O Autor na Raça Um embrião de ensaio-reportagem com a memória do projeto
Paloma Klisys
(2008)
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SUMÁRIO
Introdução __________________________________________________________ Página 8
Capítulo 1.
Panorama - Do Global ao Local
Língua, literatura e economia do livro____________________________________Página 9
8
Capítulo 2
O projeto em Foco____________________________________________________Página 10
2.1 Memórias e Reflexões:
Não-lugares, apropriação cidadã do espaço público e memória social_________ Página 23
Referências__________________________________________________________Página 29
9
INTRODUÇÃO
Esta publicação tem como foco a história do projeto “O Autor na Praça”, que existe é
realizado quinzenalmente na Praça Benedito Calixto, situada no bairro de Pinheiros, na cidade
de São Paulo, desde 1999. Este documento é o esboço de uma proposta de livro-reportagem, é
uma colcha jornalística de retalhos provocativos e fragmentos de memória viva que propõem
reflexões à partir da pluralidade de autores e atores sociais envolvidos nessa iniciativa.
O projeto em foco tem como proposta incentivar a leitura, promover a inclusão cultural
criando espaços alternativos para a difusão da literatura integrada a outras manifestações
artísticas, em locais populares: praças, parques, estações, etc., através do encontro informal
entre as pessoas, quebrando o distanciamento entre o escritor, artista e o público, em
contraponto aos eventos realizados em espaços fechados, que restringem o acesso de um maior
número de pessoas.
Trata-se da realização de um modesto registro inédito da memória do projeto,
contemplando conteúdos trazidos à tona durante a problematização de aspectos que entram em
pauta quando a discussão envolve um projeto que propõe um modo de apropriação do espaço
público e que utiliza a cultura e a literatura como instrumentos de afirmação da cidadania,de
promoção de igualdade e também de respeito às diferenças.
O formato de livro-reportagem como suporte de registro do projeto em questão foi
escolhido pelas possibilidades de ampliação e aprofundamento de debate e reflexão que
oferece. A intenção é que um livro sobre o AUTOR NA PRAÇA possa contribuir para
resgatar e democratizar a memória social, através do registro de um projeto que vem
contribuindo para a difusão da literatura, ainda em pequena escala, embora carregue em si o
potencial de ser multiplicado.
Ao abordar a trajetória do projeto através dos próprios autores participantes, torna-se
inevitável o desdobramento e, perguntas simples como qual a importância da iniciativa,
culminam em reflexões a cerca da nossa língua, dos nossos processos políticos e de lutas
democráticas, da formação do público leitor, do papel da literatura, da produção, circulação e
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leitura de obras literárias, dos desafios do mercado editorial, da necessidade de elaboração de
políticas públicas capazes de driblar o triste retrato da leitura no Brasil.
Daí a necessidade de, ao menos esboçar um panorama capaz de situar o leitor nos
contextos global e local, contemplando alguns aspectos que atuam de modo significativo na
nossa realidade e, de modo indireto no modus operandi do “O Autor na Praça” determinando o
alcance de sua atuação dentro de um contexto mais amplo.
O referencial teórico que fomenta reflexões em relação aos espaços públicos, à
apropriação cidadã do espaço público, às interações entre os escritores e o público e à
memória social, é destacado no segundo capítulo que, por sua vez, constitui parte do Projeto
Experimental de Jornalismo, mesclando o tom coloquial com o tom acadêmico apresentado
nas seguintes páginas.
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CAPÍTULO 1
Panorama – Do Global ao Local
Língua, literatura e economia do livro
Na era da globalização, em que algumas línguas se transformaram em línguas globais,
é fundamental que as locais também sejam preservadas. O Português ocupou, até ao início do
século XX, uma posição relativamente modesta entre as línguas maternas mais importantes no
mundo. Foi somente a partir das primeiras décadas de 1900 que começou a obter expressão
significativa, evolução que tem vindo a acentuar-se progressivamente.
De acordo com os dados fornecidos pelas instituições responsáveis pelo recenseamento
geral da população de países de língua oficial portuguesa, pode-se apontar para uma cifra da
ordem dos 200 milhões de falantes de Português como língua materna, distribuídos pelos
continentes americano, europeu, africano e asiático. 1
A Língua Portuguesa encontra-se particularmente bem posicionada no contexto da
disputa lingüística que atualmente se trava no panorama internacional, sendo um dos raros
idiomas que detém o estatuto de língua materna em estados ou territórios de quatro
continentes. O Brasil é um paradigma de como culturas que estavam apartadas, se
reaproximaram, se juntaram em contato, em contágio, em conflito, em comércio, e
transformaram umas às outras.
Um País que abriga muitas culturas é um pólo responsável pela grande entrada
demográfica da África nas Américas. O mundo pode se redesenhar a partir de ações em que a
influência brasileira se manifeste em direções polares com metas e projetos culturais, sociais e
lingüísticos, tendo por base políticas estruturadas para atingir os meios desejados.
O Brasil pode contribuir de maneira significativa para a afirmação nacional e
internacional do idioma através da promoção de estratégias de preservação e de difusão da
Língua, favorecendo sua presença no mundo com aposta em sua expansão, desempenhando
assim um papel político-lingüístico de grande relevância no contexto de um novo mapa de
interação lingüística e social.
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A definição de língua a ser usada por uma nação também depende do alcance social da
comunidade nas relações internacionais. O Português e o Espanhol são línguas que coabitam
territórios lingüísticos e um vasto território político, o Mercosul é exemplo disto.
O Brasil é um país de proporções continentais, contudo, apesar da vasta extensão
territorial e das diferenças e peculiaridades de cada região, temos um idioma em comum: a
Língua Portuguesa. Tocar na nossa Língua contribui para a compreensão do contexto no qual
estamos inseridos. Vale lembrar que as questões lingüísticas constituem um dos temas de
debate da maior atualidade no seio dos organismos internacionais relacionados com a cultura e
a educação.
Desempenhando as línguas uma função crucial na formação das culturas compreende-
se a importância que o tema da defesa do patrimônio lingüístico tem adquirido em diversas
instituições internacionais, entre elas a Unesco. 2
Compete aos estados, às regiões, às sociedades e às organizações de interesse sociais e
culturais, com o apoio de organismos nacionais e internacionais, adotar medidas que visem
preservar as línguas, uma vez que estas constituem um patrimônio inestimável,
desempenhando um papel fundamental na preservação da identidade de numerosas
comunidades em diversos continentes, sendo, também, fatores imprescindíveis para garantir a
diversidade cultural.
O projeto “O Autor na Praça” é uma iniciativa que caminha no sentido de afirmação do
idioma a medida que promove a difusão da produção de autores nacionais. Os sucessivos
alertas de lingüístas e outros cientistas sociais, bem como de organizações internacionais e
responsáveis governamentais de diversas partes do mundo vêm sublinhando, com crescente
intensidade, a função crucial das línguas maternas para o desenvolvimento da criatividade
humana, das capacidades de comunicação, de elaboração de conceitos e, sobretudo, o seu
papel de primeiro fator de identidade cultural. Estas preocupações encontraram eco na
Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos (DUDL) aprovada em Barcelona, a 6 de
Junho de 1996, no decurso da Conferência Mundial dos Direitos Lingüísticos.
A Língua é, ao mesmo tempo, a parte da linguagem que existe na consciência de todos
os membros da comunidade lingüística, a soma dos marcos depositados pela prática social de
inúmeros atos e falas concretos, um museu histórico e cultural, um documento do relevante
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e/ou modesto papel que desempenham os povos que a falam na vida do mundo. Sendo um
produto social, será sempre uma forma de expressão dos usos e costumes da sociedade que a
utiliza.
Trata-se de uma entidade dinâmica. Se é que se pode exercer algum controle sobre a
língua, essa circunstância se restringe, de modo específico à sua forma ortográfica. O princípio
da variação lingüística mostra a existência de diversidades no interior de uma língua, assim
como o fato de que o desempenho lingüístico dos falantes pode variar de acordo com os
contextos.
Em outras palavras, a língua é auto-determinada pelos seus usuários. É como é e não
como deveria ser. Ao pensarmos a Língua, estamos num lugar de afirmação de sensibilidades
e mundivivências de profundo significado humano. Para preservar uma língua é preciso
difundi-la porque a vitalidade de uma língua depende de sua utilização efetiva.
A Literatura, por sua vez, é um instrumento de difusão da língua, bem como um meio
de aquisição de conhecimento e humanização do leitor. Apesar de ser um estudioso da
linguagem e não da literatura, o semiologista francês Roland Barthes percebe a literatura como
uma de suas vertentes e vê nela a expressão das estruturas de poder as quais estamos
submetidos: “Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a
linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua”. (BARTHES,1978)
De acordo com a teoria de Barthes, uma vez que a língua leva à aceitação obrigatória
de suas estruturas para a completa comunicação, ela faz parte de uma estrutura de poder a qual
todos estão submetidos, obrigados.
O ser humano parte sempre em busca da liberdade. Então, quando se considera que a
liberdade é uma desvinculação total do poder a que se é submetido, dentro do universo
lingüístico não há maneiras de ser livre. Só resta, pois, ao homem, a fuga da linguagem por
meio de uma trapaça lingüística utilizando-se da própria língua: Essa trapaça, salutar, essa
esquiva [...], eu a chamo: literatura”.3 (BARTHES, 1978, p. 16).
A concepção de Roland Barthes de que a literatura é a utilização da linguagem não
submetida ao poder, deve-se ao fato de que a linguagem literária não necessita de regras de
estruturação para se fazer compreender.
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Enquanto a utilização da linguagem cotidiana requer uma estrita obediência de sua
estrutura – deve-se enquadrar o pensamento nas estruturas lingüísticas, para que haja uma
perfeita comunicação -, a linguagem literária não obedece a qualquer regra estrutural fixa. O
autor, que se utiliza dessa linguagem, não é obrigado a emoldurar seus pensamentos nas
estruturas lingüísticas; ele é livre para escolher e criar uma estrutura própria, que lhe
proporcione a clara expressão de suas idéias e sentimentos.
Assim, construindo o texto de acordo com seus próprios desejos, o escritor consegue
que sua criação tenha uma novo valor – passa da simples utilização comunicativa da
linguagem à uma utilização artística da mesma – e a um novo poder. O poder assumido pela
nova linguagem é um poder ligado ao novo valor artístico. A linguagem literária assume
aspectos de representação e demonstração.
Através dessa linguagem, pode-se refletir sobre a própria língua com liberdade. A
linguagem literária permite que as palavras assumam vida própria, com novas significações
que não aquelas a elas conferidas usualmente. A linguagem passa a ter “sabor”. Enquanto no
discurso científico a linguagem é direta e não permite ambigüidades, na linguagem literária as
palavras assumem novos significados e representações.
E é por essa característica de assumir novos significados e representações que a
literatura também pode ser uma “literatura de dois gumes”4, conforme a reflexão proposta por
Antônio Cândido onde ele defende a idéia de que traçar um paralelo puro e simples entre o o
desenvolvimento da literatura brasileira e a história social do Brasil seria perigoso, porque
poderia parecer um convite para olhar a realidade de maneira meio mecânica: “ como se os
fatos históricos fossem determinantes dos fatos literários, ou como se o significado e a razão-
de-ser da literatura fossem devidos à sua correspondência aos fatos históricos”. (CANDIDO,
1987)
O outro gume é o que desvela a percepção de que a criação literária traz como
condição necessária uma carga de liberdade que a torna independente sob muitos aspectos, de
tal maneira que a explicação dos seus produtos é encontrada, sobretudo, neles mesmos.
Como conjunto de obras de arte a literatura se caracterizariam, segundo Cândido, por
essa liberdade extraordinária que transcende as nossas servidões: “mas na medida que é um
sistema de produtos que são também instrumentos de comunicação entre os homens, possui
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tantas ligações com a vida social, que vale a pena estudar a correspondência e a interação
entre ambas”. (CANDIDO, 2000)
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, co-autoras do livro Literatura Rarefeita, adquirem
um tom reflexivo e provocativo muito interessante quando pontuam que quando examinamos
os intercâmbios entre a literatura e a sociedade: “ não importa apenas a maneira como os
textos representam as relações sociais engendradas por determinado modo de produção, mas
importa, também e principalmente, a forma como o texto encena sua inserção no sistema de
produção”5. (LAJOLO, 1991)
As autoras deixam no ar uma pergunta nada fácil de ser respondida: como dar certo em
países como o Brasil, periféricos e dependentes, onde o processo de aburguesamento não se
completa nunca ou, dizendo de outra maneira, onde o aburguesamento concretiza-se apenas
parcialmente em alguns segmentos sociais, deixando outros inalterados?.
No contexto da sociedade moderna, vale lembrar que a literatura não pôde se constituir
em prática social difundida e incorporada ao cotidiano antes da descoberta da imprensa, no
século 15, e de seu aperfeiçoamento, no século 18, adequando sua tecnologia à produção e
distribuição, em escala industrial, de livros, revistas, jornais e veículos similares, convertidos
em portadores legítimos de textos escritos.
No mesmo sentido, foi igualmente necessária a consolidação de um sistema de
comercialização desses objetos, postos em circulação por editoras, distribuidoras, livrarias.
Satisfazendo ou criando a demanda de um contingente de consumidores, tais instâncias, de
cunho privado ou público, mobilizaram um mercado e transformaram a literatura em
mercadoria.
Foi preciso também desenvolver legislação que regulasse o funcionamento das
diferentes e sucessivas etapas do processo econômico, da produção ou importação do papel à
implantação de um parque gráfico, da fixação dos direitos do autor à remuneração dos
intermediários que participam da industrialização e comercialização de obras escritas.
Outras exigências incluíram a formulação de uma política educacional que
patrocinasse efetiva e indiscriminada alfabetização da população infantil, existência e
expansão de uma rede escolar eficiente, criação e apoio a instituições que democratizassem o
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acesso aos livros, fundação e fortalecimento de organismos que difundissem e defendessem
essa mesma política de que são fruto.
Quando se examinam os intercâmbios entre a literatura e a sociedade, não importa
apenas a maneira como os textos representam as relações sociais engendradas por determinado
modo de produção, mas importa, também e principalmente, a forma como o texto encena sua
inserção no sistema de produção.
Um outro pressuposto incide sobre as sutis relações entre a literatura e a sociedade,
relações essas que não se visibilizam por meio de categorias, nem de procedimentos de ordem
estritamente textual, embora uma tradição estética privilegie essa dimensão. Na tentativa de
superar a estreiteza de tais categorias, cabe fazer um viés que veja a literatura como prática
social específica de escrita e leitura.
Prática que, se supõe a existência de um texto que recebe o atributo de literário, supõe,
aquém e além dele, uma rede, cujas malhas, menos ou mais fechadas, proporcionam
intercâmbio entre diferentes esferas, instâncias, formações, tecnologias, saberes, instituições e
projetos que integram e delimitam o campo no qual um texto se literariza ou se desliterariza.
Assim como a dificuldade de acesso ao livro, a promoção do hábito de leitura também
integra a complexidade de fatores quando abordamos os problemas de circulação e leitura de
obras literárias e formas de inserção social da literatura. As questões levantadas pelos autores
citados acima estão relacionadas há uma série de pontos da Economia do Livro. Os
pesquisadores Fábio Sá Earp6 e George Kamis7, do Grupo de Pesquisas em Economia do
Entretenimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
desenvolveram a Pesquisa “A Economia do Livro. A crise atual e uma Proposta de Política”,
o material dá uma idéia da complexidade de questões que entram em jogo desde a produção
até a circulação dos livros no País.
De acordo com a pesquisa, os livros brasileiros são caros demais para o poder
aquisitivo da população e as políticas governamentais são importantes, mas não são
suficientes. A principal característica da economia do livro é o descompasso entre a oferta
global crescente e a limitada capacidade de absorção das bibliotecas e a limitadíssima
capacidade de absorção do consumidor individual. No Brasil existem cerca de 3.000 mil
editoras, 15 mil gráficas e 1.500 livrarias, dentre as quais 350 (23%) pertencem a 15 redes.
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A maior parte dos livros não proporciona retorno ao editor. Alguns livros terão grande
venda e cobrirão as perdas com a maioria, de forma que as editoras que puderem imprimir
grande número de títulos e simultaneamente desencadear ações de marketing terão vantagens
sobre as demais. Por outro lado os livros capazes de atingir grandes tiragens serão mais
baratos, contudo as grandes tiragens não são garantia de lucro e os editores acabam correndo o
risco de encalhe de grande parte da produção.
A luta contra o encalhe é feita mediante a busca de autores com público próprio que,
por sua vez, são mais caros e atuam no padrão star-system. A venda de grande parte do
estoque em consignação é outro agravante e isso leva algumas editoras a aplicação de uma
fórmula que permite cobrir os custos vendendo apenas 40% da tiragem. Trata-se de somar os
custos de papel, gráfica, diagramação, revisão, tradução (quando houver necessidade) e capa e
dividir pelo número de exemplares da tiragem pretendida e assim obter o custo unitário do
livro, sem os direitos autorais. Este valor deve ser multiplicado por 5 ou 6 para se chegar ao
preço final.
Um ponto a ser considerado é a distribuição do preço de capa de um livro no Brasil:
direitos autorais: 10%; custos editoriais e manufatureiros 25%; lucro da editora 15%;
distribuidor: 10% e livreiro: 40%. As características dos participantes da cadeia produtiva
também merecem atenção. A cadeia está estruturada em oligopólios: edição, gráfica, papel,
distribuição e livrarias. O setor editorial brasileiro tem de 2 a 3 mil empresas das quais 500
publicam ao menos 5 títulos anuais. A distribuição não é uniforme, só no sub-setor de livros
didáticos existem empresas de grande porte, sendo que a maioria dos livros é vendida ao
governo.
A produção de livros requer uma planta industrial específica com equipamentos e
serviços que demandam atualização constante e as gráficas enfrentam uma série de
dificuldades para a obtenção de créditos. No Brasil existem cerca de 15 mil gráficas, no
entanto meia dúzia acaba responsável pela impressão de livros que é um negócio especializado
no campo gráfico.
A modernização resultou num aumento da capacidade de controle sobre a impressão e
maior qualidade gráfica, mas o sucateamento tecnológico se dá em média em apenas sete anos,
implicando em obsolência do parque gráfico e limitando a capacidade de obter novas reduções
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de custos e ganhos de escala. Entre 1999 e 2003 observou-se a quebra de 14 empresas gráficas
expressivas no eixo Rio – São Paulo, associada a um processo de fusões e aquisições com
participação expressiva do capital estrangeiro, que hoje controla o segmento gráfico editorial
no país.8
A distribuição é feita basicamente de duas maneiras: vendas diretas das editoras ao
governo e vendas diretas às livrarias em geral com a intermediação das distribuidoras. Uma
alternativa que se apresenta as formas de acesso ao consumidor é a possibilidade de
eliminação das livrarias e a realização de vendas diretamente nas escolas e em pontos
estratégicos, com prática de descontos sobre a margem usualmente apropriada pelas livrarias.
Lembre-se que os distribuidores operam com margem de lucro de 10% a 15% do preço de
capa, o que torna inviável remeter pequenas quantias para pontos distantes dos grandes centros
editoriais.
Este quadro evidencia a relevância do projeto “O Autor na Praça” como uma
alternativa viável à promoção de acesso ao livro e a literatura e nos permite vislumbrar o
potencial de multiplicação da proposta em outros estados e municípios. A ocupação de
espaços públicos, a aproximação entre os livros e os leitores parece precisar sem estimulada
com estratégias mais informais e flexíveis. As bibliotecas, espaços muitas vezes restritivos e
pouco atraentes, constituem o segmento mais atrasado na cadeia do livro, não são poucas, mas
são mal administradas e em sua maioria incapaz de atender a demanda do público leitor.
Quanto à demanda, a escolaridade é uma característica que, inevitavelmente merece ser
pontuada. Valorizada socialmente, a leitura não é porém associada ao lazer pelos leitores de
baixa escolaridade; e nem mesmo é considerado uma forma atualizada de transmissão de
conhecimentos, 69% declaram ter acesso a formas mais modernas de atualização.
A imagem da importância do livro não se converte em hábito de leitura. Os dados da
pesquisa Retrato da Leitura no Brasil revelam que 61% dos brasileiros adultos alfabetizados
têm muito pouco ou nenhum contato com livros. Dos 17 milhões de pessoas que não gostam
de ler livros, 11, 5 milhões possuem oito anos de instrução.
São Paulo é o maior mercado editorial brasileiro, calcula-se que 22% da população
alfabetizada é compradora de livros. A presença de compradores nos estratos de renda mais
elevada, porém 2/3 dos compradores são de classes B e C. Atualmente são desafios da
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indústria editorial brasileira: flexibilizar o preço de capa para aproveitar melhor os amplos
segmentos de baixa disponibilidade financeira; explorar adequadamente o universo cultural
mais restrito de público jovem e ensino médio; ampliar canais de distribuição e adequar os
existentes.9
____________________________________________________________________________ 1 Dado divulgado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. 2 Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 3 BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. 4 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios, São Paulo: Ática, 1987. 5 LAJOLO, M., ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita, livro e literatura no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1991. 6 Professor e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia do Entretenimento do Instituto de Economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. 7 Professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro do Grupo de
Pesquisa em Economia do Entretenimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 8 Dados extraídos da Pesquisa Economia do Livro: A Crise Atual e Uma Proposta Política, realizada em 2004
pelo Grupo de Pesquisas em Economia do Entretenimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. 9 Dados extraídos da Pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, realizada em janeiro de 2001, mostra os hábitos de
leitura no País e fornece informações essenciais para o planejamento mercadológico e o estabelecimento de
políticas públicas. Patrocinada pela CBL, SNEL, ABRELIVROS e Associação Brasileira de Celulose e Papel
(BRACELPA).
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CAPÍTULO 2
O projeto em Foco
A visão da Literatura como necessidade existencial do ser humano1, pressupõe o
reconhecimento do potencial que uma obra tem de interferir também que o modo como
dialogamos com o universo de formas, sensações e idéias que a mesma nos oferece,
potencializa nossa capacidade de perceber, criar, compreender e nos comunicarmos com o
mundo. O projeto O Autor na Praça surgiu em 1999 com a proposta de se criar espaços
alternativos para fomentar o interesse pela leitura e a escrita.
Teve sua origem na Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros
na cidade de São Paulo. A idéia surgiu a partir de uma visita de Mário Lago a praça em
novembro de 1998, ocasião em que foi acompanhado até a casa em que viveu em 1949, onde
funciona hoje o restaurante Consulado Mineiro. A primeira edição do projeto foi concretizada
em 1º de maio de 1999, numa iniciativa coletiva envolvendo: o produtor cultural Edson Lima,
o poeta e jornalista Fred Maia, o designer gráfico Marcelo Max, o jornalista Mouzart Benedito
e, naturalmente, Plínio Marcos, além de outros colaboradores.
Na abertura o dramaturgo e escritor Plínio Marcos, esteve presente autografando uma
nova edição de Querô - Uma reportagem maldita. Plínio se tornou o padrinho do projeto,
motivo pelo qual, a tenda onde acontecem os eventos recebeu o nome de Espaço Plínio
Marcos. O Autor na Praça procura romper o distanciamento entre o autor e o público,
promovendo o encontro descontraído e informal em espaços populares: praças, parques, etc,
fugindo ao padrão e formato dos eventos realizados em lugares que - de certa forma -
restringem o acesso a um número maior de pessoas.
O objetivo principal é promover a literatura integrada a outras formas de manifestações
artísticas. Em seu conteúdo, o projeto procura privilegiar a cultura popular brasileira, num
movimento de abertura e não de sectarismo cultural. Desde o surgimento o projeto adotou
como prioridade a reflexão e a crítica e, como conseqüência o entretenimento e o lazer. Deste
modo, o perfil dos escritores e artistas participantes, temas desenvolvidos são coerentes com
essa prioridade. O que distancia de trabalhos de conteúdo estritamente comerciais. De fato, o
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objetivo maior é promover a inclusão cultural, por meio de uma programação que ofereça ao
grande público uma oportunidade de encontro informal com autores e artistas do cenário
nacional, conhecidos ou não do grande público, além de contribuir para o surgimento de novos
talentos.
De 1999, ano de início do projeto, até os dias de hoje, o projeto O Autor na Praça já
contou com a presença de mais de 800 convidados, entre escritores, cartunistas, músicos,
atores, artistas plásticos e outros artistas, tais como: Mário Lago, Plínio Marcos, Ignácio de
Loyola Brandão, Téo Azevedo, Jesus Gabriel, Eduardo Suplicy, Chico e Paulo Caruso, Nalú
Faria, Juca Kfouri, Washigton Olivetto, Verônica Tamaoki, José Nêumanne Pinto, Lourenço
Diaféria, Clara Charf, Toninho Vaz, Mouzart Benedito, Vivina de Assis Viana, Fernando
Bonassi, Regina Echeverria, Laerte Coutinho, Luciano Pires, Amaury Corrêa, Adão
Iturrusgarai, Rocco, José Eduardo Cardozo, Gepp & Maia, Ermínia Maricato, Marçal Aquino,
Frei Betto, Dom Paulo Evaristo Arns, Aloysio Biondi, Chico de Góis, Conceição Cahú, Nabil
Bonduki, Raquel Rolnik, Mauricio Cavalcante, Glauco Matoso, Fred Maia, Ulisses Tavares,
Aldaíza Sposati, Tatiana Belinky, Enio Squeff, Roberto Freire, Ferréz, Geraldo do Norte, José
Arrabal, Ziraldo, Gereba, Dinho Nascimento, Elisa Lucinda, Aguilar, Audálio Dantas, Xico
Sá, Marcelo Rubens Paiva, Mylton Severiano, Ester Góis, Ruy Castro, Alice Ruiz etc. Além
da presença de muitos outros artistas engajados em produções artísticas e culturais que
permanecem inacessíveis ao grande público e aos veículos de comunicação de massa.
Uma das características do projeto é realizar eventos relacionados a datas especiais,
personalidades, fatos históricos e temas de importância para a sociedade, incluindo exposições
temáticas. Alguns temas já apresentados: Dia Nacional da Luta Anti-manicomial, Dia
Internacional da Mulher, Dia Internacional de Luta pela Terra, Homenagem a Solano
Trindade, Cacaso 60 anos – Tarde Poética e Musical, Exposição Lampião – uma viagem pelo
cangaço, Consciência Negra, Movimento Humor pela Cidadania - Homenagem a Henfil, com
a exposição Henfil Baixou Aqui, Consciência do Voto e Invasão do Humor I, II e III. Além da
realização de eventos temáticos o projeto já teve alguns desdobramentos que obtiveram
sucesso junto ao público como "O AUTOR NO PARQUE", "O AUTOR NA ESTAÇÃO"
(trem), "O AUTOR NAS FEIRAS DE ARTES" (Vila Mariana, Pompéia, Pirituba, Vila
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Madalena e Preta in Festival) e “ARQUIBANCADA LITERÁRIA”, levando a literatura para
os torcedores do Corinthians, um dos maiores clubes do Estado de São Paulo.
Dentro da proposta de abrir espaço para novos autores e autores que não têm espaço
nos grandes veículos de mídia para a divulgação de seus trabalhos, O Autor na Praça promove
uma série de eventos para que o público possa ter acesso a produções de autores alternativos e
independentes que se dedicam a uma produção tida como Literatura Marginal.
Embora tenha surgido em uma praça privilegiada pela localização e a existência de
uma Feira de Artes, temos como objetivo estender o projeto para praças, parques, escolas e
locais alternativos nos bairros da periferia da cidade, procurando promover o hábito da leitura
e da escrita e, de certa forma, contribuir para a inclusão cultural e o pleno exercício da
cidadania através das mais diversas formas de manifestações artístico-culturais. A intenção é
realizar o evento nos bairros, com o cuidado de buscar parcerias com a comunidade da região,
respeitando e incentivando a produção cultural local, isto é, não apenas levar um evento pronto
e fechado, mas sim promover e criar um espaço para a reflexão, manifestação e expressão de
temas atuais e de importância para a formação do cidadão.
Para concretizar esta idéia é imprescindível o estabelecimento de parcerias com o
poder público, a sociedade, a iniciativa privada, através de patrocínio ou apoio institucional
que permita e produção e realização dos eventos. Dentro deste plano, um dos objetivos é a
contratação de pessoas da comunidade para a organização, realização e produção dos eventos,
gerando ocupação e trabalho. Após a implantação e consolidação das ações nos bairros, a idéia
é transferir para a comunidade a autonomia da realização dos eventos, tornando as pessoas
envolvidas agentes de sua própria transformação.
O maior desafio é ampliar o número de ações com a realização de ao menos 120
eventos por ano, atingindo um público maior, potencializando os objetivos na formação de
leitores.
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2.1 Memórias e Reflexões:
não-lugares, apropriação cidadã do espaço público e memória social
O projeto “O Autor na Praça” encontra-se em movimento constante e atua, a seu modo
e com todas as suas peculiaridades, no processo de apropriação democrática da cidade através
do espaço público. Nas discussões travadas entre membros de movimentos culturais e sociais
sobre as relações entre o espaço urbano e a construção da subjetividade, destaca-se como
desafio: a formulação de estratégias de ocupação dos espaços públicos e de afirmação da
cidadania tendo como objetivos específicos o desenvolvimento da reflexão crítica partindo da
relação homem/mundo; possibilitando a superação da subjetividade passiva pela proposta de
participação crescente, responsável e livre; construindo condições para que se construa um
processo de equilíbrio da pessoa na sociedade atual, pela ação transformadora no seu contexto.
Marc Augé, antropólogo, etnólogo e professor francês aponta que a sociedade tal como
está configurada apresenta três figuras de excesso: superabundância factual, superabundância
espacial, individualização das referencias. Lugar é uma idéia parcialmente materializada
daqueles que o habitam, de sua relação com o território, com o outro. Talvez a relação com a
história esteja em vias de dessocializar-se e artificializar-se.2
“Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que
não pode se definir nem como identitário, nem como relacional e nem como histórico definirá
um não lugar”, conceitua Augé. (AUGÉ, 1994). O autor defende que a época atual é produtora
de não-lugares.
A cidade não tem mais a carga histórica. Enquanto o lugar está investido de memória/lembrança o não lugar se investe de velocidade/passagem, constituindo um espaço a um só tempo real e virtual, sem materialidade. O redimensionamento do espaço público para o teto domiciliar, ilustra a passagem de um lugar para um não-lugar e deste para um lugar esvaziado de sentido. A tela, em si, é a velocidade/passagem, instalada em um espaço real. A casa (um lugar) torna-se intervalo de tempo, suporte para se chegar a um não-lugar eletrônico.
No cotidiano na megalópole, somos imersos numa série de deslocamentos sem
lembrança. Nossos trajetos não recolhem fragmentos históricos dos lugares por onde
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passamos. Nos dedicamos a um caminhar pelo não-lugar, esvaziado de sentido conflito e
vínculos desenraizados. O máximo que um urbanóide pode construir é uma sucessão de não-
lugares desarticulados no tempo e no espaço, ou então articulados no espaço real.
Os não –lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas
e bens, quanto os próprios meios de transporte e os grandes centros comerciais. Não lugares
por oposição à noção sociológica de lugar, aquela de cultura localizada no tempo e no espaço.
Auge entende o espaço antropológico como um espaço “existencial”, lugar de uma
experiência de relação com o mundo, de um ser essencialmente situado em relação ao meio.
produção individual de sentido é, portanto, mais que necessária, porém o caráter singular da produção de sentido, transmitido por `universos de reconhecimento´ e/ou `universos simbólicos´ que falam do corpo, dos sentidos, da vivencia individual, da política, cujo eixo é o tema das liberdades individuais, tem origem nos sistemas de representação que, individualizando as referencias, a faz em termos coletivos
O “Autor na Praça” promove o encontro entre o escritor e o público, não
necessariamente apenas entre o escritor e seu público leitor, mas também um público aleatório
que têm a oportunidade de ser apresentado a uma determinada obra pelas mãos do próprio
autor. Essa possibilidade de contato enriquece o autor, infelizmente não pelas vendas
propriamente ditas, mas pelo feedback da sua produção da perspectiva do seu leitor, e ao leitor
que, finalmente, pode remeter a obra lida a uma pessoa de carne e osso. Desse modo os
eventos do projeto propõem a ruptura com a lógica descrita pelo escritor e crítico literário
Antônio Cândido.
Resulta que o escritor vê a ele próprio e as palavras, mas não vê o leitor; que o leitor vê as palavras e ele próprio, mas não vê o escritor; e um terceiro pode ver apenas a escrita como parte de um objeto físico, sem ter consciência do leitor nem do escritor. Isso pode fazer com que o escritor suponha, irrefletidamente, que as únicas partes do processo sejam a primeira e a segunda; e o leitor suponha que o processo conste na segunda e terceira; e um crítico irrefletido, que a segunda parte é tudo
Para Cândido há um jogo permanente entre a obra, o autor e o público. O público dá
sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois é ele é de certo modo o
espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. O Público é fator de ligação entre o autor e
sua própria obra*3. Para Candido não convém separar a repercussão da obra de sua feitura,
pois, sociologicamente ao menos, ela só está acabada no momento em que repercute e atua.
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[...] arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana. Todo o processo de comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige
A obra, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contato indispensável. Assim a série autor-público-obra, junta-se a outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o publico, a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público
É nessa série interativa: obra-autor-público, que o projeto “O Autor na Praça”
desenvolve sua atuação. A obra é o mote para que o autor vá à praça e exponha,
simultaneamente a obra e a si mesmo ao contato com o público. Quanto mais rico o espaço
público mais conflituoso, o que pode ser absolutamente saudável se houver a gestão
participativa dos conflitos.
O foco de registro desse trabalho contribui para a geração de espaço público cidadão.
O projeto é um ponto de identificação coletiva, e é também um espaço de intercâmbio que
fomenta o processo de produção do espaço público como uma apropriação coletiva. Nesse
sentido a praça é torna-se um centro cívico de encontro, um equipamento cultural.
Como a proposta do presente trabalho é a realização de um registro da memória do
projeto, convém realizar. O conceito de memória e a maneira como ela funciona vem sendo
tema dos estudos de filósofos e de cientistas há séculos. Este conceito vem se modificando e
se adequando às funções, às utilizações sociais e à sua importância nas diferentes sociedades
humanas.
A memória e a imaginação têm a mesma origem: lembrar e inventar têm ligações
profundas. O registro era visto como algo que contribuía para o enfraquecimento da memória,
ao transferi-la para fora do corpo do sujeito. Os gregos desenvolveram muitas técnicas para
preservar a lembrança sem lançar mão do registro escrito. Além disso, reservaram ao sujeito
que lembra um papel social fundamental de transmissor da história oral. O poeta resgata o que
é importante do esquecimento. É uma espécie de memória viva do seu grupo.
A invenção da imprensa, com tipos móveis, e a urbanização, com mudanças
fundamentais na organização e nas relações sociais, nas atividades, papéis e percepções do
indivíduo, trarão mudanças importantes para a memória individual e coletiva. De uma
sociedade baseada na transmissão oral dos saberes necessários ao trabalho e à vida em grupo,
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novas ocupações relacionadas ao comércio e à vida nas cidades demandam registros de
operações, de listas, de transações.
Desenvolvem-se a partir daí, artifícios cada vez mais sofisticados para guardar e
disseminar a memória em textos e imagens. Este processo culmina com o computador, capaz
de guardar grandes quantidades de informações e abarcar todos os meios inventados
anteriormente para registrar e armazenar a memória.
Na atualidade, o conceito e o funcionamento da memória ganharam importantes
aportes das ciências físicas e biológicas. Ao lado delas, as Ciências Sociais e a Psicologia
também têm a memória individual e coletiva como um dos seus campos de investigação. Os
estudos envolvem necessariamente os conceitos de retenção, esquecimento, seleção. Como
elaboração a partir de variadíssimos estímulos, a memória é sempre uma construção feita no
presente a partir de vivências/experiências ocorridas no passado.
Nas ciências sociais encontraremos estudos que relacionam a memória individual ao
meio social, fundamentais para os trabalhos, em que se articulam os relatos individuais à
memória local.
A memória aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivíduo carrega em
si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. É no
contexto destas relações que construímos as nossas lembranças. A rememoração individual se
faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com que nos relacionamos. Ela está
impregnada das memórias dos que nos cercam, de maneira que, ainda que não estejamos em
presença destes, o nosso lembrar e as maneiras como percebemos e vemos o que nos cerca se
constituem a partir desse emaranhado de experiências, que percebemos como uma unidade
que parece ser só nossa.
As lembranças se alimentam das diversas memórias oferecidas pelo grupo, a que o
autor denomina 'comunidade afetiva'. E dificilmente nos lembramos fora deste quadro de
referências. Tanto nos processos de produção da memória como na rememoração, o outro tem
um papel fundamental. Esta memória coletiva tem assim uma importante função de contribuir
para o sentimento de pertinência a um grupo de passado comum, que compartilha memórias.
Ela garante o sentimento de identidade do indivíduo calcado numa memória compartilhada
não só no campo histórico, do real mas sobretudo no campo simbólico.
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A memória se modifica e se rearticula conforme posição que ocupo e as relações que
estabeleço nos diferentes grupos de que participo. Também está submetida a questões
inconscientes, como o afeto, a censura, entre outros. As memórias individuais alimentam-se da
memória coletiva e histórica e incluem elementos mais amplos do que a memória construída
pelo indivíduo e seu grupo.
Um dos elementos mais importantes, que afirmam o caráter social da memória, é a
linguagem. As trocas entre os membros de um grupo se fazem por meio de linguagem.
Lembrar e narrar se constituem da linguagem. A linguagem é o instrumento socializador da
memória, pois reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural vivências tão
diversas como o sonho as lembranças e as experiências recentes.
É interessante ainda apontar que a memória é um objeto de luta pelo poder travada
entre classes, grupos e indivíduos. Decidir sobre o que deve ser lembrando e também sobre o
que deve ser esquecido integra os mecanismos de controle de um grupo sobre o outro. Outro
aspecto importante acerca da memória é a sua relação com os lugares. As memórias individual
e coletiva têm nos lugares uma referência importante para a sua construção, ainda que não seja
condição para a sua preservação, do contrário povos nômades não teriam memória. As
memórias dos grupos se referenciam, também, nos espaços em que habitam e nas relações que
constroem com estes espaços. Os lugares são importante referência na memória dos
indivíduos, de onde se segue que as mudanças empreendidas nesses lugares acarretam
mudanças importantes na vida e na memória dos grupos.
Memória individual e coletiva se alimentam e têm pontos de contato com a memória
histórica e, tal como ela, são socialmente negociadas. Guardam informações relevantes para os
sujeitos e têm, por função primordial garantir a coesão do grupo e o sentimento de pertinência
entre seus membros. Abarcam períodos menores do que aqueles tratados pela história. Têm na
oralidade o seu veículo privilegiado, porém não necessariamente exclusivo, de troca. Já a
memória histórica tem no registro escrito um meio fundamental de preservação e
comunicação. Memória individual, coletiva e histórica se interpenetram e se contaminam.
Memórias individuais e coletivas vivem num permanente embate pela co-existência e também
pelo status de se constituírem como memória histórica.4
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O Autor na Praça está aprovado na Lei de Incentivo à Cultura e ainda assim sobrevive
sem patrocínio. Em seu conteúdo o projeto busca privilegiar a cultura popular brasileira, num
movimento de abertura e não de sectarismo cultural. Adota como prioridade a reflexão e a
crítica e, como conseqüência o entretenimento e lazer. Deste modo, o perfil dos escritores e
artistas participantes e temas desenvolvidos são coerentes com essa prioridade. “Isso nos
distancia de trabalhos de conteúdo estritamente comerciais. Acreditamos que a cultura é um
dos instrumentos mais valiosos para a construção da igualdade. A iniciativa é um sucesso,
pode e deve ser multiplicada, mas ainda precisamos de parceiros para ampliar o potencial do
projeto” afirma o cartunista Paulo Stocker, parceiro do “O Autor na Praça”.
Considerando o contexto, algumas questões merecem sercolocadas em pauta,
permeando a narrativa da história (que não seguirá uma linha cronológica) com reflexões cuja
origem se dá na discussão de algumas problematizações propostas, dentre elas: Como o autor
na Praça pode sobreviver sem patrocínio por tanto tempo? Como o entrosamento das
manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social atua na produção dos eventos
do projeto? Por que uma iniciativa que, via apropriação do espaço público, utiliza a Cultura e a
Literatura como instrumentos de promoção da igualdade permanece sem patrocínio? Qual a
importância do projeto como ponto de identificação coletiva que faz com que a praça seja um
lugar de encontro e de intercâmbio? Qual é a função do artista como participante do projeto ,
qual sua posição e quais os limites da sua autonomia criadora? Qual a importância do público
do projeto como fator de conexão entre o escritor e a obra? Quais as contribuições do projeto à
memória social? __________________________________________________________________________________________________________________
1 “Sem palavras, sem escrita e sem livros não haveria história, não poderia haver conceito de humanidade”
Hermann Hesse 2 AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da super-modernidade. Trad. Lúcia Mucznik,
Bertrand Editora, 1994. 3 CANDIDO, Antônio. “Literatura e Sociedade”. Grandes nomes do pensamento brasileiro, São Paulo, Edifolha,
2000.
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4 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vertice, 1990.
LE GOFF, J. História e Memória. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n.10, 1992.
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REFERÊNCIAS
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Ciências Humanas, nº10, São Paulo, Livr.e Edit. Ciências Humanas, 1981, p. 93-110
CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural, Campinas, Ed. Papirus, 1995.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios, São Paulo: Ática, 1987.
CANDIDO, Antônio. “Literatura e Sociedade”. Grandes nomes do pensamento brasileiro, São
Paulo, Edifolha, 2000.
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LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo
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