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Lcia Helena Mendes Pereira
Notcias da Amaznia:
A Cultura Jornalstica Hegemnica das Televises Portuguesa e Brasileira.
Tese de Doutoramento em Ps-Colonialismos e Cidadania Global, orientada pelo Professor Doutor Jos
Manuel Mendes, apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Setembro de 2014
Lcia Helena Mendes Pereira
Notcias da Amaznia A Cultura Jornalstica Hegemnica das Televises Portuguesa e
Brasileira
Tese de Doutoramento em Ps-Colonialismos e Cidadania Global, na especialidade de Sociologia, apresentada Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra para obteno do grau de Doutora
Orientadores: Prof. Doutor Jos Manuel Mendes
Coimbra, 2014
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Dedicatria:
Dedico esta tese minha cunhada, irm de corao, Walkyria Conceio Rodrigues (in
memoriam); ao meu av, Francisco Antnio Mendes Pereira (in memoriam), no
cumprimento ao seu desejo de um dia me ter graduada pela Universidade de Coimbra; e ao
companheiro de toda a vida, Paulo Fernando Rodrigues.
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Agradecimentos:
Este trabalho resulta da tese de doutoramento em Ps-Colonialismos e Cidadania
Global desenvolvida no Centro de Estudos Sociais CES da Faculdade de Economia
FEUC da Universidade de Coimbra. Ficaria, contudo, incompleto sem um agradecimento
pblico a todos quantos, de uma maneira ou de outra, me ajudaram a lev-lo a bom termo.
Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Jos Manuel Mendes, por ter aceitado
orientar esta investigao. As suas observaes e conselhos foram determinantes para o
resultado final.
Ainda ao Professor Doutor Jlio Csar Tavares, que co-orientou a minha trajetria
no Brasil. Sua sabedoria, disponibilidade e ateno foram de suma importncia nas
dificuldades enfrentadas no trabalho de campo.
A toda equipe do CES em geral, e ao Professor Doutor Antnio de Sousa Ribeiro,
em particular, pelo acolhimento do projeto, a serenidade e o carinho no tratamento das
angstias e dvidas sofridas no trajeto.
Aos excelentes professores de toda a grade do curso pelo dinamismo das aulas e
empenho ao meu aprendizado.
Ao Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, dirigente do CES, que
proporcionou este magnfico campo de conhecimento a todos ns.
E, por fim, aos colegas da Turma de Ps-Colonialismos e Cidadania Global da
edio, 2009/2010, pela alegria do convvio, a partilha de ideias, que deixaro saudades
para o resto da vida.
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Epgrafe
O fato de uma multido de pessoas seja levada a pensar coerentemente e de maneira
unitria a realidade presente um fato filosfico bem mais importante e original do que
a descoberta por parte de um gnio, de uma nova verdade que permanea como
patrimnio de pequenos grupos intelectuais
Antnio Gramsci, Concepo Dialtica da Histria.
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Resumo:
Essa investigao identifica e procura os fatores polticos e culturais que impedem ou
promovem a prtica democrtica do Jornalismo hegemnico nas televises portuguesa e
brasileira sobre o territrio brasileiro conhecido como Amaznia Legal conceito
poltico-estratgico com fins econmicos, forjado pelo governo do Brasil. O foco desse
estudo so os critrios de noticiabilidade proferido pelas comunidades interpretativas da
Televiso e Rdio de Portugal RTP e pela Rede Globo de Televiso TV Globo, entre
os anos de 2005 e 2011, como importantes fatores, tanto para a manuteno do exerccio
da colonialidade de poder (Anibal Quijano, 1991, 1993, 1994) como para a evocao de
prticas democratizantes no imaginrio social sobre o debate da crise ambiental. Trata-se
assim, de uma reflexo crtica assentada na Teoria Ps-colonial, dos Estudos Culturais, dos
valores tico-culturais da produo jornalstico-televisiva generalista de quatro jornais
dirios na televiso portuguesa e um jornal dirio da televiso brasileira. O mtodo seguido
foi o Estudo de Caso Extendido (Michael Burawoy, 1998) combinado com a Etnografia
Multi-Situada (George Marcus, 1998). Como resultado, apresenta os fatores hegemnicos
atuantes nas notcias de ambas as televises e as insurgncias contra-hegemnicas
apreendidas.
Palavras-Chave: Teoria Ps-colonial, Amaznia, Jornalismo Ambiental, Hegemonia,
Contra-hegemonia.
Abstract:
This investigation identifies and seeks political and cultural factors that impede or promote
democratic hegemonic practice of Journalism in Portuguese and Brazilian televisions over
the Brazilian territory known as "Legal Amazon" - political-strategic concept for economic
purposes forged by the government of Brazil. The focus of this study is the criteria for
newsworthiness given by the interpretive communities of Television and Radio Portugal -
RTP - and the Globo Television Network - TV Globo, between the years 2005 and 2011,
as important factors for both the maintenance the exercise of the coloniality of power
(Anibal Quijano, 1991, 1993, 1994), and for the evocation of democratizing practices in
the social imaginary about the debate on the environmental crisis. It is, thus, a critical
reflection based on Postcolonial Theory, of the Cultural Studies, of ethical and cultural
values of the generalist television newscast production of four daily newscasts in
Portuguese television and one daily newscast of Brazilian television. The method pursued
was the Extended Case Study (Michael Burawoy, 1998) combined with the Ethnography
Multi-Sited (George Marcus, 1998). As a result, it presents the hegemonic factors acting in
both televisions news and the counter-hegemonic insurgencies apprehended.
Keywords: Post-colonial Theory, Amazon, Environmental Journalism, Hegemony,
Counter-hegemony.
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xi
Lista de Siglas:
PAC Programa de Acelerao do Crescimento
JN Jornal Nacional
RTP - Radio e Televiso de Portugal
ECE Estudo de Caso Extendido
SPVEA Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia
OECD Organizao Para o Desenvolvimento e Cooperao Econmica
WRI World Resources Institute
CBD Conveno Sobre a Biodiversidade das Naes Unidas
PIB Produto Interno Bruto
FUNAI Fundao Nacional do ndio
SUDAM Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
PVEA Plano de Valorizao Econmica da Amaznia
INPA Instituto Nacional de Pesquisa da Amaznia
JK Juscelino Kubitschek
CPLP Comunidade dos Pases da Lngua Portuguesa
CIESPAL Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicao
ELACOM Escola Latino-Americana de Comunicao
NBC National Broadcasting Company
SBT Sociedade Brasileira de Televiso
SIC Sociedade Independente de Comunicao
TIC Tecnologias de Informao e Comunicao
TVI Televiso Independente
UFT Universidade Federal do Tocantins
APTN Associated Press Television News
xii
OMC Organizao Mundial do Comrcio
PPUE Presidncia Portuguesa da Unio Europeia
PEUEB Parceria Estratgica da Unio Europeia e Brasil
PAS Plano Amaznia Sustentvel
FSM Frum Social Mundial
WWF Wild Wildlife Fund
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
PPCDAM Plano de Ao e Preveno e Controle do Desmatamento da Amaznia
INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
FRM Fundao Roberto Marinho
DETER Deteco de Desmatamento em Tempo Real
IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
MMA Ministrio de Meio Ambiente
CIMI Conselho Indigenista Missionrio
MP Medida Provisria (de lei)
MST Movimento dos Sem Terra
FUNASA Fundao Nacional de Sade
REDD Reduo das Emisses por Desmatamento e Degradao Florestal
xiii
Sumrio:
Introduo: 1
Captulo 1: Globalizao e Crise Ecolgica Luz da Teoria Ps-Colonial 7
1.1 A dialtica da crise para por a ecologia em cultura 20
1.2 Sociologia das ausncias na Amaznia brasileira: um localismo-globalizado 24
1.3 Razo indolente na representao hegemnica da Amaznia: do colo ao cultus 37
1.3.1 No cenrio colonial da Amaznia Portuguesa 38
1.3.2 Amaznia no cenrio da Independncia do Brasil 52
1.3.3 Amaznia no cenrio rumo Abolio da Escravatura e Repblica 58
1.3.4 Amaznia no cenrio do Sculo XX 63
Captulo 2: Telejornalismo, Ps-Colonialismos e Meio Ambiente 75
2.1 Globalizao e localizao: o poder das notcias na objetivao de mundo 78
2.1.1 Notcia globalizada, recepo localizada: relao do telejornalismo com os
seus pblicos 88
2.1.2 Televiso daqum e dalm mar: os telejornalismos no Brasil, com a TV
Globo, e em Portugal, com a RTP 93
2.2 A Produo do noticirio televisivo: teoria e prtica da notcia 104
2.3 Sociologia das ausncias no telejornalismo: sombras, apagamentos, (in)visibilidades na
representao da realidade 114
2.4 O meio ambiente e o telejornalismo: o clamor pela reforma dos valores culturais do
jornalismo em tempos de crise ecologica 119
2.4.1 Traduo e telejornalismo: breve esboo para uma sociologia da emergncia
em trs dimenses ticas na produo da notcia 126
2.4.2 A Amaznia no Ecr: ausncias e emergncias nos discursos representativo
de um localismo-globalizado 129
Captulo 3: Mapas e Traados do Olhar da Investigao 133
3.1. O Recorte temporal 137
3.2. O mapa de campo: a rede hegemnica de notcias na lngua portuguesa 137
3.3. O Recorte Temtico 141
3.4. Mapas e fluxos de alcance da produo das notcias 143
3.4.1 Fluxometria da RTP 144
3.4.2 Fluxometria da TV Globo 146
xiv
3.5. Recorte da programao e recolhimento de dados. 151
3.6. Curso e percurso do olhar no trabalho etnogrfico 152
Captulo 4: Em Terras Lusitanas: contexto da pesquisa, dimenses tico-cognitivas e
polifonia dos jornalistas 159
4.1 Contextos da pesquisa 159
4.2 Na trilha das notcias: descries e descobertas 174
4.2.1 Dimenso tica da transformao dos fatos em notcias na RTP: os valores-
seleo das notcias 178
4.2.2 Dimenso tica na linguagem noticiosa na RTP: os valores-construo das
notcias 186
Captulo 5: Em Terras Brasileiras: contexto da pesquisa dimenses tico-cognitivas e
polifonia dos jornalistas 209
5.1 Contextos da pesquisa 209
5.1.1 Fantasmagoria de campo na pesquisa com a TV Globo: entre a tica, o
mtodo e o possvel 213
5.1.2 Possibilidades 214
5.2 Na trilha das notcias da TV Globo: descries e descobertas 215
5.2.1 Dimenso tica da transformao dos fatos em notcias na TV Globo: Os
valores-seleo das notcias 217
5.2.2 Dimenso tica na linguagem noticiosa da TV Globo: os valores-construo
das notcias. 243
Arremate (In) Conclusivo: 312
Amaznia, para que te quero? 314
Amaznia, de onde te vejo e para onde te levo? 315
Amaznia, como te represento? O que de ti retiro e o que para di devolvo? 317
Referncias Bibliogrficas. 323
Apndice A: Entrevista com a Jornalista da RTP, Ana Lusa Rodrigues. 335
Apndice B: Entrevista com o Jornalista do Jornal O Pblico, Ricardo Garcia. 359
Apndice C: Entrevista com a Jornalista da RTP, Lavnea Leal. 371
Anexo I: Notcias Emitidas pela RTP 375
Anexo II: Notcias Emitidas pela TV Globo 423
Anexo III: Contrato TV Globo 571
1
Introduo:
Tem sido proeminente, no s por fora da necessidade imposta pelas catstrofes
ambientais que vm acometendo o planeta, mas tambm pelas velozes transformaes
ambientais do globo, a discusso sobre as questes ecolgicas no seio das sociedades.
Especialmente aps as transformaes ocorridas no domnio da regulao e da governao
da cincia e da tecnologia que pautam o desenvolvimento dos estados-nao, as relaes
internacionais, e fundamentalmente, o presente e o futuro dos cidados e da natureza. A
comunicao social assim, atravs da mdia, ganha destaque nas especulaes sobre a
compreenso e a identificao dos fatores scio-polticos conflituosos que obstaculizam a
informao socioambiental e um possvel fomento do debate entre cidados, governos e
cientistas sobre as questes ambientais pertinentes na atualidade.
Esta investigao compreende o campo da comunicao social, portanto, como
rea de conhecimento capaz de abraar a interdisciplinaridade e/ou transdisciplinaridade,
desde a ideia imprimida por MacLuhan (1964,1977), nos anos 50, como promotora de uma
aldeia global, passando pela enunciao de Claude Lvi-Strauss (1962), de que cada vez
mais as sociedades tornam-se um conjunto de prticas comunicativas. Um entendimento
ento, de que a identidade multidisciplinar desse campo se resolve com a afirmao
conceitual e poltica dos estudos culturais e sociais para promover a desconstruo do
pensamento nico e da misria colonial do saber (Tavares, 2007: 135). Assim esse estudo
procura compreender e identificar esses fatores para a prtica democrtica do Jornalismo
Ambiental na lngua portuguesa.
Um estudo que compreende a importncia da periodicidade da informao
ambiental como motivadora do debate entre os diversos atores no contexto social da lngua
portuguesa e que evoca o Jornalismo Ambiental como prxis discursiva cotidiana que se
constitui como espao pblico1 de fundamental importncia em seu processo de captao,
produo e edio de informaes comprometidas com a temtica ambiental que se destina
1 O entendimento da imprensa como espao pblico tem sua base depois da construo conceitual de Jrgen
Habermas, de Esfera Pblica, mas tal conceito sendo modificado sistematicamente por muitos autores. Este
estudo se utiliza da noo de espao pblico alargado, ou seja, compreende a ao da receo na emisso da
informao, num processo cclico e aberto, como em Esteves (2007) e Mendes (2004):Mais do que falar
numa esfera pblica, que adquire uma conotao quase metafsica, parece mais adequado falar de pblicos,
procurando restituir a complexidade da construo e recepo mediticas e dos seus impactos polticos.
2
a pblicos leigos, no especializados; mas que v nestes mesmos pblicos relevantes fontes
de informao, de acordo com os Estudos Culturais Ps-coloniais.
A importncia do acesso informao ambiental relevante s Sociedades de
Risco (Beck, 1992) que hoje vivem as incertezas e as ameaas associadas ao
desenvolvimento cientfico e tecnolgico e seus efeitos no s na natureza, mas tambm na
sade, segurana e bem-estar dos cidados de hoje e de amanh. A inteno da
investigao foi assim, a de mapear e analisar a produo hegemnica televisiva para ver
como tal produo foi valorada pelas comunidades interpretativas atuantes no Jornalismo
do Brasil e de Portugal, a saber: a informao ambiental nas televises de sinal aberto
dominantes nos pases que falam a lngua portuguesa onde h relevante produo sobre o
recorte temtico, o territrio amaznico brasileiro, local que abriga grande biodiversidade
de fauna, flora e humana. A Amaznia est no centro do interesse nacional brasileiro para
planejamento do seu desenvolvimento e tambm no centro do interesse mundial, mas antes
de mais, territrio que para alm da vida vegetal e animal, que abriga a vida de 25
milhes de brasileiros, entre eles minorias tnicas e povos de natureza humana
condicionada os contextos desse territrio.
O principal objetivo dessa investigao foi o de encontrar os caminhos possveis
de uma pedagogia que absorva o ethos do conceito de ecologia dos saberes2 (Santos,
2008), para pensar uma melhor formao do ensino do Jornalismo no prprio territrio da
pesquisa, ou seja, na Amaznia Legal, onde a autora dessa tese leciona. Isto, sem perder de
vista o contexto histrico-cultural e poltico das naes envolvidas e suas relaes
internacionais para, a posteriori, vir a contribuir na ampliao e qualificao da
representao das questes ambientais da Amaznia na imprensa de lngua portuguesa,
seja na dimenso local ou global.
A hiptese central que os obstculos sofridos para a fruio da informao
ambiental democrtica3 se d atravs dos evidentes conflitos polticos e nos jogos de
2 Ecologia dos saberes: conceito desenvolvido por Santos (2008: 154-165) para definir a possibilidade de
dilogo entre epistemologias diversas, hegemnicas e contra-hegemnicas, incluindo assim os chamados
conhecimentos tradicionais. 3 Entendemos por comunicao ambiental democrtica a informao sobre meio-ambiente que contribui para
a formao ou manuteno da cidadania. O conceito de cidadania por sua vez o de cidadania imperfeita,
de tienne Balibar, compreendido atravs de outro conceito, o de comunidade de destino citado por Jos
Manuel Mendes (2004) : A comunidade de destino implica a prevalncia de situaes de incerteza e da
conflitualidade, que no a violncia, das condies do poltico (2001: 209). Esta comunidade de destino, na
sua componente territorial, pode ir do prdio, rua ou bairro at ao globo como um todo. Como consequncia,
a cidadania uma noo complexa, que se define e constri sempre a vrios nveis, em quadros mltiplos e
3
interesses econmicos pblicos e privados alimentados pela colonialidade de poder4
(Quijano, 1991, 1993, 1994) que atingem no s a produo deste gnero jornalstico na
mdia, em tempos de capitalismo, mas tambm no despreparo cultural da comunidade
interpretativa em jogo, originado da histrica separao epistemolgica e institucional
entre as cincias naturais e as cincias sociais, entre conhecimentos cientficos e
conhecimentos tradicionais e/ou alternativos, prtica oriunda da lgica hegemnica do
pensamento cientfico dualista e cartesiano. Enfim, o que nos termos de Boaventura de
Sousa Santos acaba por resultar em verdadeiro epistemicdio5, que vem impedindo que a
prtica da construo de narrativas jornalsticas se configure como construtoras de
gramticas interculturais que traduzam6 e faam dialogar as formas hbridas para conhecer
e fazer acontecer vida.
A questo central de toda a investigao foi, portanto, remetida seguinte
pergunta: poderamos pensar a atividade do Jornalismo Ambiental com possibilidades de
se tornar uma traduo cultural na contemporaneidade entre cincia e populao, para usar
a metfora central do pensamento de Ribeiro, ou seja, traduo como local de promoo da
interculturalidade atravs da linguagem como ncleo de uma noo de transformao
social numa perspectiva de descolonizao? (Ribeiro, 2005).
A reflexo se deu na miragem dos critrios de noticiabilidade proferido pela
media televisiva de sinal aberto, mira escolhida pelo entendimento de ser esta forma de
emisso de informaes de maior audincia e penetrao nos pases de Norte a Sul7. A
tecnologia da emisso televisiva via satlite e terrestre consegue alm de grande frequncia
de audincia em nvel global, penetrao geogrfica nas localidades mais afastadas dos
grandes centros; e, sua tecnologia lingustica, permite considervel entendimento na
recepo, mesmo por audincias no includas pelo paradigma de instruo do
articulados de forma diversa. A cidadania imperfeita constituda, assim, por prticas e processos e no
tanto uma forma estvel ou pr-definida. 4 O conceito de colonialidade descrita por Anibal Quijano na diferenciao do conceito de colonialismo
apesar de ser constitutiva deste. Trata-se da persistncia profunda e duradoira (j dura 500 anos ) da
dominao/explorao de uma populao, incluindo as relaes racistas e que pode ocorrer dentro de um
Estado-nao, ou seja, no mais como no colonialismo, uma dominao determinada por um poder cuja sede
se localiza noutra jurisdio territorial. 5 Epistemicdio: a morte de um conhecimento local perpetrada por uma cincia aliengena (Santos,
2004:20). 6 Traduo como procedimento que permite criar inteligibilidade entre as experincias do mundo, tanto as
disponveis como as possveis (Santos 2008:123). 7 Diviso geogrfica metafrica usada pelos estudos ps-colonialistas para explicitao das assimetrias que
geram as desigualdades no globo terrestre: no Norte esto os pases desenvolvidos e centros de deciso
poltica e, no Sul, os pases em desenvolvimento e perifricos esses centros decisrios.
4
conhecimento formal ocidental, alcanando assim as populaes tradicionais - povos
ribeirinhos, camponeses, povos indgenas, etc. - dos pases em desenvolvimento, ou seja,
do Sul. Especificamente: as populaes que habitam a Amaznia Legal no Brasil.
A escolha do recorte temtico foi feita em cima e atravs do conceito poltico
criado pelo Estado brasileiro, Amaznia Legal, por ser uma rea que engloba nove
estados federativos do Brasil, pertencentes bacia amaznica, mas que tambm engloba
vrios importantes biomas naturais do pas, incluindo no s as florestas, mas tambm o
cerrado e toda a sua biodiversidade de flora e fauna. A Amaznia Legal brasileira
formada pelos estados do Acre, Amap, Amazonas, Par, Rondnia, Roraima, Tocantins e
grande parte dos estados do Maranho e Mato Grosso. Alm disso, constitui 60% de toda a
regio territorial amaznica (Pan-Amaznia) e 50% do territrio nacional brasileiro. Est
no epicentro dos conflitos de terra no Brasil, assim como no planejamento do estado para o
Programa Acelerao do Crescimento PAC do atual governo e, abriga cerca de vinte e
cinco milhes de habitantes. Mas principalmente, est no centro dos interesses mundiais na
disputa poltica e estratgica pela biodiversidade8 da referida regio. A Amaznia Legal
nos fornece um tema cujos critrios de noticiabilidade podem ser observados e analisados
na produo jornalstica da lngua portuguesa nos dois nveis: o local, com a produo do
discurso meditico brasileiro e o global, com a produo do discurso meditico na lngua
portuguesa, traduzido e emitido por Portugal e Brasil para telespectadores na Europa, sia
e frica.
Tratou-se por fim, de uma tentativa de ultrapassar a insuficincia da crtica que
ainda deriva da presente hegemonia do paradigma funcionalista nas pesquisas de
comunicao, pois, o que fundamentalmente os estudos culturais ps-coloniais propem
atravs do conceito de colonialidade de poder (Quijano, 2010: 84-130), que as prticas de
produo e de recepo da comunicao sejam articuladas com as relaes de poder. Ora, a
produo e a reproduo social do sentido envolvida nos processos culturais, no
somente uma questo de significado simblico, mas tambm uma questo de entendimento
dos jogos econmicos de poder na disputa pela hegemonia desse significado. Por isso, se
nos afastarmos dessa proposta, podemos cair na priso redundante da tendncia de hoje de
8 Termo aqui utilizado de acordo com a CBD (Conveno sobre a Diversidade Biolgica das Naes
Unidas): variabilidade entre organismos vivos de todas as origens, incluindo, a inter galia, a terrestre, a
marinha e outros ecossistemas aquticos e os complexos ecolgicos de que fazem parte. Inclui a diversidade
interna s espcies, entre espcies de ecosistemas (Hindmarsh, 1990)
5
defesa liberal e deliberada da existncia de uma cultura de massas e de um irrevogvel
sistema de comunicao social sob domnio da elite mundial; perdendo as complexas
relaes entre comunicao e cultura num denso contexto social e poltico mundial, que
tem por horizonte a relao de subordinao presente nas culturas populares e
subcontinentais em que se articulam relaes de resistncia, mas tambm de submisso; de
oposio, mas tambm de cumplicidade.
Assim, foram analisados os valores-notcia de 312 notcias em seus contextos
polticos e de produo noticiosa nas duas televises generalistas e hegemnicas de sinal
aberto: A Rdio e Televiso de Portugal RTP, em Portugal; e a TV Globo, no Brasil. A
investigao da produo jornalstica da televiso portuguesa incidiu em quatro jornais
nacionais diarios dos dois canais generalistas da emissora: O Bom Dia Portugal, o Jornal
da Tarde, e o Telejornal, no canal RTP1; alm do Jornal 2, do canal RTP2. J na produo
da televiso brasileira, com profuso bem maior de notcias sobre o tema, a investigao
concentrou-se no jornal de maior audincia da TV Globo no Brasil, o Jornal Nacional (JN).
A pesquisa de dados encontrou 125 notcias sobre o tema na televiso portuguesa e 185, no
recorte da televiso brasileira.
Para tanto foi necessario um criterioso mergulho crtico e histrico assentado na
teoria ps-colonial, sobre a representao discursiva incidida no territrio temtico da
investigao numa reflexo terica interdisciplinar dos discursos da globalizao e da crise
ecolgica atual, e suas relaes culturais. o que o leitor ir ler no Captulo I, intitulado,
Globalizao e Crise Ecolgica Luz da Teoria Ps-Colonial.
O segundo captulo desta tese versa sobre a interdisciplinaridade terica entre os
campos da Ecologia e da Comunicao Social, oferecendo continuidade na busca por
aproximaes com a hiptese da investigao. Foi apresentado um conceito de Jornalismo
Ambiental que vem sendo desenvolvido no Sul, principalmente por Wilson Bueno (2007) e
na trilha deste conceito, uma tentativa de esboo de uma sociologia das ausncias e das
emergncias nos modos de produo do fazer jornalismo, como aconselhou Boaventura de
Sousa Santos (2008).
Os caminhos, os mtodos escolhidos e os mapas das fluxometrias de abrangncia
das notcias estudadas esto no terceiro captulo, onde comea e termina o trabalho
etnogrfico num trabalho cclico de observao que combina os mtodos de Estudos de
Caso Estendido ECE (Burawoy, 1991), com da observao etnogrfica multi-
6
localizada do campo complexo da investigao (George Marcus, 1995). Um ir e vir
incessante de uma reflexo ideolgica derivada (Marcus, 1994:18) dos interesses dos
estudos ps-coloniais e suas pretenses epistemolgicas.
Os captulos IV e V apresentam uma descrio densa das notcias acompanhada
da anlise reflexiva nos dois lugares da investigao: Portugal, na RTP e Brasil, na TV
Globo, respectivamente.
O estudo revelou como a colonialidade de poder opera na construo simblica da
representao da Amaznia nas duas televises, mas tambm revelou insurgncias ou
formas de resistncias s foras hegemnicas produtoras dessa colonialidade de poder
praticadas por ambas as comunidades interpretativas. Revelou enfim, as intenes da
competencia comunicativa das equipes de jornalistas em ambas as televises estudadas,
alm das emergncias de foras contrahegemnicas tambm empreendidas nas respectivas
produes jornalsticas. Aponta as intencionalidades das comunidades interpretativas, tanto
na seleo que fazem dos acontecimentos que sero transformados em produto final as
notcias , quanto da inteno na construo dessas narrativas na linguagem.
As principais revelaes so comentadas na tentativa de concluso da tese, sob o
ttulo, Arremate (In) Conclusivo, por entender o conceito de notcia como um artefato
ideolgico de ao comunicativa que incide no imaginrio social nunca inteiramente
apreendido, sempre aberto a novos olhares no devir social.
7
Captulo 1 - Globalizao e Crise Ecolgica Luz da Teoria Ps-Colonial:
Os termos globalizao e crise ecolgica tm sido usados incessantemente em
todas as esferas sociais em diferentes contextos polticos e de comunicao social em geral.
Isto no tem sido toa, posto que h uma mudana em curso no mundo que precisa ser o
mais compreendida possvel para ser diagnosticada tambm da melhor forma possvel. H,
porm um entendimento hegemnico nas sociedades contemporneas que equivalem ao
uso, tambm hegemnico, de ambos os termos. Em linhas gerais, por globalizao
entende-se um processo inevitavelmente mais veloz que ultimamente vem unindo as
naes a valores econmicos e simblicos homogneos a servio do tambm inevitvel
regime de acumulao capitalista mundial. Por crise ecolgica, numa espcie de mono
causalidade ahistrica e trgica, entende-se as transformaes nos ciclos naturais do
planeta como consequncia da grande transformao urbano-industrial que ganhou uma
escala sem precedentes a partir do sculo XX, no referido processo globalizador.
bem mais e mais complexo do que isso. Afinal, o que temos aqui um conjunto
de formaes de discursos9 que predominam na atualidade: o discurso da globalizao e o
discurso da crise ecolgica. Ambos determinados por ordens de discursos socialmente
constitudas no conjunto de convenes associadas com as instituies sociais. So
discursos que se formaram ideologicamente no devir histrico das sociedades capitalistas
no s pelas relaes institucionais de poder, mas tambm por tais sociedades como um
todo, constituindo-se como um jogo de linguagem ou uma dialtica entre as estruturas e
prticas sociais (Fairclough, 2001:15). Esto intrinsicamente interligados e carregam no
bojo dessa interligao, foras hegemnicas e contra hegemnicas10
de poder, como define
Fairclough:
9 Utilizo aqui o conceito de discurso de Norman Fairclough: discurso prtica social determinado e
determinante pelas e das estruturas sociais e conectado s ideologias, portanto, podem contribuir tanto para a
continuidade do status quo social, quanto para a sua mudana (Fairclough, 1989, 2001: 14-35).
10
O jogo de foras hegemnicas e contra hegemnicas retirado do trabalho de Gramsci na construo do conceito de Hegemonia. Na formulao de tal conceito, Gramsci prope uma nova relao entre estrutura e
superestrutura na teoria marxista: a estrutura nem sempre determina a superestrutura, sendo a ltima central
na anlise das sociedades avanadas. Assim, a ideologia assume um papel central na constituio das relaes sociais. A conquista da hegemonia se d num jogo de foras entre classes atravs da persuaso e educao
(em sentido amplo e informal) no seio da sociedade civil. Para falar da atualizao desse jogo de foras
est o que este trabalho aponta como jogo de foras hegemnicas e contra hegemnicas (Gramsci, 1978 a e
b).
8
Globalization is first an economic process, and the neo-liberal doctrine it is
currently associated with is centred upon maximally free trade the free
movement of goods, finance and people internationally. What is involved is a
shift in the relationship between the market and the state which has
characterized capitalism for most of the twentieth century, freeing the market
from state controls and undermining the role of the state in providing social
welfare, and converting the state into a local advocate and agent for the free
market. Supporters of this new order point to its huge capacity for wealth
creation, assuming that while some may gain more than others, all will gain to
some extent. Opponents argue that the market free from state controls increases
the gap between rich and poor internationally and within states, makes life
radically insecure for most people, and causes immeasurable environmental
damage. Globalization is a process which is only partially complete and which
those who benefit most are seeking to extend. They do so through a struggle to
impose a new order. In the first instance, this is a new economic order, but it is
not just economic: there is also a more general process of globalization,
including for instance politics and culture (2001: 204).
Na ordem da imensurabilidade dos danos ambientais, apontada na citao do autor
como fora contra hegemnica do discurso da crise ecolgica em contraponto ao discurso
da globalizao, a resposta desse ltimo tem sido em linhas gerais, a de que vrias
mudanas catastrficas da natureza aconteceram nas diversas fases de evoluo geolgica e
ecolgica no nosso planeta extinguindo espcimes de seres vivos e transformando a
paisagem da Terra. Entretanto, cada vez mais surgem discursos dominantemente
proferidos pela comunidade cientfica - de que a crise ecolgica atual, pela primeira vez
no apenas uma mudana apenas natural. uma mudana da natureza induzida pelas
concepes metafsica, filosfica, tica, cientfica, poltica e tecnolgica do mundo. A crise
ecolgica, ento, est intrinsecamente ligada concepo do modo como a globalizao se
realiza, obrigando-nos a pensar reestruturao do cenrio, poltico, cientfico e educativo
como o problema mais importante do sculo XX e inaugurador do sculo XXI. uma
questo que no emana unicamente da evoluo da matria, mas que se revela no mundo
objetivo trazendo novos e complexos problemas para o meio ambiente.
A complexidade ambiental um processo de reconstituio de identidades
resultantes da hibridao entre o material e o simblico; o campo no qual se
gestam novos atores sociais que se mobilizam para a apropriao da natureza;
uma nova cultura na qual se constroem novas vises e surgem novas estratgias
de produo sustentvel e democracia participativa (Leff, 2003:7).
Samos assim do discurso da globalizao para pensarmos a globalizao dos
discursos, promovidas pela emergncia e ampliao da virtualidade do mundo, o que faz
muitos pensadores a estudarem essas globalizaes alternativas que vem gerindo a
reconstituio entre o material e o simblico em nossos dias, como nos disse Leff. Isto
9
revela o fato de que estamos em pleno perodo de transio, quando nossos valores e
atitudes desmontam progressivamente colocando a todos ns num impasse civilizatrio
oriundo de uma longa histria que traz em seu bojo todas as heterogeneidades de
pensamentos que foram suprimidas desse entendimento, apoiadas na noo de progresso.
Uma noo que embasa o modelo de desenvolvimento escolhido pelo bloco de poder
dominante, que ao longo da histria vem exaurindo - e agora, em uma velocidade
assustadora - os recursos naturais no renovveis do planeta, com impactos negativos
qualidade de vida dessas mesmas populaes, mas tambm risco de vida das ditas outras,
no ocidentais ou transocidentalizadas.
Nas ultimas dcadas principalmente, a globalizao hegemnica e seu discurso
desenvolvimentista adquiriu formato associado a um carter mundializado das relaes de
mercado e s formas neoliberais de governos. Ou seja, o processo de globalizao
assentado no modelo de desenvolvimento dos valores capitalistas exatamente o que est
posto em xeque pela crise ecolgica, a partir de uma ideia muito simples: no possvel
um crescimento infinito num planeta finito. A ideia de um crescimento infinito neste
modelo desenvolvimentista nada mais do que o fomento da ideia capitalista do lucro
infinito.
Historicamente, a ideia foi criteriosamente apoiada pelo devir de uma revoluo
cientfica quando essa implodiu o pensamento medieval a partir dos cus, inaugurando as
navegaes a partir do deslocamento do eixo do cosmo da Terra, para o Sol. Do
pensamento religioso, para o profano e cientfico. Da separao do homem da natureza. Tal
pensamento tem sua maior expresso na obra de Descartes, que permitiu a colocao da
natureza disposio da racionalizao do homem. Ou na de Bacon (1997), onde a
natureza tem valor utilitrio. E que mais tarde, na sociologia foi extensamente anunciada
na obra de Max Weber desde seu artigo escrito em 1913, Uber Einigen Kategorien der
Verstehenden, (Sobre Algumas Categorias da Sociologia Compreensiva), que a chamou
de desencantamento de mundo (entzanberg der welt) (Pierucci, 2003: 62-65, apud
Weber).
A teoria ps-colonial, por sua vez , vem se consolidando nas ultimas dcadas
como uma nova anlise crtica das conflituosas relaes centro-periferia criada pelo
colonialismo e pela expanso do capitalismo nesse processo chamado de globalizao.
Trata-se de uma teoria que vem adotando, portanto, um ponto de vista poltico que procura
10
revelar neste modelo de desenvolvimento escolhido e apoiado pela cincia na dita
modernidade; as complexidades, ambiguidades e contradies desse processo de formao
de mundo polarizado entre um centro constantemente explorador, e periferias
constantemente exploradas, provocando fraturas em ambos os lados formando um mundo
extremamente desigual. As vozes que surgem do pensamento ps-colonial procuram
imaginar uma era de ps-desenvolvimento e de produo de conhecimento descolonizante.
So olhares para a perspectiva de uma insurgncia epistmica de praticas, saberes,
epistemologias e cosmologias indgenas, camponesas, afrodescendentes (Ferguson, 1990;
Escobar, 1995; Sachs, 1992; Rist, 2008).
Assim, em relao crise ecolgica o pensamento ps-colonial mergulha na
contradio capital-natureza, na procura por revelar quem o bloco de poder e quem so
os atores sociais ou naturais que podem produzir uma mudana social e ambiental
emancipatria. Para isso o aconselhamento que vem sendo desenvolvido por tais tericos
o de modificar os sentidos do desenvolvimento para, no caso limite, anul-lo. Quando os
territrios, os projetos endgenos e, em suma, a vida e a unicidade da experincia das
pessoas passam a sobressair como ncoras na desconstruo de narrativas sobre progresso
e sua histria linear, o potencial uma reconfigurao poltico-epistmica que sinalize a
colonialidade vigorosa que permeia todo princpio de representar, prescrever em nome de
um desenvolvimento universal.
No se trata logicamente, de rejeitar incondicionalmente toda a cincia moderna.
Trata-se sim do entendimento da noo de desenvolvimento como um projeto. Isso desvela
que o modelo escolhido no s econmico, mas tambm histrico poltico e cultural.
Cultural porque surge de uma experincia particular: a modernidade europeia e suas
escolhas que subordinaram outras culturas aos princpios ocidentais. Princpios esses que
foram sedimentados pela revoluo cientfica citada, a saber: o indivduo racional no
vinculado a nenhum lugar ou comunidade; a separao de natureza e cultura; a economia
do social e do natural; a primazia do conhecimento especialista ou cientfico sobre todos os
outros tipos de conhecimento. Esta forma particular de modernidade tende
[...] a crear lo que la ecloga hindu, Vandana Shiva, llama monocultivos
mentales. Erosiona la diversidade humana y natural. Por esto el desarrollo
privilegia el crecimiento econmico, la explotacin de recursos naturales, la
11
lgica del mercado y la bsqueda de satisfaccin material e individual por sobre
cualquier outra meta (Escobar, 2010: 22)11
.
Os efeitos simblicos de intercmbio histrico cultural com os centros coloniais,
portanto, so especialmente caros teoria ps-colonial, o que a faz inicialmente nutrir-se
da teoria literria e da filosofia ps-estruturalista, em anlises comparativas das macro
narrativas de longos perodos histricos. Para tanto, abarca elementos tericos da
antropologia cultural, para entender o homem e as sociedades na vertente da cultura, o que
acaba por distingui-la pela tentativa constante de repensar a estrutura epistemolgica de
todas as cincias sociais. Tais estruturas teriam sido moldadas de acordo com padres
ocidentais que se tornaram tambm globalmente e simbolicamente hegemnicas devido ao
fenmeno histrico do colonialismo.
Historicamente, ao que interessa especificamente aqui, remonta o significado do
termo globalizao sua origem: ao contexto do processo de colonizao iniciado no
sculo XIV, impulsionado pelas descobertas de novas terras pelos europeus navegantes.
Para pensar no devir desse processo e a construo deste modelo desenvolvimentista como
uma forma de conhecimento de mundo que se imps sobre a imensa diversidade de outros
conhecimentos, tivemos a ajuda da Teoria da Dependncia. Uma crtica modernidade,
que nos anos 60, sob a autoria de Andr Gunder Frank (1967), j apontava os pases
colonizados, no como pases atrasados e sim, como pases marcados para o
desenvolvimento do subdesenvolvimento. Uma formulao incmoda para o
pensamento da poca, pois inclusive as formulaes de esquerda estavam impregnadas
pelas teorias da modernizao e, mesmo entre os marxistas, ainda se pensava o Brasil, por
exemplo, como resultado do atraso feudal e no como subproduto necessrio da
acumulao em escala mundial.
A proposta de desconstruo desse modelo de desenvolvimento da globalizao
moderna passa tambm pelo novssimo conceito de desenvolvimento sustentvel12
cujo
11
Traduo livre da autora: [...] a criar o que a ecloga hindu, Vandana Shiva, chama de monocultivos mentais. Erode a diversidade humana e natural. Por isso o desenvolvimento privilegia o crescimento
econmico, a explorao dos recursos naturais, a lgica do mercado e a busca por satisfao material e
individual por sobre qualquer outra meta (Escobar, 2010:22). 12
Refiro-me aqui ao conceito de desenvolvimento sustentvel criado e usado pela primeira vez pela Comisso Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, formada em 1983 pela Assembleia Geral das
Naes Unidas: Em essncia, o desenvolvimento sustentvel um processo de transformao no qual a
explorao dos recursos, a direo dos investimentos, a orientao do desenvolvimento tecnolgico e a
mudana institucional se harmonizam e reforam o potencial presente e futuro, a fim de atender s
necessidades e aspiraes humanas (CMMAD, 1987:49).
12
segundo termo serve apenas para legitimar o primeiro, ou seja, a perpetuao do
desenvolvimento como gramtica insupervel (Rist, 2008:194). At porque a noo de
sustentabilidade iguala-se de crescimento linear, apagando outras temporalidades
impostas Natureza e suas populaes exploradas, contraindo o presente, dilatando o
futuro e apagando o passado, como veremos em pormenores mais frente.
Em ps-colonial, o sufixo ps, ento, no se constitui nestes estudos como
descrio do depois ou do agora, ou seja, no se trata de uma mera periodizao baseada
em estgios de desenvolvimento das sociedades mundiais. um sufixo usado para a
releitura da colonizao como parte de um processo transnacional e transcultural global,
para produzir uma reescrita das anteriores grandes narrativas centradas nas naes. A
pertinncia do sufixo ps que d nome a estes estudos, entretanto, vem sendo largamente
questionado, como em Ella Shohat (1992, apud Hall, 2009:99), que acredita ser
provocador de ambiguidade terica e poltica e, assim despolitizante. Ou por, Anne
McClintock (1992, apud Hall, 2009:100), que critica a linearidade do termo e sua
suspenso arrebatada da histria. Para ambas, ento, o termo ps confunde e traz uma
compreenso de fechamento do perodo histrico do colonialismo. Ou ainda, por Arif
Dirlik, que desconfia do conceito por ser:
[...] um discurso ps-estruturalista e ps-fundacionista empregado
principalmente por intelectuais deslocados do Terceiro Mundo, que esto se
dando bem em universidades americanas prestigiosas, do Ive League e que
utilizam a linguagem em voga da virada lingustica e cultural para reformular o
marxismo, remetendo-o a outra linguagem do Primeiro Mundo com pretenses
universalstico-epistemolgicas (Dirlik, 1994 Apud Hall, 2009: 96-97).
So crticas, para concordar com Hall, que no fundo anseiam por uma poltica
bem definida de oposies binrias, o que o autor chamou apropriadamente de desejo para
traar linhas claras na areia13
. No h dvidas que tais binarismos existem e, alm do
mais, sempre que tentamos universalizar pensamentos, no exerccio da abstrao, camos
em binarismos. A teoria ps-colonial tambm faz uso deles14
, evidentemente. Mas, em um
mundo em tamanha ordem de transformao, tambm verossmil que binarismos que
sempre nos serviram, como bem e mal, ou certo e errado, em qualquer abstrao que seja,
tm sido cada vez mais difcil. Isto implica que cada vez mais temos a viso nebulosa, mas
que de qualquer forma precisamos continuar fazendo escolhas do nosso ponto de vista
tico, do nosso lugar enunciao, na perseguio da maior transparncia possvel dos
13
Idem, ibidem: 98 14
Para citar a frequncia de alguns deles: Ocidente/Oriente, Norte/Sul, Centro/Periferia, etc.
13
nossos pensamentos. esta a justificativa do termo ps-colonial quando desconfia do
projeto modernista e desconsidera o fechamento histrico do conceito de modernidade,
preferindo compreender a confusa situao atual como uma espcie de colonialismos
tardios (grifos da autora).
A crtica ps-colonial tm significado importante como testemunho das foras
desiguais e irregulares de representao cultural envolvidas na competio pela autoridade
poltica e social dentro da ordem do mundo moderno (Bhabha, 2007:239). Uma
modernidade criada (inventada) sob-bases de determinao metafisica de conhecimentos
produzindo uma ordem coisificada e fragmentada na dominao e controle do mundo.15
Ou
seja, tal pensamento importante porque evidencia as relaes que em diferentes contextos
histricos, de povo para povo e de relaes dinmicas de diferentes graus de intensidade
com o centro imperial, levantam as formas pelas quais possvel estar no Ocidente, sem
fazer parte dele.
A produo do discurso de desenvolvimento como progresso constante dessa
modernidade foi embasada no campo do simblico, como mostra Arturo Escobar
(2010:41) atravs de seus estudos de Trinh, (1989) e Hirschman (1981), em seis etapas
histricas das formas discursivas para a nomeao dos povos que no atingiram o
desenvolvimento europeu ocidental e depois estadunidense no conhecimento produzido
pela cincia dominante. Uma percepo da alteridade como falhada, de identidades que
necessitam de ajuda e que foram tomadas sucessivamente nas formas de brbaro, pago,
infiel, selvagem, nativo e subdesenvolvido, desde o incio da colonizao at os dias atuais.
Aps a deflagrao da 2 Guerra, sob o signo do subdesenvolvimento esto h
quatro dcadas compreendidas, na mentalidade geopoltica monocultural (para usar a
terminologia de Shiva), todas as sociedades latino-americanas, africanas e algumas
asiticas. o tambm chamado, Terceiro Mundo, que o autor adverte que mesmo
admitindo falhar, esse modelo produz ideias, coisas e disciplinas efeito de instrumento
- que sacrificam formas de conhecimentos locais e modelos de compreenso da natureza
em favor de um modo racional de governo com a constituio de programas para alavancar
economias e gerar bem estar a essas populaes ditas pobres (Escobar, 1995: 44)
15
Modernidade de determinao metafsica no sentido heideggeriano: criada pela filosofia grega, e, portanto ocidental, a cincia foi classificatria do mundo e da diviso dos seres em marcos de conhecimento abrindo a
possibilidade para o domnio controlado de cada coisa.
14
O que justifica a escolha desse trabalho no vis da teoria ps-colonial o
entendimento do seu desafio mais interessante: o de imprimir na historia da humanidade
com a natureza o que foi reprimido pela razo moderna, ou ps-moderna em suas redes
conceituais reificadas. Um desafio que permite uma crtica da modernidade da posio do
sujeito colonizado, o que deve contribuir tanto para a compreenso das relaes da
Natureza e das sociedades subalternizadas que nela habitam, quanto para pensar a
transformao das relaes socioculturais em jogo.
Para isso, no devir dessa crtica modernidade, surge o termo que Anibal Quijano
(1991, 1993,1994) cunhou para conceituar esses efeitos e diferenci-los do conceito de
colonialismo assentado no imaginrio epistmico apenas no passado desses povos: o
conceito de colonialidade de poder. Como o prprio termo conduz trata-se de uma
identidade que insere resqucio, ou resduo, mas tambm naturalizao dos processos de
dominao/explorao do poder colonial entranhada, arraigada persistentemente nas
mentalidades e comportamentos poltico-sociais, tanto nos prprios pases que sofreram o
processo violento da colonizao (tambm denominado de colonialismo interno), quanto
por um poder cuja sede se localiza noutra jurisdio territorial (Anibal Quijano, 2010).
Percebe-se, portanto, que o uso dos termos jurisdio territorial escolhido por
Quijano no quer apenas incluir no conceito a noo geogrfica16
de espao, mas enxerg-
la tambm nos espaos de relaes de poder de dimenso poltica (poder legal-
administrativo de estados-nao) e imaterial (simblico)17
complexos da
contemporaneidade, ou seja, sua ecologia poltica18
. Faz-se necessrio, portanto, atrelar
trs eixos na procura pela colonialidade de poder na crise ecolgica que se encontram
fortemente entrelaados: as formas de conhecimento a que se refere, o sistema de poder
que regula suas prticas e as formas de subjetividade fomentadas no discurso da crise.
16
O conceito de espao geogrfico utilizado neste trabalho inclui no s a noo de espao fsico, mas
tambm a social, entendendo que aes sociais e todos os elementos naturais desse espao so
interdependentes. O espao social, portanto, est contido no espao geogrfico (Milton Santos, 2002). 17
Retirado da Geografia Crtica, compreende-se que os conceitos de espao geogrfico e espao territorial
so indissociveis. Apenas, entende-se por territrio a delimitao de um espao incluindo as relaes de
poder em suas duas dimenses: a material que diz respeito rea do territrio, aos objetos geogrficos
influenciados/dominados/apropriados pelo sujeito territorial; e a imaterial, que corresponde s estratgias dos
sujeitos para a construo de um territrio; so as aes, representaes espaciais criadas, a disputa de foras
com outros sujeitos, as ideologias e os discursos, posicionamentos polticos, manifestaes e outras formas
imprimir o poder. 18 A ecologia poltica tem como principal estratgia de ao os movimentos ambientais e algumas propostas, entre as quais podem ser destacadas: a justia ambiental, a resistncia como estratgia de luta e proposies
de alternativas ao desenvolvimento.
15
No primeiro eixo hoje, na grande esfera de conhecimento das cincias humanas,
podemos observar sob as inmeras perspectivas epistemolgicas do construtivismo social
em estudos das mais variadas minorias, intervindo nos discursos hegemnicos da
modernidade: perspectivas da prpria cincia como construo social, de feministas,
discursos de relaes tnico-raciais, de histrias diferenciadas de naes e povos e, at
mesmo (e aqui o que mais interessa a esse estudo), na perspectiva de uma nova poltica que
considere a natureza humana como integrante da natureza. Apesar de j ser lugar comum
na avaliao dos tericos dessa grande profuso de novos conhecimentos no sculo XX ter
sido permitida no promulgado giro lingustico sofrido pelas cincias sociais e expresso na
famosa frase de Wittengestein, os limites da minha linguagem significam os limites do
meu mundo (1994: 245), isto s no basta. So tambm clamores que evidenciam
mudanas de paradigmas em curso a partir de um mal-estar generalizado na relao
humana com o meio ambiente social e natural, nos velozes e complexos processos
impostos pela globalizao de um mundo superpovoado e interligado pelas tecnologias de
transporte e de comunicao que modificam a relao tempo-espao.
No cabe aqui uma extensiva antologia desses pensamentos, mas vale sublinhar a
novidade radical do pensamento ecofeminista19
que sem desconsiderar a importncia das
anlises e interconexes entre poder, conhecimento, subjetividade e linguagem, procura
recusar ainda a separao do mundo material, do mundo imaterial. Um raciocnio que
prope a reconceitualizao da Natureza para descoloniza-la, resgatando o conceito de
agncia20
: a Natureza agente e tais aes tm graves consequncias tanto para o mundo
humano, quanto para o no humano e, no mais apenas recurso para a produo industrial
ou construo social. A ideia ecofeminista explora a interao entre histria, cultura,
discurso, tecnologia e biologia, com meio ambiente, concomitantemente sem privilgio de
nenhuma das partes. Isto nos remete ao segundo eixo e abre perspectivas ticas e polticas
relevando importncia s prticas de poder. Pois, nesta tica material que inclui a Natureza
como agente implica,
19
Existem muitos tipos de movimentos que se intitulam ecofeministas. Os aqui referidos so anlises formuladas principalmente pelas autoras: Sandra Harding, Helen Longino, Loraine Code, Lunne Hankinson
Nelson, mas tambm por autores como Bruno Latour e Andrew Pickering, que procuram se manterem no
elemento emprico e material sem abandonar a construo social de seus objetos de anlise. 20
Refiro-me aqui ao conceito formulado por Anthony Giddens e sua teoria da estruturao do sistema social para pensar mudana social. Agncia como espao onde se encontram as estruturas e os agentes, como uma
fuso de circunstncias estruturais e capacidade propulsora duplamente condicionado: tanto pelo equilibrio
entre estries e limitaes, quanto pelas aptides e talentos, habilidades, conhecimentos e atitudes dos
membros da sociedade, por outro.
16
[...] que podemos comparar as prprias consequncias materiais reais das
posies ticas e formular concluses a partir daquelas comparaes. Podemos,
por exemplo, argumentar que as consequncias materiais de uma tica so mais
favorveis ao desenvolvimento dos seres humanos e no humanos do que as
consequncias de uma outra tica (Alaimo & Hekman, 2012:5).
Assim, podemos mudar o foco dos princpios ticos para as prticas ticas que so
encarnadas e situadas, que se desdobram em contextos particulares decisrios. Isso
porque elas no esto acima ou sobre as realidades materiais e sim, emergem atravs delas.
Na perspectiva poltica, permite a compreenso que as decises esto inscritas nos
corpos humanos e no humanos o que produz marcas e gera demanda de resposta a esses
corpos, instaurando novos direitos no contexto poltico de regulao. Isso tambm
transforma a poltica ambiental e sua estreita relao com a cincia ecolgica, permitindo
que ambientalistas tenham meios de desmascarar a ideia de que todas as argumentaes
cientficas so igualmente vlidas. A discusso recente em torno do aquecimento global
um exemplo dessa transformao na poltica da cincia que coloca a fora da Natureza
como protagonista na luta.
Ao fim e ao cabo, a questo ambiental , fundamentalmente, uma crise de uma
razo que se intitulou de moderna sobre outras razes. Problemas ambientais so
problemas de um conhecimento ocidental de mundo. Portanto, questionar essa
racionalizao particular crescente do conhecimento e da objetivao de mundo tambm
propor as questes dos valores e da subjetividade de mundo no interior das relaes de
saber-poder, o que nos remete ao ltimo eixo. compreender a modernidade como um
projeto no acabado com todos os seus tropeos e paradoxos. realizar o intento de poder
pensar os povos que sequer chegaram a viver essa modernidade e, entretanto, dela j so
vtimas. por fim, reiterar a cultura da prpria Natureza como vitima no processo.
A crise ecolgica sob uma perspectiva macro da colonialidade de poder, no est
relacionada apenas com as consequncias da grande transformao urbano-industrial dos
tempos atuais, mas tambm com uma srie de outros processos, sejam eles macro ou
micro, globais ou locais, que lhe so anteriores, mas que permanecem culturalmente. Sem
dvida, o caso da expanso colonial europeia e da incorporao de vastas regies do
planeta, uma grande variedade de territrios e ecossistemas, a uma economia-mundo sob
sua dominncia, a visvel ponta do iceberg. Mais oculta est a vitria de um tipo de
conhecimento, de prticas polticas e de formao cultural que propiciou a primazia do
fator econmico sobre todos os outros enquanto estruturantes dos valores materiais, sociais
17
e culturais neste projeto ocidentalista. O auge do debate deu-se na Europa durante o sculo
XVII quando,
O argumento em favor de privilegiar uma forma de conhecimento que se traduzia
facilmente em desenvolvimento tecnolgico teve de confrontar-se com outros
argumentos em favor de formas de conhecimento que privilegiavam a busca do
bem e da felicidade ou a continuidade entre sujeito e objeto, entre natureza e
cultura, entre homens e mulheres e entre os seres humanos e todas as outras
criaturas (Santos, 2005:21).
Estaria, portanto, apontado no pensamento de Santos a origem do que hoje
imprimimos terminologia de globalizao neoliberal que se instaurou no mundo como
forma dominante do pensamento que se materializa no sistema de poder mundial
principalmente a partir dos anos 90: uma lgica de mercado em detrimento a lgicas que
anteriormente pretendiam garantir alguma distribuio social. Foram as escolhas realizadas
pelas elites polticas, empresariais e cientficas europeias e norte-americanas, que depois
alcanam todo o globo. A Teoria ps-colonial assim rechaa a viso de alguns cientistas
polticos de que o processo globalizador da hegemonia econmica, poltica e cultural
uma reinveno do processo expansionista norte-americano no perodo ps-guerra fria,
como queria, por exemplo, Samuel Huntington (1997), como um processo inevitvel de
expanso da cultura ocidental e do sistema capitalista sobre os demais modos de vida e de
produo no mundo, o que nos conduziria a um choque de civilizaes.
Muito pelo contrrio, a Teoria Ps-colonial opera no sentido da necessidade da
reinveno social, cultural e material num mundo repleto de diferenas, sendo a mais
visvel e marcante delas, a diferena hoje instaurada entre os pases do Norte e os pases do
Sul.21
Mas, sobretudo, entender que tal diferena s foi possvel atravs de um verdadeiro
epistemicdio (Santos, 2005: 22)22
. Um processo histrico que foi violento na Europa, mas
o foi muito mais nos pases colonizados, de exclusivismo epistemolgico de uma cincia
moderna transformada por duas principais modalidades de pensamento: uma concepo a-
histrica do prprio conhecimento cientfico, feita do esquecimento dos processos
histricos de constituio do conhecimento e, uma concepo cumulativa do progresso
da cincia (Idem, Ibidem), que viria a acarretar o ocultamento do valor do erro e da
21
A metfora Norte-Sul uma traduo sociolgica (e no territorial) das desigualdades visveis no sistema
mundial entre os pases desenvolvidos do norte como centro do processo globalizador neoliberal que
subordina os pases do Sul (excluindo-se Nova Zelndia e Austrlia), como pases perifricos e
semiperifricos nesse processo (Santos, 2003). 22
Nota citada em Santos como conceito com que designa a morte de um conhecimento local perpetrada por
uma cincia aliengena .
18
controvrsia, principalmente nas cincias sociais. O pensamento dominante do Norte assim
passava a justificar uma capacidade superior de conhecer e de transformar o mundo e as
cincias sociais em particular, assumiram a condio de ideologia legitimadora da
subordinao dos pases da periferia e da semiperiferia do sistema mundial, o que se veio a
se chamar Segundo e Terceiro Mundo23
.
O resgate histrico de outras ideologias se faz aqui necessrio no s para a
compreenso das crises atuais, mas tambm para um reenquadramento e reinsero de
conhecimentos esquecidos, silenciados, ocultados, em seus contextos de luta, que torne
visvel outros conhecimentos, outras histrias. E, para apontar o terceiro eixo como lugar
epistmico desse trabalho, quando falamos em crise ecolgica, portanto, convm a
apreenso da trajetria de subjetividades que se estabeleceu ao redor do termo ecologia
para marcao da definio conceitual neste trabalho. A maioria dos estudiosos atribui
principalmente a Haeckel (1866), o primeiro significado e uso do termo, na obra, intitulada
Morfologia Geral dos Organismos, editada em Berlim e que pretendia uma teoria geral
dos seres vivos 24
.
Haeckel propunha uma perspectiva de anlise inerente s cincias naturais,
assentada sobre a sua rea de atuao, a zoologia. Era assim, uma cincia que surgia para
estudar as relaes entre os organismos vivos e o ambiente em que eles vivem. No levava,
portanto, em considerao as relaes entre sociedade-ambiente, ou homem-natureza. Foi a
perspectiva vencedora poca, porm, desde antes de Haeckel, ou mesmo
concomitantemente, j surgiam outras perspectivas fora das chamadas cincias naturais.
Eram acepes sobre uma cincia que se apresentava no numa nova perspectiva de
anlise, mas tambm num foro de discusso poltica que reivindicava conhecimentos para
uma garantia satisfatria de qualidade de vida para as sociedades, devido j aos primeiros
problemas advindos da nova sociedade industrial para as colnias. A cincia ecolgica
dominante nasce e se desenvolve, portanto, dentro de um ramo da cincia cartesiana, que
admitia especificamente as relaes deterministas e mecnicas de causa e efeito, isto , o
paradigma da cincia positivista que priorizava a determinao natural para a causa de
muitos fenmenos, incluindo-se aqui os sociais.
23
Idem, Ibidem: 22-23 24
Obra que marca a origem do conceito de ecologia: Haeckel, Ernest (1866): Generelle Morphologie der
Organismen : allgemeine Grundzge der organischen Formen-Wissenschaft, mechanisch begrndet durch
die von C. Darwin reformirte Decendenz-Theorie Berlin
19
Hoje, no incio do sculo XXI, a ecologia representa muito mais que uma
subdisciplina de uma cincia determinista; representa, alm disso, um vasto campo
cultural, poltico, cientfico, biolgico e social. So muitos os desdobramentos que a
ecologia sofreu, tanto do ponto de vista pragmtico: ecologia humana, social e poltica,
quanto do ponto de vista terico: sociologia ambiental, histria ambiental ou pensamento
ecolgico (Pdua, 2002). O debate entre as cincias naturais e sociais est definitivamente
instaurado e ele se estabelece numa atmosfera de discursos, em vrias esferas sociais, que
primeira vista, ou primeira audincia, parecem disparatados. Ouve-se, ao mesmo tempo
um crescente interesse pelos assuntos relacionados com a cincia e a tecnologia, assim
como nos limites e pelos riscos que essa mesma cincia e tecnologia oferecem ecosfera,
humanidade. Fala-se em sociedade da comunicao, sociedade de risco, sociedade
sustentvel, sociedades tradicionais, etc. Cresce o debate sobre a poltica das cincias, no
anseio de muitos cientistas e at mesmo de indivduos da esfera civil, os ditos leigos, por
uma maior transparncia e dilogo entre as cincias.
Esta investigao se pretende como apenas um desses espaos de observao, na
difcil interface entre os vrios conhecimentos cientficos e no cientficos, nas relaes
culturais de poder, questes ambientais e de desigualdades sociais. Para tanto e, ancorada
nos estudos culturais ps-coloniais, procura primeiro a percepo dos ocultamentos,
silenciamentos e estratgias enunciativas nas formaes discursivas sobre a Amaznia
objeto tema da pesquisa - de uma forma de comunicao que surge no mundo moderno
quase que ao mesmo tempo em que a crise ecolgica no processo histrico, como cnone
literrio25
desta globalizao neoliberal: o jornalismo. Apenas para deixar aqui apontado, -
pois iremos discorrer detalhadamente sobre isso nos captulos subsequentes - a intenso foi
a de seguir a trilha terica aberta por Sousa Santos na busca por um localismo-
globalizado26
da problemtica poltica-ambiental amaznica em dois pases
semiperifricos: o Brasil e Portugal. O Brasil como semiperiferia do Sul; e Portugal, do
Norte. Recorte que permite enxergar o encontro/desencontro, entre colonizado e
25
Encaixo aqui o jornalismo no conceito de cnone literrio criado por Santos (2006:71), a saber, um
conjunto de obras literrias que nos dias atuais as instituies dominantes consideram ser de grande
representatividade, valor e autoridade na cultura da neoglobalizao. 26
Tambm aqui me utilizo da terminologia de Santos para nomear a o local de tenso entre hegemonia e
contra-hegemonia no processo de globalizao. O localismo-globalizado so locais onde as especificidades
das relaes entre colonizados e seus colonizadores so mais visveis (2005).
20
colonizador falantes da mesma lngua e ainda, local globalizador do poder das questes
ambientais que incidem sobre o territrio da Amaznia, atravs da linguagem.
Mas, antes se faz necessrio nessa linha terica, por a cincia em cultura. Neste
trabalho, ento, por a ecologia em cultura.
1.1 A dialtica da crise para por a ecologia em cultura:
A etimologia do termo cultura aponta para a sua origem latina, colere, que
significa cultivar. um conceito de vrias acepes, sendo que a definio formulada pelo
antroplogo britnico, Edward B. Tylor (Barsa, 1999)27
, segundo a qual cultura aquele
todo complexo que inclui o conhecimento, as crenas, a arte, a moral, a lei, os costumes e
todos os outros hbitos e aptides adquiridos pelo homem como membro da sociedade,
foi a vencedora e permanece at hoje nas mentalidades contemporneas. No cabe neste
trabalho discorrer sobre esse vasto assunto j to debatido exaustivamente, inclusive pela
principal herdeira de tal concepo, a Antropologia. Cabe apenas apontar uma trajetria de
assuno de muitos significados desde o que era entendido com cultivar, ligada ao
surgimento da agricultura, nas cincias naturais para a acepo das cincias sociais. A
teoria ps-colonial fora o conceito de cultura, para fora e para alm do ideal esttico ou
organizacional sempre suspeitando da sua completude. conceitualmente produo
irregular, incompleta de sentido e de valor, no cotidiano das relaes sociais, ou melhor
dizendo, no que Homi Bhaba chamou de ato de sobrevivncia social,
A cultura se adianta para criar uma textualidade simblica, para dar ao cotidiano
alienante uma aura de individualidade, uma promessa de prazer. A transmisso
de culturas de sobrevivncia (grifos dos autor) no ocorre no organizado muse
imaginaire das culturas nacionais com seus apelos pela continuidade de um
passado autntico e um presente vivo seja essa escala de valor preservada
nas tradies nacionais organicistas do romantismo ou dentro das propores
mais universais do classicismo (Bhabha, 2007: 240-241).
Deixemos essa reflexo no crtex do nosso pensamento para pensarmos na
histria do significado de ecologia que como vimos alguns anos antes do conceito de
cultura desenvolvido por Tylor, si vencedor o conceito determinista de Haeckel, onde a
etimologia do termo, oikos, do grego casa, ou seja, o estudo da casa (a Terra) deixa de
fora as relaes sociais no homem com sua casa, separando homem e natureza. Por que j
27
Refiro-me aqui obra de Tylor, historicamente citada como elaboradora do conceito moderno de cultura:
Primitive culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, art, and custom,
editada pela primeira vez em 1871.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Edward_B._Tylor
21
na segunda metade do sculo XIX, os cientistas autoridades que ditam pensamento
dominante poca - decidem pensar a ecologia separadamente da cultura?
Considerando a importncia significativa do fato das relaes de poder-saber em
todas as suas instncias deixarem marcas no corpo da linguagem persigo uma etimologia
das palavras que possa levar ao entendimento de uma dialtica da Natureza como cultura
em contraponto com a Natureza colonizada que persiste na globalizao hegemnica.
A terminologia semntica da colonizao aponta-nos como bem lembrou Bosi
para os termos cultura e culto, que derivam do mesmo verbo em latim, colo, para o
processo de construo dos significados aqui importantes na determinao conceitual a
ponderar (Bosi, 1992:11). Colo que nos remete ao sentimento de cuidar, de tomar
conta. No Imprio Romano adquiriu a significao de cultivo da terra, mas por extenso,
eu moro, eu ocupo a terra. Colo ento ao-matriz da forma adjetiva da palavra
colnia, como espao que est ocupado. Tambm da deriva a palavra colonus, em
grego, ipoikos, aquele que ocupou a terra para o latim e aquele que ocupou a casa, para
os gregos. So inscries significativas da ao em colo: Tomar conta de sentido bsico
de colo, mas importa no s em cuidar, mas tambm em mandar28
.
O particpio passado de colo em latim cultus,
[...] cultus sinal de qua a sociedade que produziu o seu alimento j tem
memria. A luta que se travou entre sujeito e objeto do suor coletivo contm-se
dentro do particpio, e o torna apto a designar a inerncia de tudo quanto foi no
que se passa agora. Processo e produto convm no mesmo signo (Bosi, 1992:
13).
E o particpio futuro, culturus. Percebe-se aqui o significado do que significa o
termo cultura na terminao urus: uma ideia de porvir com conscincia coletiva que
desentranha da vida presente e passada dos planos para o futuro, numa dimenso de projeto
de colere, projeto de cultivo da vida. Por o estudo da casa ecologia em cultura,
significa por o estudo da casa como projeto do cultivo da vida na Terra com conscincia
coletiva que opera no presente a busca do passado para a construo de um projeto de
futuro. O passado foi a colonizao da natureza, pois a ordem do cultivo da terra
expressa em colo - teve como princpio bsico o seu domnio. A aproximao com colo na
significao da cultura moderna, na relao homem-natureza que resultou na crise
28
Idem, ibidem: 13
22
ecolgica em que vivemos ento uma colonialidade de poder, como diriam Quijano e
Mignolo, expressa na linguagem, porque nas palavras de Bosi,
O vetor moderno do titanismo manifesto nas teorias de evoluo social, prolonga
as certezas dos ilustrados e prefere conceituar cultura em oposio natureza,
gerando uma viso ergtica da Histria como progresso das tcnicas e
desenvolvimento das foras produtivas (Bosi, 2003:16).
Assim, a reformulao de critrios de valorao social, associada adoo
desde a dcada de 90 do sculo passado do referencial cultural ambientalista, faz parte
agora de um cenrio mundial em que conferida uma importncia tanto cientfica, quanto
cultural ecologia. Culturus traz em si no s a ao sempre reproposta de colo, o
cultivar atravs dos sculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e,
portanto, j incorporado terra que se lavrou. Mas, a genealogia do termo cultus, como
substantivo, queria dizer no s o trato com a terra, mas tambm o culto aos mortos,
forma primeira de religio como lembrana dos antepassados. Chegamos aqui ao que
Bosi pertinentemente considera a dialtica imprimida no termo colonizao: Convm
amarrar os dois significados desse nome-verbo que mostra o ser humano inexoravelmente
preso a terra e nela abrindo covas que o alimentam vivo e abrigam mortos 29
.
Ora, evidente que o carter dominador do processo colonizador se d no
somente num processo violento de enfrentamento entre dois povos. Trata-se de um
processo que reproduz nos prprios locais onde se manifesta, a luta de classes, abarcando
uma franja de colaboradores que exploram povos dos quais fazem parte. E mais, tal
fenmeno no se processa apenas atravs de razes econmicas e/ou polticas realizam-se
tambm, nos fatores culturais e precisamente na linguagem. Alis, uma das conquistas
tericas do marxismo foi a revelao de que so nas prticas sociais e culturais,
profundamente enraizadas no tempo e no espao, que se formam as ideologias e as
expresses simblicas em geral. Assim, no s convm amarrar os significados de vida e
morte do ser humano atrelado a terra dialtica da colonizao, mas fundamental
entender que foi esta dialtica da colonizao que resultou na crise atual e saber de quais
vidas e de quais mortes estamos falando nos contextos dos conflitos.
Como vimos com Bhabha, a textualidade simblica que conferiu uma aura de
individualidade e promessa de prazer para o bloco do pensamento dominante, imprimida
29
Idem, ibidem: 14
23
no culturus ecolgico do colonizador, os coloca agora diante da crise, na eminncia de
retorno a cultus na sua cultura de sobrevivncia atual. Ou seja, a promessa se torna
ameaa com aspecto de inexorabilidade determinstica da terra em suas vidas e mortes. O
trgico que tal trajetria no emancipa o bloco dominado que muitas vezes no participou
ou mesmo no quis fazer parte dessa cultura de sobrevivncia, numa possvel aura de
individualidade ou promessa de prazer. Entretanto, estamos todos juntos, incluindo aqui a
Natureza, a cavar a prpria cova.
Nesta dialtica, ento, pr a Natureza em cultura um esforo epistemolgico e
poltico para transformar a cultura de sobrevivncia da humanidade e da prpria Natureza,
aprendendo com a ameaa imposta pela crise ecolgica. E, de forma mais eficiente que a
cultura da natureza colonizada construda pelo pensamento dominante ocidental,
precisamos pensar em abarc-la em todos os mbitos histricos, sociais e cientficos, sem
desconsiderar sua materialidade. Uma tarefa gigante, levando-se em conta a eficincia da
construo cultural anterior de colonizao da natureza, que nos levou por cerca de cinco
sculos at nos apercebermos da crise. No temos mais esse tempo todo, precisamos
acelerar.
Este trabalho, portanto, se pretende uma humilde parte dessa grande tarefa.
Seguindo a trilha do pensamento de Boaventura de Sousa Santos, almeja investigar num
dos discursos hegemnicos na lngua portuguesa sobre a Natureza amaznica os
silenciamentos/ocultaes e conflitos polticos, que vem se configurando no bojo da crise
ecolgica cotidianamente. Tal pensamento aconselha que seja na tenso entre hegemonia e
contra hegemonia30
no processo da globalizao, a busca por maior visibilidade das
especificidades das relaes entre povos colonizados e seus colonizadores ou, melhor
conceituando, na procura em um localismo globalizado 31
.
O localismo globalizado de que falo aqui a Amaznia brasileira e sua
representao como territrio histrico-cultural na lngua comum entre colonizadores e
30
Refiro-me aqui ao conceito gramsciano de hegemonia como sistema complexo de mediaes e prtica
poltica da classe dominante, no seio das sociedades capitalistas que visa suscitar o consentimento ativo dos
dominados atravs da constituio fictcia de um interesse geral. Evidentemente isso no se d sem uma
tenso com as outras ideologias. Mesmo entendendo a no recorrncia fora ou represso, temos hoje
muitos estudos que demonstram o atravessamento de ideologias de resistncia que demonstram que esse
consentimento no de todo pacfico nas dimenses das suas linguagens. Cf: Canclini, Barbero, Pirre Levy
et al. 31
Localismo globalizado: Tambm aqui me utilizo da terminologia de Santos (2005) para nomear a o local de tenso entre hegemonia e contra hegemonia no processo de globalizao. O localismo-globalizado so
locais onde as especificidades das relaes entre colonizados e seus colonizadores so mais visveis.
24
colonizados especficos do colonialismo portugus, a saber, Brasil e Portugal, na dimenso
espacial do cotidiano32
; a saber ainda, nas produes noticiosas das televises portuguesa e
brasileira. Tal localismo globalizado na representao da temtica da crise ecolgica que
coloca a Amaznia brasileira33
como objeto global de interesse econmico e poltico, mas
tambm atravs de representaes produzidas e traduzidas para a divulgao dos temas a
ela relacionados atravs do mundo e dentro da prpria nao brasileira. Assim a textura
simblica que constri o cotidiano dos povos da Amaznia e da prpria Natureza
amaznica tecida na sua histria especfica atravessada pelas relaes de poder, mas
tambm na ao pratica desse poder, que estaro impressas nas formas de subjetividade
(representao) na dimenso do terceiro eixo, como nos aconselhou Escobar34
. Procuro as
pistas dessa formao no discurso hegemnico, em suas plataformas e linguagens, e
convm, portanto, entendimento dos contextos estruturais, histricos, culturais e polticos
que desembocam nesta tessitura de representao simblica atual.
Por ora, deixo para o prximo captulo o desenvolvimento terico especfico das
produes jornalsticas que ajudaro a entender a complexidade do tratamento da crise
ecolgica nos meios televisivos e continuo na especificidade do recorte territorial-temtico
escolhido para a abordagem da crise ecolgica na inteno de um mergulho na
especificidade histrico-cultural da Amaznia, sob a jurisdio do Brasil. o que farei a
seguir pontuando as ausncias como marcas histricas da cultura amaznica e situando-a
na crise ecolgica atual.
1.2 Sociologia das ausncias na Amaznia brasileira: um localismo
globalizado.
A Amaznia a maior floresta tropical remanescente do planeta e responde pelas
principais questes que atualmente afligem o imaginrio dos ambientalistas como, a perda
da diversidade biolgica, o aceleramento do aquecimento do planeta, o buraco da camada
de Oznio, entre outras. A Amaznia representa assim, um dos trs eldorados reconhecidos
32
Uso aqui o conceito de dimenso espacial do cotidiano de Milton Santos que prev coexistncias de
temporalidades e espacialidades, atravs dos meios de informao e comunicao em todos os aspectos da
vida social enriquecendo o cotidiano das pessoas (Santos, 2010: 591-592). 33
O recorte do trabalho no abriga a chamada pan-amaznia que inclui as nacionalidades peruanas, venezuelanas, colombianas e guianenses pelo entendimento que no podemos falar de apenas uma
Amaznia, faz-se necessrio aqui especificar de qual delas estamos a falar. 34
Supra. p.9
25
na contemporaneidade como capital de realizao futura e fonte de poder para as cincias e
para o sistema capitalista. Os outros dois so os fundos ocenicos e a Antrtica. Os
oceanos ainda no so regulamentados juridicamente e a Antrtica partilhada entre as
potncias mundiais. A Amaznia, ento, o nico territrio repleto de riquezas naturais
que est sob soberanias de Estados Nacionais, sendo que 60% do seu territrio esto sob a
soberania do Estado brasileiro. isto que faz do Brasil, o centro das atenes tanto do
novo contexto de sustentabilidade da Terra, como do apetite capitalista por progresso
infinito.
O recorte territorial dessa pesquisa tem a inteno de abrangncia das reas de
conflitos especficos da crise na Amaznia. E, tais conflitos no incidem apenas nas
regies do bioma florestal, e so at mais intensos na rea do entorno dessa floresta
abrangendo grande parte do bioma do cerrado. Defino assim, como recorte desse trabalho a
rea chamada de Amaznia Legal.
A Amaznia Legal foi um conceito poltico com fins econmicos criado no
governo brasileiro poca da presidncia de Getlio Vargas, em 1953, atravs da Lei
1.806 e da Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia SPVEA.
Trata-se de um instrumento jurdico estratgico que ampliava o territrio amaznico,
incorporando o Estado do Maranho (oeste do meridiano 44), o Estado de Gois (norte do
paralelo 13 de latitude sul, atualmente Estado do Tocantins) regio amaznica. A
inteno poca era o planejamento do desenvolvimento econmico da regio e garantia
da soberania nacional neste territrio rico em recursos naturais e que estaria ameaado por
foras polticas externas nao brasileira.
Um dos autores do conceito no abandono das diretrizes geogrficas da poca foi o
paraense, gegrafo e bacharel em direito, professor Eidorfe Moreira, quando trabalhava no
rgo de divulgao da Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da
Amaznia SPVEA. Autor de vrias obras sobre Amaznia, ele escreve em 1958,
justificando a nova nomenclatura da regio: A Amaznia interessa hoje em dia menos
pelo que no sentido geogrfico, do que pelo que significa ou promete economicamente
falando (Moreira, 1989:37). Depois disso, nos governos sucessivos, outras reas foram
incorporadas ao conceito que permanece ativo at os dias atuais.
Por hora vale marcar que hoje, a regio amaznica brasileira e seu conceito
geopoltico de Amaznia Legal um exemplo vivo de como a noo de
26
desenvolvimento no est liberta nos dias atuais, ou no chamado estado moderno, da noo
linear de progresso e de crescimento econmico constante, prpria do conhecimento
iluminista. O conceito poltico de Amaznia Legal foi criado a partir de um discurso de
uma pretensa garantia da soberania econmica nacional brasileira no domnio,
planejamento e controle, da atuao das foras estrangeiras na explorao da riqueza
natural dos biomas amaznicos e seu entorno. A ferramenta poltica delimita o que rea
de prioridade para o desenvolvimento econmico da nao brasileira. Atualmente a rea da
Amaznia Legal engloba nove estados da federao brasileira Acre, Amap, Amazonas,
Mato Grosso, Par, Rondnia, Roraima, Tocantins e boa parte do Maranho local onde
vivem cerca de 60% da populao indgena entre o todo de 25 milhes de brasileiros, ou
seja, 12,5% da populao do pas. Veja na figura abaixo:
Figura 1: rea da Amaznia Legal
Fonte: Instituto Socioambiental (2009).
Trata-se de uma ferramenta que vem permitindo ao Estado o planejamento do
desenvolvimento da regio sob a lgica do modelo de desenvolvimento j citado e que
prima pela no-solidariedade na inter-relao de conhecimentos. Ato que esteve muitas
vezes explcito na textura poltica e cultural da sociedade capitalista em sua tendncia
totalizao. a compreenso que d primazia ao todo em detrimento das partes. A rea da
Amaznia Legal compreende todo o bioma florestal, parte do bioma do pantanal e parte do
bioma do cerrado e, portanto, possuem caractersticas ambientais muito diferentes. Ao
tratar juridicamente toda a rea como suscetvel ao plano do governo de valorizao da
Amaznia, vai mais pra frente criar conflitos no desenvolvimento da legislao ambiental
do pas. Em linhas gerais, o bioma do cerrado, por exemplo, fica invisvel com todas as
27
suas particularidades e sua enorme biodiversidade. Santos chama metaforicamente tal
tendncia de razo metonmica35
,
No h compreenso nem ao que no seja referida a um todo e o todo tem
absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compe. Por isso, h apenas
uma lgica que governa tanto o comportamento do todo como o de cada uma das
suas partes. H, pois, uma homogeneidade entre o todo e as partes e estas no
tm existncia fora da relao com a totalidade (Santos, 2008:97).
Voltando assim ao pensamento de Sousa Santos, existem cinco modos de
produo da no existncia na monocultura da razo metonmica referida acima
(2008:101-105). O primeiro deles trata da prpria monocultura do saber e do rigor desse
saber, que transforma a cincia moderna ocidental e a alta (grifos da autora) cultura em
critrios nicos de verdade e de qualidade esttica respetivamente (2008:102). E, a cultura
ambiental de uma maneira geral vem sendo desenvolvida primordialmente atravs dos
conhecimentos produzidos pela cultura cientfica dos pases desenvolvidos do hemisfrio
Norte36
do nosso planeta.
Apenas para fazer uma comparao quantitativa, ao olharmos para o nmer
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