Marco Antonio da Silva Ramos
O ENSINO DA REGÊNCIA CORAL
Trabalho Apresentado como requisito
parcial para Concurso de habilitação à
Livre-docência junto à Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo
São Paulo 2003
A Susana Cecília Igayara, minha esposa, minha amiga, minha colaboradora, minha colega, minha interlocutora, minha musa, minha inspiração, meu amor. A Rafael Igayara da Silva Ramos, meu filho mais novo, presença forte em cada momento deste trabalho. Presença paciente, presença atuante, interlocutor interessante e questionador preciso.
Dedico este trabalho
In Memoriam:
Paulo da Silva Ramos Dorothy Athié da Silva Ramos, meus pais
Waldyr Igayara de Souza, meu sogro, meu querido IGA.
Klaus Dieter-Wolff, meu mestre
José Pedro Boéssio, meu amigo do coração aberto como a paisagem do Rio Grande do Sul, do diálogo permanente, da identidade sempre fortalecida pelas
muitas empreitadas em que nos lançamos, por um Brasil onde tudo tinha que ser feito.
E quanto nós fizemos juntos!
Marcos Leite da risada solta, dos arranjos lindos, das lições de carisma e confiança.
Todos se foram cedo demais.
Meus Agradecimentos a:
Susana Cecília Igayara, pois mais do que dedicar–lhe este trabalho, devo agradecer a
presença, a ajuda, a constância, a paciência. Tudo o que tenho feito em minha vida
profissional tem tido sempre sua presença, sua reflexão inteligente, forte e precisa.
Paulo Rubens Morais Costa, pelo enorme prazer de tê-lo como colaborador, pensando junto
comigo os rumos do Canto Coral; pela amizade.
Prof. Dr. José Eduardo Martins, incansável incentivador de todos nós, amigo dileto,
intérprete fantástico e referencial.
Prof. Dr. Edelton Gloeden, que não faz uma viagem ao exterior sem me trazer um livro que
provoque pensamentos novos, abertura de espírito e vontade de prosseguir. Livros como ele
mesmo.
Prof. Dr. José Luís de Aquino que, além de bom amigo, tem sido ótimo parceiro de
concertos para coro e órgão. Pelo prazer de fazer música do modo como temos podido fazer
Prof. Rogério Luís Morais Costa, sempre disposto ao diálogo e à criação;
Minhas orientandas Jane Borges e Adriana Francato, colaboradoras que fizeram os anos de
2001 e 2002, tão difíceis em minha vida, passarem mais rápido. Pela boa vontade, pela
amizade pela força.
Helio Perlman, que me socorreu na clássica crise de informática que ataca todas as teses em
fase final de acabamento.
Meus irmãos, Paulo Emílio e Marco Aurélio, pela suave confiança que tem impregnado
nossas vidas.
Cristiane Milene Calumbi, pela colaboração e por todos os motivos que estão bem claros no
interior de minha tese.
Mário Videira, por ter apostado no Projeto Comunicantus e ter realizado um trabalho tão
interessante para o seu Fim de Curso na USP.
Luciana Del Sole, secretária do Laboratório Coral. Pela eficiência, presença calma e
positiva. Todo o ambiente Coral do Departamento de Música agradece através de mim.
A todos meus orientandos de todos os tempos, partícipes que foram deste trabalho, ainda
que indireta e inconscientemente.
Do mesmo modo a todos meus coralistas de todos os tempos, personagens de minha vida
coral, de minhas reflexões, de meu aprendizado constante.
Meus alunos todos, pois, repetindo humildemente o que disse Arnold Schoenberg, este
livro, eu o aprendi com meus alunos.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
RESUMO
Os assuntos desta Tese são o Ensino da Regência Coral e a Análise
Interpretativa em um formato analít ico-sintético.
O primeiro capítulo parte de uma ampla discussão sobre o conceito de
Coral Escola e sua aplicação aos coros de perfil comunitário e aos coros de
estudantes de música. Defende a idéia de que para o aprendizado profundo da
Regência Coral é necessária a vivência de experiências artísticas significativas.
Analisa o processo de domínio da técnica de Regência pelo estudante à luz da
conexão entre o gestual do regente e os significados profundos da obra. Discute
o direcionamento de energia no ato da regência como um parâmetro para além
da técnica.
Em um segundo capítulo trata da postura artística do intérprete frente às
ferramentas teóricas, frente à História, a Musicologia e a Análise Musical. O foco
recai então sobre a Análise Interpretativa, trazendo para a discussão a questão
do Gesto Musical (diferente do Gesto Regencial) e introduz a problemática dos
conflitos internos da música, de sua identificação e de como eles geram o
conceito de Drama Estrutural da Música que o autor cria, explica e desenvolve.
Ao final está incluído um Referencial de Análise que é a reformulação e
ampliação de um trabalho do autor de 1989.
Todo o trabalho é permeado pela experiência de ensino e de regente do
autor, que recorre a depoimentos próprios e de alguns de seus alunos para
expor suas idéias sobre o ensino da regência coral.
Sumário INTRODUÇÃO - ...........................................................................................Pág 1 CAPÍTULO I -
Ensino e Arte da Regência e do Canto Coral na Universidade.....................Pág 5
CAPÍTULO 2 -
A Pergunta Certa: O Intérprete frente às disciplinas e ferramentas teóricas......Pág 38
Referencial de Análise de Obras Corais......................................................Pág 75 . CONCLUSÃO -............................................................................................Pág 97 BIBLIOGRAFIA - ......................................................................................Pág 102 ANEXOS - .................................................................................................pág 108
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
ABSTRACT
Teaching Choral Conducting and Performing Analysis through an analytic-
synthetic method are the subjects of this Thesis.
The first chapter starts with a wide discussion about the concept of
“Choral as a School” and its application on community choirs and music students
choirs. The author presents the idea that for a deep learning process of Choral
Conducting it is necessary to have significant artistic experiences. He analyses
the process of conducting technique mastery by the student at the point of view
of connection between the conductor’s gesture and the deep meanings of the
music. The work discusses energy management at conducting act as a
parameter beyond the technique.
In the second chapter the author deals with the artistic posture of the
performer faced with theoretical tools (History, Musicology and Musical Analysis).
It focuses on performing analysis, bringing to discussion the theme of Musical
Gesture (that differs from Conducting Gesture) and introduces the issues of
internal conflicts of music, its identification and how they generate the concept of
Structural Drama of Music, developed and explained by the author.
At the end it is included an Analysis Guide Reference that is an enlarged
version and new redaction of a 1989’s work.
The author’s experience on teaching and conducting go through the whole
work. He uses other texts by his own and also by some pupils to explain his
ideas about Choral Conducting teaching.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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Introdução
Reger um coro inclui muitas habilidades.
O exercício da regência pressupõe conhecimento na área de técnica
vocal, ouvido apurado para questões de afinação, timbre, precisão rítmica,
desenvoltura com questões analíticas e musicológicas, domínio do repertório e
das questões interpretativas de natureza estilística, muita cultura geral, literária e
artística. Além disto, na maioria dos casos, é necessário ter uma apurada
técnica de resolução de problemas, seja através de atividades educativas, seja
apenas sendo capaz de muita clareza para a identificação e criação de
estratégias para obtenção de resultados. Muitas vezes, em se tratando de
Regência Coral, são necessárias qualidades pessoais não exatamente
musicais, como certa capacidade de gerência de problemas entre pessoas, de
liderança de longo prazo associada a um certo carisma que pode ter inúmeras
faces ou mesmo a de ser o empresário do seu próprio grupo, entre outras que
poderão sempre surgir e se manifestar de acordo com circunstâncias
específicas.
Mas o cerne mesmo da regência está ligado, por um lado, a um conjunto
de atitudes técnicas que busca clareza e comunicabilidade no contato com os
músicos e coralistas e, por outro, a uma capacidade de estabelecer contato
emotivo direto através da utilização do corpo e da expressão facial. Da união
fluente e orgânica destes componentes, o que sempre se busca é fazer aquilo
que as palavras não conseguem: dizer música.
Um curso de Regência deve necessariamente lidar com todos esses
aspectos.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
2
O ensino de Regência, tal como o concebo, gira em torno de dois pontos
centrais e definidores de meu trabalho: a área técnica e o ensino da expressão
artística. Permeando tudo, o conceito de Coral-Escola e a crença na
necessidade da experiência artística como condição para o ensino da arte.
Abordo o ensino da técnica a partir do pressuposto de que é possível
aprender Regência Coral tendo na mesma sala alunos de níveis muito
diferentes, tanto no âmbito da graduação quanto em cursos livres ou de
extensão universitária. Os alunos mais novos trabalham conteúdos mais simples
e os mais adiantados vão se apropriando de conteúdos mais complexos. Desta
forma o aprendizado tende a se potencializar, na medida em que os mais novos
aprendem com a experiência dos mais velhos e os mais velhos sedimentam seu
aprendizado ao rever constantemente seus colegas mais novos resolvendo os
problemas iniciais.
Conhecer a técnica é fundamental. Organizo os conteúdos de forma
didática e clara. Parto da construção de uma postura física inicial bem
estruturada e consciente, apropriada ao exercício da regência dentro da Escola
que se mantém na USP desde os tempos de Klaus-Dieter Wolff. Uma rápida
discussão dessa estruturação encontra-se no primeiro Capítulo.
Dos alunos da graduação exige-se que de fato dominem o conjunto da
técnica em sua versão pura. Exige-se também que seus primeiros passos à
frente dos coros sejam muito bem trabalhados, respondendo aos ditames desta
mesma técnica de forma estrita. Posteriormente, aos poucos, faço com que vão
se soltando e criando seus próprios meios de utilização da técnica.
Trabalhando com alunos já graduados no Curso de Extensão
Universitária ou como professor convidado permito, no entanto, enorme
flexibilidade na aplicação da técnica no ato de reger. Mas faço questão de que
aprendam a técnica pura no decorrer das aulas. Depois vou mostrando o que,
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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daquilo que já sabiam fazer antes, pode ser melhorado utilizando os
fundamentos da escola de regência a que pertenço.
Não há grande coisa a dizer sobre o programa técnico dos Cursos, na
medida em que os tópicos abordados não diferem substancialmente do que
pode ser encontrado na bibliografia específica disponível. O que ocorre é que
todos esses itens estão interligados por uma coerência técnica que define uma
Escola enquanto tal. O trabalho técnico, neste sentido, é o que de fato viabiliza
um processo comunicativo universalizado pela prática e faz com que o trabalho
do regente se torne no mínimo correto e claro. Tudo o mais, tudo o que alimenta
o regente em seu processo de criação de uma concepção da obra a ser dirigida,
tudo o que vem de sua própria vivência enquanto profissional da área e
enquanto ser humano está no âmbito que chamamos mais atrás de Expressão
Artística.
Ensinar a expressão artística é sempre um enorme problema para o
professor e aprendê-la o grande problema do aluno. Mas, quando há a real
vontade de aprender e de ensinar, os processos de transformação pessoal que
o aprendizado da expressividade exige se tornam possíveis e em parte
facilitados.
Há um enorme preconceito cientificista que muitas vezes atrapalha esse
nível de ensino. A excessiva mistificação que o romantismo trouxe para o
ambiente artístico musical e que a mídia perpetuou durante o séc. XX, por um
lado, e os excessos positivistas que até hoje reinam no ambiente composicional
e musicológico, em muito operam como barreiras para a fluência do ensino da
interpretação.
Apropriar-se da cultura, dos estilos, destrinchar a obra em seus detalhes
mínimos, em suas intenções macro-formais, tentar entendê-la política, social e
historicamente, buscar detalhes de execução apoiados em pesquisa séria e
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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aprofundada. Como ensinar isto sem cair em um excesso cientificista, positivista
ou materialista?
Tomar contato com a atitude do artista frente à vida, abrir os olhos para
ver além e mais do que antes, aprender a sofrer as dores e alegrias que não são
as suas, falar de sentimentos, atuar como ator, dirigir como diretor, reger como
alguém que canaliza emoções, das mais primárias às mais elaboradas. Como
ensinar, como falar sobre isto em um mundo como o nosso sem se confundir
com a mistificação, a melosidade do final do romantismo, a total falta de
objetividade?
Na sala de aula falo e atuo sobre a expressão de cada um com coragem
pessoal para dizer e ouvir o que for necessário, mas sem jamais invadir a
individualidade de cada um. Trabalho sobre economia do gestual e sobre
acumulação e gerenciamento da energia da regência e do coro, temas que
desenvolvo no final do primeiro capítulo.
Mas como desenvolver a capacidade expressiva, o que querer de uma
obra? No Capítulo 2, abordando as questões relativas à análise interpretativa,
discuto a relação do intérprete com a História da Música, a Musicologia e a
Análise Musical, e depois exponho a minha maneira de identificar questões
pertinentes, gestos musicais, conflitos e o que chamei de Drama Estrutural da
Música. O objetivo central é uma costura entre Técnica, Análise e Intuição,
unidas no momento da interpretação.
Como parte deste mesmo capítulo, dedicado à posição do intérprete
frente às disciplinas e ferramentas teóricas, incluo a versão revista e
substancialmente aumentada do Referencial de Análise que desenvolvi em 1989
como parte de minha Dissertação de Mestrado. Associado ao conteúdo deste
capítulo sobre análise interpretativa ele ganha, a meu ver, seu correto lugar no
processo de análise e uma nova força na provocação do olhar do regente para o
interior da obra que se dedica a interpretar.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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Ensino e Arte da Regência e do Canto Coral
na Universidade
Conceito de Coro-Escola:
a experiência do Coral do Museu Lasar Segall
Trabalhando sobre a temática do canto coral, é necessário sempre
delimitar espaços, dada a extensão do conceito “coro”, a significativa
quantidade de termos que são utilizados com mais de um sentido e, é claro, a
necessidade de clareza do texto. Em minha dissertação de mestrado, ao me
perguntar ‘a que coro estava me referindo’, descrevi a necessidade de
delimitação dos termos da forma que se segue:
Cantar num coro pode ser uma atividade extremamente sedutora,
criativa, submissa, expansiva, alegre ou triste. Pode ser uma experiência
extremamente erudita, profana, sacra, popular ou eclética. Pode ser um
trabalho ou o arremedo dele. Pode ser uma experiência social. Pode ser
uma experiência unissonante, polifônica ou harmônica. Pode, enfim, ser uma
experiência que junte muitas dessas possibilidades.
No entanto, a experiências tão diversa chamamos sempre: coro,
coral, madrigal, conjunto vocal e outros tantos nomes que designam e têm
em comum um único traço: pessoas cantando juntas.
São coros escolares, institucionais, religiosos, de empresas,
profissionais (estes muito raros em nossa realidade sócio-econômica),
independentes, infantis, juvenis, adultos, de terceira idade, masculinos,
femininos, mistos, sindicais, político-partidários, comunitários, cada um com
seu repertório, mas sempre coro. E, embora histórica e socialmente se
possua a noção do que um coro é, conceituá-lo, defini-lo expressamente é
sempre muito difícil.
Poder-se-ia dizer que um coro é: um agrupamento de pessoas com
a finalidade de cantar juntas uma mesma música sob a direção de um
regente; um agrupamento de pessoas com a finalidade de cantar juntas uma
mesma música sob a direção de um regente para "levar o nome" de uma
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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determinada empresa, instituição, escola, etc.; um agrupamento de pessoas
com a finalidade de cantar juntas uma mesma música sob a direção de um
regente para "levar a palavra" de alguma igreja; um agrupamento de
pessoas com a finalidade de cantar juntas uma mesma música sob a direção
de um regente com a intenção de musicalizar adultos e crianças, levando
em conta seus potenciais criativos, emocionais, etc...; um agrupamento de
pessoas com a finalidade de cantar juntas uma mesma música com a
melhor técnica e performance musicais possíveis, seja o repertório que for,
dentro da visão mais aberta possível, sob a direção de um regente; outros,
sob a direção de um regente; qualquer das alternativas acima, sem a
direção de um regente.
Tais diferenças não são apenas formais, elas afetam
obrigatoriamente as necessidades estruturais do coro, além de seu
repertório, sua sonoridade, sua intenção estética.
É verdade que certos fatores se entrelaçarão, que qualidades de uns
comparecerão no trabalho dos outros. Mas as diferenças continuarão
existindo por definição.1
Aquela Dissertação estava totalmente voltada para a discussão sobre os
repertórios temáticos e a construção de programas de concerto, utilizando
como objeto laboratorial o Coral do Museu Lasar Segall, que eu dirigia à época.
Naquele momento, optei pela definição do perfil de um coro concreto,
para controlar variáveis estruturais e circunscrever a discussão a um estudo de
processos vivos na trajetória daquele grupo.
A partir desse estudo e das proposições feitas sobre a construção de
programas e utilização de repertórios temáticos pude desenvolver uma série de
reflexões sobre Canto Coral das quais me valho no presente trabalho.
Entre elas, retorno ao conceito de CORAL-ESCOLA, desenvolvido na
busca de um conjunto de princípios básicos e de uma atitude metodológica que
o definia dentro de uma visão ampla. A motivação para tal busca era a
necessidade (de resto subjacente a qualquer coro neste país) de conviver com
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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duas variáveis contraditórias: o constante aperfeiçoamento técnico, musical e
artístico do coro e o giro de cantores, a eterna renovação que descrevi naquela
mesma dissertação e que transcrevo abaixo:
No Brasil, a maioria dos corais tem um ciclo. Entendemos ciclo como
um processo onde um certo número de cantores se forma como grupo, fixa-
se junto a um determinado coral, desenvolve com o regente um certo
trabalho até um ponto apical e depois se rompe de forma brusca ou entra
gradualmente em decadência. Quando os coros não têm um ciclo,
costumam ter ciclos consecutivos. Poder-se-ia talvez dizer, porém, que
quem efetivamente tem um ciclo é o cantor, o coralista. Existe uma
verdadeira corrente migratória de coralistas que atravessa a vida dos coros.
Por que há esse giro de pessoas? Por que ele é tão grande? Por que ele se
faz sentir em nível nacional?
(...) O quadro e as queixas são sempre as mesmas: "estou sempre
recomeçando". E, empírica e aleatoriamente, cada um arrisca uma
explicação: os coros universitários acompanham o ciclo curricular, os coros
de escola de música têm "o rei na barriga", por isso, "não vão para frente";
os coros independentes tem falta de infra-estrutura; os coros de instituições
culturais precisam de números (per capita) para satisfazer a burocracia; os
coros escolares vivem enquanto dura a adolescência de um determinado
grupo de alunos; os infantis a infância; no caso dos coros de empresa os
regentes costumam se queixar da falta de apoio dos patrões em função de
uma visão "negocista" e "alienante" do trabalho do coro junto aos
empregados; os regentes sediados nas grandes cidades atribuem o ciclo à
enorme diversidade de atrações que as metrópoles oferecem; os regentes
sediados em cidades pequenas se queixam de um meio cultural estreito, os
regentes de coros de igreja atribuem o giro à pouca fé dos cantores, e assim
por diante.2
No Coral do Museu Lasar Segall, a solução foi incorporar o giro na
rotina de trabalho, refazendo a idéia de testes, criando critérios de saída e
ampliando a idéia de educação para todas as faces do trabalho, desde aulas no
1 Ramos (1989) pp 2 e 3. 2 Ramos (1989) pp 23 a 25.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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sentido mais formal até a estruturação dos ensaios e apresentações dentro de
uma perspectiva permanentemente educativa. Ainda do mestrado:
(...) O trabalho está construído de forma que o coralista possa ter
suas potencialidades desenvolvidas, seus conhecimentos musicais e dos
assuntos relacionados ao canto ampliados progressivamente, e uma
familiaridade cada vez maior com a linguagem musical. Esses pressupostos
permeiam todas as atividades, do vocalize ao ensaio conjunto, passando
pelos ensaios de naipe, pelos cursos, palestras e discussões cotidianas. E é
esta faceta que nos tem dado o apelido de “coro-escola”.3
(...) Outra preocupação(...) é ‘educar o público’. (...)
O que se procura é sensibilizar e alertar o público, dando a ele
subsídios para melhor aproximação com o conteúdo do programa
apresentado ao mesmo tempo em que se busca criar formas sempre novas
de envolvimento do público com o que se passa no palco.
E é neste sentido que procuramos utilizar todos os recursos de que
pudermos dispor, desde a colocação do coro no palco até o uso de recursos
de iluminação, de tradução e leitura de textos, ou mesmo de explicações
verbais dirigidas ao público.
O programa impresso, por sua vez, também tem sido trabalhado
como uma possibilidade de reforço e/ou complementação da apresentação
do coro, na medida em que ele é o guia através do qual se acompanha o
que se desenvolve no palco e, por características próprias, pode conter certo
tipo de informação que não cabe ser veiculada de outra forma. 4
A incorporação ampla deste novo conceito fica muito clara nos textos
publicados pelo Museu Lasar Segall, por ocasião de seu processo de avaliação
pública em 1992, três anos após minha defesa de mestrado, portanto. No texto
ali incluído, que se chama “Tempo Atual - estrutura e funcionamento”, de
autoria de Susana Cecília Igayara, que já trabalhava no Coral desde 1986,
pode-se ler sobre a forma de teste e ingresso de novos coralistas:
3 Ramos (1989) p38 4 Ramos (1989) p40
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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Quando ouvimos os candidatos a ingresso, analisamos as
potencialidades da voz de cada cantor, e não seu conhecimento musical;
analisamos sua capacidade de adaptação ao conjunto, e não sua
experiência vocal. Observamos a tessitura ideal de cada voz, seu volume,
brilho, ressonância, e só depois de alguns exercícios com esse candidato
dentro do coro é que podemos dizer se irá ou não permanecer no grupo, se
terá melhor condição de substituir o cantor que deixou o coro, por suas
características naturais de timbre.5
Foi assim que, ao contrário de tentar uniformizar os coralistas em um
determinado nível técnico e musical, o que se instalou ali foi uma forma de
trabalhar o coralista no nível de adiantamento em que se encontrava, e em
função disto, cada pessoa era acompanhada, encaminhada para cursos e
designada para cantar aquilo que de fato lhe era possível.
Foi criado um sistema de trabalho onde era possível manter uma
qualidade técnica que serviu de referência durante anos para o ambiente coral
brasileiro ao mesmo tempo em que cada coralista se sentia atendido,
respeitado e seu processo de aprendizagem era então extremamente
acelerado, realimentando assim a qualidade artística do trabalho em breve
espaço de tempo.
Outro subproduto do modus operandi do Coral do Museu Lasar Segall foi
que, retroalimentado pela qualidade artística e pelo respeito aludidos acima, o
giro deixou de ser tão intenso. Tínhamos ainda conseguido junto ao Museu um
grupo de estagiários bolsistas, que chamávamos de monitores, um para cada
naipe, que ajudavam nos ensaios de naipe e ao mesmo tempo aprendiam o
manejo estrutural, as técnicas de ensaio, participavam das reuniões de
planejamento, onde se discutia o dia a dia do coro e as estratégias de ensino
para todos e cada um dos coralistas. Esses estagiários, em geral, eram meus
alunos da graduação do Departamento de música da ECA-USP, mas também
tivemos ali estudantes da UNESP, das Faculdades de Arte Santa Marcelina e
5 Igayara (1992) p. 88
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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mesmo profissionais que vinham para se reciclar. Havíamos criado ali um
sistema equilibrado embora sujeito, obviamente, às variações de ânimo dos
diferentes governos (o Museu Lasar Segall era um órgão federal). Há mais
sobre todo esse momento, comentado em meu Memorial e também nos anexos
da presente tese (1967-1992 - Museu Lasar Segall - Histórico, Análises e
Perspectivas).
O que é importante separar de tudo o que está descrito acima é
precisamente o espírito, o conceito de CORAL ESCOLA, pensado como um
espaço onde formação e performance aconteçam indissoluvelmente
associadas; onde toda ação é educativa; onde a qualidade artística é objetivo
primeiro, mas é também objetivo educativo; onde as aulas não são um espaço
separado de aprendizado e treinamento musicais; onde ensaios são aulas;
onde apresentações são aulas; onde aulas se confundem em profundidade
com a atividade artística enquanto tal.
A preocupação artística ligada à ação educativa e trabalhando com o
dado de realidade do coralista médio (e não formando um grupo altamente
selecionado) foi sempre o que definiu o perfil do Coral do Museu Lasar Segall,
como expus no texto de 1992, em avaliação pública dos 25 anos do Museu:
Uma das características do trabalho no Coral do Museu Lasar Segall
foi sempre o de um certo giro na composição do grupo de freqüentadores.
Ele nunca foi um grupo fixo de fato. Como também trabalhamos com um
grupo construído a partir de uma enorme diversidade em termos
socioculturais, em termos etários, em termos de escolaridade e, sobretudo,
em termos de conhecimento musical, nossa opção por transformar o coro em
um coro-escola escapa à pura formulação ideológica e, de fato, lança-se à
tarefa de reciclar ou simplesmente iniciar na linguagem musical uma
pequena parte de um povo que desvaloriza sua arte e especificamente sua
música. O coro-escola surge, assim, como a forma concreta de permitir que,
apesar do giro de cantores e das péssimas condições culturais do meio, o
coro possa caminhar em direção a um critério de qualidade e evolução
permanentes. O aprendizado daquele que se vai se acumula naquele que
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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entrou mais recentemente e que ainda continuará, assim como se acumula
na equipe e nas estruturações pedagógica e formal do trabalho. A qualidade
sonora do coro, sua afinação, seu fraseado, seu volume, sua técnica vocal,
seu senso rítmico vão crescendo, apesar do giro. Importante assinalar: nós
temos desejado o giro. Ele mantém o grupo arejado, impede o fechamento
de grupos em "escolas", faz circular a informação, o pensamento e o
conhecimento aqui produzidos. Por outro lado, em função desse giro, a
acumulação se dá em forma espiral e não linear, apoiada principalmente,
como já dissemos, na ação educativa (em consonância, até aqui, com o
Museu em seu todo).6
O conceito de Coro-Escola na Graduação em Música: o Coral da
ECA como Coro-Laboratório e a criação do Laboratório Coral
Uma vez trazido para a Universidade, o conceito de Coro-Escola se
encontra com o conceito de Coro-Laboratório, que definia o Coral da ECA-USP
e então toda a discussão se amplia, em torno de ambos os trabalhos.
De fato, o Coral da ECA já vinha há muitos anos trabalhando dentro
desse conceito de Coral Laboratório. A idéia de um coro de alunos de música
regido por alunos de música sob a supervisão do professor já tinha suas raízes
no tempo em que Klaus Dieter-Wolff era o regente e o professor de Regência
Coral no Departamento de Música. Eu não vou comentar aqui o processo de
desenvolvimento do Coral da ECA, já bastante bem descrito no Memorial que
acompanha esta Tese. Mas o importante aqui é fixar a idéia de laboratório,
independentemente das diversas faces que o Coral da ECA foi tomando.
Desde que assumi as aulas de Regência Coral de maneira autônoma
(antes elas faziam parte de uma mesma disciplina, Regência, cujas notas eram
somadas e divididas com as aulas de Regência Orquestral) eu passei a agrupar
todos os alunos de regência de diversos níveis em uma só sala de aulas e um
só horário. Com isso passamos a ter mais um Laboratório à disposição, onde os
6 Museu Lasar Segall (1992) p 96
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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alunos de regência praticavam entre si antes de chegar ao Coral da ECA. No
entanto, foi exatamente pelo fato de termos dois Laboratórios trabalhando, mas
um número relativamente pequeno de alunos que de fato assumiam a profissão
de regentes corais que eu comecei a me perguntar o que estava acontecendo,
já que meus alunos deixavam a USP muito bem preparados, com percepção
sólida, reflexão aprofundada sobre a área, tendo regido obras de diferentes
patamares de dificuldade, bom nível de estudo de canto, sabendo trabalhar em
uma biblioteca, enfim, saíam bem formados. Por que não iam para a profissão?
Foi conversando em sala de aula com meus alunos que fui percebendo o
que ocorria: eles passavam o tempo todo do curso regendo um coro de
músicos, regendo obras complexas, que desafiavam sua percepção harmônica
e polifônica, sua performance rítmica e expressiva, seu domínio de aspectos às
vezes intrincados da História da Música, mas ao deixar a escola, eles se
encontravam com uma realidade onde muitos desses aspectos eram quase
inúteis, frente a uma situação em que a educação musical é negligenciada.
O Canto Coral, embora amado pela população e com grande mercado de
trabalho, é uma área com pouquíssimos coros profissionais. Meus alunos
estavam sendo preparados para serem bons regentes de coros de músicos,
mas não sabiam trabalhar em um coro de leigos. Era preciso ensiná-los a
trabalhar também em uma realidade mais dura, para que eles não se sentissem
frustrados e conseqüentemente desencorajados ao se lançar no mercado de
trabalho. E também prepará-los para transformar essa realidade.
Foi aqui que as idéias de Coral Escola e Coral Laboratório se juntaram e
deram início à estruturação e aos princípios que hoje constituem o Laboratório
Coral do Departamento de Música da ECA-USP, cuja estrutura passo a detalhar
em seguida, para melhor compreensão dos caminhos que tenho procurado
imprimir ao ensino da Regência Coral na USP.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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Estruturação de um Pensamento Pedagógico Universitário Amplo
O Laboratório Coral (LAC) está integralmente comprometido, nos dias de
hoje, com a idéia de que o verdadeiro conhecimento só se produz quando teoria
e prática andam juntas. É lógico que o conceito de teoria e prática podem variar
bastante. Mesmo nas áreas mais puramente teóricas, em música há sempre um
momento de aplicação, de contato com a partitura que empurra mais para lá ou
mais para cá os limites entre o fazer e o pensar.
O conjunto desta Tese está igualmente comprometido com a idéia de que
ensinar regência coral é promover uma imersão no meio, seja estudando,
regendo, cantando, ensinando, tocando, administrando, ou quantas mais
atividades paralelas o ambiente coral propicie e necessite.
As atribuições do LAC são: proporcionar aos estudantes de regência
coral, canto, composição, licenciatura em música, musicologia (mestrado)
oportunidades de estágio ou experimentação sobre situações eminentemente
práticas. Os alunos de regência encontram ali diversos níveis e formas de se
defrontar com a atividade coral, atuando, conforme sua possibilidade e
adiantamento, junto aos coros integrantes e associados ao LAC, levadas em
conta as necessidades, possibilidades e viabilidades destes mesmos coros. Os
estudantes de composição, igualmente, podem ali experimentar de forma prática
suas composições e arranjos corais, dentro das possibilidades dos coros
envolvidos. Os educadores podem exercitar-se dentro de uma ótica necessária
socialmente - a de que um coro pode ser visto como uma escola de música. Os
pesquisadores encontram ali meios de difusão de seus trabalhos, principalmente
no que diz respeito às novas pesquisas em musicologia brasileira. Os cantores
podem praticar no interior dos referidos coros, como coralistas ou solistas, de
acordo com seu desenvolvimento pessoal, bem como aprender a ensinar canto
através do coral (amplo e carente espaço do mercado de trabalho). Os alunos
de piano são chamados constantemente a acompanhar o coro e assessorar
momentos de leitura. Os estudantes de instrumentos de orquestra ou violão
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
14
aproveitam o sentido de respiração e cantabile que o ensaio do canto em
conjunto propicia (além de poderem atuar como instrumentistas e ampliar,
portanto, possibilidades de repertório).
Através do Laboratório Coral, tem-se procurado intensificar as atividades
corais no Departamento de Música da ECA-USP, promovendo, por exemplo,
cursos de curta duração com professores estrangeiros e brasileiros convidados.
Dentro das atividades regulares do LAC estão, no momento: o Coral da ECA-
USP, constituído em disciplina obrigatória para alunos da graduação em música
e optativa para outros cursos, coro formado por estudantes de música e
estudantes, professores e funcionários de outras unidades (com formação
musical prévia), onde os alunos de Regência Coral desenvolvem seus projetos
de trabalho; o Coral da Terceira Idade, regido por alunos igualmente inscritos
na disciplina Regência Coral, sempre supervisionados por mim; e o Coral-
Escola Comunicantus, que será descrito a seguir. Associado ao LAC está o
grupo independente Studio Coral – Vozes Femininas, que ensaia nas
dependências do Departamento de Música. Contando em seu quadro de
aproximadamente 16 cantoras com mestrandas e ex-alunas, por diversas vezes
apresentou-se em eventos do Departamento e serviu de Laboratório em
workshops.
O LAC implementou, a partir de maio de 2001, o Projeto Comunicantus,
aprovado e patrocinado pela Vitae que instalou um novo grupo: um Coro
Comunitário, que recebeu o nome de Coral - Escola Comunicantus, sem
exigência de experiência anterior, regido por alunos da graduação em atividade
de estágio. Implantou também um Curso de Extensão Universitária em
Regência Coral, voltado para reciclagem dos profissionais da área e, por
conseqüência, no aprimoramento da atividade coral.
Durante 20 anos (1977-1997) o Museu Lasar Segall manteve em São
Paulo um coro - escola que se caracterizou pelo fato de conseguir reconhecido
resultado artístico trabalhando com uma clientela absolutamente leiga. Toda a
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
15
ação se desenvolvia a partir de uma pequena equipe profissional e um pequeno
núcleo de estagiários que, dentro de uma proposta didático-pedagógica própria
recebia o público leigo e o capacitava, em breve tempo, como coralista eficiente,
público bem preparado e cidadão dono de sua própria voz.
O Projeto Comunicantus procurou aliar as ações didático-pedagógicas,
musicais e sociais que ali se desenvolveram às novas técnicas de ensino
universitário desenvolvidas no âmbito específico do LAC. Para tanto, envolveu
no processo de ensino profissionais que trabalharam no Coral do Museu Lasar
Segall, professores dos quadros do Depto. de Música da ECA-USP e
especialistas.
Para que se tenha idéia do impulso que o LAC representou para a área
coral no Departamento de Música, recorro a alguns números: ao final do ano de
2001, o LAC envolvia diretamente 160 pessoas, agrupava sete coros, que
ensaiavam no Departamento de Música (contando as duas classes de regência
e os coros associados), mais de 50 coros eram indiretamente atingidos, gerou
relatórios de estágio, um trabalho de conclusão de curso, três workshops e
foram realizadas mais de 20 apresentações corais no ano (dentro e fora da
Universidade).
Ao analisarmos cada uma das ações do Laboratório Coral poderemos
então verificar o quanto, assumido pela ECA-USP, o conceito de Coral Escola
desenvolvido no Museu Lasar Segall pode se alargar.
No Museu Lasar Segall, o papel do estagiário era bem definido. Havia um
plano de estágio oficializado, com a duração de 1 a 2 anos, prorrogáveis por
mais 1 ano. A carga horária era de 20 horas semanais, distribuídas em
atividades obrigatórias e facultativas.
Entre as obrigatórias estavam a participação nas reuniões semanais de
planejamento; a participação nos ensaios, assumindo o papel (não o cargo) de
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
16
ensaiador de naipe; a participação no processo de pesquisa e análise das obras
escolhidas; o papel de ponte entre, por um lado, a regência e o coralista e por
outro entre a técnica vocal e o coralista.
Pedia-se ainda uma participação efetiva na produção do dia a dia do coro
(infra-estrutura dos ensaios) e na produção dos eventos, concertos, cursos,
seminários.
Entre as atividades facultativas estavam a participação em grupos de
estudo, a realização de arranjos ou composições, a atuação como pianista
repetidor, a participação como solista, o maior engajamento nas atividades
didáticas e de pesquisa.
É importante notar que, de acordo com o plano de estágio, não estava
prevista uma atividade de regência, embora tenha ocorrido, com função auxiliar
ou substitutiva, em alguns casos. Todas as decisões referentes ao coro,
inclusive com relação às atividades a serem exercidas pelos estagiários, eram
tomadas pelos funcionários da Divisão de Música, de acordo com a hierarquia
do Museu.
Embora o Coral do Museu Lasar Segall incorporasse os monitores-
estagiários, estudantes de música que auxiliavam o trabalho da equipe
profissional enquanto aprendiam a realidade da profissão, no Coral Escola
Comunicantus essa idéia se radicalizou:
• Sendo um coro formado por leigos, um coro cujo perfil reproduz com
muita semelhança o tipo mais comum de coros existentes no país, o
estágio dos alunos da graduação em música (de seus diversos cursos) os
aproxima de fato da realidade da profissão;
• Ao ser regido, ensaiado (naipes e geral), preparado vocalmente,
acompanhado ao piano, musicalizado, ao ter seu repertório escolhido, os
ensaios planejados e avaliados por alunos da graduação dos diversos
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
17
cursos, houve uma transferência de responsabilidade que não havia no
Museu Lasar Segall, onde os estagiários nunca regiam o coro, embora
auxiliassem nos ensaios de naipe e muitas vezes acompanhassem o
grupo ao piano ou ao órgão;
• A Equipe de Professores Orientadores, que os supervisiona nas áreas de
Regência, Repertório, Educação Musical e Técnica Vocal raramente vai à
frente do grupo. Altamente qualificada nas áreas de especialidade, a
equipe assiste ensaios, reúne-se coletivamente com os estagiários, em
sessões de trabalho que misturam um clima de aula, discussão de
planejamento, processo de seleção e adequação das escolhas de
repertório, articulação do pensamento educativo, discussões de caso,
escolha dos caminhos na preparação vocal e, é lógico, a coordenação
geral de todas essas ações. A presença de uma equipe “out of stage” no
processo de preparação dos estagiários é, portanto, um diferencial
importante na formação desse novo pensamento sobre o coro escola;7
• Como pensamento educativo, portanto, o Coral Escola Comunicantus
está voltado tanto para o coralista (como já acontecia no Museu), quanto
para os alunos estagiários em suas múltiplas atribuições;
• Há uma constante preocupação de integração de conhecimentos
adquiridos pelos estudantes estagiários nas diferentes disciplinas da
graduação às ações e atividades desenvolvidas no interior do projeto;
• Como parte do processo os alunos definem, em equipe, o planejamento
dos ensaios (com horários determinados para cada atividade) e escrevem
uma avaliação dos resultados (nos naipes, no ensaio conjunto e nas
outras atividades como técnica vocal, educação musical e outras). Essas
avaliações são discutidas na reunião com os professores e podem ser
refeitas, seja por não terem descrito bem a atividade, seja por falta de
clareza do texto. A atividade coral, portanto, incorpora a reflexão escrita,
e ao mesmo tempo registra, num esforço sem dúvida incomum, toda a
evolução do trabalho.
7 Ver modelo de fichas de planejamento e avaliação nos anexos
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
18
• Os alunos assumem, também, as necessidades de produção do ensaio
(verificação das condições da sala, estado dos banheiros, provisão de
cópias, necessidade de equipamentos, devolução do material ao final do
ensaio, controle de presença, cronometragem das atividades).
• As aulas de Regência Coral, que todo estagiário deve estar cursando
obrigatoriamente, suprem as questões técnicas e interpretativas.
Digo que a idéia de Coral-Escola se radicalizou pela organização, pela
autonomia e pelas múltiplas oportunidades de aprendizado que são oferecidas,
sempre tendo em vista a importância dada ao processo educativo dos alunos
regentes e dos coralistas. Neste ponto, vale transcrever algumas conclusões do
aluno Mário Videira, integrante da primeira turma de alunos estagiários do Coral
Escola Comunicantus, cujo trabalho de conclusão de curso orientei. Tendo
escolhido como tema a atividade do Coral Escola Comunicantus, que cantou na
sua defesa sob sua regência e dos colegas, Mário resolveu concentrar-se, na
conclusão do trabalho, na importância e na viabilidade da educação musical de
adultos pelo canto coral, processo que ele vivenciou como aluno e como
regente, o que está muito bem caracterizado em seu depoimento:
A principal tarefa da Educação Musical é tornar a musicalidade e a
apreciação musicais acessíveis para todas as pessoas, e o canto coral é
sem dúvida um dos melhores meios para se atingir esse propósito.
Através de nossa experiência com o Coro Escola Comunicantus,
pudemos concluir que é perfeitamente viável e possível a educação
musical de adultos através do canto coral, desde que tenhamos
cuidados com alguns aspectos que foram tratados no presente trabalho,
tais como: planejamento e avaliação do ensaio adequados, abordagem
correta da técnica vocal (através da classificação das vozes,
aquecimento vocal antes de cada ensaio, atendimentos individuais, etc),
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
19
escolha de repertório adequado ao grupo, ensaios de naipes, inserção e
valorização dos aspectos educativos no dia-a-dia dos ensaios, criando
oportunidades de transferência de aprendizado entre os conceitos
aprendidos e as peças trabalhadas.
Além disso, um projeto educativo com esse perfil está perfeitamente de
acordo com as recomendações do Relatório da Comissão Internacional
sobre Educação para o Século XXI, da UNESCO, o qual critica a
concepção tradicional de aprendizagem apenas como aquisição de
conhecimento, e propõe a organização da educação em quatro
aprendizagens fundamentais, em quatro pilares que seriam, de algum
modo, para cada indivíduo, os pilares do conhecimento:
1) Aprender a conhecer (ou seja, adquirir os instrumentos de
compreensão);
2) Aprender a fazer (para poder agir sobre o meio envolvente);
3) Aprender a viver junto (a fim de participar e cooperar com os outros em
todas as atividades humanas);
4) Aprender a ser (via essencial que integra as precedentes).
O aprendizado musical através do canto coral contribui intensamente
para a concretização de tais objetivos:
1) Na medida em que a abordagem educativa em canto coral contribui para
que o aluno “aprenda a aprender”, não efetuando apenas um mero
“adestramento musical”, mas auxiliando o aluno a adquirir os
instrumentos para uma compreensão mais ampla do fenômeno musical;
2) Através do canto coral a pessoa pode desenvolver a sua musicalidade
através do “fazer” ativamente, adquirindo conhecimentos não apenas de
ordem técnica, como também de ordem interpretativa;
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
20
3) O “aprender a viver junto” é inerente à prática coral, na qual os objetivos,
para serem alcançados passam necessariamente por uma ação coletiva,
na qual o aluno aprende a ouvir o outro, a adequar-se a um ritmo
comum, a somar esforços...
Através do canto coletivo pode-se desenvolver a compreensão do outro
e a percepção das interdependências, realizando projetos comuns e
aprendendo a resolver conflitos, pautando-se no respeito pelos valores
do “pluralismo, da compreensão mútua e da paz”, tão mencionados no
referido Relatório.
Essa prática do viver junto, do viver COM, do “COM-viver”, influencia no
desenvolvimento individual de cada um dos membros do grupo, o que
nos leva ao quarto pilar: Aprender a SER, contribuindo para o
“desenvolvimento total da pessoa (espírito e corpo)”, sem deixar de lado
o desenvolvimento da inteligência, sensibilidade, sentido estético,
responsabilidade pessoal e espiritualidade.
Além de todos esses aspectos que, por si só, bastariam para justificar a
existência de um projeto de Coro-Escola, há também o papel social da
Universidade que se democratiza, que se torna mais cidadã ao abrir
suas portas a adultos interessados em “enriquecer seus conhecimentos,
ou satisfazer seu gosto de aprender em qualquer domínio da vida
cultural”. Plenamente de acordo com os princípios defendidos no
relatório, a Universidade, desta forma, “reencontra o sentido de sua
missão intelectual e social no seio da sociedade, como uma das
instituições que garantem os valores universais e do patrimônio cultural”.
(DELORS, Jacques – Educação: um tesouro a descobrir. Relatório
para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
21
Século XXI. 4 Ed., São Paulo: Cortez; Brasília: MEC: UNESCO, 2000.
pp. 24)8
De fato, ao desenharmos o projeto, eu e minha equipe não tínhamos
tomado contato com o referido relatório da UNESCO. No entanto, ao vê-lo,
trazido pelo caro aluno Mário Videira, percebemos todos que o contato entre
nossas propostas e aquelas traçadas pelo Relatório para a Educação no Séc.
XXI estavam em total acordo, ajudando a remontar um sentido para a atuação
da Universidade enquanto tal, circunscrito à nossa área, é verdade, mas em
total harmonia quanto a objetivos, práticas e métodos.
Dentro do mesmo processo de ampliação do Conceito de Coral-Escola,
analisando o Coral da ECA-USP, podemos perceber que embora contando com
formato e objetivos próprios, e voltado para um público diferente (tanto interno
quanto externo), ele é um coro onde, aliado à prática artística, se dá um
processo de aprendizado formal e estruturado, é um coro que casa as
atividades artísticas e de ensino de maneira direta, mercê de sua condição
mista de coro e disciplina da graduação. Observemos um pouco seus
objetivos:
• Por se tratar de um coro formado exclusivamente por músicos, mas não
exclusivamente por cantores, o aprendizado da técnica vocal, ainda que
básica, é uma necessidade fundamental;
• Músicos em processo de formação profissional precisam ampliar seu
repertório;
• Buscar uma nível de qualidade quanto à performance que satisfaça um
grupo de músicos, principalmente no que toca à afinação e ao fraseado;
• Ampliar os níveis de percepção dos alunos, nos diferentes
adiantamentos, principalmente no que concerne à eficiência na leitura
musical e à discriminação das sonoridades, qualidades, problemas e
8 Videira (2001)
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
22
soluções na área específica da voz, especialmente da voz em grupo,
com as importantes conseqüências para o ouvido de cada aluno que
pode vir do desenvolvimento de uma percepção individualizada intra-
naipes;
Assim, mesmo trabalhando exclusivamente no âmbito dos músicos, o
Coral da ECA-USP atua como um Coro Escola, visando principalmente à
construção de regentes que sejam aptos para a direção de coros formados por
músicos e cantores com a mesma facilidade com que o Coral Escola
Comunicantus os habilita a trabalhar coros escolares e comunitários.
Arte na Escola
Isto nos traz a uma nova etapa de reflexão, que é sobre a convivência
entre Ensino e Arte no âmbito da Universidade. Não se trata de entrar nas
discussões, hoje já bastante avançadas, sobre a presença da Arte na atividade
acadêmica, que animou as reuniões de pesquisadores universitários,
especialmente no final dos anos 90, quando se questionava o verdadeiro
sentido da desgastada palavra ‘pesquisa’; quando se discutia se Arte era
atividade intelectual suficientemente científica para conviver com os padrões de
avaliação universitários; quando se discutia se compor, reger, interpretar era
‘geração de conhecimento novo’, e tantas outras questões menores. Hoje o que
se discute é como avaliar a produção artística e, portanto, o modo de ação do
artista está em franco processo de aceitação pela Universidade. Isto é bom
porque, finalmente, podemos nos concentrar nas questões maiores, nas
questões realmente pertinentes que a Arte pode trazer por força de seu próprio
modo de existir, aos modos de ação da ciência e da crítica.
Os exemplos do Coral da ECA-USP e do Madrigal do Departamento de
Música da ECA-USP, quando se lançam a obras de fôlego e se esmeram ao
máximo na produção de um resultado de bom ou ótimo nível artístico, mostram
que aprender Arte é fazer Arte, que fazer Arte ensina Arte e que ao buscar, de
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
23
forma educacionalmente assistida, o domínio técnico e artístico das condições
de performance de uma obra são parte indissociáveis do processo de
educação. Ensina-se fazendo, faz-se ensinando. 9
Estou afirmando que é possível fazer e ensinar Arte em um único
movimento. Quando fizemos ‘O Coração do Homem’ com o Madrigal do
Departamento de Música da ECA-USP, em 1985, contávamos com a
experiência dos regentes, que éramos Celso Delneri e eu, da preparadora
vocal, Ana Yara Campos e do Cenógrafo, Cristiano Amaral. Na outra ponta, um
núcleo de estudantes de música, extremamente envolvido na busca da
realização de um resultado MUSICAL e CÊNICO de grande nível e um Diretor
de cena iniciante, estudante do Departamento de Teatro da ECA-USP, um
visionário artista-estudante, o jovem chamado Gabriel Vilella. Muitos daqueles
estudantes se tornaram artistas importantes - e eu não quero nem posso
chamar os méritos de seus êxitos para o trabalho do Madrigal - mas, muitos
anos depois, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, Gabriel Vilella,
que havia dirigido uma linda montagem de Gianni Schicchi, após receber meus
cumprimentos, comentou que tudo começara no ‘Coração do Homem”, sua
primeira e marcante experiência com o campo da Música.
No campo específico da regência, há mais um pequeno item a ser
referido ainda em sua interseção com a educação. Quando se é um professor
que aprendeu a dar aulas claras, organizadas; quando se é um professor que
aprendeu a conseguir disciplina e concentração através do planejamento e da
instauração de um clima de respeito mútuo; quando se é um professor que
aprendeu que só se pode ensinar aquilo que se conhece; e quando se é ao
mesmo tempo um regente; toda a experiência de sala de aula se torna
importante aliada na condução dos ensaios, na construção de um clima menos
tenso entre os músicos e entre eles e o regente, na objetividade e na economia
de tempo dos ensaios. Desde que, é lógico, suas atuações como regente e
professor estejam plenamente à disposição da Arte.
9 Ver Memorial (pp 45 a 48).
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
24
O aprendizado da regência
Há uma enorme distância entre o processo de iniciação à regência e o
momento em que se dá o domínio técnico e artístico que permite exercer a
regência de fato.
No início, além dos conhecimentos prévios de harmonia, contraponto,
história da música, análise musical, piano, canto e uma percepção bem
desenvolvida tanto harmônica quanto polifonicamente, é necessário aprender o
gestual específico, em busca das habilidades físicas que permitam a instalação
de um processo de comunicação não verbal ativo e eficiente. Igualmente é
preciso, por decorrência natural, lançar-se ao processo de integração de todo
esse conhecimento, o que leva muito tempo, muito trabalho, muito estudo e
muito exercício físico: ‘sangue, suor e lágrimas’, é tudo que a música promete
ao músico, sempre.
Não pretendo incluir neste trabalho considerações mais profundas
sobre os esquemas de regência, sobre exercícios que levem a dominá-los
fisicamente e a memorizá-los. Mesmo porque a melhor forma de aprendizado
desta área é mesmo ver e ser visto por alguém experiente e que domine
amplamente a técnica e os recursos pertinentes, uma vez que se trata de criar
uma plataforma de compreensão mútua universal, um sistema de gestos que
possa ser entendido em qualquer lugar do mundo. Tais conhecimentos têm sido
trabalhados por mim nas aulas de regência coral da graduação, e dezenas de
regentes deram ali os primeiros passos. Há sim muito que ensinar nesta etapa,
que eu costumo chamar, brincando, da fase de "aprendiz de feiticeiro".
A forma e os processos de iniciação variam, de escola para escola, de
professor para professor e muitas vezes de aluno para aluno. Discuto, a seguir,
o encadeamento que escolhi para meu processo de ensino da regência coral
(focando aqui, explicitamente, a Técnica de Regência). Antes, porém, é
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
25
necessário ressaltar as especificidades técnicas da Regência Coral, que podem
ser resumidas em alguns pontos:
1. O regente coral não usa batuta, que é um amplificador do gesto. Sem
amplificação, o gesto que é grande frente a uma orquestra, por exemplo,
pode ficar acanhado frente a um coro;
2. Por outro lado, os contrastes dinâmicos exuberantes que podem ser
obtidos na massa orquestral, sua diversidade timbrística, sua
capacidade de produzir grandes intensidades sonoras ao mesmo tempo
em que pode chegar a pianíssimos quase inaudíveis, estão bem longe
das distâncias de intensidade que um coro, movido exclusivamente pelo
instrumento VOZ, consegue produzir. Há, portanto, a necessidade de
que a regência se mostre adequada a este dado de realidade. Certos
arroubos, que funcionam muito bem e adequadamente à frente da
orquestra, podem parecer ridículos à frente do coro;
3. Normalmente o coro está colocado acima do regente. Este dado, aliado
à necessidade óbvia de que o gesto do regente seja visto a qualquer
tempo por todos os coralistas, aponta na direção de um plano de
regência um pouco mais alto. Na orquestra o regente está sobre o
pódio, a maior parte da orquestra está abaixo dele. A favor deste
argumento, observando regentes dirigindo obras coral-sinfônicas, vemos
que, ao se dirigir ao coro, normalmente colocado em estrados atrás da
orquestra, o regente traz seu gesto mais acima. É natural;
4. Existem procedimentos muito utilizados na regência coral, como forma de
manter a unidade da pronúncia, a clara articulação do texto e a unidade
rítmica, tais como a silabação pelo regente de certos trechos do texto.
Considerando os tópicos acima como pressupostos, a construção
técnica do regente coral é conseguida a partir dos seguintes estágios de
desenvolvimento:
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
26
• A primeira necessidade do regente coral é encontrar para si uma
Postura Física apropriada. Seja em defesa da preservação de
sua própria saúde, evitando futuros problemas com as temíveis
LER - Lesões por Esforço Repetitivo; seja em busca de um
exemplo postural para o coro - fator determinante na produção
vocal; seja em busca de melhor visibilidade para seu gestual –
fator indispensável na comunicação entre coro e regente; seja na
garantia de organicidade ao conjunto de sua movimentação – fator
de integração das muitas vertentes físicas, teóricas e expressivas
presentes na performance do regente enquanto tal.
• Nem sempre o estudante traz consigo um bom domínio do Pulso.
Para reger, será sempre necessário memorizar e dominar as
indicações metronômicas mais utilizadas; criar uma real conexão
entre um pulso interior e sua manifestação externa; ser capaz de
identificar mutações no pulso de outros músicos.
• O aprendizado dos esquemas rítmicos da regência, que deve
ficar totalmente automatizado fisicamente, está acoplado a dois
princípios básicos, sendo um ligado à memória geográfica, isto é,
a localização dos tempos do compasso no espaço-tempo descrito
pelo gestual do regente e sendo o outro o da adequação do
modelo escolhido à obra regida (Ex: em obras escritas em
compassos de cinco tempos, o esquema poderá contemplar uma
subdivisão 2+3 ou 3+2 ou 4+1 ou 1+4 ou 2+2+1 ou 1+2+2 ou
2+1+2, conforme as acentuações sugeridas ou escolhidas, em
função da própria escrita do compositor, de modificações que o
regente queira instalar ou sugestões da acentuação do texto
cantado), mercê da análise musical que o regente realizou
previamente. A regência de obras escritas com sucessivas
mudanças de compasso incorporam à referida segurança
“geográfica” dos tempos a prontidão e o reflexo antecipado , dado
que não se pode, nesses casos, deixar que o gesto se ate ao
momento presente da música, já que a antecipação mental dos
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
27
compassos vindouros se torna algo mais do que uma figura de
linguagem, colocando o regente em uma linha inexorável e
permanente de risco e superposição perceptiva, uma perigosa
linha de convivência entre presente e futuro.
• Como corolário do aprendizado dos esquemas de regência dos
compassos estará sempre o aprendizado dos modos de direção
de subdivisões dos tempos do compasso; dos modos de direção
de entradas, anacrúsicas ou téticas e, finalmente, dos modos de
realizar cortes, acentos e fermatas, também nos diversos
tempos do compasso. Em tudo aqui agrupado há ainda muito do
que chamei acima de aprendizado ‘geográfico’, na medida em que
expresso quanto, quando, onde e por meio de quem os eventos
devem acontecer.
• Já o estudo da regência das articulações musicais e/ou aquelas
pertencentes ao texto cantado, será parte do estudo do como, se
pensarmos na produção sonora enquanto tal. É muito mais um
aprendizado da mimesis, do gesto que busca um efeito sonoro,
uma forma de cantar, de atacar a nota, produzir determinado
timbre. Aqui as variações do repertório de recursos gestuais são
potencialmente infinitas, como as cores no espectro luminoso ou
como as variações timbrísticas no espectro sonoro. Existem as
convenções, as formas de cada escola de regência propor os
gestos para determinadas sonoridades, mas exatamente por se
tratar do reino do como, sempre se poderá inventar um modo
diferente de dizer as coisas. Estamos deixando o reino ‘geográfico’
para ingressar no reino da imaginação.
É claro que em qualquer gesto externado pelo regente estará presente
uma intenção interpretativa. E, como veremos no capítulo que se segue a este,
intitulado ‘A Pergunta Certa’, no qual faço uma reflexão sobre análise
interpretativa, o regente buscará sempre identificar as direcionalidades
composicionais presentes na obra e as intenções menos evidentes do
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
28
compositor, a fim de construir sua concepção. Depois procurará os caminhos
para fazer com que tais direcionalidades e intencionalidades musicais sejam
expressas por seu gesto, de forma a atingir os coralistas e, por conseqüência, o
seu público. Voltando aos passos de meu processo de ensino:
• O aprendizado da condução das transformações mais direcionais,
daquelas indicações que se dão no tempo com objetivo definido,
como acellerandos e rallentandos, crescendos e
decrescendos, das mudanças paulatinas de timbres ou
formas de ataque, articulações, etc., é outro importante passo
na construção desta conexão entre aquilo que apenas se indica e
aquilo que de fato se quer em função de uma concepção, uma
interpretação. Isto porque aqui, de fato, há um acoplamento das
direções e intenções da obra ao ato de DIRIGIR do regente e
também ao ato de conferir intenções em função de sua condição
de intérprete.
• Quanto mais complexa a obra; quanto mais polifônica; quanto
mais as regências do tempo e das intenções vão ficando
claramente independentes ou interdependentes embora
separadas; então maior será a necessidade de independência
dos braços, mãos, dedos, olhos, rosto, corpo, boca, respiração e
quantos outros recursos tenhamos em nossos corpos para
conduzir o coro. É pela independência que podemos ver o quanto
os limites da técnica já foram vencidos pelo estudante. Mas, sem
mistificar nada, o que traz a independência é o trabalho diário, a
repetição de exercícios, o enfrentamento de obras que de fato
exijam dedicação e trabalho solitário, frente à partitura e frente ao
espelho.
Em determinado estágio do trabalho do estudante todos os itens que
discuti acima vão avançando concomitantemente, um reforçando o outro, um
completando o outro, um desequilibrando o outro e o crescimento vai
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
29
acontecendo de modo mais igual, mais lento, no entanto mais profundo. O
novo fator de desequilíbrio que se impõe como foco e prioridade será, então, o
aprofundamento das possibilidades pessoais de operar com a música no
tempo:
• O estudo da Regência Antecipada amplia sobremaneira a
capacidade do músico de se relacionar com o tempo. Além de se
antecipar quanto ao que deve ser regido, unificando o pulso,
criando as direções, anunciando entradas, etc., ele ainda está
uma fração de tempo à frente do grupo, de maneira que tudo o
que ele indica aqui, agora será executado lá, depois. Assim,
além da superposição dos diversos elementos musicais que a
obra propõe, cria-se uma nova superposição dos mesmos
elementos através dos inúmeros flash-forward que sua memória
vai acumulando e ultrapassando.
• Quando proponho a meus alunos a preparação de obras corais
de longa duração, a questão do tempo coloca-se de maneira
diversa: Primeiro porque deles será exigida uma outra condição
de memória e preparo físico. Segundo porque se tornará
necessário ter um pensamento sobre todos e sobre cada um dos
momentos e movimentos da obra, ao mesmo tempo em que se
tem em mente a visão in totum da obra. Mais uma vez os
pensamentos se superpõem e se entrelaçam, muitas vezes em
relações musicalmente conflituosas, com dificuldades de
compreensão e de execução se interpondo. O capítulo ‘A
Pergunta Certa' discutirá bastante esta questão, trazendo alguns
subsídios para sua compreensão e discussão.
• Finalmente (não após, mas sempre), no processo de estudo da
regência coral é importante aprender a preparar o coro para a
regência de outro e a atuar como assistente, pois estas duas
atividades fazem parte da vida profissional.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
30
Já reforcei sobremaneira a idéia de que, para dominar a regência,
estuda-se a técnica, mas para dominar o métier coral, é necessária uma
imersão em todas as atividades correlatas que compõem o cotidiano coral. Não
voltarei a isto. Na verdade, todo regente, no processo de permanente formação
a que se lança até o último dia de sua carreira, se de fato estiver ligado
profundamente à sua arte, deverá manter a chama do estudo e da criatividade
sempre acesas, buscando o aperfeiçoamento de sua performance, o
alongamento de seu perfil cultural, manter sua capacidade perceptiva em
constante crescimento, sua comunicação gestual profundamente sintonizada
com o fluxo do discurso da obra e a possibilidade de canalização de sua
energia corporal para o grupo em sua performance. Manter um processo de
constante reciclagem e constante recriação do regente que ele já é.
À medida que o tempo vai correndo e o regente vai amadurecendo, o
foco do aprendizado vai se deslocando gradualmente para o campo da
expressão e para a busca de um domínio cada vez maior da energia requerida
e despendida pelo regente em conexão com seu grupo, para o campo da
conexão profunda entre concepção e performance, entre pensamento e gesto.
Existe uma economia do gesto. Não no sentido popular de economia
como poupança, como uma forma de gastar menos. Falo de uma relação entre
a energia despendida, a energia necessária para conseguir o melhor resultado
do grupo regido, e a quantidade/qualidade do som produzido. Estou
trabalhando sobre um princípio facilmente perceptível a quantos fazem da
regência um meio de expressão profunda e sincera, seu veículo de contato com
a arte e com os conflitos do ser humano.
Para dar seguimento a esta idéia farei uso de um texto de uma ex-aluna,
deficiente visual total, que foi ao mesmo tempo uma das melhores estudantes
que tive em minha carreira e a aluna que mais coisas me ensinou sobre o
aprendizado da regência coral: Cristiane Calumbi. Trata-se do Capítulo VI da
monografia que escreveu como seu Trabalho de Conclusão de Curso, para a
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realização do qual eu tive a alegria de ser seu orientador, depois de ter sido seu
professor de regência. Após horas de dúvidas e tentativas de escolher trechos
do capítulo que me ajudassem a dizer o que estou querendo dizer; após ler e
reler o texto inúmeras vezes; após ir me sentindo cada vez mais incapacitado
para a tarefa de mutilar aquele discurso tão claro, fluente e sincero; após ter
retomado o diálogo com Cristiane sobre os pontos principais do capítulo, resolvi
transcrevê-lo por inteiro:
MINHA INICIAÇÃO À REGÊNCIA
Cristiane Milene Calumbi
Quando iniciei meus estudos na Universidade, me deparei com
muitas novidades e desafios. Essas experiências contribuíram para meu
desenvolvimento como estudante de música, direcionando-me quanto a
meus objetivos profissionais.
A primeira disciplina com a qual me deparei, foi o coral. Antes de
ingressar na Universidade, não havia participado de nenhum coral. Era
uma surpresa muito grande para mim, pois se tratava de um coral com
um número expressivo de participantes, (aproximadamente 100
pessoas), sendo 90% delas estudantes de música. Por esse motivo o
coro era formado por pessoas que possuíam experiência em leitura
musical. Assim sendo, fui obrigada a desenvolver minha leitura rítmica e
melódica.
Durante os quatro anos que permaneci no coral da ECA, as
experiências práticas e teóricas por mim vivenciadas, foram
imensuráveis.
Devido ao elevado grau de conhecimento musical da maior parte dos
coralistas, são freqüentes as leituras à primeira vista, porém, sinto até
hoje dificuldade em realizar esse tipo de leitura.
Para realizar a leitura de um texto o vidente com experiência, é
capaz de ler em média, 280 palavras por minuto, enquanto que um
deficiente visual total, lendo o mesmo texto em Braille, chega somente a
114 palavras.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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Quanto à leitura musical em Braille, não consegui encontrar nenhum
estudo a esse respeito, mas posso afirmar que podem ocorrer variações,
de acordo com a quantidade de informações existentes no trecho
musical.
Um estudante de música vidente pode localizar um determinado
compasso na partitura com maior rapidez, se comparado a um deficiente
visual, pois a leitura Braille não nos permite ter uma visão geral do texto
ou trecho musical, já que não é possível visualizar o compasso ou nota
seguinte, diminuindo, conseqüentemente, nossa agilidade.
Obviamente, devido ao meu crescimento como coralista, esse
processo se tornou menos árduo, respeitando-se as limitações que
sempre hão de existir.
A partir do meu terceiro ano na faculdade de música, passei a ter
aula de Regência Coral. Neste momento, comecei a observar melhor o
conjunto do coral, não me prendendo apenas ao meu naipe.
Sem dúvida, esse foi o maior de todos os desafios durante o período da
minha graduação.
Desde o primeiro dia de aula, quando participei do coral, percebi
que a regência não se limitava a um simples contato visual entre o
regente e os músicos ou coralistas, mas era algo que transmitia uma
energia muito grande, indo além dos gestos. Notei também que não era
necessário alguém me avisar o momento exato de iniciar uma peça, ou
as intenções do regente quanto à dinâmica ou ao andamento.
O coral da ECA é um coro laboratório, no qual os alunos de
regência têm a oportunidade de experimentar a regência. Por essa
razão, não há um regente fixo. Dessa maneira tive que me adaptar a
regência de cada um, com suas especificidades. A partir do momento
que fui adquirindo experiência como coralista, era possível identificar as
particularidades dos regentes. Era possível, por exemplo, perceber se
um colega estava inseguro, ou se conseguia expressar-se claramente.
As descobertas foram ainda mais surpreendentes quando
comecei a reger o coro.
Um deficiente visual total é capaz de ter noções sobre o espaço
físico em que se encontra, mas, para isso, a audição é um sentido
essencial, pois através dos sons, pode perceber sua localização e a
dimensão do espaço. Foi esse parâmetro que busquei para tornar a
regência algo menos abstrato.
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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Primeiramente, tive que encontrar uma forma de me posicionar
diante do coro e, ao mesmo tempo, saber a distribuição dos seus
integrantes. Dependendo do local, a disposição dos coralistas
modificava-se. Por esse motivo, uma das primeiras necessidades que
senti ao começar a reger era saber o posicionamento do coro, no espaço
físico em que nos encontrávamos, assim como, situar-me quanto à
localização das extremidades e centro do mesmo. Para isso,
convencionamos na sala de regência que, a melhor maneira de
conseguir esse resultado, seria que os coralistas das duas extremidades
e do centro, estalassem os dedos (ou emitissem qualquer outro som sutil
que me servisse de referência).
Mesmo não dispondo de referências visuais, aprendi a me
comunicar com os coralistas através da linguagem gestual.
A princípio, a idéia parecia longe da minha realidade e
possibilidades, pelo fato de não possuir a visão desde nascença, não
tinha referencias visuais anteriores. Tive receio quanto aos gestos que
deveria fazer. Não sabia se os movimentos estavam corretos ou se os
coralistas me compreendiam. Mas fui desenvolvendo um trabalho junto
com professores e colegas aprendendo a marcar as pulsações e
expressar as dinâmicas e intenções musicais.
No início do trabalho, aprendi os primeiros gestos sentindo os
movimentos que eles faziam, os quais eram trabalhados diretamente
comigo. Para melhor assimilar esses movimentos, houve a necessidade
de me basear em alguns padrões referenciais mais concretos, assim
pude ter noção do tamanho dos gestos utilizados para marcar os
tempos. Durante as aulas, íamos descobrindo todos os detalhes que
envolvem a prática da regência, bem como criando maneiras que
permitissem minha assimilação.
Logo que aprendi a desenhar as pulsações, houve a
preocupação com a expressividade dos gestos. Nesse momento,
percebemos que todos os membros do corpo são fundamentais. Em
várias aulas houve a associação da regência com a dança, tendo como
principal objetivo desenvolver minha espacialidade, proporcionando
maior liberdade dos gestos e tornando mais claras as intenções
musicais.
Após um ano do início de meus estudos, me surpreendo com a
unidade que já existe entre o coro e a minha regência. Além disso,
Marco Antonio da Silva Ramos – O Ensino da Regência Coral
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consegui obter resultados de interpretação, sem que precisassem me
ensinar todos os gestos.
A regência exige uma grande porcentagem de comunicação
visual entre o maestro e os executantes. Através do rosto, pode-se obter
toda expressividade necessária para a audição de uma obra musical.
Portanto, sinto a necessidade de aprender e utilizar desse tipo de
linguagem, mesmo não possuindo referenciais que me sirvam de base,
portanto, considero ser este mais um obstáculo a ser transposto ao
longo de minha carreira, pois exigirá um grande esforço de minha parte,
assim como daqueles que me auxiliarão nesta tarefa. Porém, muitos
progressos foram conseguidos em apenas um ano, levando-se em
consideração o planejamento das aulas, sobre o qual foi necessário
adotar uma didática mais específica que pudesse atender minhas
individualidades.
É importante destacar que, peças para orquestra ou músicas
com muita polifonia são mais difíceis de serem realizadas por um
regente com deficiência visual, pois no momento em que estão regendo,
não podem utilizar a partitura e, por esse motivo, tudo deve ser
decorado.
No meu ponto de vista, os regentes de corais compostos por
deficientes visuais deveriam regê-los de forma convencional, pois apesar
de não haver um contato visual entre ele e os coralistas, é importante
que os gestos sejam mantidos em virtude de serem os grandes
responsáveis em transmitir a energia do regente ao coro e
principalmente ao público.
Da mesma forma que tive de me adaptar à regência, na minha
profissão terei que passar por situações semelhantes, pois ao lecionar
música, transmitirei meus conhecimentos a pessoas que não possuem
deficiência visual e não utilizarão a musicografia Braille.
Estou convicta de que essa experiência foi bastante proveitosa e
de extrema importância para a minha formação, pois adquiri maior
confiança e segurança para enfrentar qualquer desafio.10
Além de toda a beleza do texto de Cristiane e seu comovente
depoimento, utilizo este relato de aluna para trazer o foco da discussão de volta
10 Calumbi (2001)
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à questão da energia do gesto. Nós estamos afeitos geralmente à idéia de que
é a comunicação visual do gesto que produz o fenômeno da regência. E em
grande parte isto é verdade. No entanto, ela relata uma comunicação não
verbal e não gestual através de uma energia provinda de um gesto, que tem
um desenho, uma forma visual que inclusive costuma ser transcrita por meio do
desenho.
Esta foi a melhor e mais importante lição de Cristiane, não só para mim
como para aqueles estudantes que tiveram a oportunidade fantástica de ser
seus colegas e acompanhar seu processo de aprendizado, sua passagem pela
assimilação dos gestos, o processo emocionante e artisticamente importante de
serem depois regidos por ela.
Tê-la no coro foi para mim uma experiência de concentração regencial,
comunicação direta e uma série de avanços técnicos em minha própria forma
de reger. Para seus colegas de classe que tiveram a oportunidade de regê-la foi
igualmente uma experiência de aprendizado de comunicabilidade cuja
importância será enorme para o resto de suas carreiras. Quando uma entrada
não funcionava, bastava olhar para ela. Se dissesse “não senti’, sabíamos que
a parte mais fundamental e interior da regência estava apagada. A mecânica do
gesto, embora pudesse ser vista e seguida por nós, estava desconectada da
música. Então eles se esforçavam mais um pouco, trabalhavam mais um pouco
e faziam a conexão. E o melhor de tudo: sabiam que a haviam feito através de
uma avaliação externa e insuspeita.
Foi a partir de então que assumi a palavra ‘energia’ como parte de meu
processo de ensino. Não é possível ver a eletricidade, mas é fácil senti-la
quando tocada.
Penso energia como uma força no tempo. Em regência falo de controle
do fluxo de energia: gerando, contendo, gastando, transferindo ou direcionando.
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O que gera a energia que o regente traz à tona é o ato de colocar em
contato uma concepção sincera da obra com o desejo igualmente sincero do
regente de conseguir a melhor aproximação possível entre concepção e
performance. Há então um desprendimento de energia que atinge o coro antes
do momento da emissão do som. Depois o coro, se foi sinceramente atingido
por tal fluxo de energia, ao cantar, transforma-o em música. Ao chegar ao
público o processo se conclui. Mas é bem freqüente que o público dê uma
espécie de retorno mudo ao intérprete que não pode ser medido ou confirmado,
mas também não pode ser desprezado. Muito antes de chegar ao final de uma
obra, antes de chegar ao momento dos aplausos, já é possível saber se o
público será caloroso ou frio.
Falamos assim, no parágrafo anterior, de geração e transmissão de
energia. Mas o domínio da regência em seus níveis mais elevados vem do
aprendizado da capacidade de acumular energia - espécie de represamento -
que mostra o objetivo, antecipa a imagem sonora da chegada, mas segura a
liberação da necessária e desejada energia para o momento certo. Mostrar com
as mãos, mas segurar com o rosto; mostrar com o rosto mas segurar pela
postura da coluna; abrir a boca mas só deixar respirar quando os braços se
abrem em torno da região do diafragma, esconder a mão esquerda atrás do
corpo em uma seqüência harmônica que pede um crescendo, impedindo tal
crescendo com a postura do rosto e depois, devagar, trazer a mão espalmada
em lento movimento ascendente até a frente do peito. Perceber que existe um
uso musical do silêncio que afeta inexoravelmente a interpretação e segurar
conscientemente a duração das pausas, maiores ou menores do que a escrita
lhe reservaria, de modo a conferir profundidade ao fluxo do discurso,
tranqüilidade ou aflição ao ato da respiração, lacunas para a
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