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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARFACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAO, ATURIA, CONTABILIDADE
E SECRETARIADO EXECUTIVO.
CURSO DE CINCIAS ECONMICAS
TAIN ALCANTARA DE CARVALHO
O DESENVOLVIMENTO DE UMA SOCIEDADE ENFERMA?
CONSIDERAES DA PSICANLISE PARA O ESTUDO SOBRE
A ATUAL RELAO HOMEMTRABALHOCAPITAL
FORTALEZA
2013
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TAIN ALCANTARA DE CARVALHO
O DESENVOLVIMENTO DE UMA SOCIEDADE ENFERMA?
CONSIDERAES DA PSICANLISE PARA O ESTUDO SOBRE
A ATUAL RELAO HOMEMTRABALHOCAPITAL
Monografia apresentada ao Curso de CinciasEconmicas da Faculdade de Economia,
Administrao, Aturia e Contabilidade daUniversidade Federal do Cear, como requisitoparcial para a obteno do Ttulo de Bacharelem Cincias Econmicas.
Orientador: Fabio Maia Sobral.
FORTALEZA
2013
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Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoUniversidade Federal do Cear
Biblioteca da Faculdade de Economia, Administrao, Aturia e Contabilidade__________________________________________________________________________________________C329d Carvalho, Tain Alcantara de.
O desenvolvimento de uma sociedade enferma? consideraes da psicanlise para o estudosobre a atual relao homem-trabalho-capital/ Tain Alcantara de Carvalho 2013.153 f.; il.; enc.; 30 cm.
Monografia (graduao) Universidade Federal do Cear, Faculdade de Economia,Administrao, Aturia e Contabilidade, Curso de Cincias Econmicas, Fortaleza, 2013.
Orientao: Prof. Dr. Fabio Maia Sobral.
1.Relaes trabalhistas 2.Psicanlise I. Ttulo
CDD 330
__________________________________________________________________________________________
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TAIN ALCANTARA DE CARVALHO
O DESENVOLVIMENTO DE UMA SOCIEDADE ENFERMA?
CONSIDERAES DA PSICANLISE PARA O ESTUDO SOBRE
A ATUAL RELAO HOMEMTRABALHOCAPITAL
Monografia apresentada ao Curso de CinciasEconmicas da Faculdade de Economia,
Administrao, Aturia e Contabilidade daUniversidade Federal do Cear, como requisitoparcial para a obteno do Ttulo de Bacharelem Cincias Econmicas.
Aprovada em: ____ / ____ / ________.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________ _______________
Prof. Dr. Fabio Maia Sobral (Orientador) Nota
Universidade Federal do Cear (UFC)
_____________________________________ _______________
Prof. Dr. Acio Alves de Oliveira Nota
Universidade Federal do Cear (UFC)
_____________________________________ _______________
Prof. Dr. Cssio Adriano Braz de Aquino Nota
Universidade Federal do Cear (UFC)
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minha famlia.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeo aos meus pais, Arlete e Manuel, por me proporcionarem
todas as condies para realizar meus estudos e para viver. Agradeo-os por sempre me
acompanharem em todos os momentos, difceis ou no, por me apoiarem em todas as minhas
decises e por nunca me deixarem faltar amor. Com certeza qualquer dedicatria ser pouco
frente ao que realmente eles significam para mim.
Agradeo a toda a minha famlia, pelos melhores momentos proporcionados. Avs,
tios e primos. Culpados por toda a alegria que senti na vida, s tenho a agradecer por seu
apoio e seu carinho. Agradeo, em especial, aos meus avs, que, com muito amor e
dedicao, tinham-me como filho em suas casas, sempre preocupados com meus estudos e
minha sade.
Agradeo imensamente minha namorada, Alene, pelo apoio gigantesco dado na
construo deste trabalho, como o fez ao me ajudar na correo e na discusso de pontos
importantes da psicanlise freudiana, alm da constante preocupao com minha sade no
desenvolvimento do presente trabalho. O apoio no se limitou a isto, mas a todos os
momentos difceis de minha vida e em todas as dores de cabea que tive durante a Academia.
Estes esto sendo os 6 anos e meio mais felizes de minha vida, e espero que se estendam at
onde no der mais. Se eu ainda no desabei devido s intempries da vida, foi por conta dela.
Da mesma forma, agradeo sua famlia pelos timos momentos e por me receberem com
tanto carinho.
Agradeo aos meus amigos de longa data (sejam de trs, quatro ou dezesseis anos).
Agradeo-lhes pelos momentos inigualveis de risadas e de nostalgia proporcionados em
minha casa e pelos diversos espaos da UFC.
Agradeo ao Vis pela oportunidade de participar de um grupo to formidvel. No
apenas em relao ao conhecimento que pude absorver no decorrer de pouco mais de um ano,
mas das boas amizades que fiz. Em relao aos amigos, s tenho a agradecer-lhes pelos
momentos de discusso, pelos encontros nos fins de semana, por reunies no gabinete, pelas
comemoraes de tantas conquistas e, enfim, por depositarem em mim sua confiana e
amizade. Levarei para sempre no corao a honra de ter participado (e de continuar sendo!)
do Vis e de ter amigos que lutam por um mundo melhor.
Agradeo aos professores que aceitaram o convite para participarem da bancaexaminadora, prof. Acio de Oliveira e prof. Cssio Aquino. No apenas por isto, mas por
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terem me dado a oportunidade de participar de momentos to importantes para minha
formao, sejam atravs da realizao de projetos, sejam atravs das aulas e pesquisas de
campo.
Por fim, mas com certeza no menos importante, agradeo ao prof. Fabio Maia Sobral,
amigo, guia do pensamento marxista, visionrio e orientador. Primeiramente por ter me dado
a oportunidade de acompanh-lo como monitor, por fim, por se tornar o exemplo de pessoa e
educador que levarei comigo por toda a vida. Uma das maiores honras que tive na vida se
resumem a estes rpidos trs semestres em que pude aprender sobre tantas coisas (tanto sobre
a Academia quanto sobre a vida) e nos quais pude vislumbrar o amor e a dedicao de um
professor para com seus alunos, o que s me influenciou para continuar, com muito amor e
vontade, na carreira acadmica e, enfim, seguir seus passos. Muito obrigado, Sobral.
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Se voc no consegue entender o meu
silncio de nada ir adiantar as palavras, pois
no silncio das minhas palavras que esto
todos os meus maiores sentimentos.
- Oscar Wilde
S se v bem com o corao, o essencial
invisvel aos olhos.
- Antoine de Saint-Exupry
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RESUMO
Realizar-se- neste trabalho um inicial estudo scio-histrico acerca do desenvolvimentodo homem em relao ao mundo do trabalho: visa-se, atravs de uma anlise das
principais formas de organizao do trabalho, identificar um possvel estado deenfermidade da sociedade contempornea. Neste aspecto, ser percebido que a
precarizao do trabalho, marcada pela flexibilizao dos direitos trabalhistas e pelamaior volatilidade do trabalho envolvendo maior rotatividade, mudanas de horrio ecargos e a constatao de uma maior alienao do trabalho , atua a favor dessa ideia.Entretanto, esta anlise, na percepo do presente autor, vista como limitada,considerando, em boa parte, aspectos materialistas. Visando dar maior completude anlise, buscar-se- incluir perspectivas de psicanalistas dedicados ao estudo do trabalho e aosimpactos que a atividade laboral exerce ao aparelho psquico do trabalhador. Este estudo
poder contribuir, assim, para um entendimento mais profundo acerca da significao dolabor ao ser humano e dos reais impactos das diferentes organizaes do trabalho nadeturpao do ser, o que envolve tanto consequncias psquicas quanto fsicas. Para isso,sero estudadas as obras e delineadas as perspectivas de Sigmund Freud, ao qual serdedicado especial espao devido sua posio enquanto criador da psicanlise, de ChristopheDejours, mdico e psiquiatra considerado o desenvolvedor da Psicodinmica doTrabalho, e Erich Fromm, com sua anlise voltada aos aspectos sociais e perspectivade uma sociedade futura. Ao fim, ser percebido que o homem, sim, encontra-se em
processo crescente de enfermidade, a partir do momento em que se entende que aorganizao do trabalho deturpa o real intuito do labor, seja por meio das perspectivasmaterialistas, seja por meio das perspectivas libidinais, narcsicas e simblicas, apresentadas
pelos psicanalistas escolhidos. Este adoecimento do trabalho no se limitar apenas aoespao das empresas, mas afetar radicalmente o comportamento humano fora dela,impactando desde a famlia sociedade.Palavras-chave: Trabalho, Marx, Dejours, Fromm, Freud, Psicanlise.
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ABSTRACT
This work will perform a initial study on the socio-historical development of man in relationto the work's world: the aim is, through an analysis of the main forms of work organization,identify a possible state of illness of contemporary society. In this respect, it will be perceived
job insecurity, marked by flexibility of labor rights and the greater volatility of work -involving higher turnover, schedule changes and positions and finding further alienation oflabor - acts in favor of this idea. However, this analysis, in the perception of this author, isseen as limited, considering largely materialistic aspects. Aiming to give greater completenessto the analysis, it is hoped will include perspectives of psychoanalysts dedicated to the studyof work and the impact that the work activity has to the worker's mental apparatus. This studymay thus contribute to a deeper understanding about the significance of the human labor andthe real impacts of different organizations of work in the misrepresentation of being, which
involves both mental and physical consequences. For this, the works will be studied andoutlined the prospects of Sigmund Freud, which will be devoted special space due to itsposition as the founder of psychoanalysis, Christophe Dejours, physician and psychiatristconsidered the developer of the psychodynamics of work, and Erich Fromm, with its analysisfocused on the social aspects and the prospect of a future society. At the end, it will be noticedthat the man, yes, is in the process of growing infirmity, from the moment it is understood thatthe organization of work misrepresents the real purpose of the work, whether through thematerialistic outlook, whether through prospects libidinal, narcissistic and symbolic,
presented by psychoanalysts chosen. This disease of the work will not be limited to thebusiness's space, but will radically affect human behavior beyond, impacting from the familyto society.
Keywords:Labor, Marx, Dejours, Fromm, Freud, Psychoanalysis
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SUMRIO
1 INTRODUO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
2 SOBRE AS CIDADES FABRIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
2.1 Constituio inicial das cidades na Europa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
2.2 As cidades e os miserveis do campo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
2.3 Condies urbanas: consequncias (parte da) sociedade. . . . . . . . . . . . 23
3 AS FBRICAS E A SITUAO DA CLASSE TRABALHADORA . . . . 33
3.1 O crescimento das indstrias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3.2 A virtuosidade do trabalhador mutilado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
4 DA ROTINA FLEXIBILIZAO: MUDANAS NAS CONDIES
DE TRABALHO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
4.1 Crise e reestruturao do Capitalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
4.1.1 O Fordismo Taylorista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
4.1.2 O movimento sindical ingls, a ascenso de Thatcher e a reforma poltica . 63
4.1.3 A flexibilizao do Toyotismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
4.2 Proteger nossa empresa para defender a vida!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
4.2.1 Caractersticas do novo trabalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
4.2.2 Consequncias do trabalho flexvel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
4.2.2.1 Sobre o ambiente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
4.2.2.2 Sobre o trabalho: seu tempo e produto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
4..2.2.3 Sobre o no-trabalho: tempo de lazer e o desemprego. . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
4.2.2.4 Sobre o indivduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
4.2.2.5 Sobre o outro: a famlia e o gnero feminino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
4.2.3 Fim do trabalho?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
5 PERSPECTIVAS PSICANALTICAS SOBRE O TRABALHO . . . . . . 93
5.1 Freud e o conflito entre trabalho e prazer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
5.1.1 A fonte do mal-estar na civilizao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
5.1.2 O trabalho freudiano na perspectiva da organizao do trabalho
contempornea. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
5.2 A anlise Dejouriana sobre os males do trabalho contemporneo . . . . . . .113
5.2.1 A banalizao do mal e a normose. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1235.2.2 A alternativa para Dejours. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
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5.3 A sociedade na perspectiva de Erich Fromm. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
5.3.1 A sociedade e o capitalismo.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
5.3.2 Carter social e alienao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
5.3.3 A esperana da revoluo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
6 CONSIDERAES FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
7 REFERNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
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1 INTRODUO
fato consagrado, seguindo a teoria marxista, que o sistema econmico capitalista se
baseia, sobretudo, na explorao da fora de trabalho, que caminha extrema especializao
de seu conhecimento com grande severidade. Desde os seus primeiros passos, este sistema
busca, atravs da constante separao do homem de seus meios de produo, que garantiam a
atividade laboral do ser humano sobre a natureza, visando modific-la para suprir suas
necessidades bsicas, transformar a humanidade em meio para sua expanso e gerar mais
lucro a uma classe mais restrita de indivduos, as encarnaes do capital. A sociedade
contempornea, assim, transforma-se em escrava do mundo econmico; escrava consciente,
mas sem foras ou argumentos para combater um sujeito que, aparentemente, maior do
que todos e que parece transcender suas vidas.
Como nos mostram autores como Marx, Antunes e Schaff, por exemplo, atravs de
uma perspectiva sociolgica, esta condio na qual se encontra a sociedade contempornea,
intensificada pela implementao de polticas neoliberais em todo o globo, altamente
malfica uma realizao do ser humano. Identificado como espcie mpar frente natureza,
o homem parece retornar aos seus aspectos mais primitivos. Paralelo ao nvel tecnolgico
alcanado, ilustrando, assim, o desenvolvido intelecto humano, vislumbra-se a mediocridade
da vida, na qual os indivduos so fadados a atividades produtivas alienantes e obrigatrias.
Tem-se, com isso, um paradoxo que se estende a toda uma sociedade.
Limitado atualmente ao trip dinheiro-consumo-trabalho, o trabalhador
contemporneo, portanto, percebido como tendendo perdio de uma existncia
verdadeiramente humana: no apenas as relaes sociais, mas todas as necessidades se
tornaram mercadorias. Tal como estas, h a coisificao do prprio trabalhador e, assim, do
prprio ser humano.
Entretanto, passa-se do contedo mais generalista da Sociologia e pergunta-se: como
est esse indivduo? Considerando-se a noo normativa de sade, pode ser entendido que o
homem muito se beneficiou do avano da cincia. A variao nos principais ndices que
exibem esse desenvolvimento, como o aumento da expectativa de vida e a diminuio da taxa
de mortalidade, por exemplo, ilustram bem estes benefcios. Entretanto, o problema encontra-
se mais a fundo da alma humana. Em seu mago, o ser humano encontra-se enfermo, e,
surpreendentemente, no est acometido de nenhum vrus ou bactrias.
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Este trabalho tem como intuito adentrar a anlise sociolgica a respeito do
desenvolvimento do ser humano atravs de seu papel de ser produtivo, de gerar, por fora
de suas prprias mos e capacidade de seu prprio intelecto, os bens necessrios sua
sobrevivncia. Concentra-se, assim, na anlise acerca daqueles indivduos que necessitam da
venda da prpria fora de trabalho para viverem. Sendo um ser vivo, o ser humano sempre
demonstrou e sempre demonstrar necessidades das mais bsicas, as quais devero ser
supridas pela natureza. Sendo um ser dotado de razo, procurar demonstrar ao mundo sua
capacidade atravs de mesma atividade, que dever gerar significado palpvel ao que sente,
identificando-se, assim, o ser com o mundo. O ser humano, desta forma, um ser trabalhador,
produtivo no apenas no sentido material, mas produzindo, com isso, a si mesmo.
Sobre essa maior explorao acerca das condies que caracterizam o trabalho
contemporneo e seu impacto sobre o sujeito, buscar-se-, atravs da teoria psicanaltica,
realizar um panorama acerca da real condio do ser frente contempornea configurao do
mundo do trabalho, objetivando, com isso, a constatao de uma real enfermidade do
trabalhador na atualidade.
Para se atingir tal objetivo, inicialmente ser realizada uma anlise da histria como o
trabalho vem sido tratado at a atualidade. Esta anlise dever apresentar como marco inicial
a situao na qual o trabalhador encontra-se ainda em posse de seus prprios meios de
produo necessrias intermediao entre si e a natureza, identificada principalmente
durante o perodo feudal. Esta primeira seo dever dar nfase a uma inicial apreenso do
trabalho alheio e ao surgimento do trabalho assalariado. Concomitantemente, dever
demonstrar a importncia que a nova formatao social, baseada na posio dos indivduos
frente ao trabalho (como vendedores ou compradores), tem modificao do meio ambiente,
no qual o surgimento das cidades destaque.
Na terceira seo, devero ser estudados os fatores importantes que culminaram no
surgimento das indstrias e suas condies de trabalho. Espaos dedicados exclusivamente
efetivao da capacidade de trabalho dos indivduos, ser nas fbricas onde se manifestaro os
principais males sociedade, inicialmente integridade fsica do trabalhador, mas
silenciosamente caminhando para sua integridade psquica.
Na quarta seo, dever ser dado destaque s principais configuraes do mundo do
trabalho, como o fordismo e o toyotismo. Sendo formas de organizao do trabalho, visando a
maior produtividade e a crescente reduo de movimentos fteis e estoques desnecessrios, osnovos modos de se realizar o trabalho no levaro em conta o sofrimento sentido pelo
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trabalhador no porque sofresse com surras e chicotes, tal como seus antepassados da
Revoluo Industrial, mas porque se bestificavam com o trabalho alienante e insignificante
das fbricas.
Paralelo a isto, no caso do toyotismo, ser analisada a expanso do neoliberalismo
como meio desencadeador de piores condies de trabalho sociedade contempornea:
juntamente ao modelo de acumulao flexvel, o trabalhador seria aleijado aos poucos atravs
do corte de seus direitos, historicamente conquistados. Alm disso, dever ser dado o devido
espao s condies da flexibilizao do trabalho, desencadeado atravs da implementao do
modelo toyotista. Para isso, far-se-.grande uso das obras de Ricardo Antunes. Nesta seo
ainda est inclusa uma discusso acerca do fim do trabalho, baseada principalmente na anlise
realizada por Antunes e Schaff sobre o assunto.
Na quinta seo sero estudadas as contribuies da teoria psicanaltica ao
entendimento acerca do mundo do trabalho e as implicaes de suas diversas configuraes
ao indivduo. Neste caso, no se deve falar apenas de uma teoria psicanaltica, mas de vrias,
o que deve tornar esta seo ainda mais rica para as consideraes acerca dos motivos da
enfermidade contempornea proveniente da esfera do trabalho e das perspectivas para o
futuro. A anlise da Psicanlise dever ser baseada em trs autores: Sigmund Freud, que
levar em conta o desenvolvimento das atividades laborativas a partir da necessidade do
indivduos em externalizar seus impulsos libidinosos; Christophe Dejours, que estudar a
Psicodinmica do Trabalho e as implicaes da formatao atual do trabalho ao ser; e Erich
Fromm, que analisar as implicaes dos principais pressupostos do sistema capitalista sobre
a esfera do trabalho sociedade. O estudo do trabalho a partir da teoria psicanaltica deve,
assim, mostrar-se atravs de trs momentos: a) a relao do indivduo consigo mesmo; b) a
relao do indivduo com sua atividade; c) a relao dos indivduos na sociedade. Esta
graduao da perspectiva do trabalho promover um conhecimento mais amplo acerca das
consequncias psquicas da atividade laboral contempornea ao trabalhador.
Por fim, com esta anlise pormenorizada sobre o trabalho, que levar em conta no
apenas consideraes sociolgicas, como tambm psicanalticas, dever ser realizado um
panorama acerca das condies de sade do sujeito, dando especial nfase, como percebido,
sade de seu aparelho psquico. Buscar-se-, desta forma, traar um diagnstico acerca de
sua condio, finalizando, assim, com o delinear de algumas perspectivas sobre o seu futuro
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2 SOBRE AS CIDADES FABRIS
A anlise a respeito do trabalhador contemporneo h muito perpassa os limites da
prpria Teoria Econmica, como bem demonstrou Marx (2004; 1980) e Engels (2010), por
exemplo, devido percepo gradual que se teve a respeito da complexidade do ser humano,
que, aos poucos, mostrou-se ser muito mais do que apenas corpo fsico e manuteno
biolgica. Este trabalho buscar dar a devida relevncia ao aspecto mental que sempre
rondara a vida humana, principalmente no que se diz respeito ao processo de concepo e de
trabalho, no qual, antes de qualquer impulso de seus rgos, o homem dever traar, atravs
de atividade mental, o caminho a ser percorrido pelos mesmos, dependendo o produto final,
fruto de seu trabalho, tanto de aspectos histricos quanto de aspectos tcnicos.
Hoje, tal anlise das questes psicolgicas que envolvem o entendimento do homem
no ambiente de trabalho e a relao entre o prprio sujeito e o processo de trabalho, bem
como da produo final, rea explorada pela Sociologia do Trabalho e Psicologia do
Trabalho. Estas rea buscam mostrar que a condio do homem, enquanto ser vivo e ser
produtivo, rompe a barreira econmica simplria de que este sujeito limita-se ao trip
consumo-trabalho-dinheiro, tido, sob a concepo econmica capitalista, como ciclo
ininterrupto (apesar de sua ascenso e declnio em determinados perodos) do modo de viver
da maior parte da populao mundial, a saber, daquela parcela que no detm nada mais do
que sua prpria fora de trabalho para garantir a subsistncia, sendo este consumo o
combustvel necessrio para a continuidade do sistema de mercado.
Apesar do foco do presente trabalho estar baseado na anlise psicanaltica e, em
alguns momentos, no levantamento de questes de carter sociolgico sobre a relao de
interesses conflitantes entre o trabalhador e o capitalismo, sujeito e cenrio, respectivamente,
tendo por foco o prprio trabalho, faz-se necessria, para entender a atual preocupao com a
psique do trabalhador contemporneo, bem como seu estado psicolgico da proveniente, uma
anlise sobre as condies inicias oferecidas pelo capitalismo industrial a este, principalmente
durante a segunda metade do sculo XIX onde se percebe a maior difuso da maquinaria
para a substituio da fora de trabalho e alcance de maior produtividade. Esta anlise dever
ter como ponto de partida a discusso acerca da organizao urbana oferecida a partir da
ascenso da indstria fabril, setor cone da Revoluo Industrial inglesa, e as condies das
fbricas, onde o trabalhador, para poder receber o equivalente sua fora de trabalho e assimgarantir a sua sobrevivncia, gastava, em mdia , 60% de seu tempo dirio ou at mesmo
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80%, como inicialmente percebido atravs do trabalho infantil, desconsiderando-se as leis
posteriormente impostas pelo Estado ingls (MARX, 1980).
Desta forma, este trabalho iniciar seu estudo atravs da anlise da formao e da
disposio das cidades europeias, talvez uma das maiores mudanas na sociedade (e
consequncias do novo modo de produo industrial) e que trouxe, junto ao seu
desenvolvimento, malefcios sade do homem, tanto fsicas quanto mentais.
2.1 Constituio inicial das cidades na Europa
Antes da discusso acerca do desenvolvimento das cidades na Europa, far-se- uma
rpida observao, para fins didticos, visando um entendimento integral sobre o assunto e o
ponto especfico que aqui ser tratado, a respeito do desenvolvimento urbano que a
humanidade principia em perodos bem anteriores a segunda metade do sculo XIX, sculo
que se destaca quanto s particularidades sobre o processo de trabalho e que, por este motivo,
mostra-se como incio ideal para anlise.
Ao contrrio do que se pensa, as cidades no surgiram concomitantemente ascenso
ou at mesmo aos primeiros passos da indstria. De acordo com Huberman (1976), a origem
das cidades pde ser dada por dois motivos1: a) o estabelecimento de mercadores,
provenientes regies especializadas do comrcio em pontos especficos, propcios para o
soerguimento de negcios prprios ou visando a realizao das feiras anuais e encontros mais
recorrentes, talvez o motivo mais importante e o que fez no apenas com que novas cidades
surgissem, mas com que as antigas conglomeraes2se desenvolvessem3.
medida que o comrcio continuava a se expandir, surgiam cidades nos locais emque duas estradas se encontravam, ou na embocadura de um rio, ou ainda onde a
terra apresentava um declive adequado. Tais eram os lugares que os mercadoresprocuravam. (HUBERMAN, 1976, p.35)
1. Huberman (1976) faz um recorte acerca do desenvolvimento da humanidade a partir do desenvolvimento dohomem durante Idade Mdia, sendo isto demonstrado com a passagem do servo ligado exclusivamente terra,
para o homem livre e urbano, da a ausncia de referncias s civilizaes antigas onde j era percebida algumaorganizao urbana. Da mesma forma, far-se- o mesmo recorte nesta seo, focando-a no desenvolvimento dosconglomerados urbanos a partir da Idade Mdia e de sua serventia para a paralela produo prioritria demercadorias.2. O termo conglomerado urbano ser utilizado para caracterizar o cenrio somado de residncias e mercadono qual se encontrava a sociedade feudal, no sendo visto, ainda, como uma cidade.
3. No se nega a existncia de conglomerados urbanos anteriores ao estabelecimento de mercadores estrangeiros.
Tais conglomerados eram localizados prximos s habitaes dos senhores, que ofereciam maior proteo sinvases. Entretanto, pouco ou nenhuma expanso desses era percebida; poderiam ser vistas apenas comofornecedoras de bens aos cidados da prpria cidade.
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e b) s runas remanescentes do antigo Imprio Romano, ocupadas inicialmente pelos
cidados da sociedade feudal, mas com nenhuma perspectiva de desenvolvimento4. Liga-se
este item ao anterior devido importncia que o comrcio e as atividades lideradas por
mercadores tiveram para o soerguimento das cidades.
A partir da expanso dos conglomerados e do estabelecimento das normas e leis que
regero o novo comportamento dos cidados, agora livres da amarra feudal, ser percebido o
embate entre os dois cenrios da vida feudal: de um lado, o antigo sistema de castas, esttico e
onde o servo no aspirava nenhuma liberdade; do outro, um ambiente aberto iniciativa
individual, propcio ao negcio e, com isso, ascendncia socioeconmica, a proporo de
uma liberdade sem precedentes na vida do servo, que, durante duas ou trs vezes por semana,
deveria dedicar-se apenas s atividades ligadas aos negcios do seu senhor, sem nenhuma
contrapartida pelos seus servios. Claro est que as organizaes urbanas, lideradas
majoritariamente pelos comerciantes, passariam a ganhar fora, seja proporcionando mais
oportunidades de trabalho (HUBERMAN, 1976), o que chamava a ateno dos servos que
desejavam a liberdade econmica ausente em seus feudos, seja atravs do ganho crescente de
mais terras (ibid.) frente aos senhores feudais, que viam o aluguel ou a venda de suas terras
como as nicas formas de lucrarem frente ao crescimento das cidades. Sobre a condio dos
senhores feudais em relao s novas organizaes,
de supor que os bispos e senhores feudais tenham percebido que ocorriammudanas sociais de grande importncia. de supor que alguns tenham reconhecidoser impossvel barrar o caminho dessas foras histricas. Alguns deles o fizeram,outros no. Alguns bastante espertos para sentir o que ocorria, procuraram tirar omelhor partido da situao e saram-se bem. Isso porm nem sempre se fez
pacificamente. Parece fato, atravs da histria, que os donos do poder, os abastados,se utilizaro sempre de quaisquer meios para manter o que possuem. O co luta porseu osso. (HUBERMAN, 1976, p.39-40)
Enfim, a rigidez dos feudos, tanto em relao ao prprio desenvolvimento econmicodos condados quanto imobilidade das condies socioeconmicas dos servos, foi
ultrapassada pela liberdade promovida pelas cidades; o mercador, o negociante, substitua,
assim, o senhor feudal. Com isso, como incita Huberman (1976, p.44), [...] a posio dos
mercadores na cidade reflete a importncia crescente da riqueza em capital em contraste com
4. Dobb (1965) ainda identifica mais duas possveis origens para os primeiros conglomerados urbanos: eramprovenientes do engrossamento demogrfico em certos agrupamentos feudais (p.98) e dos abrigos concedidospelas autoridades a peregrinos e fugitivos, elementos soltos da populao no subordinados ao senhor (p.100),
claramente uma tentativa de obter outras fontes de riqueza. Entretanto, Dobb reconhece como pontos fortes osurgimento dos conglomerados a partir de reas privilegiadas e do estabelecimento de comerciantes em pontosestratgicos, estando ambos os fatores presentes no surgimento de algumas cidades inglesas, francesas e russas.
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a riqueza em terras. Esta passagem do capital em forma de terra, caracterstico da Idade
Mdia e de certa forma infrutfero sob as concepes do prprio capital, para o comercial,
mostra-se importantssima para o posterior entendimento acerca do surgimento das indstrias.
No apenas as oportunidades oferecidas pelas cidades eram as responsveis pelo
esgotamento do modo de produo feudal. De acordo com Dobb (1965), o que se entende
normalmente sobre fim do perodo dominado pelo modo de produo feudal limita-se ao
desdobramento de fatores econmicos, esquecendo-se, assim, dos fatores internos ao modelo
de organizao social. O autor defende que as relaes entre os servos e os senhores na
verdade se tornavam mais severas, fazendo at mesmo com que as relaes servis se
tornassem relaes de escravido, objetivando os senhores feudais a captao de maior
produo para, com isso, obterem uma renda adicional quando comerciada com os
mercadores das cidades5. Esta presso crescente, de acordo com Dobb, mostra-se como ponto-
chave para o esfacelamento interno do modo de produo feudal.
O resultado dessa presso maior foi no s exaurir a galinha que punha ovos de ouropara o castelo, mas provocar, pelo desespero, um movimento de emigrao ilegaldas propriedades senhoriais uma desero macia por parte dos produtores, que sedestinava a retirar do sistema seu sangue vital e provocar a srie de crises nas quais aeconomia feudal iria achar-se mergulhada nos sculos XIV e XV. A fuga dos viles
que deixavam a terra muitas vezes assumia propores catastrficas tanto naInglaterra quanto em outros lugares, e no apenas servia para aumentar a populaodas cidades crescentes, como e principalmente no continente contribua para acontinuao das quadrilhas de proscritos, da vagabundagem e jacqueriesperidicas.(DOBB, 1965, p.64-5, grifo do autor)
Com os problemas pelos quais passava a estrutura feudal, os conglomerados urbanos
acabavam por se tornar chamarizes para os menos afortunados, at mesmo para os prprios
senhores, que viam os comerciantes das cidades como sada para seus futuros problemas
financeiros:
[] e se a presso da explorao feudal e o declnio da agricultura ajudaram a supriras cidades com imigrantes, a existncia destas como osis mais ou menos livresnuma sociedade que no era livre agia por si s como um m sobre a populaorural, incentivando aquele xodo das propriedades feudais para escapar sexigncias cujo papel na fase de declnio do sistema feudal que tentamos descreverfoi to importante. (DOBB, 1965, p.94)
5. Como Dobb (1965) pe em xeque, No existe igualmente bom motivo para esperar que o crescimento docomrcio ocasionasse uma intensificao da servido, para fornecer trabalho forado ao cultivo da propriedade
para fins de mercado? (p.59) E continua: [...] a hiptese de que a produo de mercadorias para um mercadoimplica obrigatoriamente a produo base de trabalho assalariado parece ter-se infiltrado com demasiadafrequncia na argumentao. (p.59-60)
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Passa-se, ento, para o perodo da liberdade econmica e da livre iniciativa, quando o
produto dos camponeses alguns especializados em certo processo produtivo, produzindo
melhor e em menos tempo do que outros , anteriormente utilizados apenas para a
subsistncia, transformam-se em mercadorias (e assim percebe-se a transformao da forma
de troca das mercadorias explicada por Marx)6. Haveria algo mais justo ao arteso do que
gozar dos frutos de seu prprio trabalho atravs de uma nova organizao social que
promovesse este proveito?
Entretanto, junta-se a este cenrio um novo fator gerador de desigualdades e que nunca
antes fora vista nos campos feudais: a concorrncia. Como bem explica Huberman (1976), a
igualdade entre as associaes e corporaes, grupo de trabalhadores e aprendizes que juntos
atuavam em um mesmo processo produtivo, produzindo cada um suas mercadorias de
maneira integral, logo se tornou algo do passado, inclusive se se considerar a ao dos ricos
mercadores em dar incio ao processo de desenvolvimento das cidades, liderando as aes de
libertao das terras urbanas das amarras dos senhores feudais e, consequentemente, de
libertao do trabalho dos pequenos produtores, antes presos s leis feudais, para o gozo
prprio. Como se pode imaginar, discrepncias inicialmente econmicas passaram a ser
estabelecidas na nova sociedade e, com isso, discrepncias sociais. Um dos pontos destacados
por Huberman (1976) era proveniente do poder dos prprios mercadores e estava calcado nos
contratos de exclusividade que as corporaes criaram, excluindo muitos produtores com os
quais no possuam laos e, desta forma, engolindo suas produes, deixando-os prpria
sorte. Sobre estes novos pobres,
[eram] trabalhadores que no tinham quaisquer direitos em nenhuma corporao eestavam merc dos industriais mais ricos, para os quais trabalhavam em condiesmiserveis e a salrios de fome. Essas pessoas viviam em buracos miserveis edoentios, no tinham nem a matria-prima nem as ferramentas com que
trabalhavam, e foram os precursores do proletariado moderno, tendo apenas seutrabalho e dependendo do empregador e de condies favorveis de mercado para asua sobrevivncia. As cidades revelavam, portanto, ambos os extremos os maismiserveis (Florena, em seus grandes dias, contava com mais de 20.000 mendigos,segundo consta) e no alto os muitos ricos, que viviam no luxo. (HUBERMAN,1976, p.76)
Assim, as cidades comeavam a mostrar sua verdadeira face: nada mais eram do que
um novo cenrio de um modo de servido, com novos sujeitos. Hipnotizados por uma
liberdade terica, os antigos servos, e at mesmo alguns senhores feudais, passaram a ser os
6. Neste caso, como bem mostra Marx (1980), inicialmente o excedente fortuito a ser o meio de o artesoadquirir outros produtos, passando, em seguida, pelo excedente proposital e, por fim, produo exclusiva para avenda.
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novos miserveis da grande cidade, no possuindo agora, ao contrrio do perodo anterior,
nem mesmo os meios de produo necessrios para, no mnimo, a sua prpria subsistncia,
enquanto que alguns poderosos da Idade Mdia e as novas figuras das cidades, os burgueses,
tornaram-se a classe privilegiada e detentora de todos os recursos necessrios produo de
mercadorias. O trabalho passava a ser a mercadoria importante deste perodo, em detrimento
terra; uma mercadoria sem a qual nenhum dos lados sobreviveria, seja para conseguir o meio
de compra dos produtos necessrios para subsistncia (trabalhadores), seja para captar a mais-
valia e, assim, gerar mais dinheiro e o crescimento ilimitado de seus estabelecimentos de
produo (burgueses7). A vida nas cidades do sculo XVIII devem ter provocado uma
mistura deslumbrante de sensaes: terror e alegria, ameaa e felicidade, espanto e piedade 8
(BRITISH, 2013, traduo nossa).
2.2 As cidades e os miserveis do campo
Como dito anteriormente, a passagem do antigo cenrio feudal para o novo mundo que
se via frente fora disfarado pela falsa ideia de liberdade econmica, promovida pela prpria
liberdade que obtinham as cidades dos senhores feudais. Entretanto, esta passagem, apesar da
aparncia pacfica que parece demonstrar, deu-se de maneira violenta, principalmente em
relao s mudanas promovidas sobre os campos feudais. A expanso das cidades era
promovida, grosso modo, pelo aumento do nmero de miserveis, da mesma forma que a
expanso promovida internamente por elas mesmas tinha a mesma fonte.
Inicialmente, deve ser dado destaque tomada da terra por parte das cidades que se
desenvolviam e se encontravam em crescente expanso. De acordo com Marx (2004), a
prpria adequao da sociedade s caractersticas econmicas da organizao urbano-
industrial, fundadas no lucro a partir da explorao de outro, dar-se- tambm, em algumas
localidades, com a insero da figura do arrendatrio entre a relao do proprietrio de terra e
os servos. Seria o golpe ltimo desferido sobre a antiga organizao social.
A potncia da indstria sobre seu contrrio se revela imediatamente no surgimentoda agricultura como uma indstria real, ao passo que anteriormente ela deixava o
principal trabalho ao solo e aos escravos desse solo, mediante os quais este ltimo secultivava. Com a transformao do escravo em trabalhador livre, isto , em umtrabalhador pago a soldo, o senhor da terra em si transformou-se em senhor de
7. Ou, como passam a ser chamados, capitalistas.8. Life in the eighteenth-century city would have provoked a dazzling mixture of sensations: terror andexhilaration, menace and bliss, awe and pity.
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indstria, em capitalista, uma transformao que se exerceu, em primeiro lugar, porintermdio do arrendatrio. [] Deste modo, o senhor da terra j se formou, noarrendatrio, essencialmente um capitalista comum. (MARX, 2004, p.94-5, grifo doautor)9
Os arrendatrios, portanto, no passavam de figuras disfaradas de um capitalista, um
capitalista da terra, que comeara a aplicar a perspectiva da explorao e da lucratividade
sobre o que ainda restara do antigo regime feudal, transformando, assim, os antigos servos em
novos assalariados.
Entretanto, a figura do arrendatrio apenas mostrava como o comportamento do
capital comeara a atingir todas as reas possveis, das cidades aos campos. Para entender
melhor o papel deste sujeito, o arrendatrio, para o crescimento das cidades, devem ser
percebidos outros fatores que tambm contriburam para a expanso das cidades (que, como
citado anteriormente, proveniente do aumento do nmero de miserveis). Huberman (1976)
aponta como um fator importante para a promoo da mudana em prol das cidades e do
surgimento da indstria, antes de tudo, o aumento de metais preciosos nas principais naes
Inglaterra, Espanha e Portugal, principalmente.
Deve-se ter em mente que a esta revoluo nas organizaes sociais at ento
conhecidas caminhava paralelamente a explorao de terras alm-mar, como foi o caso das
Amricas e de regies da frica. Com a explorao das terras, foram descobertas, entreoutros bem valiosos para o comrcio europeu, minas de metais preciosos10que, primeira
vista, tornariam o pas colonizador cada vez mais rico. Entretanto, o principal problema
proveniente do aumento da quantidade de dinheiro dentro de uma nao no fora esperado: o
aumento generalizado dos preos dos bens.
Que efeito teve sobre a Europa esse afluxo de prata sem precedente? Provocou umaumento sensacional dos preos. No apenas um tosto ou dois neste ou naqueleartigo, mas um aumento espetacular no preo de tudo. Houve uma verdadeirarevoluo nos preos, tal como ocorrera apenas trs ou quatro vezes nos ltimos milanos da histria mundial. Os preos das mercadorias em 1600 eram mais de duasvezes superiores ao que foram em 1500, e em 1700 estavam ainda mais altos mais
9. Interessante observar que Marx considera, ao que parece, a transformao da terra em indstria a partir defatores que caracterizam este cone do sistema de produo capitalista, a explorao da fora de trabalho e aliberdade. Este termo (livre), cuja citao aparece em destaque feito pelo prprio Marx, refere-se um estadoduplo de liberdade: uma liberdade positiva, em que o novo assalariado no mais ligado terra e pode fazer oque bem quiser de si mesmo), e uma liberdade negativa, onde o mesmo sujeito despossudo de todos osmeios de vida (manifestado anteriormente na terra).
10. A noo de riqueza passava, durante a mudana do foco dos tipos de economia, a saber, economia feudalpara economia comercial, a ser relacionada quantidade de metais preciosos possudos por cada nao, sendo
visado, desta forma, o alcance de uma balana comercial favorvel, com as exportaes, portanto, superiores simportaes, ou seja, com o fluxo de metais preciosos que entram no pas maior que o fluxo de metais que odeixa.
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de trs vezes e meia o que haviam sido quando a revoluo dos preos teve incio.(HUBERMAN, 1976, p.109)
A explicao simples: com o aumento da circulao do bem socialmente aceito
como moeda, o poder de compra dentro de uma nao aumentava, aumentando assim os
preos dos bens. Desta forma, necessitava-se de maior quantidade de dinheiro para comprar a
mesma quantidade de bens.
Como destacado por Huberman (1976), os arrendatrios tambm sofreram com o
aumento de preos: recebiam o mesmo valor pelo arrendamento de suas terras, mas deveriam
despender uma maior quantidade de dinheiro para pagar os novos preos altos dos bens que
necessitavam. Por no possurem o controle do nvel de preos, acabava por se perceber,
como nica sada, o aumento dos preos dos arrendamentos. Aqui percebe-se o primeiro
ponto de transformao da sociedade feudal, onde um nmero cada vez maior torna-se
impossibilitada de arcar com os custos maiores das terras e, sem poder pagar, so arrancados
de seu nico meio de vida.
O fator seguinte mostra-se apenas como uma outra sada, por parte dos arrendatrios,
para este aumento no nvel geral de preos: a poltica de cercamentos, presente principalmente
na Inglaterra. De acordo com Huberman (1976, p.114), a construo de cercas, atrs das
quais a terra continuava a ser lavrada, no prejudicavam a ningum e levaram a ummelhoramento na produo. Todavia, um tipo de produo tornava parte relevante dos
antigos lavradores desnecessria para esta tentativa dos arrendatrios se safarem dos preos: a
criao de ovelhas. Pauta de exportao principal da Inglaterra, a produo de l foi
vislumbrada como uma boa oportunidade de ganhar mais dinheiro. Entretanto,
Para cuidar de ovelhas, necessrio um nmero de pessoas menor do que paracuidar de uma fazenda e os que sobravam ficavam desempregados. Muitas vezes,o senhor achava que para reunir numa s rea as vrias propriedades espalhadastinha de expulsar os arrendatrios de cujas terras necessitava. Assim fazia e maisgente perdia seu meio de vida. (HUBERMAN, 1976, p.115)
Porm, como bem explana Marx (2004, p.77), o antigo regime estava cavando a
prpria cova ao expulsar os pequenos lavradores,
Pois, a grande propriedade fundiria, como na Inglaterra, atira a maioriapreponderante da populao para os braos da indstria e reduz os seus prpriostrabalhadores completa misria. Ela engendra e aumenta, portanto, o poder de seuinimigo, do capital, da indstria, na medida em que lana braos e uma completa etotal atividade do pas para o outro lado. Torna industrial a maior parte do pas,
portanto [torna-se] adversria da grande propriedade fundiria.
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Finda-se aqui a anlise voltada ao antigo regime. Apesar disso, pode-se concluir que
as modificaes nas reas onde ainda reinavam o modo de produo feudal, suas leis e seus
costumes, moldaram consequentemente as principais caractersticas das cidades, principais (e
talvez nicos) destinos de todos que foram expulsos de suas terras e que no mais possuam o
mnimo necessrio para sobreviverem11. Uma ideia aproximada das condies j pode ser
delineada atravs do que foi exposto at este momento: do que poderia resultar, dentro de
conglomerados urbanos, onde a liberdade lei (e aqui faz-se a mesma ressalva sobre a ideia
de liberdade defendida anteriormente), a presena de quantidade enorme de miserveis, que
no possuam meios de subsistncia e, desconhecendo o novo mundo, os meios necessrios
para, sob a prpria iniciativa, constiturem o prprio negcio? No possuindo moradia, terra
ou dinheiro, detendo apenas a prpria capacidade de trabalhar, o que os esperava?
O movimento de fechamento das terras provocou muito sofrimento, mas ampliou aspossibilidades de melhorar a agricultura. E quando a indstria capitalista tevenecessidade de trabalhadores, encontrou parte da mo-de-obra entre esses infelizesdesprovidos de terra, que haviam passado a ter apenas a sua capacidade de trabalho
para ganhar a vida. (HUBERMAN, 1976, p.118)
2.3 Condies urbanas: consequncias (parte da) sociedade
Relatos de estrangeiros que iam Londres para realizarem seus negcios chegam a
impressionar aqueles que desconhecem o carter das cidades inglesas (e das demais naes
desenvolvidas) durante o sculo XVIII e XIX. Muitos viajantes notavam o 'cheiro' de
Londres enquanto se aproximavam de longe, e cartas recebidas da capital eram
frequentemente ditas terem um odor de 'fuligem'12(BRITISH, 2013, traduo nossa).
A imagem das cidades cujo desenvolvimento se apresentava como fruto da ascenso
da produo industrial, no era das melhores. Refgio da massa de lavradores pobres,
expulsos de suas terras devido ao cercamento das mesmas ou devido aos altos preos dos
arrendamentos, nada garantiria, entretanto, a sobrevivncia dos mesmos naquele novo local13.
11. Tornou-se, ento, a mais miservel de todas as classes sociais, um proletrio agrcola; onde no haviatrabalho disponvel em lavouras, ele acabou por se transformar em indigente, at mesmo em ladro e comumenteem mendigo. (HEILBRONER, 1996, p.34)12.Many travellers noted the smell of London as they approached from far away, and letters received from thecapital city were often said to have a sooty odour.
13. Para tornar o entendimento sobre o modo como as cidades estavam organizadas e as consequncias desta
organizao para a sociedade, ter-se- por pressuposto o surgimento e o estabelecimento do processo deproduo industrial, baseada na larga utilizao da maquinaria pesada, caracterstica da segunda metade dosculo XIX. O desenvolvimento da indstria, entretanto, ser explicado na prxima seo.
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As ideias de liberdade econmica, em comparao vida esttca caracterstica da
antiga organizao feudal, tornara-se um grande chamariz para mercadores e at mesmo a
alguns pequenos produtores. A reunio em um mesmo local de produtores individuais,
corporaes e ligas de produo tambm criaram novos sujeitos para o novo cenrio
econmico, como os intermedirios e os banqueiros14(HUBERMAN, 1976). Enquanto aquele
gerava a especializao atravs de uma reorganizao do modo de produo (denominado por
Huberman (1976, p.120) de sistema de produo domstica), o fornecimento de matrias-
primas e de mercado para os produtos finais, este estava responsvel, conforme percebido
at hoje, pela transferncia de importantes quantias de dinheiro, que financiavam os primeiros
projetos industriais e demais empreendimentos. Todavia, estes atores no sero aqui
estudados. Ser analisada a maior parte da populao urbana inglesa, a saber, os trabalhadores
das indstrias, bem como os prprios miserveis criados por estas.
Ressalta-se inicialmente que o antigo quadro econmico no qual se encontrava a
sociedade, de relativa estabilidade, onde o mnimo necessrio sobrevivncia era garantido,
no se mostrava totalmente benfico realizao do homem enquanto ser pensante. De
acordo com Engels (2010, p.47), os habitantes da economia feudal j se mostravam
intelectualmente mortos,
viviam exclusivamente para seus interesses privados e mesquinhos, para o tear epara a gleba e ignoravam tudo acerca do grandioso movimento que, mais alm,sacudia a humanidade. Sentiam-se vontade em sua quieta existncia vegetativa e,sem a revoluo industrial, jamais teriam abandonado essa existncia, decertocmoda e romntica, mas indigna de um ser humano. De fato, no eram sereshumanos: eram mquinas de trabalho a servio dos poucos aristocratas que at entohaviam dirigido a histria; a revoluo industrial apenas levou tudo isso s suasconsequncias extremas, completando a transformao dos trabalhadores em puras esimples mquinas e arrancando-lhes das mos os ltimos restos de atividadeautnoma mas, precisamente por isso, incitando-os a pensar e a exigir umacondio humana.
Desta forma, como bem explana o autor alcanando, obviamente, uma anlise que
ultrapassa consideraes econmicas nenhum dos dois cenrios se mostravam como
instigantes completude do homem, principalmente sobre seu prprio trabalho, visto que em
ambos havia tipos de alienao e de explorao diferentes. A diferena estava nas condies
oferecidas pelas cidades, onde os fatores citados eram percebidos mais facilmente.
Como defendido, a expanso das cidades teve por fator primordial a procura dos
pobres e miserveis expulsos de suas terras. A rpida procura por um lugar, entretanto, no
14. Ambos os sujeitos sero importantssimos para o crescimento da indstria.
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era acompanhada por uma urbanizao que promovia uma melhor constituio da estrutura
oferecida pelas cidades. Exemplo do descompasso cidade-populao se mostrou na cidade de
Paris, onde, apesar do desenvolvimento tardio de sua zona urbana15,
De menos de 600000 habitantes na poca da Revoluo de 1789 e 714596 habitantesno final do Primeiro Imprio, Paris atinge 1226980 habitantes em 1851 e, quinzeanos depois tem uma populao de 1823000 habitantes. Aumento expressivo ealarmante se for levado em conta ter at 1850 o desenho urbano da cidade
permanecido inalterado. (BRESCIANI, 2004, p.74-5, grifo nosso)
Comandadas por ricos comerciantes, pouco importava a maneira como os detentores
da capacidade de trabalho se amontoavam nas cidades, seja em seus domiclios, seja na rua.
O importante seria prov-los do mnimo para estarem presentes no dia seguinte. Se
conseguiam viver sem um teto, o burgus via com bons olhos, j que no teria despesas
maiores. Como o companheiro de passeio de Engels responde, ao ser indagado por este sobre
a situao precria da arquitetura de Manchester e de suas pssimas condies, apesar disso,
aqui se ganha um bom dinheiro (ENGELS, 2010, p. 308).
Sobre as condies das cidades, j se percebem suas consequncias ao homem apenas
considerando o grande povoamento sofrida pelas mesmas. De acordo com Bresciani (2004,
p.23), Poucos dias de permanncia na cidade bastam para que identifique os 'efeitos
devastadores da aglomerao urbana' Engels (2010, p.137) completa com o caso de Londres:
A mera concentrao da populao nas grandes cidades j exerce uma influnciadeletria. A atmosfera de Londres no pode ser to pura e rica em oxignio como ade uma regio rural; 2,5 milhes de pessoas respirando e 250 mil casas amontoadasnuma rea de trs ou quatro milhas quadradas consomem uma enorme quantidade deoxignio que dificilmente se renova, uma vez que a arquitetura citadina no favorecea circulao do ar. O gs carbnico produzido pela respirao e pela combusto
permanece nas ruas graas sua densidade e porque as correntes principais dosventos passam acima das casas. Os pulmes dos habitantes no recebem a poroadequada de oxignio e as consequncias so a prostrao fsica e intelectual e uma
reduo da energia vital. Por isso, os habitantes das grandes cidades esto menosexpostos s doenas agudas, particularmente do tipo inflamatrio que os moradoresdas reas rurais, que respiram um ar livre e normal mas, em contrapartida, oscitadinos sofrem muito mais doenas crnicas. E se a vida nas grandes cidades, emsi mesma, j no fator conveniente sade, imagine-se o efeito nocivo causado
pela atmosfera anormal dos bairros operrios, onde, como vimos, encontra-sereunido tudo que pode envenen-la. (ENGELS, 2010, p.137)
a partir do xodo que as consequncias do modo de organizao da sociedade
industrial comeam a tomar forma sobre o corpo e a mente do homem, agora assalariado,
15. Enquanto a Inglaterra de 1850 tem 50% da sua populao nas cidades, na Frana 75% da populaoencontra-se no campo dedicando-se agricultura. Essa proporo, que na Inglaterra se altera significativamente
para 35% no campo em 1871, na Frana s logra baixar para 69% (BRESCIANI, 2004, p.71).
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dependendo exclusivamente da venda de sua capacidade de trabalho para manter-se vivo.
Atravs da anlise das condies que se percebem na cidade, partindo para as condies de
suas prprias moradias (quando possuem) e, por fim, pelas condies de seu trabalho (e aqui
faz-se referncia s formas de trabalho encontradas, do tpico trabalho na indstria s rotas de
fuga encontradas pela camada menos favorecida da sociedade, como o roubo e a prostituio),
perceber-se- que no somente por brincadeira que Paris foi chamada de inferno
(CHEVALIER apud BRESCIANI, 2004, p.77).
Em relao s condies gerais das cidades, defende-se que o desenvolvimento das
caractersticas que acabariam por abalar a condio fsico-mental dos assalariados so frutos
diretos do desenvolvimento paralelo das indstrias e demais estabelecimentos manufatureiros.
No dever ser confundido, entretanto, que o surgimento das cidades tenha sido efetivado
pelo capital industrial. Atravs do que foi exposto anteriormente, o surgimento e
desenvolvimento dos conglomerados urbanos se deu atravs de fatores diferentes uma
atividade do capital industrial, por assim se referir aos investimentos realizados pelos
mercadores mais ricos em compra de mo-de-obra e no desenrolar do processo de separao
entre os trabalhadores e os meios de produo, bem como os investimentos em estrutura para
o novo processo produtivo, fator este mais visvel.
Com um olhar mais geral sobre as cidades do sculo XVIII e XIX, percebe-se que as
ideias que nortearam sua formao, como a de liberdade, foram as ideias que continuaram a
guiar seu caminho: a livre concorrncia16, o livre mercado e, principalmente, a livre iniciativa.
Desta maneira, a cidade se mostrava como fruto das escolhas individuais de comerciantes,
especuladores e industriais principalmente, possuidores de poder econmico e, com isso,
conforme sempre demonstrou a histria do homem, de poder poltico. A liberdade tambm se
manifestava atravs das modificao nas antigas leis e regras fixas caractersticas do regime
anterior. Sendo libertado das antigas amarras feudais, portanto, o homem v-se cada vez mais
capacitado a modificar a sua realidade atravs de seus prprios interesses (que, de acordo com
Smith, culminaria em um ganho coletivo). As antigas estruturas dos centros e cidades, desta
maneira, modificaram-se com o prprio carter que o capital industrial adota, em contraste
16. A concorrncia a expresso mais completa da guerra de todos contra todos que impera na modernasociedade burguesa. Essa guerra, uma guerra pela vida, pela existncia, por tudoe que, em caso de necessidade,
pode ser uma guerra de morte, no se trava apenas entre as diferentes classes da sociedade, mas tambm entre os
diferentes membros dessas classes: cada um constitui um obstculo para o outro e, por isso, todos procurameliminar quem quer que se lhes cruza o caminho e tente disputar seu lugar. Os operrios concorrem entre si talcomo os burgueses. (ENGELS, 2010, p.117)
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com o capital comercial: agora adotado por um movimento ininterrupto, sempre em busca de
gerar o maior lucro possvel.
Em sua nfase na especulao, no na segurana, nas inovaes lucrativas antes quenas tradies conservadoras do valor e na continuidade, o capitalismo tendeu adesmantelar toda a estrutura da vida urbana e a coloca-la numa nova base impessoal:o dinheiro e o lucro. Tudo isso teve um efeito direto sobre as velhas tanto quantosobre as novas estruturas. As antigas tornaram-se dispendiosas: as novas foramconcebidas, quase desde o princpio, como efmeras. O capital, mais aventurosoquando era lquido e mvel, olhava com desconfiana os pesados investimentos emequipamentos e edifcios permanentes; e mesmo depois que tinha aperfeioado umaforma mais fluida e transfervel, na sociedade por aes tendia a favorecerconstrues de carter utilitrio, de edificao rpida, fceis de substituir excetoquando a necessidade de confiana pblica na riqueza e solidez de uma instituio
justificava um pesado investimento em ostentatria alvenaria [] (MUMFORD,
1998, p.451)
No se importa a maneira como a cidade est organizada nem as consequncias que o
processo produtivo industrial poder acarretar sociedade; em primeiro lugar, acima da
prpria humanidade, deve se encontrar o lucro e o dinheiro. Esta indiferena acerca da prpria
populao das cidades provocar os mais diversos malefcios ao homem, desde o prprio
adoecimento do corpo, provocado por um atropelamento da populao crescente sobre a
estrutura urbana estagnada, perda da identidade individual, sendo substituda pela condio
de habitante de um grande aglomerado urbano (BRESCIANI, 2004, p.11).Este comportamento socioeconmico, somada ineficcia do Estado por atender aos
anseios da elite, industriais e ricos comerciantes, ao invs das necessidades de toda a
populao era visvel no apenas no prprio comportamento adotado pelos cidados, mas
tambm pelas moradias com que contavam. O que, afinal, um antigo campons, sem terras e
demais meios para manter-se vivo sejam estes os meios de produo ou os prprios bens
ditos de necessidade primria , poderia esperar de uma nova organizao social calcada na
liberdade de iniciativa e na minimizao do poder governamental sobre as foras do mercadoe do progresso17?
As casas so habitadas dos pores aos desvos, sujas por dentro e por fora e tm umaspecto tal que ningum desejaria morar nelas. Mas isso no nada, se comparados moradias dos becos e vielas transversais, aonde se chega atravs de passagenscobertas e onde a sujeira e o barulho superam a imaginao: aqui difcil encontrarum vidro intacto, as paredes esto em runas, os batentes das portas e os caixilhosdas janelas esto quebrados ou descolados, as portas quando as h so velhas
pranchas pregadas umas s outras; mas, nesse bairro de ladres, as portas sointeis: nada h para roubar. Por todas as partes, h montes de detritos e cinzas e asguas servidas, diante das portas, formam charcos nauseabundos. Aqui vivem os
17. Fatores que caracterizavam a ideia do Laissez-faire, Laissez-passer, Laissez-aller (Deixe fazer, Deixe,passar, Deixe andar), defendida principalmente por Adam Smith.
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mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos, todos misturados comladres, escroques e vtimas da prostituio. (ENGELS, 2010, p.71)
No seria certo, entretanto, considerar que nada se fazia perante as condiesinumanas que mostravam as habitaes ou o ambiente; so inmeros os relatrios acerca dos
casos percebidos por mdicos ou agentes sanitrios. As informaes, entretanto, pouco
importavam elite capitalista: se o trabalhador conseguisse sobreviver a essas condies, o
capitalista no precisaria se importar com tamanha bobagem; caso o trabalhador perecesse,
havia uma fila enorme, todos os dias, em frente s fbricas, de pobres coitados buscando
preencher a antiga vaga, mesmo que por um salrio menor.
Relatrios de autoridades administrativas do perodo revelavam que as condiessanitrias das famlias que se conglomeravam nos pores nas cidades de Liverpool,Manchester, Leads e vrias reas de Londres, bem como os sofrimentos fsicos edesordens morais causados quelas, eram maiores nestes espaos do que at mesmonas prises (BRESCIANI, 2004, p.29).
Benevolo (2007) analisa o cotidiano dos trabalhadores das cidades inglesas e promove
uma aproximao de cada detalhe percebido pela maior parte da populao: o trnsito
misturava-se ao esgoto a cu aberto, as brincadeiras das crianas misturavam-se com reas de
criao de animais normalmente porcos, devido facilidade de adequao destes com as
pssimas condies de higiene nas quais se encontravam as ruas, becos e at mesmo algumas
habitaes. As casas eram apertadas, e mesmo assim, devido aos altos aluguis cobrados pelo
espao exguo, comportavam cerca de duas, at mesmo trs famlias. Suas condies
mostravam-se to ruins quanto as condies das ruas das cidades.
A misria dever ser o estado da maior parte da populao para que apenas parte dela
torne-se poderosa, e, com esta elite no poder, v-se aqui um ciclo vicioso, onde os mais
poderosos, nas posies regulamentadoras do modo de vida das cidades e de sua organizao,
torcem o trabalhador miservel at a ltima gota de suor, deixando-o aos ratos, mas
elevando-se s posies de destaque econmico. Tornam-se estes poucos a encarnao do
capital, o formato vivo da ganncia e da explorao do mais fraco, a busca pelo crescimento
ilimitado.
O modo de vida das cidades, como consequncia direta do modo de produo
capitalista, gera consequncias no comportamento e nas perspectivas de toda a populao.
Como se no bastasse a explorao dentro das fbricas, fora delas o ser humano no
encontrava espaos propcios nem mesmo ao prprio descanso, necessrio aps mais de 15
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horas de trabalho ininterruptas. O espao fora das fbricas acentuava os males gerados
durante a produo de mercadorias; a integridade fsica e moral do indivduo era afetada, esta
abalando fortemente o pensamento, a alma, enfim, a psique humana.
O capital no tem por isso a menor considerao com a sade e com a vida dotrabalhador, a no ser quando a sociedade o compele a respeit-las. queixa sobre adegradao fsica e mental, morte prematura, suplcio do trabalhador levado at completa exausto responde: Por que nos atormentarmos com esses sofrimentos, seaumentam nosso lucro? (MARX, 1980, p.306)
Como consequncias ltimas identificadas do modo de produo populao mais
debilitada econmica e politicamente e evidente em cada espao das cidades, tem-se o
desvirtuamento do carter dos trabalhadores e, por fim, o perecimento dos mesmos. Em
relao ao primeiro, percebe-se ser manifestada, na verdade, atravs da prpria condio do
miservel em no se encaixar como mo-de-obra indstria. Claro dever parecer que, da
mesma forma que o prprio espao urbano no comporta tamanha quantidade de pessoas, as
indstrias tambm no garantem empregos para todos. Desta forma, como tentativas de se
manterem vivos, os excludos do processo de produo industrial buscam outras sadas para a
garantia de seu ganha-po. No se adequam a estas novas atividades apenas pela no-insero
no mercado de trabalho, mas tambm devido ao imediatismo da recompensa e do prazer
proporcionado por tais atos em comparao ao trabalho nas fbricas, conforme diz o sheriff
Alisson, citado por Engels (2010, p.160). Caracterizados por muitos como a escria da
sociedade, os cidados modificam seu carter e comportamento para se adequarem s vidas
mais vis que se consideram neste perodo. Como principais alternativas, tem-se, por exemplo,
a prostituio, a ladroagem e a jogatina. Por serem considerados contrrios corrente do
emprego em fbricas, estabelecimentos manufatureiros e ao comrcio, e pela prpria
conscincia do carter de seus trabalhos, tais atividades demonstram ser mais recorrentes no
perodo da noite, quando a cidade continua a pulsar, mas fora de seu espao industrial,
movimentando-se atravs de ruelas e becos.
Os combates do dia se interrompem, os soldados do trabalho repousam, os demniosdespertam e preenchem o espao urbano. A multido outra. O formigar das
prostitutas, os escroques atentos junto s mesas de jogo, os ladres na sua labutasilenciosa: tais so seus componentes [...] [Nas regies mais escuras], a multidorealiza o cotidianamente renovado espetculo da promiscuidade, da agresso; emsuma, todo o perigo pressuposto como presena em repouso, durante o dia, pe-sede tocaia em cada reentrncia da rua, em todos os becos mal iluminados. Para oscontemporneos, na noite, sob a luz dos lampies, a multido assume a imagem
acabada de alguma coisa obscura e inextricvel. So apenas perceptveis vozes,sussurros, vultos, olhares, passos. (BRESCIANI, 2004, p.13-14)
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E no apenas por este lado que a marcha desta parte da multido noturna
mantida. Expande-se tambm devido ao carter de fuga da realidade e do prazer imediato
que estas atividades propem aos corpos esgotados dos trabalhadores. De acordo com o
mesmosheriff Alisson de Engels (2010, p.160), esta busca pelo vcio (e aqui deve ser inserido
tambm o alcoolismo) e pelos prazeres ditos proibidos no demonstram uma anormal do
carter desta classe, mas da natureza quase irresistvel das tentaes a que esto expostos os
pobres. O mesmo personagem expe que Existe um grau de misria e uma imposio do
pecado a que a virtude raramente pode resistir e a que a juventude, especificamente, no
consegue se contrapor. Todavia, para tornar a concluso mais acertada, deve-se ter em mente
que no apenas a condio de misria e a simples existncia do pecado tornam estasatividades possveis. Deve-se fazer meno aos motivos que levaram parte majoritria da
sociedade a esta situao de misria, debilidade de seu carter e privao de prazeres
necessrios vida, indo do cio vivncia salutar com a famlia. O cotidiano se transformou
em algo desesperador , fazendo com que o prazer rpido e imediato e a fuga da realidade cruel
fossem buscados com maior frequncia.
(...) o alcoolismo deixa de ser um vcio de responsabilidade individual; torna-se um
fenmeno, uma consequncia necessria e inelutvel de determinadas circunstnciasque agem sobre um sujeito que pelo menos no que diz respeito a elas no possuivontade prpria, que se tornou diante delas um objeto; aqui, a responsabilidadecabe aos que fizeram do trabalhador um simples objeto. Assim como inevitvelque um grande nmero de operrios se torne alcolatra, tambm inevitvel que oalcoolismo provoque efeitos destrutivos sobre os corpos e os espritos de suasvtimas, agravando todas as predisposies s doenas derivadas das condiesgerais de abdominais, sem esquecer a ecloso e a propagao do tifo. (ENGELS,2010, p.143)
A ltima consequncia, obviamente, o perecimento do ser humano. Nada mais
comum, apesar de impactante, do que se ouvir falar ou perceber em meio ao espaos urbanos,
em adultos e, principalmente, em crianas que morrem de fome18 sendo estas mais
facilmente afetadas pela falta ou debilidade dos nutrientes necessrios durante o dia. De
acordo com Engels (2010, p.142),
A falta temporria de alimentao suficiente, que todo trabalhador experimenta pelomenos uma vez na vida, apenas agrava as consequncias de uma alimentao
18. De acordo com Engels (2010), os prprios operrios ingleses utilizam o termo assassinato social paracaracterizar este processo de definhamento do ser humano enquanto proletrio, assim tratado pela burguesia
devido sua aparente falta de importncia ao desenvolvimento da humanidade, baseada no crescimentoeconmico, e que, por fim, culminar na morte daquele sujeito marginalizado: e [os operrios] acusam nossasociedade de pratic-lo continuamente. Estaro errados? (2010, p. 69)
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normalmente m. Crianas que, no perodo em que a alimentao lhes maisimportante, s podem comer metade do que necessrio para matar a fome (equantas nem isso comem durante as crises e, s vezes, nem mesmo nos perodosmais favorveis), essas crianas se tornaro quase certamente fracas, escrofulosas e
raquticas e j seu aspecto o demonstra. O abandono a que est condenada agrande maioria dos filhos dos trabalhadores deixa sequelas indelveis e tem porconsequncia o enfraquecimento fsico de toda a populao operria. Se a issoacrescermos o vesturio pouco adequado dessa classe, que dificulta quando noimpossibilita a proteo contra o frio, a necessidade de trabalhar at o limite daexausto, a misria da famlia que aumenta quando h doenas e a ausncia habitualde qualquer assistncia mdica, teremos um quadro aproximado do estado de sadedos trabalhadores ingleses.
Alm disso, como o prprio autor tambm enfatiza, casos de suicdio eram tidos como
comuns em meio classe operria.
A misria s permite ao operrio escolher entre deixar-se morrer lentamente defome, suicidar-se ou obter aquilo de que necessita onde encontrar em outras
palavras, roubar. No espanta o fato de a maioria preferir o furto ao suicdio ou morte por fome. Sem dvida, h entre os operrios muitos indivduossuficientemente moralistas para, mesmo na extrema privao, no roubar; essesmorrem de fome ou se suicidam. O suicdio, que no passado foi um invejvel
privilgio das classes altas, est atualmente na moda na Inglaterra at entre osproletrios e muitos pobres diabos se matam na nica alternativa que lhes resta paraescapar misria. (ENGELS, 2010, p.155)
Produto das fbricas, as cidades da Europa, principalmente da Inglaterra, onde a
Revoluo Industrial se d com maior fora e, com isso, as condies das cidades so maisagravadas, oferecem um quadro antagnico elevado ao extremo. Enquanto uma classe
sobrevive em meio pompa proveniente do novo modo de produo e dos lucros
provenientes do comrcio, a outra classe, que comporta a maior parte da populao, sofre com
o desenvolvimento das indstrias e seus produtos: misria, desgaste fsico, debilitao mental.
Sobre o a pedra angular na qual se baseia a economia capitalista, o trabalho, delineia-se a
relao inicial entre o sistema econmico e o homem, a fora de trabalho, fora motriz da
expanso do capitalismo, por um lado, e nico meio de sobrevivncia de toda uma classe, poroutro, passando de meio de realizao de um ser dotado de inteligncia a mercadoria.
Este ambiente desordenado e inabitvel que chamaremos de cidade liberal oresultado da superposio de muitas iniciativas pblicas e particulares, no-reguladas e no-coordenadas. A liberdade individual, exigida como condio para odesenvolvimento da economia industrial, revela-se insuficiente para regular astransformaes de construo e urbanismo, produzidas justamente pelodesenvolvimento econmico. As classes pobres sofrem mais diretamente osinconvenientes da cidade industrial, mas as classes ricas no podem pensar em fugirdeles por completo. (BENEVOLO, 2007, p.567)
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Este panorama das cidades, entretanto, talvez seja pouco frente ao cenrio paralelo
presente nas fbricas europeias dos sculos XVIII e XIX. As condies das fbricas se
mostram mais lgubres do que as percebidas at ento fora de suas paredes. J deformado
pela cidade, o trabalhador, durante suas horas de atividade produtiva, exaurido pelo trabalho
excessivo e pelas pssimas condies que lhe so oferecidas.
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3 AS FBRICAS E A SITUAO DA CLASSE TRABALHADORA
3.1 O crescimento das indstrias
O surgimento das indstrias at ento se mostra como ponto importante de discusso
entre intelectuais da Histria e da Economia. Em relao aos que se dedicam a esta anlise,
faz-se meno constantemente ao processo de diviso do trabalho sofrido pelas antigas
produes artesanais ao fim do perodo feudal e desapropriao dos meios de produo em
posse dos prprios artesos, fazendo assim com que estes se enfileirassem nas portas das
incipientes indstrias buscando vender sua fora de trabalho. Apesar dos mais diversos
estudos sobre e, com isso, das diversas perspectivas que se possa ter acerca do surgimento das
indstrias, um fator parece claro: da mesma forma que em todas as passagens entre diferentes
etapas da histria da humanidade, seja econmica ou poltica, tal transformao no
aconteceu da noite para o dia. Atores, novos cenrios e motivaes entram em cena para
culminarem no lento desenvolvimento de um novo modelo de sociedade.
Inicialmente, deve se ter em mente um fator-chave para o surgimento e posterior
crescimento das indstrias. Qual o motivo principal para que a produo excessiva proposital
de bens visando a troca assim, no mais tendo a subsistncia o seu principal foco tenha se
tornado o norteador dos investimentos dos agentes durante os sculos XVIII e XIX? As
vantagens obtidas com a prpria troca. Talvez no esteja claro se ainda se tiver por base
algumas das trs formas de troca iniciais das mercadorias, conforme explana Marx (1980)19; a
motivao para o crescimento da produo durante estes sculos torna-se compreensvel
quando passamos para a quarta e ltima forma de expresso do valor, a forma dinheiro, na
qual apenas uma mercadoria considerada como equivalente geral de todas as outras,
tornando-se, desta maneira, a prpria expresso do valor20, mercadoria com a qual se pode
chegar posse de qualquer outra existente no mercado. Para a efetivao dos processos de
troca, torna-se necessria uma condio favorvel a priori, qual seja, a constituio de um
local em que os diferentes produtores e consumidores possam se encontrar. Como
defendido por Huberman (1976, p.119), a expanso do mercado uma chave importante
19. So as formas de expresso do valor: forma simples ou fortuita, forma expansiva ou desdobrada e a formageral. De acordo com o autor, elas se baseiam no desenvolvimento de cada lado da expresso de troca, o ladorelativo e o lado equivalente, mercadorias diferentes sob o aspecto de seus valores de uso (desde a composio
fsico-qumica finalidade com a qual foi constituda), mas equiparveis devido ao seu valor, devido substncia comum s duas: trabalho (mais especificamente, tempode trabalho)
20. Esta seria, portanto, a nica finalidade do dinheiro, seu nico valor de uso.
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para a compreenso das foras que produziram a indstria capitalista, tal como a
conhecemos.
Tendo por plano de fundo as novas oportunidades geradas atravs da troca, pode-se ter
como passo inicial para o desenvolvimento das indstrias, aps o crescimento do mercado, o
surgimento do intermedirio.
Novo personagem introduzido simples sociedade da produo artesanal, o
intermedirio, proveniente muitas vezes de regies especializadas na troca de mercadorias,
aparece como facilitador da produo artesanal. Apesar de muitas vezes ser percebido como
um mercador comum, o intermedirio mostrava-se mais que isso. Visando a lucratividade
baseada no sobrepreo dos bens produzidos pelos sistemas familiar e de corporaes, o
intermedirio insere-se no caminho percorrido pelos produtores antes do processo produtivo e
aps o trmino deste. Assim, como deixa claro Hubermam (1976, p.120),
Entra em cena o intermedirio, e as cinco funes do mestre arteso [fabricante,mercador, empregador, capataz, comerciante] se reduziram a trs trabalhador,empregador, capataz. Os ofcios de mercador e comerciante deixaram de seratribuio sua. O intermedirio lhe entrega a matria-prima e recebe o produtoacabado. O intermedirio coloca-se entre ele e o comprador. A tarefa do mestrearteso passou a ser simplesmente produzir mercadorias acabadas to logo recebe amatria-prima.
Inicia-se aqui, de acordo com Huberman (1976, 125), uma situao de dependncia
dos artesos sobre a figura do intermedirio, na qual aqueles dependeriam exclusivamente
deste tanto para se dar incio ao processo produtivo atravs da captao das matrias-primas
necessrias quanto da efetivao daquela produo no mercado21. Com isto, d-se cabo a um
processo de enriquecimento do prprio intermedirio, mercador e germe do capitalista do
perodo industrial, baseando-se no aproveitamento da produo de terceiros para seus
negcios no mercado22. Entretanto, tal atitude no deve, ainda, ser confundida com o carter
da explorao capitalista. Aqui percebe-se o principal contraponto a este sistema econmico:
os produtores de mercadorias ainda possuam a propriedade de seus meios de produo.
21. O mesmo autor caracteriza os artesos, nesta situao de dependncia, como tarefeiros assalariados.
22. No correr de suas notas histricas sobre o capital mercantil, Marx indicou que este, em seu estgio inicial,apresentava uma relao puramente externa quanto ao modo de produo, que permanecia independente eintocado pelo capital, sendo o mercador apenas o homem que remove os artigos produzidos pelas guildas oucamponeses, para ganhar com as diferenas de preo entre as diversas zonas produtoras. Mais tarde, no entanto,o capital mercantil comeou a ligar-se ao modo de produo, em parte a fim de explor-lo mais eficientemente
para deteriorar a situao dos produtores diretos... e absorver seu trabalho excedente com base no antigo modode produo em parte para transform-lo nos interesses de lucros maiores e no servio de mercados maisamplos. (DOBB, 1965, p.156)
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Todavia, o intermedirio no se limitou apenas a ser a ligao entre os artesos23e o
mercado seja em relao s matrias-primas ou dos produtos finais. Este sujeito, agora
fixado no processo produtivo como elemento importante, principalmente, para a realizao
das mercadorias, ou seja, para a execuo do objetivo da produo atravs da troca no
mercado, vislumbra a capacidade potencial de lucratividade daquele processo produtivo no
qual baseia a sua atividade como estando alm de sua capacidade efetiva. Devido ao poder
que detm atravs de sua posio-chave, o intermedirio poder ser visto como figura
importante para o desenvolvimento da indstria. A partir daqui, pode-se inferir que tal
personagem seguiria um dos caminhos que se apresentavam frente, ambos rumo
lucratividade: continuar a seguir com seu negcio, baseado na contratao de trabalhadores e
na produo voltada estritamente ao mercado, captando seu lucro, assim, no sobrepreo das
mercadorias, ou modificar o sistema de produo ao qual devia sua atividade. Em relao ao
primeiro, Huberman (1976, p.120) explica que
Esse mtodo, pelo qual o intermedirio emprega certo nmero de artesos paratrabalhar em seu material em suas respectivas residncias denominado sistema de
produo domstica. Note-se que na tcnica de produo o sistema domsticono difere do sistema de corporaes. Deixa o mestre arteso e seus ajudantes emcasa, trabalhando com as mesmas ferramentas. Mas embora o mtodo de produo
permanecesse o mesmo, a forma de negociar as mercadorias foi organizada emnovas bases, pelo intermedirio, atuando como negociante.
Para o segundo caso, tem-se a observao do autor de que, apesar de no possuir poder
suficiente para modificar radicalmente a tcnica utilizada pelos artesos, a figura do
intermedirio afetou drasticamente o volume da produo de mercadorias atravs de rearranjo
no modo de produo, mais especificamente atravs da insero da especializao do
trabalho. Inicia-se aqui uma da principais caractersticas que formam a imagem do trabalho
industrial e que, com o decorrer da Histria, ser levada ao extremo durante o capitalismo dos
sculos XX e XXI: a diviso social do trabalho.
Embora o intermedirio no modificasse a tcnica de produo, reorganizou-a paraaumentar a produo das mercadorias. Viu, sem demora, as vantagens daespecializao. William Petty, famoso economista do sculo XVII, ps em palavrasaquilo que o intermedirio estava fazendo na prtica. A fabricao da roupa deveficar mais barata quando um carda, outro dia, outro tece, outro puxa, outro alinha,outro passa e empacota, do que quando todas as operaes mencionadas socanhestramente executadas por uma s mo. [...] Cada trabalhador tem uma tarefa
23. Interessante observao faz Huberman (1976, p.121) ao perceber que h muito os intermedirios pareciam
percebera limitao imposta por aquela forma de organizao do processo produtivo sobre seus lucros auferidosno mercado: Os intermedirios frequentemente trabalhavam dentro da estrutura do sistema de corporaes,aceitando-o aparentemente, mas na realidade procurando min-lo.
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particular a fazer. Executa-a repetidamente e em consequncia se torna perito nela.Isso poupa tempo e acelera a produo. Outras modificaes se impuseram, paraatender s necessidades do mercado em expanso. Foi o que pensou o intermedirio(HUBERMAN, 1976, p.120)
Comea a ser esboado o caminho que levaria a maior parte da populao total
subservincia ao capital comercial, aos poucos metamorfoseando-se em capital industrial. Tal
como acontecera antes, com a emergncia das corporaes de ofcio, quando artesos que no
possuam laos com estas eram excludos do mercado atravs da fora imposta pelas
corporaes (incluindo at mesmo a fora bruta), a maturao do capital comercial em capital
industrial levar runa os pequenos produtores, seja atravs da desapropriao gradativa de
seus meios de produo, seja atravs da devorao causada pelos grandes empreendimentos
sobre os pequenos.
Cabe neste momento a insero do prximo personagem que tornou a industrializao
factvel. Apesar de boa parte dos desbravadores da indstria serem detentores de grandes
quantias de capital inicial, a figura do banqueiro tornou-se primordial para o surgimento e
crescimento de boa parte das plantas industriais. Como bem destaca Huberman (1976, p.102),
as pginas de Histria deviam ser dedicadas aos poderes verdadeiros que se escondiam atrs
dos tronos os ricos mercadores e financistas da poca. Dobb (1965, p.343) exemplifica
com o caso da indstria algodoeira:
Quanto ao capital para a indstria algodoeira, a maior parte parece ter vindo demercadores j estabelecidos. Arkwright levantou inicialmente capital para suainveno tornando emprstimos em um banco local de Nottingham, e mais tardevalendo-se de emprstimos feitos por dois mercadores-fabricantes ricos no setor damalharia. [...] Era bem comum que o mercador que importava algodo permitisseao jovem manufatureiro estabelecer-se, dando-lhe crdito de trs meses, enquanto omercador de exportao lhe dava um auxlio semelhante, pagando sua produosemanalmente. Foi assim, por um fluxo de capital vindo do comrcio, que a maior
parte das primeiras empresas industriais do Lancashire se iniciou e tornou-sepossvel a expanso imensa da indstria algodoeira. s vezes, os prpriosmercadores capitalistas se estabeleciam como industriais, tanto no Lancashirequanto em Yorkshire.
Huberman (1976, p.103), por sua vez, conta o caso da famlia Fugger, que
inicialmente tinha por empreendimento o comrcio de l e especiarias, passando em seguida
para a atividade bancria:
Mas foi como banqueiros que fizeram fortuna. Emprestavam capital a outrosmercadores, a reis e prncipes e, em troca, recebiam proventos de minas, deespecula
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