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Por
Bárbara Carneiro
Caio Romero
Caroline Silva
Isis Teixeira
Joelson Souza
Juliana Piroupo
Leonardo Quinto
Rafael Stábile
Roger Cavalheiro
Tamires Nagatani
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Sumário
1. Sobre a cidade e sua gente ............................................................ p. 5
2. Personas .................................................................................. p. 7
3. O ímpeto .................................................................................. p. 10
4. Páscoa sem ovos ......................................................................... p. 12
5. Cidade que a gente sente .............................................................. p. 17
6. Causo ...................................................................................... p. 22
7. O galo ..................................................................................... p. 26
8. A gente do morro ........................................................................ p. 29
9. Crônicas dos viajantes – a gente efêmera ........................................... p. 34
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Sobre a cidade e sua gente
Um homem caminha pela rua, o sino toca três horas, seus olhos miram ao longe. Ali, um
segundo homem, seu conhecido. O mundo acontecendo enquanto eles se recordam dos anos
passados, da amizade corriqueira, dos bolos de fubá que comiam sentados à mesa da cozinha. O
tempo passara para ambos. O tempo, na verdade, passara para todos. Só a cidade que não viu. Só
a cidade não podia ver, em seus olhos uma venda, em seus ladrilhos a areia da ampulheta se
dispersara.
As pessoas ao redor não são as mesmas. São muitas, ficam por pouco tempo. Alguns – de
antes – partiram, não lhes bastava cuidar dos assuntos da gente efêmera. O dinheiro vem de fora,
às vezes não o bastante. A cidade não vê, mas sente. A cidade é sua gente e sua gente às vezes
não sabe quem é.
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Personas
O caminho para a rodoviária é pequeno demais se comparado às minhas vontades. Porém, é
justamente ali que cabe a maior delas: a de partir. Na mochila carrego poucas coisas. O que mais
pesa é o que está dentro de mim. Minhas verdades insuportáveis, a ponto de eu desconstrui-las até
se transformarem em mentiras. Vou embora como se fugisse, mas sem ter cometido crime algum. É
claro que dirão que foi por amor, por dinheiro, por qualquer outro motivo que sumi. Nem eu sei o
porquê de me arrastar ladeira acima com a mão no bolso apertando com tanta força a passagem do
ônibus. Nem eu sei... mas eles criarão uma versão oficial e isso bastará para as gerações vindouras.
Olhando a cor da minha pele penso na mentira que me contei por tanto tempo. Em algum
momento da minha vida, soube da existência dos Xhosa e inventei para mim mesma que meu pai
era um patriarca desse povo. Meus documentos me desmentiriam, mas a verdade não saltaria aos
olhos de quem os visse. Meu pai nunca conversou com ninguém estalando a língua como fonema,
mas essa ficção era mais suportável do que me dar conta de que o tataravô branco de alguém
escravizara o meu tataravô negro. No fundo, era uma mentira que nada resolvia, apenas
romanceava o que era latente dentro de mim, dentro da minha cidade, dentro do meu país. Os
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Xhosa sofreram tanto quando qualquer povo subjugado, mas elegeram o primeiro presidente negro
da África do Sul. Esse homem ganhou o prêmio Nobel da Paz e não precisou jogar o corpo de seu
adversário morto no mar.
Meu pai nasceu aqui, cresceu e morreu nessa cidade. Morreu de doença desconhecida. Ou
melhor: de problema social sintomático. O hospital – único da cidade – estava cheio de pacientes e
quase vazio de médicos. A expectativa de vida na África do Sul hoje é de 49 anos. Meu pai foi um
pouco além; com essa idade Nelson Mandela fora condenado à prisão perpétua na ilha Robben e lá
começou a escrever sua autobiografia.
Meu pai pouco falava e muito trabalhava. Quem cantava para mim antes de dormir era
minha avó. Cantava as músicas de Iemanjá. Quando eu era criança, me acalentava. Mas cresci me
perguntando “como posso ser filha de Iemanjá vivendo a essa distância do mar?!”. Foi então que
“eu vi mamãe Oxum na cachoeira, sentada na beira do rio, colhendo lírio, lírio lê, colhendo lírio,
lírio, lá, colhendo lírio pra enfeitar o seu congar”.
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O ímpeto
Sair da cidade às vezes não é possível. Sair é o passo mais difícil. É carregar consigo um
mundo e transportá-lo para outro lugar, nem sempre receptivo. Sair é ir além do conhecido, já nos
ensinaram os nômades ancestrais. Pra sair não basta coragem; é preciso algo mais: ímpeto.
A cidade nasceu da soma das vertigens, das veias auríferas abertas nas encostas das serras,
das mãos de homens dispostos a tanto. Os homens criam raízes, nem sempre tão profundas quanto
gostariam. Os homens dependem de muitas coisas, e a seiva se interrompe. A seca está em tudo.
Tá na falta da chuva, ou no fim do ouro, ou na falta de emprego. Rareia; no chão de areia, nas
vilas ricas, nas selvas de pedra.
Os que não podem partir esperam notícias dos que foram. Alguns esperam por toda a vida.
Outros, para além dela. E, presos em seus túmulos, só lhes basta o conforto das flores, de fibra
sintética, de plástico mal arrematado. Só lhes resta a garantia de que a cidade quererá ser sempre
a mesma. Fadada à eternidade. É preciso ter cantarias firmes, duras para suportar um peso desses
sobre si.
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Páscoa sem ovos
Domingo de Páscoa. Dona Claudette, ou seria Teté, como na infância?, almoçara com toda
a família, como a tradição da data pedia, com bastante comida e gente reunida. Depois do almoço
acontecia a troca de ovos de chocolate, coisa que Dona Claudette não gostava, porque, além da
diabete, não entendia o sentido de ovos comprados no mercado serem presentes mais agradáveis
do que aqueles que, no seu tempo eram pintados a mão assim que as galinhas os botavam.
Dona Claudette, logo se vê, não é da cidade grande. Morava em Belo Horizonte há mais de
quarenta anos, havia se mudado no final de sua adolescência. Apesar de estar lá praticamente toda
sua vida, em alguns momentos não se sentia confortável naquela cidade; às vezes não conseguia
acompanhar o ritmo que a cidade lhe impunha. Teté, como era chamada pelos irmãos menores
quando ainda moravam em Ouro Preto, mudou com a família para a capital quando o pai perdeu o
emprego na mineradora e encontrou na construção civil da cidade grande uma forma de dar o suste
da esposa e dos quatro filhos.
O neto mais velho de Dona Claudette já tinha a mesma idade que ela quando se mudou
para Belo Horizonte. À tardinha, o menino começara a mexer nas panelas da avó, pronto para
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preparar uma receita. Pegou um dos potes com polvilho que vinha da roça, da casa de um tio que
ainda morava nos arredores de Ouro Preto, e a avó só pôde presumir que dali viria uma fornada de
pães de queijo.
Ela ficou observando o neto misturar a massa sem dizer uma só palavra e, como quem não
sabia de nada, foi perguntar-lhe o que fazia:
- O que é isso que está fazendo, criança?
- Pão de queijo, vó! - disse o neto.
Ela ficou olhando para a massa. Estranhando algo, perguntou:
- Uai?! Não tá faltando coisa nesse trem?
E o neto logo respondeu:
- Não tá, não, vó. Isso é vegan. Não tem queijo, nem ovo.
Dona Claudette estranhou, mas, como ela mesma dizia: “Já estou velha para essas coisas
dos jovens”.
Enquanto os quitutes do neto assavam, Dona Teté lembrava-se de quando era jovem e
também fazia os seus pães de queijos – só que da maneira correta, sem faltar nada como ela dizia
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ao neto – para levá-los na confecção dos tapetes de serragem pra Páscoa. Dona Claudette hoje só
possui a cidade de Ouro Preto viva dentro do seu peito, já distante da sua realidade.
Os pães de queijo – sem queijo – ficam prontos e todos que estavam em casa se juntam
novamente à mesa. Dona Claudette, receosa, decidiu experimentá-los para não deixar o neto
triste. No final das contas, eles estavam deliciosos e logo trataram de comer mais.
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Cidade que a gente sente
É diante do bater dos sinos das igrejas barrocas que seu João, morador de quase uma vida
toda, está a papear com seus velhos amigos e faz transbordar de seus lábios as lembranças
resgatadas dos cantos de sua memória.
É na cidade de Mariana, localizada no interior de Minas Gerais, que seu João passou a maior
parte de sua vida. Lembra-se de quando, ainda jovem, mudara-se para aquela cidade. Era de São
Paulo. O deparar com o sentimento de retrocesso ao ver cada detalhe daquele espaço petrificado.
Tudo se mostrava diferente do que ele havia visto até então. Um lugar que sob o sol ardente – e
quase sempre - sem brisas se mostrava cercado por ondas, que juntas formavam um mar de montes
esverdeados. O sobe e desce das ladeiras empedregulhadas e tortuosas se mostravam e se
escondiam conforme o caminhar e o olhar. Diferenciava-se um pouco de sua vizinha, Ouro Preto,
em que tais características eram mais exageradas. Os prédios, casas e igrejas antigas completavam
o cenário e materializavam a ideia de que o reviver algo que se foi poderia ser possível.
Durante toda a sua vida, seu João fez de tudo um pouco para garantir o dinheiro de todo mês.
Começou sua vida profissional sendo guia das Igrejas de Ouro Preto e de Mariana. Acordava cedo
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todos os dias para tomar o ônibus Mariana/Ouro Preto e chegar a tempo de conseguir alguns
turistas, no terminal turístico, dispostos a pagar-lhe por algumas informações. E foi seguindo assim
por algum tempo...
Comenta com seus amigos da praça sobre o garimpeiro que todos os dias, ao passar na ponte
do caminho de casa, via garimpar. Era assim das manhãs bem cedinho até os fins de tarde, quando
seu João voltava de Ouro Preto. E comenta que não havia ninguém melhor do que aquele
garimpeiro para demonstrar a persistência do passado. Aquele que persistia todos os dias à procura
do brilhante flutuante. Parecia fazer parte do conjunto de todo aquele cenário que se mostrava
estático e invencível diante do tempo.
Seu João fala de como foi difícil de acostumar à rotina marianense. Lembra de como os dias
mudaram sua constante. A lentidão tornara-se sua característica mais comum. Os intervalos
pareciam mais longos, os quais tornavam-se menores apenas nas épocas de correria em que, nessa
cidade, todos pareciam ter marcado de se encontrar ou de encontrar-se. Comenta que passava os
dias todos andando pela cidade com os visitantes e completa que o se reconhecer ali era como se
sentir parte de algo maior. Tudo nessa cidade parecia ter obtido de Deus a imortalidade, e é o
imortal que nos instiga.
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A vida de seu João foi mais ou menos a mesma que a da maioria das pessoas que residem em
Ouro Preto e Mariana. Seu João depois de ser guia, ficou um tempo vendendo esculturas de pedra-
sabão, feitas por dona Titã, na feirinha da Igreja de São Francisco e seu último afazer foi vender
doces na barraquinha que ficava na Praça Tiradentes. Não havia outras opções além das voltadas
aos turistas. A loja de artesanato, a feira de pedra-sabão, os restaurantes... Tudo girava em torno
das pessoas de longe.
Hoje seu João, já um senhor de idade, gosta de passar as tardes no banco da pracinha de
Mariana, conhecida popularmente como Jardim. Uma praça típica de cidade de interior com um
coreto rosa no centro, algumas árvores, bancos e um tanque com carpas. Mais nova se comparada
ao outro lado da rua em que mostra o contraste com os casarões velhos.
As tardes no Jardim tornaram-se rotineiras e seu João fica a olhar toda aquela
movimentação, que mesmo sem os turistas em dias de feriado, chama os moradores da cidade para
as típicas cervejinhas e música sertaneja das tardes de sábado e noites de domingo. Diz a seus
amigos sentir-se curioso ao ver as pessoas passarem e imaginar suas histórias. E quantas histórias,
que por si só mostram-se como a dele, diluídas, incomparáveis à grandiosidade de todos aqueles
monumentos.
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Ele sabe que o tempo passou e vê o resultado em si próprio, mas ao olhar para a cidade vê que
ela continua a mesma, ou pelo menos se mostra assim. O garimpeiro, também com sua idade
avançada, ainda persiste na procura do ouro no riacho. O tempo parecia realmente ter parado nas
duas cidades, nos dando a ilusão de que somente nós passamos por eles.
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Causo
Ruiu um morro em Ouro Preto e veio abaixo o Museu de Mineralogia. Rapidinho encontraram
os culpados: pobres, malditos pobres que construíram casas no barranco.
Foi lá o prefeito, acompanhado por câmeras e microfones pontudos, e discutiu com uma
desabrigada: "vocês não podiam ter erguido barracos em área de risco para o museu!" "mas não
temos onde construir" "então morra, minha filha, morra!". Tudo documentado, os turistas
adorando.
Formou-se um mutirão para salvar as coisas do museu; pedras raras, algumas preciosas,
agora se misturavam a esquecidos companheiros orgânicos: corpos de gente que desceu o morro
sendo dilacerada.
Poucas horas depois, anunciaram verbas os governos estadual e federal: o museu seria
reconstruído e restaurado. Comemoraram os que assistiam ao pronunciamento no telão da Praça
Tiradentes.
Esquartejados, alguns cadáveres foram embalados, às pressas e aos montes, em carros do
IML. Um cortejo levou-os para o ostracismo póstumo.
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Outros caminhões levaram embora a terra que encobriu, por anos, esta história, a mim
narrada por velha moça em dia de procissão.
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O galo
Quando levou as mãos ao rosto, Pedro sabia que o galo cantara há muito. Sabia que há muito
sua cidade não era a mesma, embora não a imaginasse morta. Sentia algo estranho, sim, ao dar de
ombros e troncos com aquela gente que tanto gostava de fotografá-lo. Mas não, nunca se sentira
parte de um cadáver.
Diversas vezes executada - a primeira delas em 1711 -, a antiga Vila Rica é exumada e
enterrada novamente com frequência quase anual. Tal qual seus minérios, adorna o discurso de
gente que bufa, vocifera e gargalha. Um enfeite, sabe-se, é tido por seu dono como coisa defunta,
troféu. Pedro está morto.
Mas defuntos não montam tapetes, não fazem cachaça, não fazem política. Cadáveres não
oram, não creem, nada querem saber sobre o que envolve o preço do leite ou da cerveja. Mortos
não choram.
Pedro cobre o rosto com dramáticas mãos. Imagino que seja ato de fé, tentativa de
introspecção em meio aos viventes. Ou nada disso: talvez estivesse no meio de uma risada contida.
Quiçá gozasse de todos nós, meros apóstolos de uma morte hipócrita e conveniente.
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A gente do morro
Lá no alto, no final de uma das muitas ruas de pedra dessa cidade, onde está construída a
igreja de Santa Efigênia, duas gerações observam a mesma paisagem. Ali, bem do alto, para
ambos, o Velho e Novo, a mesma paisagem se desenha.
É um vai-e-vem de ladeiras, ruas de pedra sem fim que sobem, descem e tornam a subir
novamente. Embaixo ou no topo, de onde estiver, é possível observar uma ou mais igrejas. Elas
surgem imensas em meio aos batentes coloridos das milhares de edificações coloniais da cidade, e
escondem becos estreitos que surgem misteriosamente durante uma caminhada.
Sentados em um muro baixo, ao lado da igreja e diante da mesma paisagem o velho e o novo
observam.
― Parece mesmo que o tempo não passou por aqui
O Velho, com o típico semblante cansado, daqueles que carregam toda a sabedoria do
mundo apenas em sua face, revivia em silêncio e através de lampejos da memória toda uma vida
em Ouro Preto. ― Só parece. A verdade é que tudo mudou.
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Enquanto estavam sentados, no mesmo muro baixo, centenas de turistas passavam por ali.
Tinham ido visitar Santa Efigênia e fotografavam do mirante a mesma bela paisagem que servia de
alimento à imaginação do Novo e à memória do Velho. Os turistas passavam para lá e para cá como
rebanhos dirigidos pelos guias de turismo. Em poucos minutos um novo grupo saia e outro chegava,
sempre rindo e falando alto.
O Velho, após uma longa pausa, retoma ― Vê esses turistas?
― Sim.
― Eles fotografam as casas coloniais, fotografam a igreja enorme atrás de nós e fotografam
esse belo cenário que vemos aqui do alto. Mas ali, bem ao nosso lado, existe outro morro que
ninguém fotografa, ninguém nota. Ali as casas são pobres, inacabadas, ficaram apenas no tijolo
baiano, sem reboco, nem telhado. Desse morro já se extraiu muito ouro e hoje se parece com uma
pequena favela. Nele vivem a garçonete, o balconista da padaria, o motorista de ônibus e o
camareiro que arrumou seu quarto no hotel.
Risadas, passos para lá e para cá, um homem pede esmola, o guia grita para ser ouvido... os
estudantes de quatorze anos são os mais difíceis.
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― Acho que entendo. Essas construções pobres são recentes, elas não deviam existir em
outra época.
― As casas e edifícios antigos, assim como os museus que você visitou hoje, contam uma
história de Ouro Preto. O morro pobre ao nosso lado não conta a história de Tiradentes, mas ajuda
a entender como esses turistas vieram para aqui, pois a riqueza da cidade não vem mais das minas
de ouro mas do bolso dessa gente que vem até aqui todos os dias. A história da garçonete que mora
em algum desses barracos é a história das transformações da cidade... é a história do meu
nascimento, da minha vida de trabalho e da minha partida.
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Crônicas dos viajantes – a gente efêmera
Meu suor se mistura às pedras das ladeiras derradeiras talhadas pelo suor dos negros
denegridos nos períodos em que ser preto justificava ser preterida – coisas do pretérito passado
distante-atual.
E misturada à pedrarada observo os anjos-barrocos-mulatos: crianças fantasiadas para a
procissão que caminham angelicalmente barrocas pelas ruas pedregulhosas do cenário ouropretano
construído, pedra-a-pedra, com o suor encardido dos pretos ditos fedidos pela sinhá da casa dos
contos.
Meus pés doem, mas não envergo como deveriam envergar os pretos que carregavam um
sem número de pedras-pedrinhas-pedralhões total/semi/pouco/nada-preciosas, entre quintas e
ladeiras íngremes, chibatadas e xingamentos, fugas fantástico-fantasiosas e resistências de toda à
ordem contra o controle ardido reinol-flaminco-frances-ingles-branco (entre outros).
E ouvindo o badalo animado do sino da Igreja Matriz de N. Srª do Carmo ritmado pelo mulato
descendente do escravo negro denegrido supracitado, olho pra todo o ouro barrococó do templo e
leio nas formas dessa rocha domesticada “é dura a vida do ouro”.
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Como chamar de colonial, barroco, patrimônio aquilo que, no irromper da madrugada, era
vida, movimento, sublimação? Por fora, uma igreja imponente; dentro, rebuscamento repleto. E a
arquitetura, há tempos emudecida pelo fascínio, observava.
A missa, a cidade reunida, cantando, contemplando. Tradição que esvaia pelas palmas da
menininha de seis anos, os olhos arregalados para o altar. Os sinos dobravam, num compasso
envolvente, dançante, ali criado pelo garoto. Do alto, o mais novo terreiro do samba anunciava: a
noite é imensa.
Pelas ruas, cores. É de nome: Ouro Preto. O tempo pode amarelar as páginas de um livro.
Mas a tradição é multicolor. Amigos, moradores, estudantes, turistas, crianças combinavam os tons
na policromia da memória inventada. Amarelo, verde, vermelho, laranja, marrom, azul e branco...
alternados em mosaicos de um engenho inesgotável. Sociedade barroca!
Noutras esquinas, a banda passava. E o grupo que chegava ao seu encontro parava de
caminhar. Era bonito de ouvir. Nos bares, tinha chorinho e música mineira. Cerveja e magia.
E a gente olhava. Desnorteados, sem vela, sem palavras.
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Ouro Preto era uma cidade dúbia para mim.
Por um lado, era como uma musa distante, prometia perfeição, graça e sabedoria e, por
isso, me seduzia.
Por outro lado, era como a moça bonita no final da festa, aquela que já bebeu além da
conta, perdeu a postura e a maquiagem e, por isso, eu a repudiava.
Ouro Preto era uma paixão platônica que, paradoxalmente, me causava certo repúdio. Não
sabia se, no dia em que nos conhecêssemos, iria amá-la ou odiá-la.
Adiei esse encontro por anos, sempre com alguma desculpa. Ora não tinha dinheiro, ora não
tinha tempo, ora tinha tempo e dinheiro, mas não queria ir sem companhia. Até que finalmente
me vi encurralada, eu iria, “de graça”, num feriado prolongado e na companhia de outros 95
coleguinhas.
Eu podia fugir, sempre se pode fugir dessas situações, mas não quis. Finalmente fui
conhecer minha temida musa, que podia se revelar uma medusa quando me aproximasse.
Não foi paixão a primeira vista. De jeito nenhum. Não foi paixão nem a segunda vista, mas lá
pela quinta ou sexta troca de olhares, de certo ângulo, com a inclinação certa da luz... Ela me
fisgou.
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Irresistivelmente. Tanto que, fico aqui matutando, tentando descobrir como estará agora.
Como serão suas ruas sem as hordas de turistas, como serão suas ladeiras sob chuva fina, como
será um arco-íris enfeitando a tão alta Igreja de Santa Ifigênia.
Fico pensando no quanto não conheci dessa musa (tão nova para mim). Não lamento os
mistérios que não desvendei, a paixão necessita-os, sem uma boa dose de desconhecimento que
paixão sobrevive? Os mistérios é que nos dão o ímpeto para o segundo, terceiro, para o milésimo
encontro.
Ouro Preto agora é para mim como um flerte novo, no qual me pego pensando no meio do
expediente, planejando encontros, conversas, presentes que serão ofertados. Tudo na esperança
de conquistá-la também, apesar de saber que, em sua longa trajetória, eu sou apenas mais uma,
sou Eco e ela é Narciso.
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Alfombra
Cores... é tarde da noite, como pode estar tão colorido?
Borracha, serragem, suor e sorrisos, se misturam numa perfeita harmonia.
É madrugada, mas as crianças não estão na cama...
A sociedade de Ouro Preto se une em torno de um mesmo foco:
Crianças, adultos, homens, mulheres, turistas e curiosos envoltos num mesmo ambiente.
E tudo pra quê? Tanta minúcia por um produto que de certo terá seu fim tão repentino quanto a
espontaneidade que o moldou...
Festa?!... Religião?!... Tradição?!... Pouco importa...
Algo mágico se configura no clima ouropretano:
Estão todos na mesma sintonia... a alegria contagia...
A população se doa com um altruísmo em grupo.
Na esperança única de concluir um trabalho bem feito.
A beleza se sobrepõe em ópticas diferentes: desenhos, companheirismo, coletividade...
Esse espírito não tem nome.
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Por uma noite não existe desigualdade;
Por uma noite as pessoas trabalham juntas;
Por uma noite ao som de sinos, mesclados com a musicalidade doada e o alvoroço coletivo... a
paixão se destaca...
A noite que antecede a páscoa em Ouro Preto forra o chão de cores:
E as pessoas de união.
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