ISSN 2176-1396
O GÊNERO NO ENSINO DA SOCIOLOGIA
Rokely Scheifiter de Ramos1 - UNICENTRO/PR
Eixo – Sociologia da Educação
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Este artigo analisa as abordagens e representações de gênero nos livros didáticos de
sociologia Tempos Modernos, tempos de Sociologia e Sociologia – Folhas, e propõe uma
reflexão sobre as lacunas do material, sobre a instituição escolar e suas práticas,
principalmente quanto ao seu papel na construção e manutenção de estereótipos, bem como,
enquanto espaço de relações e reprodução de poder. Essa reflexão ocorre a partir da
perspectiva pós-estruturalista, da análise qualitativa, indutiva e de revisão bibliográfica. A
discussão teórica abrange estudos de gênero, relações de poder e de dominação, instituição
escolar, prática docente e uso do livro didático. Envolve o levantamento e descrição dos livros
didáticos disponíveis na rede Estadual de Educação do Paraná no período de 2012-2014 e
ainda, a aplicação de entrevistas estruturadas/objetivas com dez alunas que, ao longo do
ensino médio, tiveram contato com ambos os livros, a fim de perceber a dimensão que o livro
didático tem na construção do saber e das representações a respeito das questões de gênero, o
que permite a compreensão do assunto a partir de um ponto de vista pouco considerado em
pesquisas sobre o material didático - a do aluno. O material e as respectivas entrevistas
constituem-se em referencial para as deduções e considerações finais, verificando-se alguns
desafios à educação, em especial ao ensino da sociologia, como as limitações dos livros
didáticos para a abordagem da temática gênero e para as discussões sobre igualdade e poder,
tão importantes a sociologia. Os resultados nos dão a dimensão da importância dos livros
didáticos no processo educativo, e no processo de naturalização de papeis/estereótipos e de
normatização de comportamentos e valores relacionados ao gênero.
Palavras-chave: Gênero. Poder. Livros didáticos. Sociologia. Ensino.
Introdução
1 Aluna do programa de pós-graduação stricto sensu em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste –
Unicentro. Email: [email protected]
266
O presente artigo analisa a possível presença de discussões de gênero nos livros
didáticos de sociologia, adotados pelas escolas Estaduais do município de Turvo - PR, no
período de 2012-2014. Trata-se de verificar as abordagens e representações de gênero e de
refletir até mesmo a respeito das lacunas, buscando respostas para questões como: os livros
didáticos rompem com a visão masculina e heteronormativa predominante?
Sendo a escola um espaço de constituição dos sujeitos e de reprodução social, é de
extrema relevância que aspectos que envolvem o ambiente escolar, como os recursos
materiais sejam objeto de questionamento e discussão, e que esse recurso intensamente
utilizado no contexto educacional não passe sem uma análise processual/conceitual por todos
aqueles que compõem a esfera educativa.
É necessário que se dê atenção a esses materiais e às práticas utilizadas, para que
ocorra a problematização da visão dicotômica: feminino em oposição ao masculino, de
dominante e dominada. Bem como, para a compreensão do gênero enquanto construto social
e para o desenvolvimento da percepção de como as relações de poder são disseminadas e
(re)produzidas pelas diversas instituições sociais, inclusive pela escola.
Teoricamente discutiremos a instituição escolar enquanto espaço de formação dos
indivíduos e de reprodução do poder, o livro didático como um dos principais meios de
reprodução dos discursos e como ferramenta relevante no processo de construção identitária;
e a construção dos gêneros como resultado de uma construção histórica e social marcada pelas
relações de poder. Empiricamente, analisam-se as impressões de alunas que fizeram uso
desses livros didáticos.
Dessa forma esse artigo se desenvolve com intuito de compreender as limitações, a
contribuição e a representatividade dos livros didáticos para romper com a ideia da
superioridade masculina heterossexual e para a formação das identidades dos sujeitos
envolvidos.
Fundamentação teórica
Inerente à discussão de gênero estão as de relações de poder, que serão abordadas no
âmbito da instituição escolar especialmente na sua manifestação nos livros didáticos de
sociologia.
Muitos autores, principalmente a partir da chamada “segunda onda” do feminismo
(1960), passam a refletir para além das preocupações sociais e políticas, voltando-se para
267
construções teóricas sobre gênero. Torna-se praticamente consenso, entre elas, que
instituições, discursos, códigos, práticas e símbolos fazem parte de complexas redes de poder
que constituem hierarquia entre os gêneros.
Nesse mesmo período, Bourdieu (ano) propõe uma nova interpretação da instituição
escolar e da educação, questionando sobre a visão otimista de inspiração funcionalista, que
via a escola como uma instituição neutra e de importante papel para a construção de uma
sociedade justa e democrática. Ao contrário do que propunha tal teoria, ele verificou que a
escola constitui um dos espaços privilegiados de (re)produção da estrutura social, e
consequentemente das diferenças. Em seus trabalhos a escola é entendida como uma
instituição que serve a reprodução e legitimação dessas.
A educação, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído de instância
transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das
principais instituições por meio da qual se mantem e se legitimam os privilégios
sociais. (NOGUEIRA, 2009. p. 14).
Essas mudanças de olhar sobre a educação, operada a partir da década de 60, trazem a
reflexão sobre o inegável papel da escola e dos professores, na construção e ou manutenção
de representações estereotipadas ou não das relações gênero, principalmente quanto à tarefa
de pensar os discursos e mesmo os silêncios contidos nos conteúdos e livros didáticos. Afinal
como afirma Louro (1997, p.67):
Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais
didáticos, processos de avaliação, são seguramente, loci das diferenças de gênero,
sexualidade, etnia, classe - são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo,
seus produtores.
Por tudo isso, a escola torna-se campo de exercício (desigual) de poder, aonde as
práticas, os conteúdos selecionados, a comunicação e mesmo os termos utilizados pelo
docente nos livros didáticos nos remetem a um mundo masculino, que se tornam a medida,
um padrão, e que por consequência legitima o discurso dicotômico existente. Reforça-se
assim, o poder historicamente constituído do homem branco e heterossexual, sinônimo de
civilidade.
Esse fato suscita uma questão muito importante, pois essa lógica acaba por ignorar
todos os sujeitos sociais que não se enquadram nela, como por exemplo, os homossexuais.
Faz-se necessário então, aos professores uma postura crítica quanto a sua prática, seleção de
conteúdos e textos, conforme sugere Louro (1997, p.64):
268
É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como
ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem. Atrevidamente
é preciso, também problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo,
aqui, até mesmo aquelas teorias consideradas “críticas”). Temos de estar atentas/os,
sobretudo, para a nossa linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o
etnocentrismo que ela frequentemente carrega e institui.
Assim, por ser o livro didático um dos materiais mais utilizados atualmente no
processo educativo, devemos nos atentar sobre seu potencial linguístico, textual, imagético,
de reflexão e problematização dos assuntos. Além do mais, é preciso que tanto a prática
docente quanto o livro didático incorporem as novas discussões sobre gênero, sexualidade,
diversidade e alteridade.
Tão importante quanto o conhecimento dos temas é a forma como se conduz o
processo de ensino aprendizagem, pois a aceitação de padrões e estereótipos como algo
“normal/natural” acontece ao longo de todo processo.
O profissional deve ter clareza do poder da dominação simbólica que ocorre nesse
campo, e atentar-se na relação dos alunos com o livro didático, na condução para uma leitura
e interpretação das “entrelinhas”, desvelando os interesses e o jogo de poder implícitos no
texto. O professor deve tomar consciência do posicionamento e das abordagens dos autores,
no caso da sociologia, especialmente, quanto às relacionadas à classe social, etnia e gênero.
Sobre isso, comentou Bittencourt (2004, p. 73):
O livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de
ideologia, de cultura. Várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações de
obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes,
generalizando tema, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da
sociedade branca burguesa.
A postura metodológica e o discurso são maximizadores do potencial do livro
didático, quando capazes de desvelar os interesses inerentes a sua construção. Considerar a
linguagem dos livros, é refletir sobre esses interesses e sobre o processo de “naturalização”,
assim observou Louro (1997, p.71).
A linguagem institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pelos
ocultamento do feminino, e sim, também, pelas diferenciadas adjetivações que são
atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo, pela escolha dos verbos,
pelas associações e pelas analogias feitas entre determinadas qualidades, atributos
ou comportamentos e os gêneros.
Evidencia-se então o quanto o espaço escolar é importante na construção de definições
de feminino e masculino, e dada a relevância do estudo das questões de gênero a partir da
269
abordagem do uso e adoção do livro-didático, pela sua força na formação cultural dos alunos,
é que esse artigo se delineia.
Desenvolvimento
Relações de Poder e a Instituição Escolar
A reflexão sobre a instituição escolar evidencia como são idealistas as visões que se
tem dela, e nos leva a desmitificar certas concepções que se cristalizaram na sociedade por
meio do que Bourdieu chama de dominação simbólica.
A escola nos moldes em que conhecemos hoje começou a se configurar a partir do
século XVII, em razão das demandas provenientes do avanço do capitalismo, principalmente
para a formação de mão-de-obra e disciplinação dos trabalhadores. Segundo Coimbra, “com
isso, vemos a Escola surgindo com claras funções: inculcar a ideologia burguesa e, com isso
mostrar a cada um o lugar que deve ocupar na sociedade, segundo origem de classe.” (1989,
p.14)
Essa concepção de educação como elemento de integração social, marca a teoria
funcionalista difundida a partir do século XIX, tendo como um dos seus principais pensadores
Émile Durkheim, o qual defende que a escola tem a função de imprimir sobre as novas
gerações valores morais e disciplinares, para a defesa do chamado status quo.
Desse pensamento conservador passa-se a olhar a instituição como
progressista/libertadora, atribuindo a ela o papel de conscietizadora e mobilizadora, numa
proposta de ruptura com a ordem social vigente.
Temos então, a construção de um pensamento imobilista e outro idealista, que se
contrastaram com estudos posteriores de alguns autores como Althusser, Bourdieu e Passeron,
que propõem outras interpretações.
O primeiro autor a compreende como um elemento do aparelho ideológico do Estado.
Bourdieu e Passeron analisam-na como produtoras de “habitus”, em que toda ação
pedagógica é uma violência simbólica, essa acontece principalmente através da comunicação,
que segundo os autores não se dá em plano de igualdade; em resumo a escola exerce uma
dupla função, a de reprodução e legitimação das desigualdades. “A reprodução seria garantida
pelo simples fato de que os alunos que dominam, por sua origem, os códigos necessários à
decodificação e assimilação da cultura escolar, seriam aqueles pertencentes às classes
270
dominantes.” (NOGUEIRA, 2009. p. 75). E ainda, porque considera a ação pedagógica uma
violência simbólica e o sistema educativo coercitivo.
A legitimação se daria através da conversão de um arbitrário cultural, desse modo, a
cultura escolar, seria a cultura “naturalizada” como neutra e universal, e é esta neutralidade
que garante a autoridade escolar, pois oculta as arbitrariedades.
Tais teorias problematizam a instituição, revelando que esta acaba por fortalecer e
garantir o poder de uma classe dominante, através do ensino e “naturalização” de valores,
hábitos e costumes de uma classe.
Foucault estruturou uma genealogia do poder e analisou como o poder se difunde e se
legitima na sociedade, evidenciando que há relações de poder onde elas não são normalmente
percebidas. Nessa perspectiva a escola pode ser pensada como um mecanismo de aceitação,
manutenção e reprodução do poder.
Do ponto de vista da construção dos gêneros, compreende-se que a escola é umas das
principais instituições detentora do poder de construção das diferenças. Sobre isso Louro
(2003, p.57) observa que a escola sempre separou os sujeitos, e manteve uma hierarquia
interna.
A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar
adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os
ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas.
Em relação ao papel da escola nessa construção das diferenças, Cavalcanti (2003,
p.184) afirma:
A escola ocupa [...] um importante papel como instituição social perpetuadora de
discursos que mantêm relações de poder entre grupos humanos. [...] acabam por
generificar atributos que, a priori, podem privilegiar, indistintamente, qualquer
indivíduo, seja ele homem ou mulher, pobre ou rico, preto ou branco.
Toda a estrutura e a forma de funcionamento dessa instituição, como a postura
docente, a linguagem, o livro didático e outras formas quase imperceptíveis, não apenas
refletem as concepções que permeiam a sociedade em dados momentos históricos, mas
delimitam os espaços dos indivíduos e também estabelecem normas e padrões, de forma a
intensificar as diferenças étnicas, de classes sociais, de gênero e relativas à sexualidade.
Assim, qualquer estudo sobre gênero implica necessariamente no entendimento das
relações de poder, estudos feministas buscam compreende-lo no sentido proposto por
Foucault, como exercido em muitas e variadas direções, e em enquanto “estratégia”. Tal
271
indissociabilidade ocorre porque a construção da ideia de “diferença sexual”, se estabelece
nas relações de poder, é edificada a partir de uma referência/padrão que uma vez estabelecido
se (re)produz por diversos meios, e assim vai se reafirmando continuamente.
A instituição escolar por ser heteronormativa, contribui para a constituição e
perpetuação do habitus, reforçando objetiva e explicitamente um poder já constituído.
O ensino da sociologia e os livros didáticos
A Sociologia aparece primeiramente no sistema de ensino, em 1891, com a reforma
educacional de Benjamin Constant, nesse momento é marcada fortemente pelo espírito
positivista. Até 1982 sua inclusão e exclusão realizou-se algumas vezes, somente em 2007
com base na Lei 9.394/96 que é aprovada a sua inclusão no Ensino Médio, e em 2008 com a
alteração do artigo 36 da mesma lei, torna-se disciplina obrigatória em todas as séries do
ensino médio.
A partir de então, alguns desafios são colocados ao ensino da sociologia, as diretrizes
curriculares da educação básica do Paraná, apontam alguns deles:
A Sociologia não desenvolveu ainda uma tradição pedagógica, havendo
insuficiências na elaboração de reflexões sobre como ensinar as teorias e os
conceitos sociológicos, bem como dificuldades na delimitação dos conteúdos
pertinentes ao Ensino Médio. Por ter se mantido como disciplina acadêmica nos
currículos de Ensino Superior, a tendência tem sido a reprodução desses métodos,
sem a adequação necessária à oferta da Sociologia para os estudantes do Ensino
Médio. (SEED, 2008. p.53)
Constata-se então a necessidade de métodos, recursos materiais e livros didáticos
elaborados para a disciplina no Ensino Médio. E sobre esse último destaca-se que “o uso de
livros didáticos e materiais de apoio pedagógico, especialmente elaborados para a disciplina
no Ensino Médio não deve dispensar leituras complementares, críticas e ilustrativas” (SEED,
p.53).
Tendo em vista a importância dada ao livro didático, é que se desenvolveu no Brasil, o
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, cujo objetivo é a distribuição de livros aos
estudantes da rede pública de ensino, “o PNLD é o segundo maior programa de distribuição
de livros didáticos do mundo, ficando atrás apenas do programa chinês” (SAMPAIO,
CARVALHO. 2011, p. 1).
272
O livro didático é reconhecido como um importante recurso na formação cultural dos
alunos é a fonte mais próxima e de consulta quase que cotidiana da maioria, isso quando em
razão de determinadas realidades escolares brasileiras não é a única.
A Sociologia passou a integrar o rol das disciplinas do Programa Nacional do Livro
Didático em 20122, dos livros selecionados nesse ano estão “Tempos Modernos, Tempos de
Sociologia” de Helena Bomeny e Bianca Freire-Medeiros, que juntamente com o livro
“Sociologia”, constituirão importantes ferramentas para a reflexão do tema proposto.
O primeiro tem um caráter comercial e está ligado ao Programa Nacional do Livro
Didático – PNLD, e o outro é público, foi produzido a partir de uma iniciativa do governo do
Estado do Paraná intitulado “Projeto de Formação Continuada – FOLHAS”.
Tempos Modernos, tempos de sociologia é resultado do trabalho de uma equipe
coordenada pelas professoras e pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Documentação da
História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), no qual o
filme Tempos modernos, de Charles Chaplin (EUA, 1936), funcionaria como operador
metodológico, servindo de ponte entre os saberes da disciplina e os alunos.
Entendemos que o filme Tempos modernos não é um “retrato da realidade”, e sim o
produto de uma intenção criativa que reflete a “imaginação sociológica” (...). O
objetivo, ao recorrermos a essa obra clássica da cinedramaturgia, foi enfatizar que
podemos “pensar sociologicamente” tomando como ponto de partida situações
diversas presentes no cinema. (BOMENY; FREIRE-MEDEIROS, 2010. p.04)
O livro organiza-se em três partes e propõe a articulação entre conceitos, teorias e
temas. Os capítulos contêm subseções que se organizam de acordo com o tema abordado,
atividades, em que imagens e charges são os recursos que mais aparecem depois dos textos.
Considerando que as imagens são um recurso importantíssimo no processo de
aprendizagem, por atrair atenção dos alunos e se constituir em referencial na construção do
conhecimento, é preciso observá-la como um documento histórico e explorá-la não apenas
como uma ilustração.
Nesse sentido, a autora Lucia Santaella comenta que para a leitura de imagem,
“deveríamos ser capazes de desmembrá-la parte por parte, como se fosse algo escrito, de lê-
la em voz alta, de decodificá-la, como se decifra um código, e de traduzi-la, do mesmo modo
que traduzimos textos de uma língua para outra”. (2012, p. 12)
2 Anita Handfas. Os livros didáticos de Sociologia. www.coletiva.org
273
Quanto às possibilidades de reflexão sobre relações de gênero, algumas considerações
sobre as imagens podem ser feitas. As mulheres de classes sociais baixas encontram-se
geralmente relacionadas ao tema trabalho, enquanto as de classe alta relacionadas a temas
como civilização. Sendo que em ambos os casos aparecem sempre evidenciando a servidão e
a submissão, havendo apenas uma exceção a “A liberdade guiando o povo” (Jacques-Louis
David 1830).
Tal submissão fica visível em imagens como “Colheita de Outono” (Iluminura do
Códice Vimbonensis, c. 1400), “Mercadores de escravos analisando os dentes da escrava”,
(Jean-Léon Gérome c. 1867), “Uma aula de medicina com doutor Charcot em Salpetriere”
(Tela de Pierre Andre Brouillet, 1887), nos quais mulheres são representadas abaixo dos
homens.
Na colheita fazem o serviço rasteiro, coordenadas por um homem – o trabalho de
coordenação e estratégia é de capacidade masculina; como escrava a mulher se submete a
avaliação e aceitação masculina - evidenciando o comércio como uma prática masculina; na
tela de Pierre as mulheres da cena são as auxiliares e uma delas é o objeto de estudo, alunos e
professores são todos homens, logo a medicina, a ciência e o aprendizado constituem espaços
masculinos.
As imagens que representam as mulheres de classe alta também demonstram o seu
lugar na sociedade, em “A saída do Liceu Condorcet” Jean Beraud (óleo sobre tela,1903)
representa mulheres de classe alta bem vestidas ao lado de seus maridos e filhos.
Imagens como a que encontramos no capitulo três, de operárias soldando equipamento
em fábrica, que poderia constituir um espaço de reflexão sobre gênero são usadas
simplesmente como ilustração não havendo nenhuma referência a ela ou mesmo às relações
de gênero e trabalho.
Mesmo no capítulo que aborda o tema poder, e que utiliza como introdução a cena
com uma mulher, não há uma discussão ou mesmo um histórico para a reflexão das
desigualdades entre gêneros.
A análise generalizante silencia as relações de poder que envolvem as questões de
gênero. A respeito do poder na construção do saber sobre gênero, Scott (1995, p. 12-13),
considera que:
(...) Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo, sendo que seus
usos e significados nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as
relações de poder – de dominação e de subordinação – são construídas.
274
O capítulo nove Sonhos de civilização, traz as reflexões de Norbert Elias, sua
introdução é feita com a imagem do filme onde Carlitos sonha que ao chegar em sua casa vê
sua mulher linda, bem vestida, arrumada e sorridente servindo o jantar.
Um devaneio de Carlitos em torno do lar perfeito (...). No lar encantado, algo como
um Éden moderno, misturam-se o melhor da natureza e o melhor da civilização. Um
pé carregado de laranjas cresce ao lado da janela, cachos de uvas pendem na porta
da cozinha, diante da qual passa uma vaca fornecendo leite fresco. Cercada de
eletrodomésticos, a Garota prepara um bife num moderno fogão (...). (BOMENY;
FREIRE-MEDEIROS, 2010. p. 99)
Apesar da riqueza deste capítulo para se abordar os estereótipos, a construção da ideia
do espaço doméstico como “reino” da mulher, do seu papel de esposa, da perfeição de uma
família heterossexual (branca e burguesa), entre outros aspectos, não se faz, no livro,
nenhuma reflexão ou sequer menção a essas questões.
Todas essas imagens apresentavam-se como ilustração de algum tema. Os textos não
problematizam as imagens, essa forma de silêncio torna-se uma ferramenta poderosa à
dominação simbólica.
Outro estereótipo atribuído à mulher é reforçado no capítulo intitulado sonhos de
consumo, o gosto pelo consumo, e a sensação de felicidade proporcionada por este é
representado por uma imagem feminina numa loja de departamentos, relacionando-o a uma
característica feminina.
Ao abordar a Instituição familiar, apesar de refletir sobre as diferentes configurações
de família, silencia-se quanto às famílias homossexuais limitando-se a inserção de um texto
“casamento gay atrai curiosidade em São Paulo”, meramente especulativo. A tentativa de
incluir aqui o tema da diversidade se limitou a um texto de caráter informativo sobre o evento,
que em nada contribui para a reflexão, dando a impressão de ser um tabu.
Em meio a tantos silêncios, um pequeno texto da historiadora Ângela de Castro
Gomes, sobre a história do trabalho no Brasil, dedica uma reflexão sobre as mulheres e as
crianças, mostra como o trabalho feminino sempre fora visto como essencialmente doméstico,
e como com o passar do tempo os costumes foram criando ocupações femininas. Por fim
esclarece que embora haja ocorrido muita luta, as mulheres ainda não possuem plenamente
seus direitos. O capítulo traz ainda uma atividade de interpretação de taxas de fecundidade,
trata-se, porém de uma atividade muito mais quantitativa do que qualitativa.
A reflexão mais profunda presente nesse livro sobre as desigualdades de gênero
partem do questionamento: será que no interior dos grupos e das classes, distribuídos em seus
275
lugares específicos na estrutura social, homens e mulheres tem acesso semelhante às
oportunidades oferecidas? Há diferença entre homens e mulheres no mercado de trabalho, por
exemplo? Logo a reflexão a esses acontece em um pequeno texto, através do conceito de
gênero e dados do IBGE, mas limitando-se a desigualdade salarial.
Mesmo com os altos índices de violência contra mulher e de homofobia, não coube no
espaço de um capítulo inteiro sobre a violência, informações sobre isso.
O Livro Didático Público do Paraná, de 2006, constitui-se na produção colaborativa,
pelos profissionais da educação, de textos de conteúdos pedagógicos com base nas Diretrizes
Curriculares do Ensino Fundamental e Médio. Divide-se em seis partes, cada uma referente a
um conteúdo estruturante, diferentemente do livro anterior. Este propõe atividades mais
reflexivas, propostas de discussão em sala, e possui uma linguagem mais próxima a dos
leitores do ensino médio (menos formal, com exemplos do cotidiano), que procura conduzir o
estudante à formulação de suas próprias ideias. Os textos são permeados de questionamentos
e dificilmente encontramos “verdades acabadas”.
Percebe-se nesse, maior cuidado com as abordagens, quanto à linguagem, por
exemplo, é importante destacar a introdução de um dos capítulos (p.202), onde temos: Desde
que homens e mulheres passaram a viver em grupo (...), geralmente utiliza-se os termos
homens e humanidade, demarcando a hegemonia masculina e ocultando o feminino.
Nele encontramos menor quantidade de imagens, porém maior diversificação de
recursos como o uso de músicas, poesias, reportagens jornalísticas, fotos, campanhas
publicitárias; e um esforço muito maior em se fazer a leitura das imagens.
Por outro lado as abordagens sobre gênero inexistem, uma pequena reflexão sobre a
mulher e o papel historicamente atribuído a ela, se faz ao abordar a Instituição familiar, da
qual se procura evidenciar diferentes configurações familiares, ocultando, porém, o
homossexualismo. Apenas uma autora é citada, e em termos de diversidade a discussão
limita-se a algumas reflexões de Florestan Fernandes, com relação aos negros.
A análise desses livros revela em todos os sentidos considerados a maior presença do
gênero masculino. Há por exemplo, maior número de palavras que remetem ao gênero
masculino, as imagens principalmente as de maior destaque referem-se ao gênero masculino,
as referencias teóricas são majoritariamente masculinas.
Análise e apresentação das entrevistas
276
As entrevistas abaixo relacionadas foram realizadas com dez alunas entre 15 e 16
anos, que estiveram em contato com tais livros durante o Ensino Médio.
Os resultados nos dão a dimensão da importância dos livros didáticos no processo
educativo, do ponto de vista do grupo que vivencia, enquanto aluna e mulher, o processo de
naturalização de papeis/estereótipos e de normatização de comportamentos e valores
relacionados ao gênero. Apontam como tal processo é impresso pela instituição escolar, e por
quais meios e práticas se projeta a chamada dominação simbólica.
A pesquisa confirma ainda, o mencionado anteriormente sobre o livro didático - de
que esse constitui um dos principais meios de acesso à informação e construção do
conhecimento para os alunos, seja por ser disponível a todos, ou por suas características – ao
ser criado especificamente para esse público torna-se atrativo.
A primeira pergunta da entrevista procura confirmar a relevância do livro didático,
dando especial atenção para o papel desses na construção do conhecimento de gênero.
Figura 1 – Para a construção do seu conhecimento sobre identidade e gênero, você considera que o livro didático
de sociologia foi:
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
A constatação de que 70% considera o livro didático importante, suscita a
preocupação com relação à importância de que os livros abordem reflexões atuais, como
gênero, etnia e classes sociais. E principalmente, de que na sua utilização leve-se em conta
seu caráter cultural, bem como que se reconheça que não é possível sua utilização proveitosa
se não compreendermos a rede de relações de poder a partir de onde esse constrói. Sobre o
caráter histórico do livro didático, MARTINS (2007, p. 07) comenta:
O livro didático é um artefato cultural, isto é, suas condições sociais de produção,
circulação e recepção estão definidas com referência a práticas sociais estabelecidas
na sociedade. Enquanto tal, ele possui uma história que não está desvinculada da
própria história do ensino escolar, do aperfeiçoamento das tecnologias de produção
gráfica e dos padrões mais gerais de comunicação na sociedade.
As questões 2 e 3 analisam o potencial imagético dos livros na construção e
perpetuação de estereótipos. Ficando evidente a preponderância de uma visão marcada pelo
277
pensamento que segrega a mulher do espaço público, delimitando sua ação ao espaço
doméstico. Sobre esse fato OLIVEIRA (2011, p.9) destaca:
É demais valioso que se pense como que o livro didático e toda a configuração que
ele traz, o uso de imagens principalmente, contribui para o reforço de estereótipos,
tidos como verdades, impostos pela sociedade. Percebe-se que as relações de
gêneros veiculados nos livros-didáticos cumprem fielmente o papel que a sociedade
designou ao homem e à mulher separando suas atividades, lugares de atuação,
questões relacionadas à profissão e outros.
É a dominação simbólica, que reforça as diferenças e contribui para a cristalização da
ideia de que homens e mulheres têm lugares e funções específicas e características do seu
sexo.
Figura 2 – As imagens utilizadas para representar a figura feminina costumam ser associadas a maternidade ou
ao espaço doméstico?
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Figura 3 – As imagens utilizadas para representar a figura masculina costumam ser associadas a profissionais,
cientistas e heróis?
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Os resultados obtidos com a questão 4 mostram a consciência por parte das alunas,
quanto ao conhecimento da existência de razões históricas que de certa forma foram
responsáveis pela exclusão das mulheres do campo científico. Por outro lado, pode
representar uma justificativa para uma possível acomodação na busca por respostas a essa
ausência.
Figura 4 – Na sua opinião a ausência de escritoras e cientistas, nos livros didáticos deve-
se:
278
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
As respostas da questão 5 revelam o reconhecimento do livro didático como fonte
legítima de conhecimento, ou então como mero instrumento de apoio.
Figura 5 – Como você analisa o livro didático:
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Esse posicionamento demonstra a cristalização de um modelo positivista de educação,
ademais o desconhecimento do livro didático enquanto produto cultural e veículo de valores e
ideologias, “reforça o domínio e a reprodução de ideologias”. (BITTENCOURTT, 2004. p. 1)
No gráfico 6 podemos perceber como os livros didáticos constituem um dos principais
meios de informação dos alunos e consequente a principal referencia na formação dos seus
conceitos.
Figura 6 – Ao utilizá-lo como você procede:
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Embora 40% das entrevistas declarem refletir, duvidar e fazer questionamentossobre
os temas, somente 20% delas admitem confrontar ou buscar informações adicionais.
Os dados do gráfico 7, aferem os temas mais debatidos em relação as mulheres,
apontam a necessidade de enfatizar discussões sobre a construção de identidade e de gênero.
279
A análise dos livros refletiram essa necessidade, pois verificou-se em um dos casos a
inexistência dessas discussões e no outro uma abordagem superficial.
Figura 7 – Quais dos temas abaixo você lembra ter visto em um livro didático de sociologia:
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
O gráfico 8 evidencia predomínio do pensamento heterossexual e masculino nos livros
didáticos.
Figura 8 – Na sua opinião os livros didáticos:
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Os resultados obtidos com a questão 9 e 10 suscitam a reflexão sobre o avanço da
percepção feminina quanto a sua condição, 100% delas não se sentiu devidamente
representada, 60% não está satisfeita com a maneira como o assunto é abordado nos materiais.
Fica eminente a necessidade de ampliação dessa discussão nos livros didáticos.
Figura 9 – Você enquanto mulher sente-se representada devidamente nos livros didáticos?
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Figura 10 – Os temas e discussões sobre gênero tem o destaque merecido nos livros didáticos?
280
Fonte: Gráfico organizado pela autora com base nas entrevistas.
Considerações finais
Depreende-se dessa breve análise, que por mais que no Brasil, os Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCN’s (1998) em seus temas transversais prevejam a discussão das
questões de gênero no ambiente escolar e que por mais que a igualdade entre homens e
mulheres venha gradualmente sendo aceita na sociedade atual, resta ainda um grande desafio
as feministas, a sociologia e também a pedagogia, quanto ao ensino desse tema.
Trata-se de operar no campo educacional um movimento, que começa pelo
reconhecimento da escola como uma instituição normativa onde se operam relações de poder
e, consequentemente, de dominação, na reflexão a respeito das teorias democráticas e
libertadoras.
Na prática docente, quanto ao seu discurso e metodologia, principalmente nas relações
com o livro didático devido a sua presença marcante no espaço escolar e por ser um construto
cultural, que, portanto reitera o poder dominante, e por fim decodificando os meios pelos
quais se operam a dominação simbólica.
281
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Lisboa: Editorial
Presença, 1979.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Em foco: História, produção e memória do livro
didático. Educação e Pesquisa [online]. 2004, vol.30, n.3, p. 471-473. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 15 Maio, 2015.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: Elementos para uma Teoria
do Sistema de Ensino. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2009.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CAVALCANTI, E. L. S.. A apreensão do conhecimento escolar numa perspectiva de
gênero. In: FAGUNDES, T. C. P. C. Ensaios sobre Identidade e Gênero. Salvador: Helvécia,
2003, p. 177-210.
COIMBRA, Cecília Maria B.. As funções da instituição escolar: análise e reflexões. Psicol.
cienc. prof. [online]. 1989, vol.9, n.3, pp. 14-16. ISSN 1414-9893.
FREIRE, Paulo, SHOR, Ira. Medo e ousadia: O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
NOGUEIRA, Maria Alice. Bourdieu & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo. Melhoramentos. 2012. 184 p. (Coleção
Como eu ensino).
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n 2, jul./dez. 1995. Pp. 71-99.
OLIVEIRA, Wilson Sousa. A imagem da mulher nos livros didáticos e relações de gênero.
Revista Fórum Identidades. 2011, ano 5, vol.9, p. 140-149.
Top Related