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O Abolicionismo como “forma” e a Escravidão como crítica: Joaquim
Nabuco e o Nation-building brasileiro
Lucas Baptista de Oliveira1
RESUMO: O artigo propõe analisar de que modo a crítica à escravidão aparece na obra O Abolicionismo de Joaquim Nabuco. O que se pretende é revelar como a escravidão se torna uma unidade crítica no argumento do pernambucano - tornando-se a causa principal dos problemas da nação - através da análise privilegiada de O Abolicionismo, pensado aqui como um Ensaio sobre a Escravidão. Dessa maneira, tomando o Ensaio na perspectiva de Theodor Adorno, se buscará entender como a lógica discursiva do abolicionista, ao partir de um traço parcial da conjuntura de sua época - a Escravidão - acaba por permitir que a totalidade - a Nação brasileira - se resplandeça ou se mostre incompleta. É nesse sentido que se resgatará Joaquim Nabuco como importante intérprete do processo de Nation-Building brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Nabuco; O Abolicionismo; Escravidão; Nação
I. INTRODUÇÃO Em meio à pluralidade interpretativa que circunscreve as análises em torno das
ideias de Joaquim Nabuco2 se percebe um fato curioso. Na última década surgiram
muitas pesquisas que tinham como escopo a trajetória intelectual e política do
pernambucano, como por exemplo, os trabalhos de Antônio Rocha (2009), Izabel
Marson (2008), Marco Aurélio Nogueira(2010)3, e Ricardo Salles (2002).
Dentre os trabalhos contemporâneos ganha destaque problemático - ainda que de
forma diversa - o diagnóstico abolicionista de Nabuco sobre a sociedade brasileira de
1 Doutorando em Ciência Política – IFCH/Unicamp. Email: [email protected]. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior (CAPES). 2 Joaquim Nabuco (1849-1910) foi um político, diplomata, historiador e jornalista brasileiro.
Monarquista convicto e membro do partido Liberal, Nabuco tornou-se conhecido por sua atuação política em prol da abolição da escravidão ao longo dos anos 1880. Suas obras mais conhecidas são: O Abolicionismo, publicada em 1883; Campanha Abolicionista no Recife, publicado em 1885; Balmaceda, de 1895; Um Estadista no Império, publicado em três tomos entre 1897 e 1899; Minha Formação, publicada em 1900, entre outros escritos e discursos parlamentares. Ver mais em: NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Jose Olympo, 1979; ALONSO, Ângela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Paz e Terra, 2002; ALENCAR, José Almino. Joaquim Nabuco: o dever da política. Org: José Almino de Alencar e Ana Pessoa. Rio de Janeiro: Edições Casa Rui Barbosa, 2002. 3 Embora o trabalho de Marco Aurélio Nogueira seja originalmente de 1984, seu livro foi
relançado em 2010.
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sua época, qual seja de que a escravidão nos legou uma nação incompleta4. Tanto
Salles (2002) quanto Nogueira (2010) se ancoram numa perspectiva gramsciana para
polemizar a questão. De um lado, Salles (2002) afirma que Nabuco é um intelectual
tradicional, um aristocrata ainda conectado aos grupos políticos e culturais da elite
imperial. Sua análise, ao levar em consideração o processo histórico de emergência
dos novos Impérios europeus, busca refletir sobre a construção narrativa da nação
brasileira, situando Joaquim Nabuco como um pensador de um segundo Império, qual
seja a nação escravista brasileira.
Na outra ponta Nogueira (2010) defende que Nabuco é um intelectual orgânico,
um político capaz de articular os interesses gerais de uma classe específica ao
conjunto de interesses gerais da nação. Por isso a análise chama atenção para a
singularidade do liberalismo abolicionista do pernambucano, que foi capaz de perceber
a necessidade de reformas sociais para a construção do povo e da nação no Brasil.
Para Nogueira (2010) esse seria o duplo caráter nacional do abolicionismo: o de ser
uma luta da nação inteira na qual a própria nação se constituiria.
Através de outra abordagem Marson (2008) argumenta que Nabuco tem um
discurso político de caráter ambíguo que se revela em duas faces: tanto no
compromisso de construir a nação quanto no de abolir a escravidão e regenerar a
monarquia parlamentar. A autora alerta que o pressuposto de uma nação inexistente é
um recurso retórico, na medida em que foi importante para agigantar o cativeiro,
tornando-o a origem de todos os problemas da sociedade brasileira e, assim,
comprovar uma revolução irrealizada e, ou melhor, a própria incompletude da nação.
Na mesma linha, Rocha (2010) busca destacar que a campanha abolicionista de
Nabuco não se destinava às fazendas ou quilombos do interior ou mesmo às ruas e
praças da cidade. A campanha tinha fins pedagógicos: deveria ser dirigida aos ricos,
visando instruí-los sobe o equívoco dos seus interesses sobre o trabalho escravo e,
assim, incentivá-los a se mobilizar para pressionar o Parlamento. Para Rocha (2009) o
ponto mais alto da consciência antiescravista de Nabuco era o princípio de que o
alicerce da nação deveria ser refeito com a substituição da escravidão pela liberdade
individual.
Vimos até agora que a problemática da nação tem destaque em parte da
bibliografia contemporânea sobre Joaquim Nabuco e, logo, merece a maior atenção. O
que se pretende aqui é contribuir com esse debate privilegiando a análise de uma dais
mais conhecidas obras de Nabuco, O Abolicionismo (1883). Tomando como inspiração
4 Este foi tema principal da dissertação de mestrado: OLIVEIRA, L.B. Linguagens do
Abolicionismo no Brasil: A Nação no ideário político de Joaquim Nabuco. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). IFCH/Unicamp - Campinas, SP, 2013.
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as ideias de Theodor Adorno (2003) em seu O Ensaio como Forma, o objetivo do
artigo é: revelar em que medida a lógica discursiva do pernambucano, ao partir de um
traço parcial da conjuntura de sua época – a escravidão – acaba por permitir que a
totalidade – a nação brasileira – se resplandeça ou se mostre incompleta. O
argumento central é que, ao operar desta forma, Nabuco estaria eternizando o
transitório.
II. O Abolicionismo como “forma”
A busca pela totalidade no pensamento de Joaquim Nabuco não é exclusividade
desta geração intelectual. Antes disso, Paula Beiguelman, já nos anos 1960, afirmava
que a inovação da teoria abolicionista consistia em forjar um fator explicativo central
para compreender a realidade, ampliando o alcance crítico de análise de alguns
aspectos característicos da sociedade escravista brasileira. Dito de outro modo, tal
análise – inspirada nas ideias de Karl Manheimm - buscou detectar a característica do
conservantismo presente nos argumentos daqueles que defendiam o status quo (leia-
se a escravidão) e sua conclusão enfática recai sobre a incapacidade de tais
argumentos conceberem a sociedade como totalidade política. É nesse contexto que
emergiu a teoria abolicionista como novidade analítica, sobretudo ao considerar a
Escravidão como fator explicativo central de toda a sociedade e, dessa forma, apontar
a necessidade de transformação do status quo (leia-se abolição).
(BEIGUELMAN,1967: 145-163)
Para Fernando Henrique Cardoso Joaquim Nabuco foi o representante mais
emblemático do abolicionismo autêntico. Segundo Cardoso (1977), Nabuco
compreendeu que, para que a luta em prol da abolição não fosse derrotada, o alvo de
sua crítica deveria transcender o problema do negro, sem relegá-lo a segundo plano,
integrando-o na questão fundamental do país, que era o trabalho livre. É daí que surge
o abolicionismo autêntico como forma possível de consciência totalizante da
sociedade escravocrata da época. A negação da escravidão proposta por Nabuco,
sugere Cardoso (1977), desvendava o conteúdo e o sentido da sociedade escravista.
(CARDOSO, 1977: 220-221).
É para desvelar essa totalidade que as ideias de Theodor Adorno (2003) podem
ser úteis. Isto é, ao contrário de procurar um método inovador na teoria abolicionista
ou mesmo uma consciência totalizante, a totalidade será buscada aqui na
problemática da nação e o objeto privilegiado de análise será O Abolicionismo (1883)
pensado como forma, tal qual um Ensaio sobre a escravidão elaborado por Nabuco.
Cabe lembrar que, para Adorno (2003),
4
“O ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada. [...] Sua totalidade, a unidade de uma forma construída a partir de si mesma, é a totalidade do que não é total, uma totalidade que também, como
forma, não afirma a tese entre identidade e coisa, que rejeita como conteúdo.” (ADORNO, 2003:35-36)
Para conectar a referência acima colocada ao que se verá nas próximas seções é
preciso tomar algumas considerações. Beiguelman (1967) afirma que a novidade da
teoria abolicionista consiste em forjar a escravidão como fator explicativo central da
sociedade da época e Cardoso (1977), num raciocínio semelhante, argumenta que o
abolicionismo seria uma forma possível de consciência totalizante. O importante é que
ambos autores se valem da ideia de que a escravidão é, a priori, uma totalidade no
pensamento de Joaquim Nabuco5. O método de Adorno (2003) inverte a questão, na
medida em que O Ensaio, assim como O Abolicionismo, vai operar sobre outra lógica.
Ele “pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele
encontra sua unidade ao buscá-la através destas fraturas, e não ao aplainar a
realidade fraturada.” (ADORNO,2003: 35)
Em O Abolicionismo Joaquim Nabuco vira e revira seu objeto: a Escravidão. Ele a
“questiona e a apalpa, a prova e submete à reflexão, a ataca de diversos lados e
reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto
permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever.” (ADORNO,
2003:36). A Escravidão é a unidade crítica no pensamento de Nabuco enquanto a
totalidade é a Nação incompleta, como se procurará argumentar nas próximas seções.
III. A escravidão como Crítica
Publicado em 1883, O Abolicionismo de Joaquim Nabuco se divide em dezessete
partes. Todos os capítulos são precedidos de epígrafes de abolicionistas ou liberais
brasileiros e internacionais (em geral, ingleses, franceses e americanos). Na
exposição há também inúmeras referências à literatura (como, por exemplo, Shelley,
Shakespeare, Momnsen) além da linguagem ser carregada de referências jurídicas.6
5 Marco Aurélio Nogueira também caminha nesta direção. Inspirando-se na ideia de fato social
total de Marcel Mauss, o autor argumenta que é da análise da escravidão como fato global que Nabuco deriva a tese do abolicionismo como reforma social global: “por ser verdadeiro e complexo regime social, ela [a escravidão] exigia reformas que transcendessem tanto o nível imediatamente político-jurídico quanto a eliminação pura e simples da instituição.” (NOGUEIRA,2010: 153). Não se deve perder de vista que o escopo de pesquisa de Nogueira (2010) é a trajetória política e intelectual de Nabuco, enquanto aqui se privilegiará analisar O Abolicionismo. 6 O exercício de pensar de Nabuco recorre inúmeras vezes à figuras jurídicas do direito romano
ou moderno para validar seu argumento. Tal linguagem é característica dos políticos do século XIX brasileiro, pois a maioria deles eram provenientes das Escolas de Direito do Recife ou da Escola de Direito de São Paulo. Como lembra Sérgio Adorno, a formação jurídico-política foi
5
Mas o que importa é saber como Nabuco escreve a sua história que “não começa com
Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e
termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer.” (ADORNO,
2003:17). Tudo começa, portanto, com a Escravidão. Logo nas primeira páginas
Nabuco apresenta sua unidade crítica,
“Esta [a escravidão] não significa somente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital, e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos [...].” (NABUCO, 2003: 71)
A Escravidão como unidade crítica exige que Nabuco unifique no pensamento o que
se encontra unido nos objetos de sua livre escolha. Isto é, a Escravidão toma essa
dimensão elástica logo de início para viabilizar o exercício do pensar que se verá nas
páginas subsequentes. Ela é uma unidade crítica na medida em que atua como critério
ou princípio definidor para analisar a realidade fragmentada. Por isso, para Nabuco “a
nação só será possível enquanto tiver consciência que lhe é indispensável adaptar à
liberdade de cada um dos aparelhos do seu organismo de que a Escravidão se
apropriou.” (NABUCO, 2003: 70)
O pensamento profundo de Nabuco desvela-se no exercício de seu aprofundamento
na escravidão e não deve ser confundido com a própria profundidade da Escravidão.
Essa inversão é importante pois mostra que esta instituição não é um ente abstrato, é
uma realidade que está nas coisas, na Lei, no Governo, na Sociedade, nas pessoas,
nas instituições, no território e na geografia7. Em outras palavras, a escravidão só é
tão profunda na medida em que se realiza nos aparelhos do organismo social. Essa
será a lógica discursiva presente no pensamento de Joaquim Nabuco.
Para desenvolver os argumentos acima arrolados se dividirá O Abolicionismo em
duas partes: a) Primeira parte (do capítulo I ao XI), na qual Nabuco invoca a história
necessária – para além da composição dos quadros da burocracia estatal - para “compensar as relativas bases heterogêneas das elites políticas mediante a constituição de um tipo de intelectual, algo cosmopolita, que se aventurasse por outro campo do saber, não exclusivamente restritos ao Universo da lei e do direito” (ADORNO, 1988:143). 7 Interessante perceber como essa lógica de pensamento funciona imediatamente na política.
Para Nabuco propaganda abolicionista se dirige contra uma instituição e não contra pessoas. “Não atacamos os proprietários como indivíduos, atacamos o domínio que exercem e o estado de atraso em que a instituição que representam mantém o país todo.” (NABUCO, 2003:89). Nessa passagem se pode perceber a sagacidade do pernambucano, ou seja, o que Nabuco ataca aqui é a Escravidão que aparece em sua expressão real e fragmentada, qual seja no domínio exercido pelos proprietários de homens.
6
anterior das Promessas de Liberdade para apontar a ilegalidade da escravidão; b)
Segunda Parte (do capítulo XII ao XVII), na qual Nabuco apresenta as teses gerais do
abolicionismo bem como discorre sobre as influências da escravidão na formação do
território, da população do interior e da nacionalidade.
a) Primeira Parte – Promessas de Liberdade
Independência
No capítulo VI. Ilusões até a Independência Joaquim Nabuco vai resgatar as
Promessas de Liberdade já feitas desde o período pré-Independência do Brasil. Não
por acaso a citação de epígrafe é de José Bonifácio, o patriarca da Independência,
que já alertava para a necessidade de pôr fim à escravidão naquele momento.
Nabuco traça dois períodos: 1º período: Pré- Independência - ele chama atenção
para o fato de que o Jurisconsulto português Melo Freire já se posicionava contra o
direito de dominica potestas (direito que regulava o domínio sobre o escravo em Roma
Antiga) no Alvará de 6 de Junho de 1755 e foram dele as primeiras promessas solenes
feitas à Raça Negra. Nabuco cita também o Alvará de 19 de setembro de 1761 e o
Alvará de 16 de Janeiro de 1773, que declarou livres os escravos introduzidos em
Portugal depois de certa época. Se tais Alvarás fossem estendidos ao Brasil, lembra o
pernambucano, a escravidão já teria acabado. O 2º período: a Independência –
Nabuco a apresenta como um momento importante que se abriu para pôr fim à
escravidão, mas também se frustrou. Para ele a Independência foi uma vergonha,
“pois ali o movimento nacional viu que a escravidão dividia o país em duas castas, das
quais uma apesar de partilhar a alegria e o entusiasmo da outra não teria a mínima
parte nos despojos da vitória.” (NABUCO, 2003: 104). Dito de outro modo, a
Independência foi a primeira Promessa de Liberdade, visto que antes dela os escravos
se encontravam aliados ao Brasileiros numa esperança implícita de liberdade, como
se verificou na Revolução de 1817 em Pernambuco8.
O que interessa é que Nabuco vai recuperar a história da Revolução de 1817 para
dizer que seu desfecho foi como um resultado real daquilo que seria o “cadafalso” da
Escravidão entre nós. Isso porque “os revolucionários de Pernambuco
compreenderam e sentiram a incoerência de um movimento nacional republicano que
se estreava reconhecendo a propriedade do homem pelo homem.” (NABUCO,
2003:104). Mesmo com essa movimentação política a Constituição do Império acabou
8 Nabuco nos apresenta que no movimento político de 1817 os escravos eram aliados, de
coração, dos brasileiros e eles esperavam que a Independência fosse um primeiro passo para sua alforria. (NABUCO, 2003: 103)
7
por fazer valer os interesses dos proprietários e logrou-se sem sequer tocar no tema
da escravidão. Diz Nabuco:
“Por isso organizadores da Constituição não quiseram deturpar a sua obra descobrindo-lhe os alicerces. José Bonifácio, porém, o chefe d´esses Andradas – Antônio Carlos tinha estado muito perto do cadafalso [leia-se escravidão] no movimento de Pernambuco - em quem os homens de cor, os libertos, os escravos mesmos, os humildes todos da população que sonhava a Independência tinha posto sua confiança, redigira para ser votado pela Constituinte um projeto de lei para os escravos.” (NABUCO, 2003:105)
O projeto de lei proposto por José Bonifácio não é suficiente para o movimento
abolicionista, mas representaria um avanço importante na questão. Se os artigos da lei
(apresentados na Tabela 1) tivessem sido aplicados teriam alguma validade (ainda
existiam outros artigos que tratam de penas, instrução moral dos escravos, etc., mas
não são citados no livro). Eis os artigos destacados por Nabuco:
Artigo 5º - Todo escravo, ou alguém por ele, que oferecer ao senhor o valor por que foi vendido, ou por que for avaliado, será imediatamente forro.
Artigo 6º - Mas se o escravo ou alguém por ele, não puder pagar todo o preço por inteiro, logo que apresentar a sexta parte dele, será o senhor obrigado a recebe-la, e lhe dará um dia livre na semana, e assim à proporção mais dias quando for recebendo as outras sextas partes até o valor total.
Artigo 10º - Todos os homens de cor forros, que não tiverem ofício ou modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra para cultivarem, e receberão, outrossim, dele os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo.
Artigo 16º - Antes da idade de 12 anos não deverão os escravos ser empregados em trabalhos insalubres e demasiados; e o Conselho – Conselho
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Tabela 1: Artigos de Lei propostos por José Bonifácio na Constituinte de 1823
Fonte: O Abolicionismo (1883)
Para Nabuco tanto os mártires de Pernambuco quanto os da Independência
entenderem que a promessa da emancipação não poderia deixar de ser formal. Ao
mesmo tempo tal promessa foi a resultante da afinidade nacional, da cumplicidade
revolucionária (de Pernambuco) e da aliança entre outras forças que também lutaram
pela emancipação política e o fim da escravidão. Nem o espírito largo e generoso de
liberdade e justiça que animava o “patriarca da Independência”, Jose Bonifácio, foi
capaz de insuflar os estadistas pelo fim do cativeiro.
Ainda que a Independência fosse promessa formal Nabuco faz questão de trazer à
tona os artigos da Lei referentes aos escravos e não cumpridos pela Constituição do
Império (Tabela 1). Esse procedimento revela como pernambucano opera sua unidade
crítica: a Escravidão. Nesse sentido, o problema é duplo: tanto a Escravidão servirá
para fazer a crítica geral – na medida em que tais artigos são insuficientes para o
abolicionismo – como a crítica específica, qual seja de que a escravidão aparece na
realidade como como fragmento, no caso, na Lei ou na impossibilidade de execução
de artigos específicos desta Lei. É a mesma lógica que Nabuco utiliza para condenar a
Lei de 28 de Setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre) e, ao mesmo tempo, apontar a
ilegalidade da escravidão.
Superior Conservador dos Escravos, proposto no mesmo projeto – vigiará sobre a execução deste artigo para o bem do Estado e dos mesmos senhores.
Artigo 17º - Igualmente os Conselhos Conservadores determinarão em cada província, segundo a natureza dos trabalhos as horas de trabalho, e o sustento e vestuário dos escravos.
Artigo 31º - Para vigiar na estrita execução da lei e para se promover todos os modos possíveis o bom tratamento, morigeração (modo de viver, bons costumes) e emancipação sucessiva dos escravos, haverá na capital de cada Província um Conselho Superior Conservador dos escravos, etc.
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Lei do Ventre Livre
Da Independência até a Lei do Ventre livre ocorreram outras Promessas de
Liberdade. Dentre elas tem destaque o artigo 1º da lei de 7 de Novembro de 1831,
que tornava livre todos os escravos que entrassem no território ou nos portos do
Brasil. Essa lei também ficou na promessa. Logo como lembra Nabuco, o tráfico ilegal
entre 1831 e 1852, identificado com a Escravidão, introduziu no Brasil
aproximadamente um milhão de Africanos (NABUCO, 2003: 110)9
Já nos anos 1860 Joaquim Nabuco chama atenção para o que considera ser os três
compromissos nacionais com os escravos: a) Guerra do Paraguai: decreto 6 de
Novembro de 1866 que declarava liberdade aos escravos que lutaram na Guerra do
Paraguai, denominados escravos da nação; b) Fala do trono de 1867: se apresenta
como sensibilidade política da Coroa em torno da questão servil; c) A correspondência
entre os abolicionistas europeus e o governo Imperial: carta enviada pela Junta da
Emancipação francesa ao Imperador pedindo o fim da escravidão no Brasil. Estes três
elementos se articulam num contexto político em que se verifica a agitação do Partido
Liberal em prol da emancipação dos escravos, culminando na Lei 28 de setembro de
1871. Para Nabuco, essa lei não restringiu de modo algum os direitos adquiridos dos
proprietários, pelo contrário, tornou-se com o tempo o seu melhor baluarte. (NABUCO,
2003: 117)
A Lei do Ventre Livre (também conhecida por Lei Rio Branco) decretou: “ninguém
mais nasce escravo”. Para Nabuco a crítica geral da lei é que ela não abole civil e
completamente a escravidão e a crítica específica se apresenta nos seguintes
aspectos: 1) a lei entregou os ingênuos ao cativeiro até os 21 anos de idade; 2) a lei
não declara livre e desembargados os bisnetos de escravas; 3) a lei exige que os
escravos apresentem a nota distintiva de libertos e ainda os sujeita à inspeção do
Governo e à obrigação de exibir contrato de serviço sob pena de trabalhar nos
estabelecimentos públicos; 4) A lei mantém o direito absurdo do senhor da escrava à
indenização de uma apólice pela criança de oito anos que não deixou morrer; d) a lei
não impede a separação do menor da mãe, em caso de alienação desta. Além disso
9 Para Nabuco o tráfico de escravos articulava segmentos sociais específicos, são eles: a)
apressadores de escravos na África; b) o explorador da Costa; c) os piratas do Atlântico; d) os importadores e armadores, na maior parte estrangeiros do Rio de Janeiro e da Bahia; e) os traficantes do litoral brasileiro; f) os comissários de escravos; g) e a classe principal: os compradores de escravos, cujo dinheiro alimentava e enriquecia aquelas classes todas. E, segundo Nabuco o tráfico ilegal ainda continuava (em pleno anos 1880!), mas agora “pela indiferença dos poderes públicos e impotência das magistratura, composta, também, em parte de proprietários de Africanos.” (NABUCO,2003: 145)
10
Nabuco lembra outros absurdos extra legais, como o Edital de vendas de ingênuo em
Valença denunciado por ele ao Conselho de Estado.10
A passagem da crítica particular (leia-se da forma específica da escravidão que se
realiza na Lei de 28 de Setembro) para a crítica mais geral (da própria ilegalidade da
escravidão) se revela na medida em que Nabuco aponta que a lei do país não basta
para garantir a liberdade pois nem os artigos nela já existentes são executados. Nesse
sentido, o primeiro passo seria abolir a Escravidão da lei. Como lembra Nabuco, não
“são os escravos somente que não se contentam com a liberdade dos seus filhos e
querem também ser livres, mas todos nós queremos ver o Brasil desembaraçado e
purificado da escravidão.” (NABUCO, 2003: 120)
O trecho acima serve de gancho para o movimento que Nabuco vai operar em sua
argumentação. Se a Escravidão está, ao mesmo tempo, contida na lei e é ilegal
perante a própria Lei, cabe verificar até que ponto a escravidão no Brasil daquela
época era ilegal, sendo necessário “conhecer suas origens, sua história e a pirataria
que ela deriva seus direitos por uma série de endossos tão válidos como a transação11
primitiva”. (NABUCO, 2003:129). Dessa forma, a primeira etapa consiste em condenar
legalmente a Escravidão.
A Ilegalidade da Escravidão
No capítulo XI. Fundamentos do Abolicionismo Nabuco destaca a ilegalidade da
escravidão perante o direito moderno, pois ela viola a noção do que é homem pela Lei
internacional. Nabuco argumenta que alguns princípios fundamentais do direito não
podem ser violados porque eles se interdependem. “Tais princípios formam uma
espécie de direito natural, resultado das conquistas do homem em sua longa
evolução.” (NABUCO, 2003: 149). Dito de outra forma, o que faz Nabuco é condenar a
escravidão perante o Direito Internacional chamando atenção para quatro aspectos
principais: 1) Não há propriedade do homem sobre o homem, pois todo homem é uma
pessoa, isto é um ente capaz de adquirir e possuir direitos; 2) O direito internacional
não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos; 3) Os
escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que pisam o solo de um
Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a fazer respeitar-lhes a liberdade; 4)
10
Nabuco relata que, nesse momento, a questão do prazo para abolição civil e completa da escravidão chegou a ser debatido no Conselho de Estado, no entanto a discussão perdeu fôlego diante da celeuma colocada pela Lei do Ventre Livre: se os filhos de mães escravas seriam ingênuos ou libertos? (NABUCO, 2003:124, nota de rodapé). 11
Transação é um negócio jurídico no qual alguém tem que abrir mãos de seus direitos, funcionado como um pacto recíproco.
11
O comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte
alguma.
O pontos elencados acima compõem aquilo que Nabuco apresenta como teoria da
liberdade pessoal de Bluntschli12, aceita por todas nações civilizadas do mundo. O
interessante é que ele mobiliza as tais leis civilizatórias para condenar a Escravidão,
mas toma o cuidado de não considerá-las em abstrato, buscando conectá-las aos
traços particulares da realidade das coisas ou, no caso, da lei brasileira. Esta conexão
se verifica na análise de Nabuco sobre a capacidade civil da lei do Ventre Livre, a
partir da qual ele procura revelar o que era a escravidão legalmente entre nós, ou
melhor como a Escravidão se realizava na forma da lei negligenciando alguns pontos
que para ele eram essenciais (ver tabela 2). Como lembra o próprio: “Até quando
teremos uma instituição que nos obriga a falsificar a Constituição, as nossas leis,
Tratados, estatísticas e livros, para escondermos a vergonha que nos queima o rosto e
que o mundo inteiro está vendo?” (NABUCO,2003: 161)
TABELA 2: Pontos faltantes na Lei do Ventre Livre (1871)
12
Johaan Caspar Bluntschli (1808-1881) foi um jurista e político suíço. Foi também um dos fundadores do Institute of Internacional Law, em 1873 na Bélgica. 13
Casa de correção foram estabelecimentos públicos onde eram recolhidos os menores abandonados ou menores delinquentes que tinham cometido alguma infração penal.
1. Os escravos nascidos antes da lei de 28 de setembro permanecem escravos;
2. Escravidão é a obrigação de obedecer sem o direito de reclamar coisa alguma (nem salário, nem vestuário, nem melhor alimentação, nem descanso, nem medicamento, nem mudança de trabalho);
3. O escravizado não tem deveres (para com Deus, religião; para com pais, mulher ou filhos, família; e nem consigo mesmo - indivíduo) que o senhor seja obrigado a respeitar;
4. A lei não regulamenta o trabalho (máximo de horas de trabalho, mínimo de salário, regime higiênico,alimentação, tratamento médico, condições de moralidade, proteção às mulheres);
5. Não há lei que regule as obrigações e os direitos do senhor;
6. O senhor pode punir os escravos à sua vontade;
7. O escravo vive na completa incerteza de seu futuro;
8. Qualquer indivíduo saído da Casa de Correção13 pode possuir ou comprar uma família de escravos;
9. Os senhores podem empregar escravas na prostituição (recebendo os lucros da atividade) assim como o “pai” pode ser senhor do filho;
10. O Estado não protege os escravos de forma alguma;
11. Os escravos são regidos por leis 12. Sobre os escravos criminosos,
12
Fonte: O Abolicionismo (1883)
Eis aqui a virada argumentativa da obra O Abolicionismo. Nabuco recorre à
necessidade de abolir a escravidão da lei para que se viabilize o projeto abolicionista
de pôr fim à Escravidão como um todo. Como lembra o pernambucano,
“[...] além de tudo isso, da ilegalidade insanável da escravidão perante
o direito social moderno e a lei positiva Brasileira, o Abolicionismo funda-se numa série de motivos políticos, econômicos, sociais e nacionais, da
mais vasta esfera e do maior alcance.” (NABUCO, 2003: 152)
A passagem da crítica específica para a crítica geral não é tão simples. O anúncio
de que o movimento abolicionista se funda em princípios mais amplos exige que
Nabuco aponte os fragmentos da realidade no qual a Escravidão se realiza para
alcançar essa amplitude. Isto é, ele precisa mostrar de que maneira sua unidade
crítica – a Escravidão - se realiza como traço particular nos diferentes objetos por ele
analisados. É a partir dos objetos - que se encontram reunidos em sua unidade crítica
- que Nabuco chega à totalidade, qual seja a nação incompleta. Na próxima seção se
procurará destacar como Nabuco detecta a influência da escravidão nos aparelhos do
organismo social.
b) Segunda Parte (do capítulo XII ao XVII): Escravidão e as Coisas
Os capítulos finais de O Abolicionismo são os mais densos. O que se vê nessas
páginas é a tentativa do pernambucano demonstrar em que medida a Escravidão
afetou nosso caráter, nosso temperamento, a nossa organização toda, física,
intelectual e moral, levando em consideração que a “empresa de anular essas
influências, é superior, por certo, aos esforços de uma só geração, mas, enquanto
essa obra não tiver concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser.” (NABUCO,
2000: 4) Nabuco faz isso ao trazer dois problemas principais: 1) o Território e
População; 2) Poder, Classes Sociais e Moral.
Território e População
de exceção; funciona a Justiça e a Lei de Lynch (linchamento);
13. Os poderes ilimitados dos senhores não são exercitados diretamente por eles, mas por indivíduos sem educação intelectual ou moral, que só sabem guiar os homens por meio do chicote e da violência.
13
No capítulo XIII. Influência da Escravidão sobre a nacionalidade e no capítulo XIV.
Influência sobre o território e a população do interior Nabuco busca compreender
como a Escravidão se realiza em dois aparelhos específicos do organismo social: o
território e a população. Para ele o Brasil de sua época tinha três características
principais: a) População entre 10 a 12 milhões habitantes; b) Maior parte da população
descendia de escravos; c) Grande território pouco explorado e povoado. O primeiro
efeito da escravidão destacado será a questão da raça, pois para o pernambucano o
cruzamento das raças é a realidade da Escravidão entre nós.
Para Nabuco o mau elemento de população não foi a raça negra, mas sim essa
raça relegada ao cativeiro. Tanto que Nabuco vai recuperar a história do Brasil do
séculos XVI, XVII e XVIII para destacar que foram os portugueses que trouxeram os
africanos para cá na forma de escravidão. Ou seja, ao operar esta lógica discursiva ele
parte do dado específico da realidade – o cruzamento das raças – e o traz à tona
como objeto privilegiado através de seu princípio definidor, a Escravidão. Não se trata
de querer ver um Nabuco antirracista, mas sim de perceber que seu exercício de
pensar aponta que o cruzamento das raças no Brasil só é mau elemento na medida
em que expressa a própria Escravidão. Por isso, diz Nabuco:
“Ninguém pode dizer o que seria a história se acontecesse o
contrário do que aconteceu. [...] Entre o Brasil, explorado por meio de Africanos livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explorado com escravos também por portugueses: o primeiro a esta hora seria uma nação muito mais robusta do que é o último.” (NABUCO, 2003: 172-173)
A exploração portuguesa também nos legou a organização do território. As
capitanias hereditárias deram origem à um regime de terras que consistiu na divisão
de todo solo explorado entre grandes proprietários. Esse regime, lembra Nabuco,
“onde ele chega, queima as florestas, minera e esgota o solo e quando levanta suas
tendas, deixa após si um país devastado em que consegue vegetar uma população de
proletários nômades.” (NABUCO, 2003: 178). O argumento aqui é que a escravidão se
manifesta na medida em que esse regime de terras, ao dividir o território em grandes
unidades penais refratárias ao progresso e ao trabalho livre, oblitera o surgimento das
cidades no interior e mantém a população dependente. A tabela abaixo (Tabela 3)
mostra a distribuição regional do território brasileiro e o grau de dependência com a
escravidão.
14
Tabela 3: Distribuição regional da Dependência Escravocrata
1) Rio de Janeiro e Minas Gerais - Províncias que nada são sem o café (fala das cidades mineiras decadentes de Ouro Preto, Mariana, S.João del Rei, Barbacena, Sabará, Diamantina) e ainda totalmente dependente do trabalho escravo
2) São Paulo - Não depende tanto do trabalho escravo como as outras províncias e o seu período florescente há de revelar na crise maior elasticidade do que suas vizinhas para pôr fim à escravidão.
3) Paraná, Santa Catarina, Rio Grande
- A imigração europeia infunde sangue novo nas veias do povo, reage, contra as escravidão constitucional; suas terras o clima abrem melhores perspectivas para o trabalho livre
4) Pará e Amazonas - Posse da escravidão nominal; população formou-se longe das senzalas / grande território que ainda deve ser explorado (bacia do Amazonas)
- caráter da indústria extrativa sob o regime de escravidão é tão ganancioso quanto a cultura do solo (figura do regatão – corre as artérias naturais do comércio ilícito das povoações centrais) – servidão dos indígenas / regatão é produto da escravidão.
5) Norte - com o fim do ciclo do ouro e do açúcar, os antigos proprietários de escravos falidos se tornaram funcionários públicos do Estado
Fonte: O Abolicionismo (1883)
15
A Tabela 3 é importante para mostrar como Nabuco faz sua crítica geral ao
regime de terras como expressão da Escravidão. Ou seja, se a escravidão só é
unidade quando consegue partir dos fragmentos aqui Nabuco buscou compreendê-la
a partir do regime de terras que organiza o território, levando em consideração
aspectos regionais e geográficas específicos do país. Por isso ele chega à conclusão
que a Escravidão é um obstáculo ao desenvolvimento material dos munícipios,
impedindo também a integração da população livre local14.
O ponto central é que a realidade dos efeitos da escravidão sobre a população e o
território se verifica no sistema de terras que, por sua vez, significa o poder
centralizado na figura do grande proprietário. E o que fizeram esses grandes
proprietários ao território? Responde Nabuco: a) exploraram a terra sem atenção à
localidade; b) não reconheceram deveres com o povo fora das porteiras das fazendas;
c) queimaram, plantaram e abandonaram; d) consumiram os lucros na compra de
escravos e no luxo da cidade; e) não edificaram escolas, igrejas, não construíram
pontes, nem melhoraram rios, não canalizaram a água nem fundaram asilos; f) não
fizeram estradas; g) não construíram casas, sequer para seus escravos; h) não
fomentaram nenhuma indústria; i) não deram valor venal à terra; j) não granjearam o
solo; k) não empregaram máquinas; l) não trouxerem progresso algum aos vizinhos. E
os efeitos sobre a população do interior? Também responde Nabuco: a) miséria; b)
dependência; c) ignorância; d) sujeição ao arbítrio dos potentados; e) falta de terra
própria para o pobre e f) falta casa própria para o pobre. Em outras palavras, a
Escravidão se realiza no poder da grande propriedade da Lavoura que, para Nabuco,
vinha arruinando o país.
Poder, Classes Sociais e Moral
A escravidão produziu uma classe poderosa: a dos grandes proprietários de terras
e escravos. Para Nabuco é o poder dos proprietários que o faz concluir que a
Escravidão se realiza criando um estado dentro do Estado - um poder que tem mais
força que os interesses de toda nação. Ou melhor, a Escravidão se realiza quando o
Estado “atua como poder coletivo que representa apenas os interesses de uma
pequena minoria de proprietários”, o que se verifica, por exemplo, em questões
específicas como: a) empréstimo de dinheiro a juros baratos e engenhos centrais
oferecidos pelo Estado; b) influência na criação de estradas de ferro à conveniência do
14
Nabuco alerta “que o trabalhador livre não tinha lugar na sociedade, sendo um nômade, um mendigo, e por isso em parte nenhuma achava ocupação fixa; não tinha em torno de si o incentivo que desperta no homem pobre a vista do bem-estar adquirido por meio do trabalho por indivíduos da sua classe, saído da mesma camada que ele.” (NABUCO, 2000:116)
16
poder da minoria; c) exigência que o Estado fosse o patrocinador integral nas
exposições do Café; d) dispensa o Estado de regulamentar o regime de trabalho do
imigrante europeu.
Toda “soma do poderio, influência, capital e clientela dos senhores todos” é uma
das realidades mais expressivas da Escravidão. Esse poder imperioso contaminou
todo os aparelhos do poder. Nesse sentido, a crítica geral de Nabuco será de que “o
governo é o resultado imediato da prática da escravidão pelo país” (NABUCO, 2003:
211). A crítica específica se revela em dois planos: a) Sistema representativo: é um
enxerto de formas parlamentares num sistema patriarcal, pois: 1) os Ministros não
encontram apoio na Opinião; 2) os Presidentes do Conselho vivem às barbas do
Imperador; 3) a Câmara sabe da sua nulidade e pede tolerância; 4) Senado se reduz a
um local que se celebra reuniões à custa do Estado; 5) Partidos funcionam apenas
como sociedades cooperativas. b) O Poder do Imperador: Primeiro Ministro
permanente do Brasil, pois conta com instituições representativas como o Ministério e
o Parlamento e assegura a liberdade absoluta de imprensa.
O poder imperioso dos proprietários e, por sua vez, da Escravidão também se
expressa na formação da sociedade. Como lembra Nabuco, o Brasil se trata de “uma
sociedade baseada na escravidão e também constituída na sua maior parte do seu
vasto aparelho”. A crítica geral do pernambucano é que a Escravidão nos legou uma
sociedade sem divisão fixa de classes, “todas elas ou apresentam sintomas de
desenvolvimento retardado ou impedido, ou, o que é ainda pior, de crescimento
prematuro e artificial”. (NABUCO, 2003: 197) A crítica específica se verifica nas
classes às quais, por motivos morais, econômicos e sociais, não conseguiam se
desenvolver no Brasil da época. São elas:
1) Classe dos lavradores não proprietários: Em geral, moradores do campo ou do
sertão. População sem meios, sem recursos alguns, ensinada a considerar o
trabalho como uma ocupação servil. Não tem onde vender seus produtos, moram
longe da região do salário e por isso tem que resignar-se a viver e criar os filhos
nas condições de dependência em que lhe se consente vegetar.
2) Classes operárias e industriais – Escravidão não permite, de um lado: a) o
regime de salário; b) dignidade pessoal do trabalhador, na medida que não
pressupõe direitos (não permite o trabalho livre baseado no contrato). Do outro,
bloqueia cada uma das faculdades humanas que provém a indústria (efeitos físicos
e morais): a) a iniciativa; b) a invenção; c) energia individual. Elementos
necessários para esta classe: a) associação de capitais (popança/crédito); b)
17
abundância de trabalho (emprego); c) educação técnica dos operários (educação);
d) confiança no futuro (esperança).
3) Classe comercial –. Comércio – restrito às capitais exceto algumas cidades
(Santos, Campinas, em São Paulo; Petrópolis e Campos, no Rio; e algumas
cidades no Rio Grande do Sul.) Nabuco destaca que não se vê livrarias, nem
jornais no interior – o comércio é na antiga forma venda-bazar. “E o comércio,
faltando a indústria e o trabalho livre, não pode existir senão para agente da
escravidão, comprando-lhe tudo que ela oferece e vendendo-lhe tudo o que ela
precisa.” (NABUCO, 2003: 200)
4) Classe dos empregados públicos – Nabuco chama atenção para relação entre a
escravidão e o funcionalismo público, afirmando que o Estado distribui empregos
públicos. Também destaca que escravidão impede o aparecimento de muitos
homens de talento mas sem qualidades mercantis (como profissões nas áreas de
literatura, ciência, imprensa e magistério). As profissões mais procuradas, como
engenharia, advocacia e medicina, dependem em grande parte do favor da
escravidão e tem pontos de contato forte com o funcionalismo público.
Com as informações acima colocadas se pretendeu evidenciar como a Escravidão
se realiza e ganha forma no desenho real das classes sociais presente no exercício de
pensar de Nabuco. Vale destacar que ele parte de dados específicos da realidade
para compreendê-los a partir de sua unidade crítica que é a Escravidão. Dito isso, há
ainda que se considerar a crítica da Moral que perpassa todo conteúdo do O
Abolicionismo e é difícil de captar. Mais difícil é dimensionar os efeitos morais nos
quais a Escravidão se realiza de modo mais sistemático. A crítica geral é que para
Nabuco a escravidão estava, naquele momento, moralmente ganha, contudo sua
vitória só era reconhecida, no dizer de Nabuco,
“[...] perante à instituições virtuais, abstrações políticas, forças que ainda estão no seio do possível, simpatias generosas e importantes, mas não perante ao único tribunal que pode executar a sentença de
liberdade da raça negra, isto é, a Nação brasileira constituída.” (NABUCO, 2003: 98)
A crítica específica de Nabuco diz respeito às forças sociais que se identificam com
a escravidão. Para ele tais forças expressavam na realidade (ainda que em parte) o
problema moral da escravidão. Eram elas: a) a Igreja: a escravidão destruiu a face
ideal da Igreja e tirou-lhe toda a possibilidade de desempenhar uma força consciente
na vida social do país, visto que os conventos e seminários também tinham escravos;
18
b) o Patriotismo – o trabalho dos escravagistas consistiu sempre em identificar o
Brasil com a Escravidão e, logo, quem a atacava era suspeito de conivência com o
estrangeiro, como inimigo das instituições do próprio país; c) a Imprensa: Para fazer
vácuo a todo jornal ou livro a Escravidão repeliu a escola e a instrução pública15; d) a
Opinião Pública: a escravidão não consentiu o influxo de ideias novas. Nabuco
lembra ainda que Opinião Pública seria a consciência nacional esclarecida,
moralizada, honesta e patriótica, diferente daquilo que ela é quando se realiza na
Escravidão, qual seja a soma dos interesses coligados.
***
O objetivo desta seção foi mostrar como opera a lógica discursiva de Nabuco. É a
partir das coisas que ele enxerga a escravidão para depois enxergar a Escravidão nas
coisas. Por isso ele insiste em chamar atenção para pontos específicos de leis, para
dados de natureza geográfica e territorial do país, para a formação das classes
sociais, do Governo, da Moral, etc. Dessa forma, esta instituição se expressa como
unidade crítica na medida em que se realiza em todos os objetos fragmentados, em
todos os aparelhos do organismo social destacados pelo pernambucano. Em síntese,
a Escravidão como unidade crítica funciona como princípio definidor que reúne o todo
para enxergar o todo na particularidade dos fragmentos. Depois de detectar o todo no
fragmento é que o pensamento de Nabuco volta para todo, que agora não é mais todo
e sim totalidade.
A Nação como Totalidade
Para compreender como Nabuco chega à totalidade é preciso compreender a
dinâmica do seu exercício de pensar. O diagnóstico de que o todo – como unidade
crítica - está presente nos fragmentos da realidade de sua época é o que permite ao
pernambucano afirmar que abolicionismo é um movimento com princípios mais
amplos, que visam a reconstrução da nação como comunidade política baseada na
liberdade individual e no progresso. Ou seja, se o todo se revela na medida em que a
escravidão se realiza na particularidade dos fragmentos, a partir de agora esses
fragmentos unidos criticamente é que se tornam a expressão da totalidade. Por isso
15 Nabuco lembra que naquela época se podia ver na Imprensa brasileira anúncios de compra,
venda e aluguel de escravos em que sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita peça, rapaz, pardinho, rapariga de casa de família, (as mulheres livres anunciam-se como senhoras a fim de melhor se diferenciar das escravas); editais para peças de escravos, espécie curiosa da qual o ultimo espécie de Valença é um dos mais completos; anúncios de negros fugidos acompanhados em muitos jornais de conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa no ombro, como os escravos são descritos. (NABUCO, 2003:158-159)
19
para Nabuco o Brasil é um composto no qual a Escravidão representa a afinidade
causal e o maior desafio do Abolicionismo é fazer desse composto entre
senhor/escravo o cidadão.
Para Nabuco o objetivo mais geral do abolicionismo consistia em refundar a nação
sob o princípio da liberdade individual na qual tanto o escravo seria um cidadão efetivo
na medida em que o senhor fosse capacitado para cidadania. Tal qual lembra o
pernambucano,
“Entre nós a escravidão não exerceu toda sua influência apenas abaixo da linha Romana da libertas, exerceu-se também dentro e acima da civitas; nivelou, exceção feita aos escravos, que vivem sempre nos subterrâneos sociais; mas nivelou-as, degradando-as. Daí a dificuldade, ao analisar a influência, de descobrir um ponto qualquer, ou na índole do povo, ou na face do país, ou mesmo nas alturas mais distantes das emanações das senzalas, sobre que de alguma forma aquela afinidade não atuasse, e que não deva ser incluída na síntese nacional da escravidão” (NABUCO, 2003: 197)
A síntese nacional da escravidão é o todo reunido através da unidade crítica e que
se expressa agora na totalidade. É a Escravidão – como unidade crítica – que permite
que a totalidade – a Nação incompleta – se resplandeça e é por isso que o
abolicionismo pressupõe sua reforma global para viabilizar a nação brasileira
constituída. A crítica geral se articula sob três elementos principais para atacar a
Escravidão: Economia, Liberdade e Nação (ver Tabela 4).
Tabela 4: Abolicionismo versus Escravidão
1) ECONÔMIA E ESCRAVIDÃO a) impossibilita o progresso material do Brasil; b) impede a imigração; c) desonra o trabalho manual, d) retarda a aparição das indústrias; e) promove a bancarrota; f) desvia capitais de seu curso natural; g) afasta as máquinas; h) produz uma aparência ilusória de ordem; i) excita o ódio entre as classes;
2) LIBERDADE E ESCRAVIDÃO a) Porque somente quando a escravidão for abolida começará a vida normal do povo (trabalho livre); b) os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser um privilégio de classe.
3) NAÇÃO E ESCRAVIDÃO Só a emancipação total permitiria uma nação formada: a) pelos escravos, que
20
Fonte: O Abolicionismo (1883)
. A crítica específica se revela no momento em que Nabuco aponta qual deveria
ser o papel do Estado no processo de transição da Nação que se realiza na
Escravidão para a Nação brasileira constituída. Para ele, seria responsabilidade do
Estado, entre outros: 1) Preparar a transição do escravo por meio da Educação: 2)
Desenvolver o espirito de cooperação; 3) Promover indústrias; 4) Melhorar a sorte dos
servos de gleba e repartir com eles a terra; 5) Suspender a venda e a compra de
homens; 6) Abolir os castigos corporais e a perseguição privada; 7) Fazer nascer a
família respeitada em sua condição; 8) Promover a imigração europeia.
O importante é que o diagnóstico abolicionista da nação incompleta não parte de
uma totalidade abstrata. A operação de detectar todo no fragmento para depois
projetá-lo novamente no todo – a Nação – se verifica na dialética entre a crítica
específica e a crítica geral da Escravidão presente em O Abolicionismo. É neste
sentido que se pode considerar Joaquim Nabuco como intérprete do processo de
Nation-Building brasileiro. Sua maestria não foi de encontrar o eterno – a Escravidão –
no transitório período de crise e fim da sociedade escravista, mas sim de eternizar o
transitório revelando alguns efeitos específicos dessa instituição na formação da
Nação-Brasil.
IV. Considerações Finais – Eternizando o Transitório
O objetivo do artigo foi mostrar como Joaquim Nabuco pode ser considerado um
interprete do processo de Nation-Building Brasileiro. Para cumprir tal objetivo se
procurou destacar, ancorando-se na perspectiva teórica de Theodor Adorno (2003),
como funciona a lógica discursiva presente em O Abolicionismo, buscando tratá-lo
como um Ensaio sobre a escravidão elaborado pelo pernambucano. O argumento
central é que Nabuco, ao operar a unidade crítica da Escravidão e projetá-la na Nação
incompleta acaba por eternizar o transitório. Isto é, ao contrário de buscar na
Escravidão o fator explicativo central para todos os problemas da Nação, Nabuco
estão fora do grêmio social; b) pelos senhores, os quais se veem atacados como representantes de um regime condenado; c) pelos inimigos da escravidão, pela sua incompatibilidade com esta; d) pela massa inativa da população; e) pelos brasileiros em geral que a escravidão condenou a formar uma nação de proletários.
21
provoca uma inversão: ele busca revelar em que medida tais problemas da Nação são
efeitos da própria Escravidão e faz isso chamando atenção para elementos
específicos que marcam a transição e crise da sociedade escravista no Brasil. E é
nesse sentido que se pode considerar Joaquim Nabuco como importante intérprete do
processo de Nation-building brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros:
22
ADORNO, Theodor. O Ensaio como forma. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, 2003. BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil (vol.1). São Paulo: Livraria Pioneira, 1967. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. MARSON, Izabel de Andrade. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia: EUDFU, 2008. NOGUEIRA, Marco Aurélio. O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo. São Paulo: Paz e Terra, 2010. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Introdução de Izabel A. Marson e Célio R. Tasinafo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. ROCHA, Antônio Penalves. Abolicionistas brasileiros e ingleses: a coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). São Paulo: Editora Unesp, 2004. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2002. Artigo:
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