O chamado do monstro: entre o fantástico/insólito e o hiper-realismo
Janaina Rosa Arruda (UNIOESTE)1
Resumo: Talvez seja na infância e na adolescência que o leitor esteja mais disposto a encarar
o (im)possível na literatura; época em que a construção do sujeito pode passar por diversos
textos que dialoguem com sua identidade ou com a construção dessa. Diante dessa busca dos
jovens, pesquisadores como Teresa Colomer (2003), por exemplo, apresentam apontamentos
relevantes quanto à importância da literatura infantojuvenil na formação do leitor literário e de
que forma a narrativa infantil e juvenil atual são elaboradas para atrair esse público, pois a
“formação literária das crianças e dos adolescentes de nossa sociedade produz-se através da
leitura de textos de ficção”. Partindo dessas considerações, pretende-se apresentar uma análise
da obra “O chamado do monstro”, escrita por Patrick Ness e publicada em 2011 pela editora
Ática, mostrando como essa fornece traços do possível e do impossível em seu enredo que são
capazes de agradar ao jovem leitor. Assim, esse artigo busca apresentar algumas reflexões
acerca das marcas formais e temáticas que revelam facetas do hiper-realismo e do
fantástico/insólito nessa narrativa. Destaca-se o fato de ser um livro indicado pelo Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), o que torna relevante o estudo e a divulgação da obra
pelo fato de essa se tornar mais uma possibilidade de leitura no espaço escolar. Assim, o estudo
está fundamentado em pesquisadores que apresentam reflexões sobre o hiper-realismo e o
fantástico/insólito, assim como apontamentos acerca da literatura juvenil, tais como: Roas
(2014); Lewis (2009); Kothe (1994); Petit (2009); Colomer (2003) dentre outros. Encontrar
meios de promover o acesso e a divulgação da leitura é papel de todo o pesquisador que se
debruça sobre o assunto; ainda mais imprescindível é voltar essa perspectiva ao público juvenil,
apresentado textos que permitam o amadurecimento e o crescimento desse leitor.
Palavras-chave: Literatura infantojuvenil; Hiper-realismo; Fantástico; Insólito;
Abstract: Perhaps it is in childhood and adolescence that the reader is more willing to face the
(im) possible in literature; a time when the construction of the subject can pass through several
texts that dialogue with their identity or with the construction of this. Facing this search for the
young, researchers such as Teresa Colomer (2003), for example, present relevant notes on the
importance of children's literature in the formation of the literary reader and how the current
children's and youth narrative are designed to attract this audience, since the "Literary
formation of the children and adolescents of our society takes place through the reading of texts
of fiction". Based on these considerations, it is intended to present an analysis of the work "The
Call of the Monster", written by Patrick Ness and published in 2011 by Attica, showing how it
provides traces of the possible and impossible in its plot that are able to please the young reader.
Thus, this article seeks to present some reflections on the formal and thematic marks that reveal
facets of hyper-realism and the fantastic / unusual in this narrative. The fact that it is a book
indicated by the National Library Program of the School (PNBE) stands out, which makes the
study and the dissemination of the work relevant because it becomes one more possibility of
reading in the school space. Thus, the study is based on researchers who present reflections on
1 Mestranda da Linha de Pesquisa em Literatura, Memória, Cultura e Ensino - Área de Concentração em
Linguagem e Sociedade pela Universidade estadual do Oeste do Paraná.
hyper-realism and fantastic / unusual, as well as notes about youth literature, such as: Roas
(2014); Lewis (2009); Kothe (1994); Petit (2009); Colomer (2003) among others. Finding ways
to promote access to and dissemination of reading is the role of every researcher who studies
the subject; even more essential is to return this perspective to the youth audience, presenting
texts that allow the reader's maturation and growth.
Keywords: Children's literature; Hyperrealism; Fantastic; Unusual;
A história antes da história
O chamado do Monstro envolve mais do que uma história de ficção dedicada aos jovens
leitores. Seu autor, Patrick Ness, teve a missão de dar continuidade a uma ideia iniciada por
outra autora, Soibhan Dowd. Inicialmente, Dowd já havia planejado a história a ser vivenciada
pelo protagonista em sua obra, Conor O’Malley. Entretanto, enquanto ainda reunia suas
anotações para a escrita do livro, passava por sessões de quimioterapia e tratamentos na
tentativa de vencer um câncer de mama que a acometia. Mas ela não conseguiu.
Soibhan Dowd recebeu prêmios por suas obras, postumamente, e talvez o mais
significativo tenha sido o Prêmio Andersen, voltado a premiar obras da literatura
infantojuvenil. Assim, diante de anotações que poderiam se transformar em obra, Patrick Ness
foi convidado a dar continuidade aos planos de Dowd, de dar vida à história idealizada por ela.
Ele não chegou a conhece-la, mas já conhecia outras obras da autora. O próprio Ness diz no
prefácio do livro que, inicialmente, não aceitou a proposta, pois não se sentia seguro em dar
continuidade ao que Dowd havia planejado, mas que depois acabou sucumbindo ao convite.
A preocupação do autor era a de não tentar copiar a escrita de Dowd, pelo contrário, ele
queria continuar a história, mas de seu próprio jeito, respeitando o que fora idealizado, mas
também deixando suas próprias marcas. O desejo de Patrick, segundo ele mesmo, era de que
Siobhan Dowd aprovasse seu trabalho, que aquilo que escrevesse honrasse a sua memória.
Patrick conseguiu.
Desse modo, antes mesmo da narrativa ficcional, temos uma bela história que envolve
a produção desse texto. A obra é de 2011 e foi publicada no Brasil pela editora Ática, também
é uma indicação do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) aos alunos das escolas
públicas. Logo, observar com cuidado o texto de O chamado do Monstro torna-se uma missão
do pesquisador que se debruça sobre essa área da literatura infantojuvenil, ainda mais
conhecendo os pormenores que envolvem a sua produção.
Trata-se de um livro envolvente, capaz de misturar diferentes contextos na tentativa de
apresentar ao leitor os conflitos existenciais vivenciados pelo jovem Conor. Fantasia e
realidade se juntam para compor essa narrativa que permite aos jovens (assim como aos
adultos) se emocionarem diante das experiências de um menino de 11 anos.
O (im)possível no chamado
Nada melhor do que começar uma narrativa infligindo a dúvida ou o medo no leitor,
ainda mais se esse leitor for um jovem leitor. Em O chamado do monstro a narrativa já começa
com o aparecimento do Monstro na vida do protagonista, aparecimento esse promovido pela
temática do fantástico ao instaurar a dúvida, o meio fio, pelo qual o leitor caminha na tentativa
de entender os fatos que se desenrolam. Na visão de Roas,
O objetivo do fantástico é precisamente desestabilizar os limites que nos dão
segurança, problematizar as convicções coletivas, questionar, afinal, a
validade dos sistemas de percepção da realidade comumente admitidos
(ROAS, 2014, p. 134).
Ainda que o olhar de análise da obra seja o de pesquisador, é preciso perceber que
Patrick Ness questiona a realidade com o encontro de um garoto e um monstro logo nas
primeiras páginas. Afinal, a forma como esse encontro acontece é permeada pela insegurança
e pelo medo do personagem. A construção das cenas é realizada de modo gradativo, para que
o leitor seja envolvido pouco a pouco, para que seja entrelaçado pelos braços do insólito e que
permaneça atento às cenas que se apresentarão.
Podemos até mesmo antecipar a expectativa do fantástico/insólito antes mesmo da
leitura do texto propriamente dito, pois desde a apresentação da capa e das ilustrações o leitor
já é convidado a adentrar em uma narrativa, aparentemente, recheada de suspense. A escolha
pelas cores em preto e branco de todas as ilustrações, e as próprias ilustrações que não são
imagens simples, instaura antecipadamente o tom “sombrio” que envolve a narrativa.
A epígrafe apresentada antes do primeiro capítulo também corrobora na construção de
um efeito insólito logo nas primeiras páginas, pois diz: “Só se é jovem uma vez, costumam
dizer, mas a juventude não dura um bom tempo? Mais anos do que se pode aguentar.” Essa
epígrafe é assinada por Hilary Mantel, uma escritora britânica ganhadora de alguns prêmios
com histórias que envolvem suspense. Logo, pode-se perceber que a história do jovem Conor
estará, também, repleta de suspense.
Nas primeiras páginas encontramos:
Conor piscou, sonolento, e franziu os olhos. Algo não se encaixava. Sentou
na cama, um pouco mais acordado. O pesadelo se apagava, mas havia algo de
estranho que ele não conseguia tocar, algo diferente, algo... Aguçou os
ouvidos, tentando captar alguma coisa além do silêncio, mas tudo que pôde
escutar foi a casa em sua completa quietude, um estalido ocasional que vinha
do vazio lá de baixo, o farfalhar dos lençóis no quarto da mãe, ao lado. Nada.
E, de repente, algo. Algo que logo percebeu que foi o que o acordou. Alguém
o chamava. Conor. (NESS, 2011, p. 12).
Essa foi a primeira vez que Conor encontrou o Monstro. O efeito criado pelo
fantástico/insólito pode ser notado nessas linhas, pois a dúvida é marca desde o começo. Conor
está sonolento, não se pode afirmar ao certo se dormindo ou acordado, encontra-se naquele
momento em que se acorda de um pesadelo, mas esse ainda o incomoda. Seus sentidos estão
alterados e ele sente que tem alguma coisa errada, mas não sabe dizer o que é. O silêncio ao
seu redor deixa a cena ainda mais suspensa, até que a espera é quebrada por uma voz que chama
por seu nome.
A escolha dessa construção de cena por Patrick Ness pode remeter a situações
vivenciadas pelos próprios leitores. Afinal, quem nunca acordou à noite no meio de um
pesadelo? Quem nunca ficou perturbado com o silêncio ou se esforçou para ouvir além do que
gostaria? Pode-se ir mais fundo e questionar quem já teve a impressão de escutar alguém
chamando seu nome?
Ainda que esses eventos compactuem com a possibilidade do “sobrenatural”, o leitor
pode se identificar e possibilitar a instauração do fantástico/insólito no texto, pois Roas afirma
que
A vacilação não pode ser aceita como único traço definitivo do gênero
fantástico, pois não comporta todas as narrativas que costumam ser
classificadas assim. Em contraste, minha definição inclui tanto as narrativas
em que a evidência do fantástico não está sujeita a discussão, quanto aquelas
em que a ambiguidade é insolúvel, já que todas postulam uma mesma ideia:
a irrupção do sobrenatural no mundo real e, sobretudo, a impossibilidade de
explicá-lo de forma razoável (ROAS, 2014, p. 43).
Assim, pode haver explicações para a voz que Conor ouviu, talvez perturbações devido
ao pesadelo, mas também pode não haver uma explicação lógica, pode ser um rompante do
sobrenatural. No entanto, o próprio personagem busca uma explicação para o evento e a
narrativa mostra como a dúvida irá permanecer como companhia ainda em algumas cenas. No
trecho:
Tinha sido um sonho. O que mais poderia ser? Ao acordar pela manhã, a
primeira coisa que fez foi olhar para a janela. Ela continuava lá, claro, sem
nenhum estrago, sem nenhum buraco enorme dando para o quintal. Claro que
tinha sido um sonho. Só um bebezinho para achar que aquilo havia mesmo
acontecido. Só um bebezinho para acreditar que uma árvore – fala sério, uma
árvore – teria vindo morro abaixo e atacado a casa. Ele riu do próprio
pensamento, da bobagem que era aquilo tudo, e saiu da cama. Ouviu o som
de algo esmigalhando debaixo de seus pés. O chão do quarto estava coberto
de folhas de teixo pequenas e pontiagudas (NESS, 2011, p. 21).
Patrick Ness reproduz no personagem o confronto entre a realidade e o insólito.
Inicialmente, Conor busca uma explicação no sonho, acreditando que seu encontro com o
monstro não tenha passado de um pesadelo. O dia já amanheceu, a cena é outra, o medo não
mais pode perturbar seus sentidos e, como a maioria dos jovens, ele ri de sua credulidade em
monstros, afinal, era coisa de “bebezinho”. Mas um novo elemento perturba suas convicções,
pois ao toque de seus pés no chão, percebe seu quarto repleto de folhas do teixo, um indício de
que a realidade e o sobrenatural podem, de fato, existir simultaneamente. Mas que lugar é esse
em que o possível e o impossível ganham espaço? Para Petit, “É o texto que “lê” o leitor, de
certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que ele
mesmo não saberia nomear” (PETIT, 2008, p. 38).
O universo juvenil é recheado de incertezas, ora se é criança diante de algumas
situações, ora se é adulto para enfrentar outros eventos. A história de Conor exige do
personagem crescimento diante dos acontecimentos que se desenrolam na narrativa, mas ao
mesmo tempo ele não passa de um menino diante da vida. Tal paradoxo pode dialogar com o
leitor juvenil que faz a leitura desse texto. Ainda que o sobrenatural perturbe, a realidade pode,
muitas vezes, ser ainda mais perturbadora.
O (im)possível no chamado
A obra de Ness apresenta Conor como um menino que (sobre)vive diante de uma
doença terminal à qual a mãe é acometida. Em nenhum momento o autor nomeia essa doença,
mas a descrição da mãe e de seu tratamento permitem perceber de que se trata de um câncer.
Morando somente com a mãe, pois o pai os deixou para construir outra família num país
distante, Conor se sente sozinho, mesmo que a avó materna também seja figura importante na
narrativa, o garoto não tem por ela afinidade, o que torna sua desventura ainda mais
perturbadora.
O que temos na obra é o olhar de um menino diante de um problema que pode acometer
muitas famílias. A realidade da doença de sua mãe contrasta com sua experiência com o
monstro. Em vários momentos é como se existisse um mundo paralelo, como se a realidade
fosse tão dura que a fantasia se tornasse o melhor refúgio para a situação. Para C.S. Lewis o
realismo é “a arte de tornar algo mais próximo de nós, tornando-o palpável e vívido, por meio
de detalhes precisamente observados ou nitidamente imaginados” (LEWIS, 2009, p. 53).
O texto não apresenta esperanças quanto ao caso da mãe de Conor, sua saúde está
sempre mais debilitada ao longo da narrativa e esse definhamento torna cada encontro entre
mãe e filho mais tenso:
Sua mãe sacudiu a cabeça. Tinha uma expressão preocupada no rosto, e Conor
compreendeu que estava preocupada com ele. “E agora?”, Conor perguntou.
“Qual é o próximo tratamento?” Ela não respondeu. O que já era uma
resposta. Conor fez questão de falar em voz alta. “Não tem mais tratamentos.”
“Sinto muito, filho”, falou, as lágrimas brotando dos olhos, apesar de ela
continuar sorrindo. “Nunca senti tanta pena por alguma coisa na vida.” Conor
olhou para o chão novamente. Sentia como se não conseguisse respirar, como
se o pesadelo estivesse sugando seu ar. “Você disse que faria efeito”, falou,
sua voz falhando (NESS, 2011, p 176).
A aceitação da condição da mãe era o que enraivecia Conor. Ao longo da narrativa
pode-se perceber que a manifestação do monstro está associada aos sentimentos despertados
no garoto pelas situações vivenciadas. A cada novo rompante de cólera, o fogo que ardia dentro
dele ressurgia e o monstro se aproximava. Sendo o monstro criação ou não de Conor, a
realidade não era e essa era tal como se apresentava. Para Roas,
Seria possível dizer que a literatura é uma ´representação da realidade´,
quando a própria realidade parece ser inteiramente ofuscada pela ficção? Em
que sentido a construção da realidade se diferencia da mera possibilidade?
(ROAS, 2014, p. 88).
A dor de Conor é a representação da possibilidade de vivenciar-se as mesmas situações.
Muito difícil, na época atual, não se deflagrar com vivências semelhantes, o próprio leitor
juvenil, ainda que com pouca experiência de vida, pode já ter passado por algo parecido. A
identificação com a dor faz parte de uma essência muito humana: a compaixão. Essa que
acontece quando se coloca no lugar do outro, experimentando a posição do outro; e a literatura
pode realizar com primazia essa representação. Por meio da narrativa é possível experimentar
a situação de impotência diante da morte iminente, de frustração ante as atitudes que são
esperadas e aquelas que de fato acontecem.
Conor precisa pensar no futuro, em como ficará sem a mãe, em aceitar recomeçar a vida
ao lado da avó materna, em entender o porquê de seu pai não aceitar sua presença. São esses
conflitos duros para um menino de 11 anos e que, inevitavelmente, ocorrem ao longo na
história. O que se quer aos 11 anos? A resposta dificilmente será aquela que Conor precisa para
solucionar seus conflitos. Baudrillard afirma que
para o processo de reprodutibilidade, que domina a sociedade contemporânea,
o real não é apenas o que pode ser reproduzido, mas sobretudo o que já está
reproduzido. O hiper-real só está além da representação porque está
integralmente na simulação, em sua repetição en abyme. Nesse sentido, o
Hiper-realismo faz parte de uma realidade codificada, que perpetua e para a
qual não traz qualquer mudança (BAUDRILLARD, 1976, p. 112).
Nesse sentido, a realidade é hiper-realista, pois não comporta qualquer simulação, a
representação do real é a representação do hiper-realismo uma vez que esse seja sua
intensificação, não existe nada mais impactante do que o próprio real. A base de todos os
conflitos vividos por Conor parte da doença que vitima sua mãe e contra a qual ninguém
consegue lutar, nem ele, nem a avó, nem os médicos.
A luta de Conor, no caso, não é contra a doença da mãe ou contra o monstro; sua luta é
contra ele mesmo, contra os sentimentos que insistem em causar pesadelos e que dificultam
sua relação com as pessoas.
A evocação do (im)possível
A obra de Patrick Ness consegue traçar uma aproximação entre situações muito
distintas. Se por um lado existem efeitos capazes de contextualizar o efeito fantástico/insólito,
por outro lado a realidade da situação de Conor também comove e cria laços com o leitor. No
entanto, vale destacar que a literatura voltada ao público juvenil nem sempre pôde fazer uso
dessa construção, essa é uma forma de se escrever para os jovens que até pouco tempo era
desconsiderada.
Os textos eram inicialmente voltados ao caráter moralizante, em transmitir determinado
ensinamento sem que houvesse qualquer intenção de promover o efeito estético da obra. Os
contos de fada são um exemplo claro desse tipo de literatura destinada às crianças. A erupção
da realidade nas histórias infantis ocorreu devido a acontecimentos que mudaram a marcha da
história, como a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Os contos de fadas foram vistos com
desdém a partir de então por apresentarem um suposto descompromisso com a realidade e por
promoverem uma evasão dos valores humanos (COLOMER, 2003, p. 61).
Assim, a teoria e a produção de textos infantojuvenis apresentam uma relação bem
estreita, pois a produção estava muito associada àquilo que se acreditava ser bom para os jovens
da época. Foi a partir dos anos 70 que uma outra perspectiva foi abordada, pois se criou o que
passou a ser chamado de Nova Fantasia ou Contos de Fadas Modernos. Gianni Rodari2, escritor
italiano, foi considerado peça fundamental para a renovação nessa área; sua escrita era um tipo
de narrativa fantástica que buscava evitar os conteúdos conformistas atribuídos aos contos de
fadas. Apesar de estar ligado ao aspecto educativo da literatura infantil, reivindicava
perspectivas voltadas mais à criatividade, à estimulação imaginativa (COLOMER, 2003, p.
70).
O que se destaca nessa espécie de cronologia da literatura infantojuvenil é a mudança
pela qual passam os textos destinados aos jovens. A ideia de fantasia e realidade parecia oposta,
como se a associação dessas temáticas não pudesse convergir. A atualidade, principalmente,
mostra-nos que essa associação é possível e que tal construção pode ser apreciada pelo jovem
2 Jornalista e escritor Gianni Rodari (1920-1980), ganhador do prêmio Hans Christian Andersen, foi considerado
um dos melhores escritores de literatura infantil da Itália. Suas histórias, contos e poesia contribuíram para renovar
a literatura destinada às crianças.
leitor. É o que se encontra, por exemplo, em O Chamado do Monstro. E o fantástico contribui
para a aproximação entre essas temáticas, pois segundo Roas,
As narrações fantásticas buscam implicar o leitor no texto por duas vias
essenciais: a) A cooperação interpretativa do leitor para que ele assuma que a
realidade intratextual é semelhante à sua; b) correspondência entre sua ideia
de realidade e a ideia de realidade criada intratextualmente (ROAS, 2014, p.
91).
Dessa forma, fica evidente como o texto de Ness consegue criar a aproximação entre
realidade e fantasia vista tão paradoxalmente no passado. Se existe um mundo real vivido por
Conor que se apresenta sob a forma da doença terminal de sua mãe, por outro lado também
existe um sobrenatural que se apresenta como um segundo plano sob o convite de um monstro.
De acordo com Roas, Freud afirma que a literatura fantástica traz à consciência
realidades, situações e desejos que não podem ser manifestos de modo direto porque
“representam algo proibido que a mente reprimiu ou porque não se encaixam nos esquemas
mentais em uso” (FREUD apud ROAS, 2014, p. 92).
Talvez o fantástico/insólito na narrativa de Ness seja essa erupção proveniente da
consciência de Conor, afinal, ninguém mais vê o monstro além do garoto, mas isso não tira do
texto o caráter fantástico. A leitura que pode ser feita trata do câncer da mãe de Conor como a
personificação do monstro. Para Kothe,
A fantasia pode ser um processo da compensação de traumas, uma tentativa,
ainda que falsa, de elaborá-los e de encontrar uma saída, como o sintoma é a
manifestação de uma doença: não adianta, porém, combater a febre se não se
descobre e enfrenta a sua causa (KOTHE, 1994, p. 162).
A imagem do garoto é a de um menino triste, e não poderia ser diferente. Seu
afastamento dos amigos e a aceitação das agressões cometidas contra ele por outros jovens
colocam-no na posição de vítima. Sua raiva era contra a doença, mas ao mesmo tempo contra
ele mesmo diante de sua impotência, logo, o sofrimento derivado das agressões que sofria era
visto como uma forma de punição. Conor se sentia merecedor da dor que sentia, Conor se sentia
culpado. Em uma de suas falas é possível perceber o conflito interno vivenciado pelo garoto:
O fogo dentro do peito de Conor soltou uma labareda, incandescendo
rapidamente como se fosse comê-lo vivo. Era a verdade, ele sabia que era.
Um gemido começou a se formar em sua garganta, um gemido que se
transformou em choro, e depois em um grito sem palavras e ele abriu a boca
e saíram chamas de dentro do seu corpo, chamas prontas para consumir tudo,
refulgindo na escuridão, queimando o teixo e todo o resto do mundo,
enquanto Conor gritava e gritava e gritava, cheio de dor e mágoa... E ele disse.
E falou a verdade. “Não aguento mais!, berrou, o fogo ardendo ao seu redor.
“Não aguento saber que ela vai embora! Só quero que acabe! Só quero o fim
de tudo isso!” E então, o fogo engoliu o mundo, arrasando tudo, levando o
garoto junto (NESS, 2011, p. 198).
A verbalização de seus sentimentos ao final do livro rompeu com toda a angústia que
carregava, pois ele obrigou-se a enxergar o que realmente sentia. O fogo que o queimava por
dentro chega ao seu auge no final, por mais que Conor tentasse controlá-lo, ele perdeu o
controle e assumiu sua condição, assumiu seu desejo de querer que tudo acabasse. Essa era
uma espécie de confissão que ele não desejava fazer.
A junção da realidade e do insólito é fundamental para o desenrolar da história, pois
quem faz Conor assumir sua dor e seus sentimentos é o Monstro ou a manifestação desse.
Destaca-se, ainda, a simbologia do fogo, cuja representação significa a transformação, ou seja,
o fogo que queimava o garoto era a transformação que ocorria em sua vida e que ele não teria
forças para conter.
Ora a realidade, ora o fantástico/insólito, o que se encontra no texto de Patrick Ness é
uma narrativa comovente capaz de envolver jovens ou adultos e promover a literatura.
Considerações
O enredo de O Chamado do Monstro está pautado em duas situações distintas: a doença
terminal da mãe de Conor e o encontro desse com o Monstro. Ainda que sejam situações
contrastantes, as duas situações, simultaneamente, constroem o enredo, pois a realidade do
câncer dialoga com o “monstro” criado por Conor, compondo, assim, eixos que direcionam os
fatos narrados. Embora o monstro seja parte apenas da criação do menino, o câncer é uma
realidade que foge ao seu controle.
A leitura permite sentir o que Conor sentiu, amedrontar-se diante do desconhecido,
chorar a sua dor, encoleirar-se diante de sua impotência; a realidade é quase palpável, mesmo
que esteja enlaçada pelo fantástico/insólito nas suas entranhas. Como afirma Petit,
Ler é conhecer a experiência de homens e mulheres, daqui ou de outros
lugares, de nossa época ou de épocas passadas, transcrita em palavras que
podem nos ensinar muito sobre nós mesmos, sobre certas regiões de nós
mesmos que ainda não havíamos explorado, ou que não havíamos conseguido
expressar. Ao longo das páginas, experimentamos em nós, a um só tempo, a
verdade mais subjetiva, mais íntima, e a humanidade compartilhada (PETIT,
2009, p. 94).
Conhecer o medo e a dor de Conor é também conhecer um pouco do homem, seus
anseios e seus vícios. A vivência do garoto ao longo da obra denota os conflitos vivenciados
por qualquer ser humano. O agravante de Conor é sua idade e sua imaturidade para as
experiências apresentadas, no entanto, a catarse com o leitor é tão próxima que, independente
da idade do leitor, essa aproximação acontece, uma vez que conflitos dessa natureza são
comuns para a maioria das pessoas.
A análise literária, baseada apenas em uma percepção linguística, pode reduzir o
trabalho de interpretação. Essa é uma afirmação feita por Roland Barthes, em 1967, no texto O
Rumor da Língua. Nesse sentido, vale dizer que a infinitude da linguagem da qual faz parte a
literatura não pode ser vista apenas sob a perspectiva de uma análise da obra literária.
O “conteúdo científico” é formado por um código que dificilmente é capaz de
vislumbrar a riqueza da linguagem contida no texto escrito, por essa razão o pesquisador se
transforma em “escritor” para ultrapassar a linguagem científica e perceber o que está além da
estrutura. Dessa forma, o pesquisador passa a refletir sobre o que ele mesmo produz, seja na
expansão ou na contraposição das ideias sugeridas pelo livro.
Trata-se de uma ruptura, de uma quebra no paradigma teórico de leitura, pois o autor
do texto deixa de ser o único produtor de sentidos para o texto e abre espaço para o leitor,
sujeito da própria leitura e coautor do texto que lê. Assim, a busca por aquilo que o texto diz e
seu significado para o autor deixam de ser o elemento central, dando espaço para as associações
feitas pelo leitor, pelos significados por ele criados. A leitura, desse modo, dissemina, expande
e interpreta aquilo que o texto literário apresenta, cria, portanto, um novo texto.
Essas ações permitem a expansão criativa do pensamento, como um leitor que não
apenas reproduz o que lê, mas interpreta e pratica a teoria a partir de sua própria forma de
pensar a teoria. Não se trata de uma mudança da teoria ou de mera adaptação dessa, significa
interação entre leitor e texto literário, por meio de associações, de interpretações.
A maioria das teorias críticas procura explicar porque o autor escreveu a sua obra,
segundo que pulsões, que injunções, que limites. O autor torna-se proprietário eterno da obra e
os leitores são meros usufrutuários. Parece ter o autor diretos sobre o leitor, pois constrange
esse a enxergar determinado sentido na obra. Afinal, procura-se apresentar o que o autor quis
dizer e de modo algum o que o leitor entende.
Enquanto a composição canaliza, a leitura dispersa em uma luta contínua no leitor com
a força explosiva do texto. Ler é fazer o novo corpo trabalhar, pois ao ler também se imprime
certa postura ao texto, e é por essa razão que ele é vivo, pois encontra seu traçado, a sua
liberdade.
Referências:
BAUDRILLARD, Jean. L’é change symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976, p. 112.
BARTHES, Roland. A Aula. Editora Cultrix: São Paulo, 1977.
LEWIS, C. S. Um experimento na crítica literária. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
KOTHE, Flávio. A narrativa trivial. Brasília: Universidade de Brasília, 1994.
NESS, Patrick. O chamado do monstro. São Paulo: Ática, 2011.
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Ed. 34, 2009.
ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora Unesp,
2014.
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