Capítulo III
A Vida como em Tempos Medievais De Zubiri a Cizur Menor
Navarra, 05 de Setembro de 1999
Fotos:
Fotos:
Da esquerda para a direita: O Rio Arga visto da ponte de Zubiri; O
Caminho por Navarra; Construção medieval em Arleta;
Novo dia. Estávamos iniciando a segunda
etapa da caminhada. Colocamos nossa “casa” às costas e
os caracóis estavam na estrada, às 7:50 horas. Nem bem
amanhecia e andávamos, em companhia de mais alguns
peregrinos, pelas ruas de Zubiri. A temperatura era
agradável e diversos caminhantes já haviam tomado a
dianteira, por terem saído bem mais cedo do que nós. O
início das caminhadas, em cada uma das jornadas diárias,
era tomado pelos peregrinos em tempos e condições
diferenciadas, conforme seu ritmo e sua maneira de
encarar o trajeto, pelo que podíamos observar até então.
Atravessamos a ponte medieval, pela qual havíamos
passado no dia anterior e, lá embaixo, avistávamos o
córrego que refluía mansamente sobre as pedras e por
entre a vegetação do lugar. Logo tomamos o caminho em
direção a uma grande indústria de processamento de
minério, magnesita, que logo nos fez lembrar, com muita
clareza, o nosso lugar de origem: turbulento,
movimentado, urbano e, pela primeira vez, sentimos que a
vida citadina já nos incomodava, mesmo estando há tão
pouco tempo andando por aqueles bosques.
Após termos cruzado a região da indústria, tudo
nos pareceu voltar ao estado normal de calma e
serenidade da vida rural. A partir daí, uma nova paisagem
se mostraria à frente; linda e bucólica, onde podíamos ver
os animais, os campos, os bosques; sentíamos os aromas
do lugar de uma forma tão familiar e natural que parecia
termos morado ali por toda a vida. Passamos pelos
pequenos pueblos de Ilarratz e Ezkirotz, este com um
morrinho acentuado à chegada, deixando-nos bastante
ofegantes e alcançando, logo após, a entrada da localidade
de Larrasoaña, às 9:25 horas. Naquele pequeno vilarejo,
onde deveríamos ter pernoitado no dia anterior, tomamos
o caminho da esquerda, sem passar pelo seu interior.
Pueblo importante na história do Caminho em Navarra,
Larrasoaña, já no século XI contava com um hospital de
peregrinos, tendo sido povoado, por volta do XII, por
artesãos franceses atraídos pelos privilégios então
concedidos visando a ampliação dos novos burgos
populacionais na região. Prosseguindo, passamos por
Akerreta, Zuriain, onde fizemos a nossa parada dos 10
minutos, quando coincidiu de estarmos em uma ponte
sobre o rio Arga, às 10:45 horas; e Irotz, já a seis
quilômetros do ponto de partida, onde encontramos a
melhor fonte até o momento, pois ao enchermos os cantis,
estes chegaram a ficar suados por fora devido ao frescor da
água, que encerrava, também, a energia daquele mundo.
Deixando ao largo Zabaldika, chegamos a Arleta: a gente
caminha e, onde menos se espera, encontra-se um lugar
para comer, uma casinha linda, antiga, algo muito especial,
particular e nos deliciamos com tortillas de batatas, feitas
pelas mãos do proprietário, Don Daniel. Descemos o vale
do Rio Arga, passamos por entre diversas plantações e o
caminho, naquela região, era cercado por sebes de
amoreiras silvestres com frutos de um sabor fresco e
delicioso. Já havíamos andado por mais de 2 horas e
tínhamos parado por duas vezes, já que, como falamos
anteriormente, a cada hora de caminhada descansávamos
por 10 minutos. Ao final do trajeto, concorrente com a
descida do rio, finalmente cruzamos seu leito, ou melhor, o
leito de seu afluente, rio Ulzama, por uma ponte medieval
em arcos, totalmente executada com pedras centenárias e,
ao seu final, uma casa de pedras, também em arcos, onde
uma placa em madeira esculpida identificava “Albergue de
Peregrinos de Trinidad de Arre”. Era o início da localidade
de Arre/Vilalva, lugar estratégico habitado desde a época
romana, distante menos de cinco quilômetros de
Pamplona. Uma banda tocando desfilava pelas ruas e a
população toda acompanhava, em festa.
Iniciamos um longo trecho em calçada romana
construída ali desde tempos imemoriais. Ao transitar por
aquela obra de engenharia tão antiga, tínhamos a
impressão de que o tempo parara e o progresso humano
jamais passaria daquele estágio por ali. Fontes, bosques,
plantações das mais diversas, animais silvestres, ovelhas e
pastores faziam parte daquela paisagem em um mundo,
inacreditavelmente novo, e, ao mesmo tempo agradável e
familiar a nós.
Nosso destino, naquele dia, seria a cidade de
Pamplona, a mesma Pamplona em que, alguns dias atrás,
chegáramos para começar nossa peregrinação. Nos
deparamos, então, com uma simpática pracinha, com
bancos e uma sombra convidativa, onde resolvemos deitar-
nos, na grama, com os pés para o alto para recircular o
sangue pelo corpo, momento de puro prazer; afinal,
estávamos a somente 2 km de Pamplona! Por perto da
calçada romana, passamos a caminhar com um novo
amigo: chamava-se Antônio e era natural da Galícia, na
própria Espanha. Antônio fazia o caminho em companhia
de Myska, sua cadela de estimação da raça Husky
Siberiano, que o auxiliava a transportar um pequeno
carrinho, feito com rodas de bicicleta, no qual os dois
conduziam seus pertences e suas provisões. Faziam uma
dupla perfeita: o homem e o animal se ajudando
mutuamente, em busca de seus objetivos. Passamos a
caminhar lado a lado e Antônio nos falou muito sobre seu
país, sobre a Galícia, seu trabalho e as nobres razões que o
fizeram empreender o caminho de Santiago acompanhado
de sua mascote.
Logo chegamos à localidade de Burlada,
prosseguindo até transpor a puente de la Magdalena,
sobre o rio Arga, já nos subúrbios de Pamplona. O
arvoredo, o rio e a silhueta da catedral davam as boas
vindas ao peregrino. Submergimos, então, na Idade Média,
entre as duas linhas de fortificação da cidade fundada por
Cneo Pompeio no ano 75 A. C., caminhando no meio de
pedras cobertas pelo musgo até alcançar o Portal de
Francia e entrar na zona mais antiga e melhor defendida da
cidade: a Navarreria. Pamplona despontou como capital
de Navarra sob o reinado de Sancho III, el Mayor, entre os
anos 1.000 e 1.035. Ao bairro de Navarreria, núcleo
primitivo sobre o outeiro que domina o Arga, se uniram os
novos burgos de San Cernin e San Nicolas, povoados por
francos. Uma vez superada a barreira defensiva, tão bem
conservada deste lado da cidade, atravessamos ruelas
estreitas, com sabor de história, até deparar-nos com a
fachada da catedral, de traçado original românico, do qual
restam poucos vestígios, tendo nela trabalhado um dos
mais célebres canteiros da época, o mestre Esteban, que
também interveio na construção da catedral de Santiago.
Destruída em 1.390 por um incêndio, foi reconstruída em
1.525 com um marcado estilo gótico.
Passava do meio-dia e, na hora do sol a pino,
iniciávamos a travessia de Pamplona. Uma grande cidade,
com trânsito movimentado e caótico nos impondo um
itinerário específico a ser vencido. Procuramos por ruas,
desviamos praças, atravessamos parques, sempre em
busca das salvadoras setas amarelas que nos indicavam o
melhor caminho a seguir. O calor era insuportável; por
volta das 14 horas paramos à sombra de uma árvore, em
um banco de praça, onde havia um hidrante com água
fresca e potável para beber. Nosso amigo Antônio, que
havia ficado um pouco para trás nesta parte do percurso,
nos alcançou e dali fomos juntos até nosso destino. Os
refúgios de peregrinos da cidade de Pamplona
encontravam-se muito movimentados e, como estávamos
atravessando a cidade num domingo, achamos ser mais
prudente estender o trajeto daquele dia até um lugar
próximo dali, onde havia um bom refúgio para peregrinos,
fugindo do movimento da cidade que, na segunda-feira,
seria ainda maior. Dirigimo-nos, então, ao lugar chamado
Cizur Menor, situada a quatro quilômetros e meio de
Pamplona; nosso percurso se estenderia mais, em relação
ao previsto, pois andaríamos até o final daquele dia, uma
distância superior a 25 quilômetros. Paramos em uma
praça central da cidade para o primeiro contato com o
pessoal de casa, no Brasil, em um telefone público.
A parada em Cizur, para o pernoite, excedeu todas
as expectativas: estávamos andando há mais de 11 horas,
desde a manhã, e, ao chegarmos no final da tarde, o
refúgio de peregrinos encontrava-se lotado. Então, nos
acomodamos no interior da nave principal de uma igreja
medieval, ao lado das instalações do albergue: igreja de
Sán Miguel Arcanjo, uma construção românica datada do
século XII, totalmente restaurada e ornamentada com
motivos relativos ao Ano Santo Compostelano de 1.999. Os
hospitaleiros que tomavam conta do refúgio instalaram
leitos no interior da catedral, onde pudemos dormir com
todo o conforto. Os banhos eram tomados nas
dependências do refúgio de peregrinos, ao lado, bem como
o café da manhã era servido nesse mesmo local. Pela
primeira vez, eu e minha irmã sentimos os efeitos das
longas caminhadas: os pés já apresentavam algumas
bolhas, as pernas já sentiam o cansaço e os músculos
estavam mais sensíveis que o normal. Nosso pai estava em
perfeitas condições físicas. Até então, imaginávamos que o
caminho não provocaria qualquer enfermidade em nossos
corpos, pois nada havia se manifestado fisicamente até
então. Após o banho, relaxamos os pés e pernas para que
estivessem perfeitamente descansados no dia seguinte,
quando a jornada deveria ser de 18 quilômetros. Saímos à
procura de um local para o jantar, mas como o pueblo é
pequeníssimo, tudo fecha aos domingos; depois de
algumas voltas, nos deparamos com o único lugar aberto e
estava lotado, com fila à porta, mas o que fazer? Com a
fome que sentíamos, só nos restava esperar. Mas, valeu:
comemos uma minestra de cenouras, vagens, ervilhas e
aipo e o outro prato do menu levava o nome de Fritos, que
era feito de mariscos gratinados na casca, presunto com
queijo, lulas, tudo frito, acompanhado do pão, muito bom
e salvador da pátria em certas ocasiões, além de vinho,
Vino de Sacho. Deixamos o local às 21:30 horas, às pressas,
pois o horário do albergue fechar era 22:00 horas.
A noite dormida naquela catedral foi
simultaneamente reparadora e agitada. As energias que
circulavam no seu interior remontavam a tempos
seculares, de fatos ocorridos nas remotas épocas em que a
construção fora utilizada como fortificação e centro de
batalhas. Naquela noite pude sentir, de maneira muito
forte, por mais uma vez, a energia do Caminho de Santiago
vinda como uma torrente ao encontro de meus mais
simples pensamentos e ideias sobre vida e os tempos. A
noite dormida em Cizur foi, para mim, uma experiência
silenciosa e esclarecedora. Vivera aquelas horas como se
estivesse participando de passagens inusitadas acontecidas
naquela região, ao longo dos séculos.
Puente la Reina: onde os caminhos se
fazem um só.
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