O castigo e a queda dos gigantes andinos
Adriano Rodrigues de Oliveira ⃰
Resumo: Na presente comunicação analisamos a apropriação de um mito “andino” à
narrativa dos cronistas europeus que descreveram os acontecimentos da América
Hispânica em meados do século XVI. Conforme consta nos relatos de Agustín de Zárate
e Pedro Cieza de León, a região andina seria habitada em um passado remoto, muito
anterior a chegada dos espanhóis, por homens cruéis e soberbos, de aparência monstruosa
e desmesurada. Zárate e Cieza de León, teriam obtido essas informações dos velhos incas,
que as guardavam da memória recebida de seus antepassados. No imaginário europeu, o
gigantismo remete ao mundo antigo e medieval, e na crença de indivíduos desmesurados,
insolentes, pecadores e vorazes. Portanto, interessa-nos perceber, como o mito "indígena"
se transformou, ao ser incorporado no âmbito do imaginário colonial quinhentista. Assim,
nas narrativas dos referidos cronistas, esses gigantes pré-hispânicos foram demudados em
pecadores e praticantes do pecando nefando contra a natureza, a sodomia
(homossexualidade).
Palavras-chave: Mito. Imagens. Imaginário. Gigantes.
Considerações iniciais: os gigantes no imaginário europeu
O mito dos gigantes remonta ao imaginário do mundo antigo, quando as
primeiras sociedades humanas, desenvolveram a crença na existência de certos
humanoides de estatura colossal e dotados de grande força física. Em quase todas as
culturas onde essas lendas foram concebidas, ainda quando localizadas em contextos
espaciais e cronológicos distintos, essas criaturas desmesuradas foram descritas ou
retratadas como grandes agentes portadores do caos, extremamente cruéis, selvagens e
rompedores da ordem vigente. No livro intitulado, América Mágica (2000), os
historiadores Jorge Magasich e Jean-Marc de Beer observam que:
⃰ Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES.
A afirmação do gigantismo das primeiras gerações do mundo possui a sua
lógica. A criação da terra, dos oceanos, da abóbada celeste e dos seres que os
povoam deve ter sido uma obra incomensurável; em consequência, aqueles
que, de um modo ou de outro, participaram dela, ou que, simplesmente,
viveram nesses tempos, foram forçosamente seres igualmente desmensurados,
dotados de força extrema, tanto física quanto espiritual, e de uma estatura
condizente com a grandeza da época e das obras que então realizaram
(MAGASICH-AIROLA; MARC DE BEER, 2000, p. 259).
Na Bíblia, especificamente no Antigo Testamento, diversas passagens dão conta
que os gigantes habitavam a terra antes e após o grande dilúvio. Em ambas as eras,
constituíam-se de indivíduos soberbos, astutos e cruéis, além de grandes desafiadores do
poder divino. No livro do Gênesis, encontra-se a seguinte descrição: “Havia naqueles
dias, gigantes na terra, e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos
homens, e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os
varões de fama” (GÊNESIS, 6, 4).
Sem dúvidas, o gigante bíblico mais famoso foi Golias, um arrogante guerreiro
filisteu que vestia capacete de bronze e couraça de escamas e media seis côvados e um
palmo de altura (pouco mais de 2,80 m). Ao afrontar os hebreus com “sua astúcia e
soberba”, foi derrotado no campo de batalha pela sabedoria do jovem pastor Davi, que
antes de feri-lo com a funda e decapitá-lo com sua própria espada, proferiu as seguintes
palavras: “eu venho a ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel,
a quem tens afrontado” (I SAMUEL, 17, 45).
Contudo, foi no imaginário da Grécia Antiga, que a narrativa do embate entre
deuses e gigantes se imortalizou, através da mítica batalha denominada Gigantomaquia.
Em Metamorfoses, o poeta latino Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.), narra que os solícitos
gigantes ousaram a conquista do céu, e chegaram até o topo do Monte Olimpo empilhando
montes sobre montes. Tomado de grande ira, Zeus atirou um raio furioso do alto de sua
morada eterna, sacudindo as montanhas e fazendo despencar seus colossais oponentes
(OVÍDIO In PREDEBON, 2006, p. 180.)
Pseudo-Apolodoro, em sua obra intitulada Biblioteca, descreve que Gea, a Mãe-
Terra, teria se unido a Urano e dado origem a esses seres titânicos, indivíduos
insuperáveis em força e tamanho e de aparência monstruosa, visto que possuíam pelos
grossos e escamas de dragão nos pés. Tentaram conquistar o Olimpo atirando carvalhos
e pedras ardentes, mas foram derrotados e exterminados pelas setas de Hércules, a
sabedoria de Atena e o poderoso raio de Zeus (APOLODORO, 1985, p. 52-53). Em
termos gerais, as moradas desses seres colossais do mundo grego eram as cadeias
montanhosas e vulcânicas, os lugares mais inóspitos, ásperos e rochosos possíveis
(LÓPEZ, 2015, p. 7).
Na Idade Média, o famoso bispo de Hipona, Santo Agostinho (354-430 d. C.),
afirma que esses gigantes foram criados para demonstrar a fraqueza corporal e a perfeição
do poder de Deus na Terra (AGOSTINHO, 1990: Livro II, p. 229). Em sua obra intitulada,
A Cidade de Deus, o religioso adverte: “Ali viveram os famosos gigantes que houve no
princípio, homens de grande estatura [...] Deus não os escolheu, nem lhes deu a senda da
ciência, e pereceram, porque careceram da sabedoria, e pereceram por sua estupidez”
(Ibidem, p. 210-211).
Ao analisar a imagem grotesca do corpo em Rabelais, Mikhail Bakhtin (2010)
enfatiza que, ao final da Idade Média, os gigantes eram figuras obrigatórias das diversas
festas populares, do repertório de feira, das procissões de carnaval, da festa do Corpo de
Deus e afins (BAKHTIN, 2010, p. 300). Ainda segundo Bakhtin, nesse mesmo contexto,
“[...] diversas cidades possuíam, ao lado dos ‘bufões’ da cidade, os ‘gigantes da cidade’,
e mesmo uma ‘família de gigantes’, designados pela municipalidade e destinados a
participar em todas as procissões durante as diversas festas populares” (Ibidem).
Como bem destacou María Isabel Rodríguez López (2015), o Renascimento
artístico e cultural provocou um retorno das representações iconográficas da
Gigantomaquia, ilustrada pelos artistas quinhentistas a partir de padrões muito bem
definidos e pré-fixados (LÓPEZ, 2015, p. 19). Assim, na arte em voga nesse período, os
deuses gregos ocupam estrategicamente o topo das gravuras, se apresentam sempre bem
armados e vestidos e em perfil de vitória. Zeus ou Júpiter, no centro superior da imagem,
é retratado atirando um raio sobre seus oponentes gigantescos, que estão assustados, em
posição de queda, armados de pedras e pedaços de paus e com os corpos totalmente
desnudos (fig. 1).
À época das viagens exploratórias à América, os gigantes contavam ainda com
alta popularidade dos romances de cavalarias. Nesse gênero literário, eles apareciam com
frequência na condição de antagonista principal do cavaleiro e herói da trama, sendo que
muitas vezes podiam ser representados na condição de criaturas selvagens, monstruosas,
soberbas e idólatras (PADILLA, 2016). A respeito do estilo cavaleiresco e sua influência
no imaginário dos viajantes e cronistas da América Espanhola, Heloisa Costa Milton
(2000) destaca que:
Os romances de cavalaria funcionaram, portanto, como provedores de
imaginação e elevaram à esfera mítica a figura do guerreiro merecedor de
fama, fortuna e nobreza por seu esforço individual, resultado da conjunção de
valores tais como honra, romantismo, coragem, exaltação mística, ambição e
paixão pela aventura (MILTON, 2000, p. 159).
Fig. 1. A Queda dos Gigantes. Perino del Vaga (artista), 1539-1549. Cortesia do The Metropolitan Museum
of Art. Disponível em: https://images.metmuseum.org/CRDImages/dp/original/DP836849.jpg. Acesso em:
24 de julho de 2022.
Os gigantes sodomitas
Assim como outros mitos clássicos, transladados e transformados nas terras
americanas pelo imaginário europeu quinhentista, o tema do enfrentamento entre deuses
e gigantes, ganhou forma na narrativa dos cronistas espanhóis que estiveram
pessoalmente na América Andina e descreveram os acontecimentos da conquista e
dominação espanhola nessa região. Um dos relatos mais emblemáticos desses
desmedidos entes pré-hispânicos, encontramos em Historia del descubrimiento y
https://images.metmuseum.org/CRDImages/dp/original/DP836849.jpg
conquista de la provincia del Peru, obra escrita entre 1544 e 1550 pelo administrador real
e cronista espanhol, Agustín de Zárate (1514 - 1585). De acordo com Zárate:
Próximo a esse cabo [Santa Elena], os índios da terra dizem que habitaram
uns gigantes, cuja estatura era tão grande quanto quatro estados de um
homem mediano. Não disseram de que parte eles vieram; mantinham-se das
mesmas comidas dos índios, especialmente pescado, porque eram grandes
pescadores; eles iam pescar em balsas, cada um na sua, porque estas não
podiam levar mais, seria como navegar três cavalos em uma balsa; venciam o
mar em duas braças e meia; divertiam-se muito de encontrar tubarões,
golfinhos, ou outros peixes muito grandes, porque teriam mais para comer;
cada um comia mais que trinta índios; andavam nus, porque tinham
dificuldades de fazer os vestidos; eram tão cruéis, que sem causa alguma,
matavam muitos índios, de quem eram muito temidos... (ZARATE, 1968, p.
10).1
Zárate esteve pessoalmente no Vice-Reino do Peru no ano de 1544, quando
ocupou o cargo de contador da Real Hacienda e teve contato com as principais
autoridades incas dessa região (TEODORO, 1991, p. 131-132). Segundo afirma, as
informações sobre esses antigos brutamontes andinos eram de conhecimento dos
“naturais” da terra, que as teriam obtido da memória herdada de seus antepassados. Os
incas não teriam recebido os devidos créditos por propagarem essas notícias, até que os
próprios espanhóis testemunhassem os resquícios da existência remota desses gigantes ao
encontrar diversos ossos de tamanho colossal em um vale nas proximidades do cabo de
Santa Helena (ZÁRATE, 1968, p. 10).
As criaturas descritas por Zárate são extremamente vorazes, haja visto que seu
apetite desenfreado exigia uma quantidade de alimentos superior ao ingerido por trinta
índios reunidos. Essa fome insaciável é um dos aspectos mais acentuados do gigantismo
na literatura clássica, revelando, por tabela, a característica mais marcante do corpo
burlesco – a bocarra escancarada e devoradora desses gigantes (BAKHTIN, 2010, p. 296).
Conforme aponta Bakhtin, metaforicamente “é a boca que tem o papel mais importante
no corpo grotesco, pois ela devora o mundo” (Ibidem, p. 277).
1 Tradução nossa: Em espanhol: “Junto a esta punta, dicen los indios de la tierra que habitaron unos
gigantes, cuya estatura era tan grande como cuatro estados de un hombre mediano. No declaran de que
parte vinieron; mantenianse de las mesmas viandas de los indios, especialmente pescado, porque eran
grandes pescadores; a lo cual iban en balsas, cada uno en la suya, porque no podian llevar mas, como
navegar tres caballos en una balsa; apeaban la mar en dos brazas y media; holgaban muchos de topar
tiburones o bufeos, o otros peces muy grandes, porque tenian mas que comer; comia cada uno mas que
treinta indios; andaban desnudos por la dificultad de hacer los vestidos; eran tan crueles, que sin causa
ninguna mataban muchos indios, de quien eran muy temidos” (ZARATE, 1968, p. 10).
Relato semelhante pode ser encontrado nas páginas da Crónica del Peru, obra
publicada em Sevilha em 1553, de autoria do cronista espanhol Pedro Cieza de León
(1518-1554). Cieza de León chegou ao Peru na condição de soldado no ano de 1547, para
servir no exército de Pedro de la Gasca – bispo e diplomata espanhol responsável pela
pacificação do Peru durante as rebeliões de Gonzalo Pizarro (PEASE In: DE LEÓN,
2005, p.11-12). Em sua crônica, descreveu em pormenores a estatura, os costumes e a
aparência desses antigos gigantes andinos, forasteiros que vieram povoar essas terras
causando grande incômodo nas populações locais:
Os nativos contam pelo relato que receberam de seus pais, que ouviram desde
muito tempo, que vieram do mar em umas balsas de juncos semelhantes a
grandes barcas, uns homens tão grandes, que tinham maior estatura do joelho
para baixo que um homem comum em todo o corpo, mesmo que este fosse de
boa estatura, e que seus membros estavam em conformidade com a grandeza
de seus corpos deformados, e que era coisa monstruosa de ver as cabeças,
pois eram grandes, e tinham cabelos que chegavam até as costas. Os olhos
eram tão grandes que pareciam pequenos pratos. Afirmam que os gigantes
não tinham barbas, e que uns se vestiam de peles de animais, enquanto outros,
andavam nus, e não traziam mulheres consigo (DE LEÓN, 2005, p. 150-151).2
Segundo o que complementa Cieza de León, esses grandalhões chegaram no
cabo de Santa Helena e cavaram uns povos descomunais em rocha viva. Eram homens
gananciosos e vorazes, pois pescavam todos os peixes do mar com suas redes e aparelhos
gigantescos. Cada um comia mais do que cinquenta indivíduos de estatura normal e, o
alimento que sobrava, era todo pisoteado e destruído. Assim, desaforavam
impiedosamente os habitantes locais, violentando e matando suas esposas (DE LEÓN
2005, p.190-191).
O trágico fim desses sujeitos insólitos, qualificados como desumanos e
atrevidos, foi narrado pelos cronistas espanhóis em um dos maiores exemplos de
apropriação/mutação de um mito no âmbito do imaginário colonial do Novo Mundo, uma
vez que da condição de cruéis, vorazes e selvagens, foram transformados em “grandes
pecadores sodomitas”. Cieza de León observa que:
2 Tradução nossa: Em espanhol: “Cuentan los naturales por relación que oyeron de sus padres, la cual
ellos tuvieron y tenían de muy atrás que vinieron por la mar en unas balsas de juncos a manera de grandes
barcas unos hombres tan grandes, que tenía tanto uno de ellos de la rodilla abajo como un hombre de los
comunes en todo el cuerpo, aunque fuese de buena estatura, y que sus miembros conformaban con la
grandeza de sus cuerpos tan deformes, que era otra cosa monstruosa ver las cabezas, según eran grandes,
y los cabellos que los allegaban a las espaldas. Los ojos señalan que eran tan grandes como pequeños
platos. Afirman que no tenían barbas, y que venían vestidos algunos de ellos con pieles de animales, y otros
con la ropa que les dio natura, y que no trajeron mujeres consigo” (DE LEÓN, 2005, p. 150-151).
Depois de alguns anos, os gigantes estavam ainda nessa região, e como não
tinham mulheres, e as naturais não combinavam com eles por sua grandeza,
ou porque era vício entre eles por conselho e indução do maldito demônio,
praticavam uns com os outros, o pecando nefando da sodomia, tão gravíssimo
e horrendo. E na qual, usavam e cometiam publicamente e abertamente, sem
temor de Deus e pouca vergonha de si mesmos. E todos os nativos afirmam,
que Deus nosso senhor não se prestando a esconder pecado tão ruim, enviou
o castigo de acordo com a gravidade do pecado. E assim dizem que, estando
todos juntos envoltos em sua maldita sodomia, veio fogo do céu terrível e muito
assustador, fazendo muito barulho, do meio do qual saiu um anjo
resplandecente com uma espada afiada e flamejante, com a qual, com um só
golpe, ele matou a todos, e o fogo os consumiu, e não restou senão alguns
ossos e caveiras que, para memória do castigo, quis Deus que permanecessem
sem serem consumidos pelo fogo (DE LEÓN, 2005, p. 151).3
Como podemos perceber, no relato do cronista espanhol, duas personagens do
imaginário judaico-cristão assumem definitivamente o protagonismo da narrativa, Deus
e o Diabo, que travam uma batalha acirrada pelas almas desses pecadores: de um lado, o
Diabo é a figura que induz os homens a praticar o pecado nefando contra a natureza; do
outro, Deus, não podendo tolerar tamanha insolência, envia o castigo de acordo com a
gravidade da iniquidade cometida pelos seres terrenos. De todo forma, na variante
europeia do “mito andino”, sodomia e gigantismo convergem de tal modo, que os gigantes
se transformam em seres extremos, duplamente inaceitáveis.
Nesse sentido, são seres monstruosos, deformados e desproporcionados e,
portanto, irregularidades que se encontram fora do curso normal da natureza. No
imaginário europeu quinhentista as anomalias eram atribuídas a dois fatores principais:
Tanto Deus podia criá-las para demonstrar suas maravilhas na terra e o alcance do seu
poder sobre o mundo terreno, quanto o Diabo, através de suas muitas artimanhas, podia
corromper a alma, o corpo e a saúde dos homens, provocando deformações e anomalias
congênitas (PARÉ, 2019, p. 21-22).
De qualquer forma, ressalta Michel Foucault (2001), as criaturas monstruosas
são “um fenômeno ao mesmo tempo extremo e extremamente raro [...] o limite, o ponto
3 Tradução nossa: Em espanhol: “Pasados algunos años, estando todavía estos gigantes en esta parte,
como les faltasen mujeres, y las naturales no les cuadrasen por su grandeza, o porque sería vicio usado
entre ellos por consejo y inducimiento del maldito demonio, usaban unos con otros el pecado nefando de
la sodomía, tan gravísimo y horrendo. El cual usaban y cometían pública y descubiertamente, sin temor de
Dios, y poca vergüenza de sí mismos. Y afirman todos los naturales, que Dios nuestro señor no siendo
servido de disimular pecado tan malo, le envió el castigo conforme a la fealdad del pecado. Y así dicen,
que estando todos juntos envueltos en su maldita sodomía, vino fuego del cielo temeroso y muy espantable,
haciendo gran ruido, del medio del cual salió un ángel resplandeciente con una espada tajante y muy
refulgente, con la cual de un solo golpe los mató a todos, y el fuego los consumió, que no quedó sino
algunos huesos y calaveras, que para memoria del castigo quiso Dios que quedasen sin ser consumidas
del fuego” (DE LEÓN, 2005, p. 151).
de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos
extremos...” (FOUCAULT, 2001, p. 70).
Se no imaginário judaico/cristão o gigantismo violava todos os princípios
naturais, o mesmo ocorria com a sodomia – o pecado contra natura. Este, compreendida
todas as relações extravaginais, embora a relação sexual entre dois homens fosse
considerada o seu ato mais nefando. Constituía-se, tanto de uma violação dos princípios
morais e éticos, quanto da estrutura da organização familiar tradicional (GRIECO, 2005,
p. 215). Era, antes de tudo, o pecado que corrompera Sodoma, cidade em que, “o Senhor
fez chover enxofre e fogo, do Senhor desde os céus...” (GÊNESIS, 19, 24).
Continuando a narrativa do fogo celeste que consumira os gigantes andinos,
Agustín de Zárate apresenta uma descrição muito semelhante à de Cieza de León. O
cronista não faz inicialmente referências a figura do anjo cristão, para concluir na
sequência, que certamente este fora um castigo divino, tal como o que sofrera a cidade de
Sodoma:
Há memória entre os índios, transmitidas de pais para filhos, de muitas
particularidades desses gigantes, especialmente do fim destes; porque dizem
[os índios] que veio do céu um jovem resplandecente como o sol, e pelejou
contra os gigantes, atirando-lhes, chamas de fogo; e assim, os gigantes foram
recuando a um vale, onde o jovem acabou de matar a todos, por ser, como
dizem que estas pessoas eram [os gigantes], muito dados ao vício contra a
natureza, a justiça divina os tirou da terra, enviando algum anjo para isso,
como foi feito em Sodoma e outras partes...” (ZÁRATE, 1968, p. 10).4
Os artistas renascentistas não foram de modo algum, alheios à representação do
tema anunciado por Zárate e Cieza de León. Já na primeira edição da Crónica del Peru,
impressa em Sevilha, na tipografia de Martín Montesdoca, no ano de 1553, uma
xilogravura foi inserida para retratar em detalhes o castigo divino que acometeu esses
pecadores andinos. Na parte mais alta da imagem, envolto em grandes labaredas de fogo,
encontra-se o anjo celestial, devidamente vestido e apontando uma espada comprida na
direção dos seus oponentes. Os gigantes, por sua vez, estão assustados e em típica posição
4 Tradução nossa: Em espanhol: “Hay memoria entre los indios, descendiendo de padres en hijos, de
muchas particularidades destos gigantes, especialmente del fin dellos; porque dicen que bajo del cielo un
mancebo resplandeciente como el sol, y peleo con ellos, tirandoles llamas de fuego, que se metian por las
penas donde daban y hasta hoy estan alli los agujeros senalados; y asi, se fueron retrayendo a um valle,
donde los acabo de matar todos, por ser, como dizem que estas pessoas eram [os gigantes], muito dados
ao vício contra a natureza, a justiça divina os tirou da terra, enviando algum anjo para isso, como foi feito
em Sodoma e outras partes...” (ZARATE, 1968, p. 10).
de queda e, suas vestimentas rústicas, dão a entender que foram confeccionadas da pele
de animais. As longas barbas, típicas dos antigos gigantes gregos5, corrobora com os
relatos “indígenas” de que esses seres colossais eram forasteiros que teriam vindo habitar
as terras andinas na aurora dos tempos (fig. 2).
É interessante observar as analogias entre a gravura inserida na Crónica del Peru
(fig. 2) e a ilustração do tema da Gigantomaquia (fig. 1): ambas obedecem a cânones
muito bem definidos, na qual os deuses são representados sempre no alto e em posição
vitoriosa. Por outro lado, os gigantes são pintados sempre na parte inferior da imagem,
assustados e em posição de derrota. No entanto, a segunda gravura torna-se ainda mais
emblemática, quando constatamos sua ressignificação no âmbito do imaginário
judaico/cristão: como podemos perceber, nessa última ilustração, as personagens do
panteão grego – Zeus e as demais divindades, são devidamente substituídas pelo solitário
anjo cristão Miguel, que em diversos textos bíblicos aparece descrito como o príncipe dos
exércitos celestiais (DANIEL, 10, 13).
Fig. 2. O anjo celeste castiga os gigantes sodomitas. Ilustração que compõe a Primeira Parte da Crónica
del Peru, p. 153. Publicada em Sevilha no ano 1553, na tipografia de Martín Montesdoca. Cortesia do The
5 Conforme observa Robert Graves, os gigantes gregos foram descritos e retratados com cabeleira espessa,
barbas longa e rugosa (GRAVES, 2018, p. 208).
Internet Archive: Disponível em: https://archive.org/details/parteprimeradela00ciez/page/n153. Acesso em: 23 de julho de 2020
Em sua obra denominada, o Significado nas Artes Visuais, o historiador da arte,
Erwin Panofsky (2014), observou muito bem essa continuidade dos motivos clássicos,
que ao surgir com novas roupagens, eram transformados em imagens cristãs
(PANOFSKY, 2014, 67). Em outro estudo intitulado Tomb Sculpture (1964), Panofsky
definiu esse processo de “mutação” da imagem com o termo pseudometamorfose,
utilizado para definir: “O surgimento de uma forma A, morfologicamente análoga, ou
mesmo idêntica a uma forma B, que, no entanto, não mantém relação alguma do ponto
de vista genético” (PANOFSKY In: BOIS, 2006, p. 13).
A análise iconográfica e textual do tema abordado na presente comunicação,
aponta por ora, que um processo similar ocorrera na representação desses gigantes
andinos. Assim, o artista da ilustração e também os cronistas espanhóis, se valeram do
tema clássico e dos seus principais elementos, para produzir tanto uma narrativa
moralista, quanto uma alegoria essencialmente cristã. Nesse sentido, podemos afirmar
que o mito clássico se transformou em sua transposição à América, ao incorporar as
prováveis narrativas andinas e agregar a elas rudimentos próprios do contexto colonial
europeu no Novo Mundo.
Considerações finais
A lenda dos “gigantes andinos” deriva do entrecruzamento de dois imaginários
distintos: de um lado, nota-se os elementos de uma provável narrativa incaica, na qual o
gigantismo parece ter surgido para explicar um passado remoto e extremamente caótico.
Do outro, encontra-se a tradição do mito clássico, em que esses seres colossais foram
historicamente caracterizados a partir de estereótipos negativos, tanto físicos, quanto
morais: desmesura, monstruosidade, aparência, insolência, soberba e voracidade. Soma-
se a isso, o fato do gigantismo ter se associado a sodomia (homossexualidade) nos relatos
dos cronistas espanhóis, transformando-se assim, por tabela, numa fábula moralista
fundamentalmente cristã.
https://archive.org/details/parteprimeradela00ciez/page/n153
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