e alcançou caráter absoluto com a entrada em vigor do Estatuto de Roma. No
entanto, o tema tem gerado profunda controvérsia doutrinária.
Enquanto Zaffaroni defende a imprescritibilidade dos crimes internacionais em razão da falta
de legitimidade do direito penal para conter o poder punitivo para esta espécie de delito22,
Guzmán Dalbora, por exemplo, opina que o incremento dos instrumentos tradicionais, como a
extensão dos prazos de prescrição para os casos mais graves, bem como as conhecidas causas
de suspensão e interrupção, se bem utilizadas, seriam eficientes e suficientes para responder
penalmente aos delitos mais graves tipificados pelo Direito penal internacional. E isto se dá
20 Art. 29: Os crimes de competência do Tribunal não prescreverão.
21 United Nations Diplomatic Conference Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court (Rome, 15-17 July 1998). A/CONF.183/13/ (Vol. III, p. 32/33).
22 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Notas sobre el fundamento de la imprescriptibilidad de los crímenes de lesa humanidad, em En torno de la cuestión penal, Buenos Aires, Editorial B de f, 2005, pp. 253 e ss.380
sem a necessidade de pôr a prova os princípios jurídicos e mitigar a dignidade e o prestígio da
administração de justiça23.
E se, por um lado, Aguilar de Cavallo afirma que “(…) em geral, nosso sentido da responsabilidade
humana se projetava com consequências para o futuro e por tempo limitado. Os crimes internacionais
dissolveram o estatuto de limitação temporal penal e o impedimento da persecução.”24.
Pastor, ao contrário, aponta a perda de racionalidade do sistema. E, mais ainda, a consagração de
um verdadeiro direito penal de exceção quando “a prescrição é vista pela ordem jurídica interna
como uma garantia do Direito penal não autoritário para os ‘crimes nacionais’ se converte, ao passar
à ordem internacional em um estorvo que deve ser suprimido radicalmente sem que com isso se
possa qualificar de autoritário ao Direito penal internacional, e com a consequência adicional, para
fechar o círculo, de que a imprescritibilidade regressa do Direito internacional ao nacional porque
este deve captar em suas regras as conclusões daquele, de modo que, por conseguinte, os crimes
contra o Direito internacional regulado pelo Direito nacional são também imprescritíveis, agora por
disposição do próprio Direito nacional que antes não os concebia como tais.”25.
É este processo de entrada da regra sobre a imprescritibilidade nos ordenamentos jurídicos dos
Estados, bem como o impacto que produz em algumas garantias de natureza penal e processual
penal que serão tratados como temas, em seguida.
3. O IMPACTO DA JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES INTERNACIONAIS EM MATÉRIA DE IMPRESCRITIBILIDADE
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma espécie de termômetro
do impacto produzido pela regra da imprescritibilidade dos delitos de caráter internacional em
23 GUZMÁN DALBORA, José Luis, Crímenes internacionales y prescripción, no volume Temas actuales del Derecho penal internacio-nal. Contribuciones de América Latina, Alemania y España, editado por Kai Ambos, Ezequiel Malarino y Jan Woischnik. Konrad-Adenauer--Stiftung, Montevideo, 2005, p. 115.
24 AGUILLAR CAVALLO, Gonzalo, Crímenes internacionales y la imprescriptibilidad de la acción penal y civil: referencia al caso chile-no, em Revista Ius et Praxis - año 14 - n° 2:147-207, 2008, versión On-line ISSN 0718-0012. Disponível em http://www.scielo.cl. Acesso em 10.02.2010, (tradução livre).
25 PASTOR, Daniel R, La imprescriptibilidad de los crímenes internacionales en conexión con el fenómeno del terrorismo, em SERRA-NO-PIEDECASAS FERNÁNDEZ, José Ramón, DEMETRIO CRESPO, Eduardo y otros (Dirs.), Terrorismo y Estado de Derecho, Madrid: Iustel, 2010, p. 647, (tradução livre). 381
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nosso continente. Observa-se um importante incremento dos argumentos apresentados pelo
referido tribunal regional desde o caso Velásquez Rodríguez, de 1988, até, por exemplo, o caso
Almonacid, de 2006.
De fato, no caso Velásquez Rodríguez26, a Corte Interamericana já se pronunciou sobre o
dever do Estado de organizar todo o aparato e a estrutura de poder interna. Assim, também
irá cumprir o dever de prevenir, investigar e sancionar penalmente as condutas violadoras
dos direitos humanos, como obrigação decorrente do artigo 1.1 da Convenção Americana de
Direitos Humanos27.
No entanto, foi no caso Barrios Altos que se enfrentou, pela primeira vez, o problema da
imprescritibilidade. Em sua sentença, a Corte expressa textualmente que “são inadmissíveis
as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes
de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e sanção dos responsáveis das
violações graves dos direitos humanos tais como a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou
arbitrária e as desaparições forçadas, todas elas proibidas por contrariarem direitos inderrogáveis
reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”28.
Com essa decisão, a Corte declarou sem efeito a lei de anistia vigente no Peru, proibiu a extinção
da responsabilidade penal por meio da prescrição também para “outros casos de violação de
direitos consagrados na Convenção Americana acontecidos no Peru”. Contudo, deixou de aclarar
que outros casos ou delitos estariam abarcados por sua decisão29.
Conforme destaca Pablo Parenti, a partir dessa decisão, parte da jurisprudência argentina
passou a reconhecer a imprescritibilidade dos delitos praticados por agentes do Estado
durante o período de ditadura naquele país, ou seja, entre 1976 e 1983. Isto se deu sob o
argumento de que tais fatos haveriam sido praticados em contexto de um plano sistemático
de repressão30.
26 Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, sentença de mérito de 29 de julho de 1988.
27 No mesmo sentido são as decisões nos casos Godínez Cruz vs. Honduras, sentença de mérito de 20 de janeiro de 1989, parágrafo 173; Caballero Delgado y Santana vs. Colombia, sentença de mérito de 8 de dezembro de 1995, parágrafo 56; El Amparo vs Venezuela, sentença de reparações e custas de 14 de setembro 1996, parágrafo 6 do voto do juiz Cançado Trindade; Loayza Tamayo vs. Perú, sentença de mérito de 17 de setembro de 1997, ponto dispositivo 3, Corte IDH; Penal Miguel Castro Castro vs Perú, sentença demérito, reparações e custas de 25 de novembro de 2006, parágrafo 404, entre outros.
28 Caso Barrios Altos vs. Perú, sentença de mérito de 14 de março de 2001, parágrafo 41.
29 Ídem, parágrafo 44.
30 PARENTI, Pablo F., La inaplicabilidad de normas de prescripción en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Hu-manos, en AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Ed.). Sistema interamericano de protección de los derechos humanos y derecho penal internacional, Montevideo, Konrad-Adenauer-Stiftung, 2010, pp. 214.382
383
No caso Trujillo Oroza, a Corte Interamericana discutiu o problema da prescrição em função da
falta de tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas na Bolívia31. Neste caso
concreto, considerou positiva a decisão do Tribunal Constitucional de anular a decisão dos tribunais
inferiores que haviam declarado a prescrição da ação penal no caso do sequestro, tortura e
desaparecimento de José Carlos Trujillo Oroza.
Naquela oportunidade, a máxima corte boliviana entendeu que sendo permanente o delito de
sequestro, cuja consumação não estava provada por força do desaparecimento da vítima, o prazo
prescricional não poderia iniciar-se. Sem embargo, reiterando a inadmissibilidade da prescrição
quando ela possa significar impedimento à investigação e punição dos responsáveis por graves
violações contra os direitos humanos, instou o estado boliviano a adequar sua legislação interna,
no sentido de criar o tipo penal correspondente ao desaparecimento forçado de pessoas, segundo
os parâmetros do direito internacional.
Já no caso Goiburú, o problema da imprescritibilidade surge de forma indireta, no marco de
um processo que versou sobre extradição. A referida decisão faz um chamado aos Estados no
sentido do dever de respeitar o especial regime jurídico a que estão submetidos os crimes de
especial gravidade contra os direitos humanos, quando da análise de um pedido de extradição,
incluindo-se a regra de que devem ser considerados imprescritíveis32. Significa dizer que estaria
vedado negar a extradição, com fundamento na prescrição do delito, se este está entre aqueles
considerados como “graves violações aos direitos humanos” pelo Estado solicitante.
Finalmente, no caso Almonacid, a decisão da Corte Interamericana foi além. No capítulo sobre
as reparações, o tema da prescrição foi enfrentado com um argumento mais audacioso: sua
proibição foi considerada norma de ius cogens, já que haveria sido apenas reconhecida
(e não criada!) pela Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e crimes
contra a humanidade.
Com esse argumento, a Corte entendeu que, apesar do Estado chileno não haver ratificado dita
convenção, estaria obrigado a declarar a imprescritibilidade do crime considerado como crime
contra a humanidade33. Juntamente com a proibição de declarar a prescrição, estaria vedado ao
estado chileno reconhecer a irretroatividade da lei penal ou o principio nom bis in idem, em
razão de que o processo foi levado a cabo pela Justiça Militar e não contou com a imparcialidade
e a independência, exigidas pelo princípio do devido processo. A partir daí, como decorrência
31 Caso Trujillo Oroza vs. Bolívia, sentença de 27 de fevereiro de 2002, reparações e custas.
32 Caso Goiburú y otros vs. Paraguay, sentença de mérito, reparações e custas, de 22 de setembro de 2006, parágrafo 130.
33 Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile, sentença de mérito de 26 de setembro de 2006, parágrafos 99, 105 y 106. 383
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lógica, a Corte concluiu pela possibilidade de reabertura das investigações e de procedimentos,
nos casos de aparecimento de novas provas, ainda que já exista trânsito em julgado de uma
decisão absolutória.
Além da superação, sem maior aprofundamento, das controvérsias doutrinárias sobre a natureza
jurídica da regra sobre a imprescritibilidade, elevada diretamente à categoria de norma de ius
cogens, com o evidente efeito prático de superar a falta de ratificação da convenção sobre a
imprescritibilidade pelos Estados-partes, igualmente parece frágil a declaração da Corte no sentido
de que os direitos das vítimas – a letra e o espírito da Convenção Americana – se sobrepõem ao
principio nom bis in idem34.
Nesse sentido, ressalvados os casos em que o processo é nulo por haver sido levado a cabo por
tribunais não imparciais, parece ser arbitrária a mitigação do princípio nom bis in idem quando
confrontado com os direitos das vítimas. Ressalta-se, aqui, o fato de que se trata de um princípio
de garantia do imputado, na relação jurídica que se estabelece entre este e o Estado.
No caso La Cantuta, a Corte Interamericana repetiu e parece haver consolidado o seu
entendimento de que a regra sobre a imprescritibilidade tem validez universal por se tratar de
regra de ius cogens: “(…) Aun cuando [el Estado] no ha[ya] ratificado dicha Convención (sobre
imprescriptibilidad de los crímenes de guerra y contra la humanidad), esta Corte considera que la
imprescriptibilidad de los crímenes de lesa humanidad surge como categoría de norma de Derecho
Internacional General (ius cogens), que no nace con tal Convención sino que está reconocida en
ella. Consecuentemente, [el Estado] no puede dejar de cumplir esta norma imperativa”35.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos
também se pronunciou favoravelmente à
aplicação retroativa da imprescritibilidade
no caso Kolk y Kislyiy. No entanto, mais
cauto que a Corte Interamericana, enfatizou
a ratificação prévia da Convenção de 1968.
A decisão versou sobre o caso de duas
pessoas condenadas por crimes contra a
humanidade por um tribunal da Estônia,
com fundamento no parágrafo primeiro do
artigo 61-1, do Código penal daquele país.
34 Idem, parágrafo 154.
35 Caso La Cantuta vs. Perú, sentença de mérito, reparações e custas de 29 de novembro de 2006, parágrafo 225.
As sentenças analisadas deixam ver que a regra sobre a imprescritibilidade dos crimes internacionais é um instrumento imprescindível à chamada “luta contra a impunidade”.
384
O delito consistiu na deportação de população civil desde a ocupada República da Estônia até
longínquas zonas da União Soviética.
O Tribunal Europeu rechaçou a alegação de que os fatos foram praticados durante a vigência do
Código criminal de 1945, que não contemplava a punição dos crimes contra a humanidade, os
quais passaram a integrar a legislação daquele país a partir de 1994. A decisão destacou o artigo
da Convenção que declara expressamente a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade,
qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos e independentemente de haverem sido
praticados em tempos de guerra ou de paz. “Após aceder à referida Convenção, a República da
Estônia vinculou-se à aplicação dos mencionados princípios”36, pronunciou-se o tribunal.
Sem embargo, em geral, conforme já sustentaram Ambos y Böhm, o Tribunal Europeu também
tem ampliado suas decisões em matéria penal quando os casos se referem às graves e
massivas violações aos direitos humanos37. De fato, a decisão acima referida confirmou o caráter
retroativo da regra da imprescritibilidade dos crimes internacionais. Contudo, com uma atitude
menos invasiva que a da Corte Interamericana, na medida em que reconheceu a importância da
ratificação, por parte do Estado, da convenção internacional pertinente para a aplicação da regra
da imprescritibilidade.
No âmbito dos Tribunais penais internacionais, se destaca a sentença de 10 de dezembro de
1998 do Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia, no caso Furundzija, onde foi destacada a
proibição da aplicação de leis de anistia, bem como a impossibilidade de aplicação de qualquer
disposição sobre a prescrição e extradição, sob o argumento de tratar-se, no caso concreto, de
uma exceção de delito político38.
As sentenças analisadas deixam ver que a regra sobre a imprescritibilidade dos crimes
internacionais é um instrumento imprescindível à chamada “luta contra a impunidade”. Isso
porque, superada a barreira temporal para buscar a punição, o passo seguinte foi a relativização
da coisa julgada e do princípio nom bis in idem.
A esse respeito, parece ter razão Silva Sanchez, quando afirma que “nos casos de coisa julgada
fraudulenta ou aparente é possível sustentar de que se trata, em verdade, de resoluções
prevaricadoras ou, em todo caso, com vícios processuais determinantes de sua nulidade. Por tanto,
36 Caso Kolk y Kislyiy vs. Estonia, sentença de 17 de janeiro de 2006.
37 AMBOS, Kai; BÖHM, Maria Laura, Tribunal Europeo de Derechos Humanos y Corte Interamericana de Derechos Humanos ¿Tribunal tímido y tribunal aldaz?, en AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Ed.). Sistema interamericano de protección de los dere-chos humanos y derecho penal internacional, Tomo II, Montevideo, Konrad-Adenauer-Stiftung, 2011, p. 65-67.
38 Fiscal vs. Furundzija, caso nº IT-95-17/1-T, sentença de 10 de dezembro de 1998, parágrafo 155. 385
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um novo julgamento não vulneraria o princípio nom bis in idem. Este argumento, ao contrário,
carece de qualquer valor tratando-se de decisões corretas, quando ocorre o aparecimento de
fatos novos ou provas novas. Neste caso, não cabe mais que afirmar a vulneração do princípio
nom bis in idem, vinculado à estabilidade das sentenças e, com ela, à tutela judicial efetiva”39.
Deve-se, portanto, estar muito atento para que a possibilidade de novo juízo, viável graças
à ausência, como dissemos, da barreira do tempo, não se dê de forma ilegítima, ou seja,
contra decisões judiciais não viciadas por mecanismos antidemocráticos ou fraudulentos. Esta
advertência é especialmente válida no contexto atual, em que a regra sobre a imprescritibilidade
avança em direção aos delitos comuns dos ordenamentos jurídicos dos Estados. Podendo,
inclusive, gerar substancial perda de racionalidade dos sistemas penais nacionais, onde as
garantias da coisa julgada, os princípios nom bis in idem e de irretroatividade da lei penal, não
poucas vezes, estão gravados em nível constitucional.
4. O IMPACTO DA REGRA SOBRE A IMPRESCRITIBILIDADE NOS CRIMES COMUNS
A regra sobre a imprescritibilidade traz consigo um risco adicional: atingir os crimes que não
têm caráter internacional, ou seja, os denominados “crimes comuns”. Isto se deve, em nosso
sentir, à má compreensão a respeito do fundamento da prescrição. Na medida em que não se
alcança um argumento mais firme que o da “especial gravidade dos delitos internacionais” ou o
argumento que versa sobre as “dificuldades práticas para castigá-los em um tempo considerado
razoável”, deixa-se uma janela aberta à expansão da regra da imprescritibilidade ao ponto de que
ela adentra os ordenamentos jurídicos dos estados e ameaça a estabilidade e a racionalidade do
sistema penal, em razão da perda de segurança jurídica que a expansão desta norma implica.
Novamente, a Corte Interamericana exerce influência ao se manifestar sobre o assunto. No
caso Las Palmeras, em que a demanda versava sobre a execução extrajudicial de sete pessoas
por membros da Polícia Nacional e do exército colombianos, a Corte chegou a determinar a
suspensão do prazo prescricional da ação penal, enquanto o caso estivesse tramitando em
qualquer instância dos órgãos do sistema americano de direitos humanos.
39 SILVA SANCHÉZ, Jesús-María, Una crítica a las doctrinas penales de la “lucha contra la impunidad” y del “derecho de la víctima al castigo del autor”, Revista de Estudios de la Justicia – REJ, N. 11, 2009, pp. 35-56, (tradução livre). 386
Pese não haver reconhecido o caso como crime contra a humanidade ou de guerra, a Corte
justificou a necessidade da suspensão do prazo prescricional com o argumento de que esta
seria a única forma de se evitar negar efeito à Convenção Americana no direito interno dos
Estados-partes. Na medida em que a decisão afirma, expressamente, que se fosse admitido o
transcurso do prazo, “se estaria atribuindo ao procedimento internacional uma consequência
radicalmente contrária ao que com ele se pretende: em vez de propiciar a justiça, traria consigo
a impunidade dos responsáveis pela violação”. Assim, fica claro que o argumento utilizado é
mais compatível com o de um tribunal com competência para estabelecer responsabilidade
individual, do que o que se esperaria de um tribunal internacional com competência para atribuir
responsabilidade estatal40.
Outro caso paradigmático, e que levou a própria Corte Interamericana a recuar posteriormente
em seu posicionamento, foi o caso Bulacio contra Argentina. Tratava-se da falta de investigação
diligente ante à morte do jovem Walter Bulacio, decorrente de maus-tratos praticados por
agentes policiais.
Apesar de que o estado argentino reconheceu a sua responsabilidade pela falta de investigação
satisfatória, em prazo razoável, e com a provisão dos recursos efetivos, conforme artigos 8 e 25
da Convenção Americana, havia interposto um recurso junto à Corte Suprema daquele país contra
a declaração de prescrição da ação penal em favor de um dos acusados. A Corte Interamericana,
por sua vez, declarou a inadmissibilidade da prescrição ou de qualquer outro obstáculo de direito
interno que pudesse impedir a investigação e sanção dos responsáveis das violações contra os
direitos humanos41.
Desta forma, sob o argumento de que sua interpretação estava conforme a letra e ao espírito da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, assim como aos princípios gerais do Direito,
dentro dos quais se encontra o do pact sunt servanda, a Corte Interamericana concluiu que
a declaração da prescrição significaria a violação das obrigações de investigar e sancionar as
violações de direitos humanos. Obrigações estabelecidas nos artigos 1.1 e 2, com reflexos no
direito à proteção judicial, prevista no artigo 25 daquele diploma internacional.
Em reação, a Corte Suprema argentina expressou sua insatisfação, sem embargo acatou a
decisão de caráter internacional, revogando a sentença declaratória da prescrição em favor do
principal acusado do caso. Entre os diversos pontos assinalados, ressaltou que a decisão da
Corte Interamericana significava uma limitação ao âmbito de decisão dos tribunais argentinos,
40 Caso Las Palmeras vs. Colombia, sentença de reparações e custas, de 26 de novembro de 2002, parágrafo 69.
41 Caso Bulacio vs. Argentina, sentença de mérito, reparações e custas, de 18 de setembro de 2003, parágrafo 106. 387
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em um caso em que, em princípio, as regras internacionais sobre a imprescritibilidade não
seriam aplicáveis; também se manifestou contrária à restrição ao direito de defesa, inviolável à
luz do art. 18 da Constituição daquele país, ao fazer recair sobre o imputado as consequências
da falta de diligência judicial ou de sua defesa técnica; também se manifestou contrariamente à
subordinação dos direitos do imputado à ampla defesa e ao prazo razoável de duração do processo
aos direitos da vítima; por último, ressaltou a impossibilidade de manifestação do imputado no
processo junto à Corte Interamericana, cuja decisão se produziu a partir de um procedimento
formal, desvinculado do princípio de averiguação da verdade real, vigente em matéria processual
penal. Desta forma, conforme concluiu o alegado, o estado argentino cumpriu uma decisão do
órgão de proteção dos direitos humanos violando os direitos do acusado à ampla defesa e à
resposta em prazo razoável42.
Já em uma decisão posterior, que versou sobre a falta de investigação diligente da morte de
Laura Albán, supostamente decorrente de erro médico num hospital privado da cidade de Quito,
a Corte Interamericana felizmente mudou o seu posicionamento, ante o reconhecimento do
estado equatoriano de sua responsabilidade pela falta de investigação oportuna do paradeiro de
um dos acusados e de diligência na realização dos trâmites necessários para sua extradição.
Neste caso, a decisão sobre a declaração da prescrição também estava pendente de recurso
e a Corte Interamericana considerou que não correspondia excluir a prescrição porque o
caso não satisfazia os requisitos para a imprescritibilidade, reconhecidos nos instrumentos
internacionais. Desta vez, reconheceu a inadmissibilidade e inaplicabilidade da prescrição
somente para os casos de “violações muito graves aos direitos humanos”, em conformidade
com o Direito Internacional43.
Mais recentemente, na sentença do caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña contra Bolívia, foi
reiterado o mesmo critério. Isto aconteceu ao estabelecer-se que a inadmissibilidade da
prescrição se dá naqueles casos cuja “gravidade faz necessária sua repressão para evitar que
voltem a ser cometidas”44.
Em recente resolução, de 19 de junho de 201245, a Corte Interamericana aceitou a alegação
de prescrição em um caso de interceptação telefônica, dando por concluída a supervisão de
42 Conforme os votos dos juízes Petracchi y Zaffaroni, em sentença de 13 de dezembro de 2004 da Corte Suprema de Justicia de la Nación, no caso Espósito, Miguel Ángel.
43 Caso Albán Conejo vs. Ecuador, sentença de mérito, reparações e custas de 22 de novembro de 2007, parágrafo 111.
44 Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña vs. Bolívia, sentença de mérito, reparações e custas, de 1 de setembro de 2010.
45 Caso Escher y outros vs. Brasil, Supervisão de Cumprimento de Sentença. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 19 de junho de 2012.388
cumprimento da sentença por parte do estado brasileiro, no que se refere à obrigação de
investigar os fatos. Na mesma resolução, a Corte afirmou que a “improcedência da prescrição
tem sido declarada em função das peculiaridades de casos que envolvem graves violações aos
direitos humanos, tais como o desaparecimento forçado de pessoas, a execução extrajudicial e
a tortura. Além disso, em alguns destes casos as violações de direitos humanos ocorreram em
contextos de violações massivas e sistemáticas”.
Verifica-se um esforço incipiente por parte da Corte Interamericana – ainda carregado de
imprecisões, como a delimitação do conceito de “graves violações aos direitos humanos”, por
exemplo – para estabelecer limites à aplicação da regra sobre a imprescritibilidade – provavelmente
em razão dos problemas gerados aos sistemas penais dos Estados-partes.
Lamentavelmente, as decisões internacionais não são a única fonte de inclusão da regra
sobre a imprescritibilidade nos sistemas penais nacionais. O mau manejo político do assunto,
materializado em reformas penais e projetos de lei e, inclusive, de reivindicações de movimentos
66a CARAVANA DA ANISTIA, PÚBLICO NA SESSÃO DE JULGAMENTO, MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, SÃO PAULO/SP, 8 DE DEZEMBRO DE 2012.
FONTE: ACERVO DA COMISSÃO DE ANISTIA.
389
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sociais46, também passaram a contribuir para a expansão da regra sobre a imprescritibilidade para
delitos que não têm, rigorosamente, nada em comum com os delitos de caráter internacional.
No Peru, por exemplo, conforme relata Palacios Dongo, nos últimos dez anos, foram apresentados
cerca de quarenta projetos de lei versando sobre a introdução da regra de imprescritibilidade da
ação penal para os delitos de corrupção cometidos por funcionários públicos contra o patrimônio
do Estado. Sendo que, para a qual, será necessário modificar o artigo 41 da atual Constituição
peruana, que já duplica os prazos de prescrição para tais delitos47.
Na Bolívia, no ano de 2010, também se discutiu o Projeto de Lei da Luta Contra a Corrupção, cujo
artigo 29 estabelecia que, “em conformidade com o artigo 112 da Constituição política do Estado,
os delitos cometidos por servidores públicos, que atentem contra o patrimônio do Estado e
causem grave dano econômico, são imprescritíveis e não admitem regime de imunidade”48.
No Chile, após um caso de abuso sexual praticado contra menores de idade por um sacerdote
da Igreja Católica, ganhou força, e se encontra em plena tramitação, o projeto de lei que propõe a
imprescritibilidade para os delitos sexuais contra menores de idade. O Departamento de Imprensa
do Senado chileno informou que, posteriormente à declaração da prescrição dos fatos imputados
ao mencionado sacerdote, o Senador Patricio Walker solicitou, ao então Ministro de Justiça,
Felipe Bulnes, que imprimisse urgência ao projeto de lei que estabelece a imprescritibilidade
dos delitos sexuais contra menores de idade, argumentando que “a prescrição, comum nestes
delitos, significa a falta de justiça”.
A informação contém, também, declaração do Ministro, no sentido de que “a moção está
completamente na linha que interessa ao Governo” 49. O referido senador, um dos autores
46 Lamentável constatar que os movimentos sociais, historicamente abolicionistas, tenham sido ludibriados pelo discurso do puniti-vismo máximo e acabem contribuindo para a irracionalidade de que padecem os sistemas punitivos, cada vez mais arbitrários e contradi-tórios com o sistema democrático que defendem.
47 No ano de 2003, foi realizada uma campanha de reforma constitucional. Também foram realizadas campanhas massivas para reco-lhimento de assinaturas, por parte de cidadãos e organizações sociais, e em novembro de 2008 a imprescritibilidade daqueles crimes foi contemplada pelo Plano Nacional Anticorrupção. Em setembro de 2011, foi aprovado, na Comissão de Constituição do Congresso peruano, um projeto de lei que declara imprescritíveis os delitos de corrupção. Em 10 de novembro do mesmo ano, o Pleno do Congresso enviou o referido projeto para as comissões de Justiça e Constituição para revisão. Atualmente, o Ministério de Justiça peruano prepara um projeto de lei que estabelece a imprescritibilidade para o pagamento de reparações civis a cargo dos sentenciados por atos de corrupção. Texto de Alfredo Palacios Dongo, publicado en el diario EXPRESO, de 7 de mayo de 2010. Disponível em http://www.planteamientosperu.com/2011/05/corrupcion-imprescriptibilidad-del.html. Acesso em 13 de novembro de 2011 e informação da Agencia peruana de noticias Andina de 06 de fevereiro de 2012. Disponível em http://www.andina.com.pe/Espanol/noticia-plantearan-imprescriptibilidad-pago-repara-cion-civil-para-casos-corrupcion-398594.aspx. Acesso em 07.02.2012.
48 Informação publicada por El Diario, de 23 de fevereiro de 2010. Disponível em http://eldiario.net/noticias/2010/2010_02/nt100223/ 2_05plt.php. Acesso em 07.02.2012.
49 Trata-se do Projeto de Lei que pretende modificar o Código penal chileno, aumentando as penas e declarando imprescritíveis os delitos sexuais cometidos contra menores de idade. Legislatura 359, Boletim 8134-07, originário da Câmara dos Deputados, com data de ingresso em 05 de janeiro de 2012, que se encontra em sua primeira tramitação constitucional. A informação foi publicada pelo Depar-tamento de Prensa delSenado.Disponívelem http://www.senado.cl/prontus_galeria_noticias/site/artic/20110407/pags/20110407173900.html. Acesso em 07.02.2012.390
do projeto, declarou textualmente que “assim como há crimes contra a humanidade, que são
imprescritíveis, nós pensamos que o caso dos delitos sexuais contra menores, dada a gravidade
do delito, do dano que se provoca à vítima, e o fato de que o abusador seguirá abusando de
outros menores, deveria operar-se a imprescritibilidade.”
Conforme se observa na declaração do citado senador chileno, na medida em que a “especial
gravidade do delito” seja o principal critério para justificar a adoção da regra da imprescritibilidade,
o fenômeno poderá expandir-se, atingindo os delitos comuns de acordo com o contexto político,
com o grau de democracia experimentado em determinado momento ou por qualquer outro
critério diferente do jurídico.
5. EM BUSCA DE UM FUNDAMENTO MAIS FIRME PARA A PRESCRIÇÃO
Em nossa opinião, muitos equívocos são gerados porque normalmente a prescrição é considerada
como um instituto fundado em razões puramente políticas-criminais. Ou, ainda, em argumentos
de natureza penal ou extrapenal; ou até em ambos, todos insuficientes para explicar a sua
importância para o funcionamento harmônico de um determinado sistema penal.
Com efeito, não existe na doutrina um consenso sobre o fundamento da prescrição. E a discussão
a respeito do fundamento sobre a imprescritibilidade dos crimes internacionais não consegue
superar o argumento de sua especial gravidade50, por um lado. E, por outro, tem-se a justificativa
de cunho prático, que nos parece ser a verdadeira, sem embargo insuficiente, das dificuldades
reais que normalmente surgem para a persecução e punição destes delitos, em razão do poder
que seus autores, em geral, exercem por largos períodos de tempo.
Tampouco é clara a sua natureza jurídica, na medida em que a regra sobre a imprescritibilidade
ora é tratada como um princípio51, ora como um princípio geral do Direito penal internacional52
50 Neste sentido, PALMA, Maria Fernanda, Tribunal penal internacional e constituição penal, em PALMA Maria Fernanda; PIZARRO DE ALMEIDA, Carlota; VILALONGA, José Manuel (Coord.), Casos e materiais de direito penal, 2 ed., Coimbra, Almedina, 2002, p. 285.
51 Ídem, cit. (n. 38), p. 285. No mesmo sentido, MARQUES, Ivan Luís. O princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a humanida-de e sua aplicação no Brasil. em GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Crimes da ditadura militar, uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direito humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 135-153, 2011.
52 RODRIGUEZ VILLANSANTE Y PRIETO, José Luis, Un estudio sobre la parte general del derecho penal en el Estatuto de Roma: los principios generales de Derecho penal, em YÁNEZ-BARNUEVO, Juan Antonio (coord.), La Justicia Penal Internacional: una perspectiva 391
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ou ainda, de forma inusitada, como um direito da vítima53. Com razão, Daniel Pastor afirma que o
assunto requer um fundamento mais firme54.
Não foi casual que o incremento do instituto da prescrição penal se tenha dado a partir do
aparecimento da legislação francesa de 1791 e do Código criminal de 180855, coincidindo com o
aparecimento de outros postulados éticos do Direito penal, em franca oposição ao poder ilimitado
do Estado56. A razão de ser da prescrição, a nosso ver, deve estar enraizada em um critério que
constitui-se em um fundamento para o próprio ordenamento jurídico penal.
De fato, as denominadas causas extintivas da responsabilidade penal, entre as quais se encontraria
a prescrição, não têm sua natureza jurídica estabelecida de forma unânime pela doutrina, o que
gera um problema para determinar sua função dentro do sistema jurídico penal. Labatut, por
exemplo, afirma que elas constituem fatos ou situações estabelecidas pela lei, que surgem
posteriormente ao delito, cujo efeito é pôr fim à ação penal ou à pena57. Ou seja, afetam apenas
as consequências penais de um delito porque são posteriores à sua realização e, normalmente,
incidem sobre o processo ou a condenação do réu58.
Guzmán Dalbora, por sua vez, sustenta que a responsabilidade penal surge com a comissão do
delito e não com a sentença condenatória59, razão pela qual as verdadeiras causas extintivas
da responsabilidade penal são as eximentes que excluem algum dos elementos do delito.
A prescrição, por suas próprias características, não se enquadra neste contexto porque
ela constitui um tipo de renúncia ao jus puniendi, a qual pode ser hipotética ou concreta,
dependendo do momento em que incide sobre o fato delitivo, ou seja, antes ou depois da
sentença condenatória60.
iberoamericana, Madrid, Casa de América, 2001, p. 134.
53 Critica este argumento, SILVA SÁNCHEZ, cit. (n.47), p. 41. Defende o argumento, AGUILAR CAVALLO, cit. (n. 24), Acesso em 20 de novembro de 2011.
54 PASTOR, Daniel R., cit. (n. 25), p. 642.
55 MORILLAS CUEVAS, cit. (n. 3), pp. 270-271.
56 Conforme explica Guzmán Dalbora, “también la reforma del Derecho penal en el siglo XVIII, que nació y culmina bajo el signo de la utilidad, portaba en sí un indudable y no menos importante fondo ético”. O autor refere-se ao necessário suporte em que se baseou a reforma iluminista no âmbito penal, mais além de suas razões políticas: a dignidade do homem. GUZMÁN DALBORA, José Luis, Justicia penal y principio de humanidad, em Revista Gaceta Jurídica, de Santiago de Chile, número 298, abril de 2005, p. 40.
57 LABATUT GLENA, Gustavo, Derecho penal: colección de estudios jurídicos y sociales, 5 ed., Santiago de Chile, Editorial Jurídica de Chile, 1968, p. 509.
58 Ídem, p. 509.
59 No mesmo sentido, opinando que o nascimento da responsabilidade penal se dá com a comissão do fato punível, MIR PUIG, Dere-cho Penal. Parte general, 7ª ed., Buenos Aires, Editorial B de f, 2004, p. 746.
60 GUZMÁN DALBORA, GUZMÁN DALBORA, José Luis, De la extinción de la responsabilidad penal, em Texto y comentario del código penal chileno, POLITOFF LIFSCHITZ, Sergio y ORTIZ QUIROGA, Luis (Dir.), Tomo I, Libro primero – parte general, Editorial Jurídica de Chile, Santiago de Chile, 2002, p. 434. 392
Este raciocínio tem origem no pensamento de Bettiol, que trata das circunstâncias de
extinção do delito e das causas de extinção da pena, afirmando que ambas incidem sobre
o direito subjetivo de punir do Estado, sendo que, no primeiro caso, de forma hipotética,
atuando sobre a relação punitiva que surge com a perpetração do delito. E, no segundo, de
forma concreta, atuando sobre a pretensão punitiva estabelecida e concretizada na pena61.
Antes, se encontra em Binding uma afirmação que corrobora o mesmo posicionamento,
quando ele afirma que a prescrição “é a extinção do direito de persecução penal devido ao
não uso desta.”62.
Sendo assim, a prescrição penal é uma das formas de extinção do ius puniendi do Estado, em
razão da passagem do tempo63. Com este posicionamento, chegamos à conclusão – depois de
analisar as diversas teorias que buscam explicar os possíveis fundamentos deste instituto – de
que razões de segurança jurídica são as que melhor explicam sua razão de ser.
A segurança jurídica é uma exigência do respeito devido à dignidade humana. Assim, a constatação
de todos os efeitos que o tempo pode gerar (esquecimento, emenda do delinquente, sentimento
de piedade por parte da sociedade, penas desnecessárias, perda de provas, dilações indevidas,
inconvenientes políticos-criminais, etc.) impõe, como exigência da segurança jurídica, enquanto
valor, e da humanidade, enquanto razão de ser e fim do Direito, o reconhecimento da prescrição
do delito ou da pena, conforme o caso.
A prescrição reforça a segurança jurídica, na medida em que se refere à necessidade social de
eliminar a incerteza, gerada pela passagem do tempo, na relação jurídico-penal que se estabelece
entre delinquente e Estado, sem que tenha havido uma resposta efetiva à conduta delitiva.
Conforme explica Ossandón Widow, a segurança jurídica é um valor intermediário. Isto porque,
além de emprestar coerência ao ordenamento jurídico, também o habilita para a persecução dos
seus próprios fins64. As conhecidas concepções objetiva e subjetiva, conforme explica Oliver
Calderón, estão conectadas65. O que significa dizer que as normas e instituições do sistema
61 BETTIOL, cit. (n. 9), p. 891.
62 BINDING, Karl, Compendio di diritto penale, Parte generale, Trad. de Adelmo Borettini. Athenæum, Roma, 1927, p. 525, (tradução livre).
63 No mesmo sentido, Rocco também destaca o seguinte: “(…) los hechos de los que depende el surgimiento, la modificación o la extinción de la reacción de derecho penal, pueden ser así acciones jurídicas, es decir, hechos humanos jurídicos (ejemplo típico: el delito), como hechos independientes de la voluntad humana (ejemplo: el decurso del tiempo que produce el efecto jurídico extintivo del derecho de punir [prescripción])”. ROCCO, Arturo, Cinco estudios sobre derecho penal, Serie Maestros del Derecho Penal, Trad. Bernardo Nespral, Montevideo, Buenos Aires: B de F, 2003, p. 35.
64 OSSANDÓN WIDOW, María Magdalena, La formulación de tipos penales: Valoración crítica de los Instrumentos de Técnica Legisla-tiva, Colección de Ciencias penales, Santiago de Chile, Editorial Jurídica de Chile, 2009, pp. 523 y ss.
65 OLIVER CALDERÓN, Guillermo, Retroactividad e irretroactividad de las leyes penales, Colección de Ciencias penales, Santiago de Chile, Editorial Jurídica de Chile, 2007, pp. 104 y ss. 393
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jurídico devem garantir sua regularidade
estrutural e funcional e, com isso, assegurar
o espaço de liberdade do cidadão, onde ele
poderá confiar que estará livre da ingerência
do Estado.
Mais do que o mero conhecimento prévio,
portanto, é necessário que se estabeleça
a confiança do cidadão no ordenamento
jurídico. Isso parece ser o que a regra de
imprescritibilidade não consegue garantir,
já que perpetua a ameaça de intervenção
estatal a qualquer tempo, com todos os
inconvenientes que podem ser gerados.
Nesse contexto, Guzmán Dalbora destaca que a importância de serem cumpridas as exigências
da segurança jurídica passa pelo reconhecimento de que os fatos, neste caso a passagem do
tempo, exercem poder sobre os assuntos humanos. Para o autor, na medida em que a prescrição
faz cessar um estado de incerteza social, preserva os interesses da própria sociedade, que tem
a necessidade de harmonizar a convivência entre os seus membros.
Assim, a garantia de segurança jurídica, por meio do estabelecimento de prazos razoáveis e limitados
no tempo, está intimamente ligada à preservação da paz na comunidade66. Sobre o mesmo argumento,
o autor conclui que a incerteza da imprescritibilidade é contrária à exigência de humanidade, a qual
impõe o respeito à dignidade humana como limite à extensão e à intensidade do ius puniendi67.
Sem embargo, é comum encontrar argumentos que defendem ideia oposta, argumentando
que no caso dos crimes internacionais a segurança jurídica se dá de forma inversa. Ou seja,
sem que se estabeleçam prazos para perseguir e condenar pessoas que pelos mais variados
motivos, normalmente ligados ao excesso de poder, se prevalecem da passagem do tempo
para se eximirem da ação da justiça.
O problema desse raciocínio é ignorar que segurança jurídica é um conceito que está sempre
em conexão com o acusado e não com a vítima. Por outro lado, não parece ser certo que manter
indefinidamente viva a ameaça de imposição de uma pena possa significar segurança jurídica.
66 GUZMÁN DALBORA, cit. (n.60), p. 462.
67 GUZMÁN DALBORA, cit. (n. 56), p. 40.
De nenhuma maneira, queremos insinuar a impunidade dos crimes internacionais e, sem adentrar o problema da imprecisão terminológica de que padecem, estamos de acordo com que, em geral, se está diante de lesões graves aos direitos humanos.
394
Diante do quadro que se apresenta, não nos parece absurdo sugerir que se avance na matéria,
a fim de que, pelo menos, se possa discutir, sem o calor das emoções, novas alternativas à
imprescritibilidade. A exemplo de um sistema diferenciado de prazos prescricionais para os
crimes de caráter internacional, onde as tradicionais causas de suspensão e interrupção
do prazo possam ser estabelecidas de forma distinta. Considerando-se, especialmente, as
dificuldades de persecução e punição de ditos crimes, a fim de não promover a injustiça, nem
por meio da impunidade, e, tampouco, por meio da punição a qualquer preço.
6. A TÍTULO DE REFLEXÃO FINAL...
Ao analisar o que denominamos “impacto da regra sobre a imprescritibilidade dos crimes
internacionais”, nos pareceu importante uma tomada de posição a respeito do fundamento do
instituto da prescrição, a fim de estabelecer a sua importância para o bom funcionamento do
sistema penal. Assim, caso concluíssemos pela sua prescindibilidade, não existiriam maiores
problemas em aceitar a regra absoluta de imprescritibilidade dos crimes internacionais. Sem
embargo, chegamos à conclusão contrária, ao encontrar as raízes da prescrição na segurança
jurídica do ordenamento jurídico, já que ela representa uma limitação ao poder punitivo do Estado.
Por outro lado, verificamos que a regra sobre a imprescritibilidade ganhou força em um contexto
político internacional bastante exigente, quando surgiu o perigo de prescrição dos delitos
praticados pelo regime nazista. E, de fato, nos parece que a sua verdadeira justificativa é a real
dificuldade que significaria perseguir e punir os delitos de caráter internacional, naturalmente
mais complexos, em um período de tempo razoável.
De nenhuma maneira, queremos insinuar a impunidade dos crimes internacionais e, sem adentrar
o problema da imprecisão terminológica de que padecem, estamos de acordo com que, em
geral, se está diante de lesões graves aos direitos humanos. No entanto, não nos parece que a
incerteza da ameaça perpétua da persecução e da punição, além de todos os problemas gerados
pela imprescritibilidade, se justifiquem pela comodidade que possa significar para o aplicador do
direito ou para as vítimas, como se fosse uma espécie de passe livre para dispor da liberdade e
de várias das garantias do imputado.
Mais grave, em nossa opinião, é que parece que o verdadeiro alvo da expansão da regra de
imprescritibilidade serão os delitos antes considerados comuns e, portanto, submetidos às
regras do sistema que operava em condições normais. Mas que, subitamente, é exposto à
imprevisibilidade e desproporcionalidade da persecução penal que busca o castigo a qualquer
custo, em flagrante menoscabo à dignidade do indivíduo. 395
APRESENTAÇÃO ARTIGOS ACADÊMICOS
DOCUMENTOSESPECIALDOSSIÊENTREVISTA
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O IMPACTO DA REGRA SOBRE A IMPRESCRITIBILIDADE NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS DOS ESTADOS SE JUSTIFICA?
FABÍOLA GIRÃO MONTECONRADOProfessora adjunta da Pontificia Universidad Católica de Valparaíso (Chile), na área de Direito
Penal e Direito Penal Internacional. Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutoranda em Direito na Pontificia Universidad Católica de
Valparaíso. Membro do Grupo Latinoamericano de Estudios sobre Derecho Penal Internacional,
do Programa Estado de Derecho para Latinoamérica, da Fundação Konrad Adenauer.
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TRIBUNAL RUSSELL II.
FONTE: FLLB-ISSOCO/CA-MJ.
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