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O ESTADO E RELAÇÕES DE PODER: CONTRIBUIÇÃO PARA DEBATES SOBRE
ESTABLISHMENT NO BRASIL ATUAL
Amílcar Machado Profeta Filho1
Daniel Salésio Vandresen
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo fazer algumas reflexões primárias sobre a importância
de se estudar o Estado e sua relação com o Poder e com o Establishment. Neste sentido, foi utilizado
alguns pensadores como Michel Foucault e Frédéric Bastiat com o intuito de incitar algumas
polêmicas. Sabe-se da relevância de estudar o Establishment no Brasil, por isso este artigo vem de
encontro com os debates atuais que tentam compreender melhor quais as mais variadas faces do
Estado brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Estado; Poder; Establishment
INTRODUÇÃO
Levantar polêmicas relacionadas ao Establishment é difícil e torna-se ainda mais
complexo se a proposta é fazer uma relação com o Estado brasileiro atual2. Esta relação
pressupõe alguns esforços em busca de um entendimento que poderia levar a um melhor
discernimento sobre os propósitos que envolvem as políticas públicas brasileiras.
No Brasil, sem desrespeitar os temas culturalmente consolidados e as influências
metodológicas e ideológicas das pesquisas que os caracterizaram desde as décadas de 1960
até a atualidade, seria relevante provocar mais debates sobre Establishment.
Uma problemática é: Por que existe pouca preocupação por parte da sociedade
brasileira e dos estudiosos em pesquisar com mais afinco o Establishment? Questiona-se,
justamente pelo fato de reconhecer que as políticas públicas brasileiras, muitas vezes, foram
impostas “de cima para baixo”, como em uma “cartilha” a ser seguida, de governo a governo,
e sob a bandeira das sonhadas “democracia” e “justiça social”, salvo raras exceções. E quando
não existe tais “cartilhas” (Plano Cruzado I e II, Plano Collor I e II, Plano Bresser, reformas
1 Instituto Federal do Paraná/Câmpus Assis Chateaubriand. E-mail: [email protected]
2 Este artigo faz parte do projeto de pesquisa Geopolítica e Nova Ordem Mundial: estudos dos impactos das
Organizações Internacionais sobre o Estado brasileiro na atualidade, cadastrado em 25/03/2014 ao Comitê
de Pesquisa e Extensão (COPE) do IFPR - Campus Assis Chateaubriand, tendo como coordenador do projeto
o professor e pesquisador Amílcar Machado Profeta Filho (IFPR) e como parceiro na produção deste artigo o
professor e pesquisador Daniel Salésio Vandresen (IFPR).
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educacionais da década de 1970, LDB da década de 1990, entre outras reformas e planos), o
processo de transformação da sociedade brasileira foi bem articulado e controlado por forças
políticas e econômicas, hoje aplicadas de forma mais sutil, orientado para as discussões e
infinitos debates, variadas “consultas de base”, que após seus términos configuram-se em uma
perpetuação das desigualdades econômicas existentes desde a época do Brasil colonial. Ou
seja, na prática, as mudanças ocorrem de forma um pouco diferente daquelas apresentadas
pelos grandes veículos de comunicação do país.
As atuações de oligarquias políticas, de grupos que comandam o país, este antigo
“coronelismo”, agora mais sutil, tem impacto direto nas políticas públicas educacionais
brasileiras. A realidade do que ocorre no Brasil é um pouco diferente das teorias e livros.
Diante do que foi exposto cabe fazer algumas polêmicas: O que é Establishment e qual
sua relação com o Estado? O Establishment se manifesta em ordem local, regional, nacional,
ou global? Existe um “modus operandi” de atuação do Establishment?
OBJETIVO
Estabelecer polêmicas sobre o Establishment no Brasil atual.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Optou-se em estabelecer algumas revisões bibliográficas com a utilização de
pensadores do século XIX até o século XXI.
ESTADO E PODER: UMA RELAÇÃO DE PROXIMIDADE
Neste tópico pretende-se iniciar a discussão sobre a relação entre Estado e poder a
partir da visão de Michel Foucault. A primeira vista, pode-se perceber a escolha deste autor
como contraditória, pois suas pesquisas da década de 1970 têm por objetivo pensar as relações
do poder fora das relações estatais, nos micropoderes que agem nas diversas instituições
sociais. Influenciado pelas lutas de maio de 1968, quer analisar o poder nas lutas cotidianas
nas quais os sujeitos estão, ou seja, “[...] nas malhas mais finas das redes do poder”
(FOUCAULT, 2005, p. 6). Contudo, suas pesquisas em torno do conceito de
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Governamentalidade e da Biopolítica, a partir de 1977 nos cursos no Collège de France, o
levam a repensar a investigação do poder atrelado as questões do governo estatal.
Foucault na obra Segurança, Território, População (1977-1978) realiza uma análise
histórica sobre o conceito de Governamentalidade. Para o autor, foi a partir do séc. XVI que
começa a se desenvolver uma preocupação com a arte de governar. É o período do
movimento de concentração estatal que começa a instaurar os grandes Estados territoriais e,
consequentemente, a superação do feudalismo. A preocupação com a questão “Como
governar?” está presente, por exemplo, na obra O Príncipe (1512) de Maquiavel, com
conselhos ao príncipe (soberano) de como governar por virtudes e habilidades. Ainda, afirma
que a questão do governo emerge sob vários aspectos, sendo o governo dos Estados pelo
príncipe um deles. Há ainda, o governo de si (retorno ao estoicismo), o governo das almas e
das condutas (religião) e o governo dos filhos (pedagogia). Neste momento, o conceito de
governo é bem amplo e se refere a várias formas de governar a si e aos outros. Sendo que
todos têm como questão: “Como se governar, como ser governado, como governar os outros,
por quem devemos aceitar ser governados, como fazer para ser o melhor governador
possível?” (FOUCAULT, 2008b, p. 118).
E é a partir do séc. XVIII que a questão do governo irá se desenvolver sob um novo
olhar. Ao analisar os meios e instrumentos que o Estado utiliza para controlar os problemas
que surgem em torno da cidade, tais como: doenças epidêmicas (como a varíola), a fome
(escassez alimentar), a guerra (morte), a distribuição demográfica, o controle da natalidade,
entre outros, Foucault irá chamar esta arte de governar: de biopoder, ou seja, de um poder
sobre a vida3. Neste momento a sociedade ocidental passa a levar em consideração o fator
biológico do ser humano, que passa a ser estudado pelas ciências humanas. Quanto mais
conhecido, melhor para modificá-lo, transformá-lo, manejá-lo. A produção de saberes é
imprescindível ao exercício do biopoder, isto porque, somente através de saberes que o poder
se exerce positivamente. O saber tem efeito de poder porque demanda uma verdade. Nas
3 Para Foucault (2008b, p. 17s) aparece neste momento a preocupação com a cidade ligada ao
desenvolvimento do Estado administrativo. A cidade é o espaço onde surge novos saberes (estatística,
economia e demografia e, em seguida, a preocupação com a saúde pública e as ciências humanas da
psicologia, psiquiatria e psicanálise) indispensáveis para o governo biopolítico.
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palavras de Foucault, governar significa uma: “[...] prática social de sujeitar os indivíduos por
mecanismos de poder que reclamam de uma verdade [...]” (FOUCAULT, 2010, p. 5).
No texto Omnes et singulatim: para uma crítica da razão política (1979) Foucault
pretende analisar a organização política estatal como prática de uma racionalidade presente no
exercício do poder do Estado e que se constitui como um “[...] governo dos indivíduos por sua
própria verdade” (FOUCAULT, 2006, p. 370). Seu propósito ao analisar o Estado é o de
investigar como o próprio título da obra indica uma crítica a racionalidade presente na forma
de governo, isto é, analisar a racionalidade que esta em jogo no exercício do poder do Estado.
O autor mesmo admite que é um título pretencioso (FOUCAULT, 2006, p. 355). Tal
empreendimento será realizado através da investigação de “[...] dois corpos de doutrina: a
razão de Estado e a teoria da polícia”. (FOUCAULT, 2006, p. 372, grifo do autor).
Entende por razão de Estado como uma racionalidade desenvolvida como uma arte de
governar, onde é preciso conhecer a própria natureza daquilo que pretende governar: o
Estado. Aí reside a especificidade dessa racionalidade: precisa estar alicerçado em certo saber
capaz de aumentar e reforçar sua potência. Nisto consiste a razão de Estado: “[...] um governo
racional capaz de aumentar a potência do Estado de acordo com ele próprio, passa pela
constituição prévia de um certo tipo de saber”. (FOUCAULT, 2006, p. 376).
Já a teoria da polícia diz respeito “[...] à doutrina da polícia, ela define a natureza dos
objetivos da atividade racional do Estado; ela definiu a natureza dos objetivos que ele
persegue, a forma geral dos instrumentos que ele emprega”. (FOUCAULT, 2006, p. 373).
Assim, não se deve associar “polícia” com a instituição que conhecemos, mas o que os
autores do séc. XVII e XVIII se referem com este termo é a uma técnica de governo própria
ao Estado. Com este conceito Foucault quer se referir ao Estado enquanto governo que tem o
homem em todo o domínio de sua existência como alvo de sua administração.
A polícia engloba tudo, mas de um ponto de vista extremamente particular. Homens e
coisas são consideradas em suas relações: a coexistência dos homens sobre um território; as
relações de propriedade; o que eles produzem; o que se troca no mercado. Ela se interessa
também pela maneira como eles vivem, pelas doenças e pelos acidentes aos quais estão
expostos. É o homem vivo, ativo e produtivo que a polícia vigia. (FOUCAULT, 2006, p.
378-379, grifo nosso).
Para o autor, trata-se do início do controle administrativo da vida. Segundo Rabinow e
Dreyfus (1995, p. 154), Foucault mostra que a tarefa da polícia é o controle do indivíduo e da
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população enquanto conquista de um Estado administrativo de bem-estar. “A polícia cuida
para que o homem esteja vivo, ativo e produtivo”. (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 154). O
poder invade a vida. Trata-se de um biopoder. As necessidades humanas tornam-se algo da
polícia, da intervenção do Estado, para assegurar sua força e sua vitalidade produtiva.
Uma das características desta arte de governar como biopoder é que ela não se
exercerá mais sobre o corpo do indivíduo, como na abordagem da sociedade disciplinar, mas
sobre a população. Para Foucault o problema político moderno gira em torno da população.
Assim, afirma:
[...] noção capital do século XVIII, é a população considerada do ponto de vista das suas
opiniões, das suas maneiras de fazer, comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores,
dos seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da
educação, das campanhas, dos convencimentos (FOUCAULT, 2008b, p. 118).
Neste sentido, Foucault irá chamar o governo político em torno da população como
biopolítica, ou seja, trata-se de governar populações, controlá-las, medicalizá-las, favorecer o
seu crescimento e bem-estar. A população torna-se um objeto que importa conhecer para
poder controlar. Somente é possível agir sobre ela, quando se conhece seus desejos,
comportamentos, angustias, enfim, tudo que envolve a vida de um indivíduo.
Segundo Foucault (2008b, p. 143) essa prática de governo que tem como alvo
principal a população se efetiva através de dispositivos de segurança, o qual significa um
conjunto de mecanismos que o poder dispõe para se exercer, o que pode ser descrito como,
técnicas de vigilância, escolhas estratégias, normas e regras, saberes que visam o diagnóstico
e a classificação, etc. Observa-se a ação destes mecanismos, por um lado, através de saberes
veiculados nas ciências e na educação, por outro lado, por meio de técnicas/práticas como o
exército, a polícia e decisões políticas. Tudo isso agindo sobre a população com vistas a
alcançar fins desejados por uma racionalidade governamental.
A essa relação de poder (biopoder) e essa prática política de governo (biopolítica) que
se desenvolve a partir do século XVIII, Foucault chama de governamentalidade. Foucault
(2008b, p. 143-144) expõe três abordagens que o termo governamentalidade refere-se em suas
obras: primeiro, ao poder sobre a população exercido pelos dispositivos de segurança que são
produzidos pela biopolítica; segundo, como forma de governo sobre os outros que se exerce
através de aparelhos de governo sustentados pela produção de saberes; terceiro, a passagem
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de um governo que se tornou administrativo com o Estado monárquico do século XVI, para
um governo que se desenvolve sob a forma de técnicas de controle de uma população.
Todo este empreendimento teórico pode ser observado em sua análise do liberalismo.
Foucault entende liberalismo não como teoria econômica ou jurídica, mas como racionalidade
governamental. A questão central que Foucault propõe analisar é: “Num sistema preocupado
com o respeito dos sujeitos de direito e com a liberdade dos indivíduos, como é que o
fenômeno população com seus efeitos e seus problemas específicos pode ser levado em
conta?” (FOUCAULT, 2008a, p. 431-432). Assim, o liberalismo como razão governamental
que juridicamente proclama a liberdade do sujeito e economicamente a liberdade do mercado,
age sobre a população através de dispositivos de segurança que limitam e controlam suas
escolhas, desejos, comportamento, mobilidade, saúde, alimento, enfim, controlam a vida do
indivíduo. De modo que Foucault afirma:
[...] a liberdade nada mais é que o correlativo da implantação dos dispositivos de segurança.
Um dispositivo de segurança só poderá funcionar bem, [...] justamente se lhe for dado certa
coisa que é a liberdade, no sentido moderno [que essa palavra]* adquire no século XVIII:
não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de
movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto das pessoas como das coisas
(FOUCAULT, 2008b, p. 63-34).
Nesta citação Foucault defende que os dispositivos de segurança estão diretamente ligados
com a liberdade, por um lado, precisa afirmá-la para que aja circulação de pessoas e coisas, ou
seja, aja produção e consumo, por outro lado, a cerceia, limitando as escolhas aos interesses
mercadológicos. Liberalismo como prática de governo que visa o bem-estar da população, um
biopoder que age sobre o indivíduo para mantê-lo saudável para produzir e consumir. “A idéia de
um governo [...] a idéia de uma administração das coisas que pensaria antes de mais nada na
liberdade dos homens, no que eles querem fazer, no que têm interesse de fazer, o que eles contam
fazer, tudo isso são elementos correlativos” (FOUCAULT, 2008b, p. 64).
Para Olena Fimyar a racionalidade governamental do liberalismo age como um
mecanismo de segurança. Em suas palavras:
[...] o liberalismo como nova racionalidade governamental vê a “segurança” do
desenvolvimento sócio-econômico da população como sua preocupação fundamental, pois
a segurança da população é a base da prosperidade do Estado. Para atingir tais metas, o
Estado liberal enquadra sua população nos aparatos de segurança — de um lado, o exército,
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a polícia e os serviços de inteligência; de outro, a educação, a saúde e o bem-estar
(FIMYAR, 2009, p. 40).
A análise de Foucault contribui para nossa compreensão da atual sociedade capitalista,
onde a razão governamental se caracteriza como neoliberal, em que a produção e o consumo
precisam ser livres e a população precisa ser governada, mantida saudável para produzir e
consumir mais. Essa também é a ideia defendida por Inês L. Araújo: “[...] a produção deve ser
livre, a população deve ser governada, mantida saudável para produzir e para consumir. Os
mais fracos são os enjeitados, os que não produzem nem bens, nem saúde; aqueles para os
quais não vale a pena governar” (ARAUJO, 2009, p. 28). Inserem-se neste contexto as
práticas políticas de assistência social, onde uma parcela da população (desempregados, sem
terra, sem teto, etc.) permanece a margem do desenvolvimento, mas precisa ser assistida para
poder consumir e manter-se saudável, controlando os riscos de seu ócio, bem como, a
estabilidade do governo.
Outra forma de controle pode ser percebida na ideia do Capital Humano (Foucault,
2008a, p. 311) e na construção de uma subjetividade flexível. A economia neoliberal visa
investir e formar no indivíduo um capital humano para o mercado de trabalho. Assim, afirma:
[...] um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam todos os
problemas e que novos tipos de análise são apresentados pelos neoliberais. Formar capital
humano, formar portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda,
ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer
o que se chama de investimentos educacionais (FOUCAULT, 2008a, p. 315).
A formação educacional aparece no governo neoliberal como elemento estratégico
para seu funcionamento. A busca pela educação permanente, pelo indivíduo, empresas e a
Escola/Estado, mantém o indivíduo ocupado consigo mesmo e, como consequência, fechados
aos problemas políticos e sociais.
Neste mesmo sentido, o trabalho de Michael Hardt e Antonio Negri, na obra Império,
retomando os conceitos da biopolítica de Michel Foucault e de Sociedade de Controle de
Gilles Deleuze, contribuem para compreender como a gestão da vida tornou-se alvo do
governo político. Nesta obra os autores defendem a tese de que nesta nova ordem mundial,
permeada por relações globalizadas e dependentes dos meios de informação e comunicação
em rede, o domínio das relações de poder não acontece mais restrito as instituições locais
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como na Sociedade Disciplinar, mas por um domínio de poder (biopoder) em instituições
nacionais e supranacionais.
Defendem que o “Império”, diferente do Imperialismo onde o poder estava
centralizado na força do soberano (Estado Moderno), agora se constitui como um biopoder,
que intensificado pelo processo de globalização da informação e comunicação, governa o
fluxo da vida por meio das relações de produção. “As grandes potências industriais e
financeiras produzem, desse modo, não apenas mercadorias mas também subjetividades.
Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades,
relações sociais, corpos e mentes – ou seja, produzem produtores” (HARDT; NEGRI, 2002,
p. 51). Para os autores, a vida tornou-se mercantilizada, somos produzidos como produtores,
nossa subjetividade precisa guiar-se pela criatividade.
Para Hardt e Negri no empreendimento teórico de Foucault, a partir da década de
1970, o controle do indivíduo não é pensado como tradicionalmente pela ideologia e seu
poder sobre a consciência, mas sobre seus efeitos sobre o próprio corpo e a vida, o físico e o
biológico. “O biopoder, portanto, se refere a uma situação na qual o que está diretamente em
jogo no poder é a produção e a reprodução da própria vida” (HARDT; NEGRI, 2002, p. 43).
A vida é comandada pela produção. O tempo de não trabalho se confunde com o tempo de
trabalho. O lazer tem que ser produtivo. O ócio é condenado. Vive-se a construção de uma
subjetividade produzida e produtiva.
ESTADO E ESTABLISHMENT NO BRASIL ATUAL
Diante do que foi exposto anteriormente, como estabelecer uma relação entre Estado e
Establishment? Talvez se pudesse definir o Establishment como o poder político e econômico
do próprio Estado? Ou utilizando Foucault, pode-se afirmar que a governamentalidade, este
biopoder sobre a vida, seria o “modus operandi” do Estado, ou seja, seria o Establishment da
sociedade capitalista? Polêmicas que em poucos parágrafos não poderiam ser resolvidas, mas
que permitem importantes reflexões.
Segundo Costa, com o avanço do neoliberalismo, o Estado se transforma. Este Estado
não é o mesmo de épocas passadas.
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Ao longo da história o Estado foi a expressão concentrada das relações sociais de produção,
sempre agindo, em última instância, como representante máximo das classes
dominantes. Até o período do feudalismo, o Estado confundia-se com os reis, príncipes e
senhores feudais. No entanto, com o advento do capitalismo, a burguesia emergente,
sublevando-se contra as estruturas do passado, criou um conjunto de mecanismos mediante
os quais institucionalizou a sua representação no aparato do Estado. (COSTA, 2008, p. 87,
grifo nosso)
Observa-se que para Costa o Estado sempre foi, desde sua criação, um agente defensor
da elite. Neste sentido o Estado não foi criado para beneficiar um “todo social”, mas para
gerir este “todo” em prol de uma oligarquia dominante. O que a burguesia consegue fazer
com o advento das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII é criar um Estado
capitalista que também a beneficia enquanto grupo em ascensão. O cenário muda. Se outrora
os nobres, descendentes dos antigos patrícios romanos, mandavam, agora é a vez dos grandes
banqueiros e industriais.
Entretanto, para Costa, com o advento do imperialismo e do surgimento de uma
oligarquia financeira a partir do final do século XIX e início do século XX, as relações entre o
Estado e a burguesia se modificaram. Aos poucos vai se consolidando, mediante uma união
orgânica, a aproximação entre Estado e monopólios. E esta relação existe até na atualidade,
onde ministros e indivíduos que estão em altos cargos públicos, ao deixar os últimos, em
muitos casos, assumem cargos estratégicos em grandes empresas. “Se a concorrência e a
produção fracionada impediam o Estado de exercer um papel regulador, agora com a
produção concentrada nas mãos de poucos, o Estado redefine sua política estratégica”
(COSTA, 2008, p.88). A união orgânica entre monopólios e Estado foi institucionalizada
entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, quando, segundo Costa, o Estado
passou a intervir de forma mais ampla na economia. E neste momento histórico os
monopólios capitalistas, as grandes empresas transnacionais, acabaram aceitando esta
intervenção para sair das crises, das pressões dos movimentos sociais, além de evitar o perigo
da URSS. Aqui já se caracteriza o mundo bipolar da Guerra Fria (1946-1991).
Vale destacar que este período é também marcado pela militarização da economia, cujo
desenvolvimento atrelou ainda mais o Estado aos monopólios, especialmente aqueles
voltados para a produção de armas. Essa produção, de caráter tipicamente antissocial, no
entanto, é funcional para o sistema [...] (COSTA, 2008, p. 90 - grifo nosso)
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Segundo Costa, o momento da Guerra Fria foi de intensa militarização. Esta
militarização colaborava para que não houvesse uma crise de superprodução, ao mesmo
tempo em que permitia a países como os Estados Unidos produzir armas sofisticadas que
colaboraram para manter sua hegemonia bélica sob os países do mundo ocidental.
Um outro autor que pode contribuir para a entender o Estado é Frédéric Bastiat. Este
pensador, sendo um político liberal e crítico do século XIX, acabou levantando algumas
reflexões relevantes sobre o Estado contemporâneo.
Bastiat institui um prêmio a quem conseguisse a façanha de definir o Estado.
Que grande serviço essa pessoa estaria prestando à sociedade! O Estado! O que é? Onde
ele está? O que faz? O que deveria fazer? Tudo o que dele sabemos é que se trata de um
personagem misterioso e, sem sombra de dúvida, o mais solicitado, o mais atormentado, o
mais ocupado, o mais aconselhado, o mais acusado, o mais invocado e o mais provocado
que exista no mundo. (BASTIAT, 1989, p.87)
O pensador afirma que a sociedade em geral procura o Estado para lhe reivindicar as
mais variadas coisas, desde o leite para as crianças, até o incentivo a arte. Entretanto, Bastiat
salienta que para realizar tudo que é solicitado, o Estado precisa de recursos financeiros, e
para obtê-los é inevitável cobrar impostos. É neste momento que a sociedade critica o Estado
e exige a não cobrança de impostos: a sociedade pediria a diminuição de sua incidência. “Não
queremos que nos assole com novos impostos, mas que nos retire a obrigação de pagar os
impostos antigos! Acabem com: o imposto do sal, o imposto das bebidas, o imposto das
cartas, (...)” (BASTIAT, 1989, p.89). Aqui, Bastiat deixa implícito que para realizar os
empreendimentos necessários e atender os pedidos da sociedade, o Estado precisa de dinheiro
e que ao solicitá-lo as pessoas não estariam dispostas da pagar. Existe uma espécie de
paradoxo entre a sociedade e o Estado. As pessoas exigem mudanças, porém não estariam
dispostas a pagar pelas melhorias.
Um outro momento do texto, Bastiat chega a criticar a própria conduta do homem,
afirmando que o mesmo repudia a dor e o sofrimento. Entretanto, estaria “condenado pela
natureza ao sofrimento da privação, se não se der a pena do trabalho” (BASTIAT, 1989,
p.90). Sendo assim, ao homem resta-lhe poucas opções para evitar os males da dor e do
sofrimento. Como evitá-los? E responde que o homem inventou uma forma: “aproveitar-se do
trabalho de outrem” (Idem). Seria o mesmo que pensar que para alguns homens foi lhes
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reservado a satisfação. Em contrapartida para outros homens, o trabalho. Daí surgiriam as
mais variadas formas de opressão e de trabalho compulsório no decorrer do processo
histórico. Forças de exploração do homem sobre ele próprio.
Dando sequência à análise de Bastiat, o Estado teria um papel primordial para servir
como um intermediário na inclinação primitiva do homem em querer satisfação e prazer para
si mesmo, em detrimento da pena e do sacrifício de outrem (de outros homens). Seria a
legitimação de um “Estado opressor”?
O opressor não age mais diretamente sobre o oprimido por suas próprias forças. Não!
Nossa consciência tornou-se muito meticulosa para isso. Existem ainda o tirano e a vítima,
mas, entre eles, se coloca um intermediário que é o Estado, ou seja, a própria lei.
(BASTIAT, 1989, p. 91 – grifo nosso)
Bastiat faz duras críticas ao papel do Estado que se tornou tão poderoso que as pessoas
buscam fazer parte do mesmo para poder tirar o seu “quinhão”. É a eterna luta pela
sobrevivência do homem, porém, em boa parte das vezes vivendo às custas do trabalho de
outros homens. Neste sentido o pensador arrisca definir, mesmo que de forma polêmica, o que
seria o Estado: “O ESTADO é a grande ficção através da qual TODO MUNDO se esforça
para viver às custas de TODO MUNDO” (BASTIAT, 1989, p.91). O pensador francês sofre
influência do pensamento liberal daquela época e por isso deve ser interpretado como fruto de
um processo histórico e ideológico daquele período histórico. É relevante observar que
atualmente o Estado capitalista contemporâneo esconde algumas faces obscuras da corrupção
em seus mais variados aspectos e isto dificulta o desenvolvimento de qualquer região do
globo que esteja sendo gerida por indivíduos corruptos. Atualmente, poderíamos até citar,
salvo exceções, o caso do Brasil. E é neste aspecto que se pode considerar atual as
preocupações de Bastiat. Ou seja, o Estado está servindo quem?
Conclui-se que para Bastiat, a população não deveria acreditar em falsas promessas. E
o Estado
não é ou não deveria ser outra coisa senão a força comum instituída, não para ser entre
todos os cidadãos um instrumento de opressão e de espoliação recíproca, mas, ao contrário,
para garantir a cada um o seu e fazer reinar a justiça e a segurança. (BASTIAT, 1989, p.99-
100)
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Talvez uma das passagens mais interessantes do pensamento de Bastiat esteja nesta
última, pois considera não só importante a liberdade e o direito do cidadão, mas prioriza a
justiça e a segurança que seriam fundamentais para o desenvolvimento de qualquer sociedade.
As reflexões e polêmicas que Bastiat fez sobre o Estado podem ser, em vários aspectos,
consideradas atuais.
A partir de agora, pode-se levantar algumas polêmicas: O Estado brasileiro pode ser
considerado o Estado opressor criticado por Bastiat? Ou pode ser considerado o Estado das
classes dominantes retratado por Costa?
Talvez neste momento deva ser feito uma relação entre Estado e Establishment. Este
último possui várias definições. Mas a que se inclina esta breve exposição, passa pela seguinte
análise: Establishment são oligarquias políticas e econômicas mundiais, nacionais, estaduais e
municipais, que atuam desde o mercado global até o município, em um jogo geopolítico
difícil de ser compreendido, mas que precisa ser cada vez mais analisado sob pena de
prejudicar todo um processo a caminho de uma sociedade democrática (ou
pseudodemocrática) outrora conquistado, e importante para o amadurecimento político do
cidadão.
A partir do momento que o cidadão perde sua autonomia, qualquer individualidade cai
por terra pois viver-se-ia para um grupo, sem cara e nem coração. E talvez isto possa ser
considerado um caos. Esta sociedade do “caos” está consolidada se levar em consideração que
todas as antigas instituições como a Igreja, a Família, Escola, Instituições Jurídicas, que foram
criticadas por Foucault, na prática, ainda carregavam alguns princípios humanos importantes
que foram destruídos pela atual sociedade global e pelas ideologias capitalistas e socialistas
que enriquecem os membros de suas cúpulas, e cujos objetivos se resumem em duas palavras:
dinheiro e poder. Que não se esqueça que foram medidas socialistas que salvaram o
capitalismo após a crise de 1929. A experiência histórica demonstra que capitalismo e
socialismo sempre se complementaram. Um sempre precisou do outro para retomar suas
forças. E as pessoas não perceberam que os dois sistemas possuem o mesmo objetivo:
subjugar nações. A ideia de liberdade, tanto defendida pela burguesia, como a da distribuição
de renda, defendida pelos socialistas, na prática, acabam enriquecendo líderes mundiais e os
grupos que os apoiam, em detrimento de uma população cada vez mais controlada.
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CONCLUSÕES
Observa-se atualmente um dos aspectos mais duros e realista dos ideais burgueses de
“igualdade, fraternidade e liberdade” outrora propagados pela Revolução Francesa de 1789.
Não existe igualdade porque as diferenças entre ricos e pobres aumentam a cada ano no
mundo. Também não existe fraternidade porque senão não haveria tanta pobreza no mundo
hoje: são milhões de pessoas que estão na miséria. Muito menos se respeita a liberdade,
porque liberdade em um mundo onde a mídia é comprada não tem como existir. Então é
importante refletir sobre a seguinte questão: O cidadão vive e trabalha em função de quem?
Talvez se viva para sustentar um Establishment: os donos do poder internacional, nacional,
estadual e municipal, que ora se unem, ora se afastam conforme suas conveniências. E no
Brasil, por que não existe mais estudos com o intuito de tentar desmistificar e explicar este
fenômeno? Daí resulta a relevância de haver mais pesquisas sobre o Establishment. O que é?
Como opera? Porque este esforço resultaria em uma maior compreensão sobre as forças
políticas, religiosas, econômicas e ideológicas que atuam constantemente sobre o cidadão
brasileiro, e porque não dizer o cidadão do mundo global. A globalização engendra forças
muito mais complexas que a mente humana possa imaginar. Daí a importância de colaborar
para os futuros debates sobre o Estado e o Establishment no Brasil atual.
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Inês Lacerda. Foucault, formação de saber, o poder disciplinar e o biopoder enquanto
noções revolucionárias. Ítaca: Revista de pós-graduação em filosofia IFCS-UFRJ. N 14. 2009.
Disponível em: http://revistaitaca.org/. Acesso em: 12 jun. 2010.
Frédéric Bastiat / [Editado por Alexandre Guasti, traduzido por Ronaldo Legey; ilustrações de
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