NO LADOSELVAGEMDASDROGASLEGAIS
SMARTSHOPS
Há um mês, a Madeira registou quatro mortes porconsumo de drogas legais adquiridas em smatshops.Desde a abertura da primeira, em 2007, contabilizam-se maisde 30 lojas de norte a sul de Portugal. Vendem um mundode substâncias pouco conhecidas, prometem viagenspsicadélicas. Os médicos não se cansam de alertar: algumasdestas viagens podem não ter regresso, textos de ana soromenho
Em Junho deste ano M. estava de
férias no Algarve com os pais e um
grupo de amigos. Maioritariamen-te eram estrangeiros, todos jovens.M. é uma rapariga, tem 16 anos.
Uma noite chega de lisboa um ou-
tro amigo para se |untar ao grupo.
Propõe uma festa. Traz consigo
um pacote com amanita muscaria,
uma substância poderosa extraída
de um fungo, vulgarmente conheci-
da como cogumelo alucinogénio,
que comprou numa smartshop no
centro de Lisboa. Preparam-se pa-
ra o consumo, provavelmente aideia era sonhar. Estavam em casa,
num espaço confortável, semideita-
dos. A música era suave. Não sane-
mos se M. e os amigos fizeram an-tes uma pesquisa num site sobre
drogas onde, entre outros detalhes,
se pode ler: "Atenção, este cogume-lo é de consumo difícil pois os efei-
tos são imprevisíveis. A trip podedurar cinco a 10 horas." Sabemos
que para M. era a primeira vez.
Horas depois todos voltaram
ao estado normal. Ela não. Explica-va que sentia o corpo em total de-
formação, os braços a multiplica-rem-se. Tinha perdido a referên-
cia do lugar onde estava, o discur-
so era confuso. Não conseguia sair
do estado de alucinação, tiveramde a levar de urgência para o hospi-tal de Faro. Foi imediatamente me-dicada com um antipsicótico e um
tranquilizante que a pós a dormir.
Quando voltou para casa permane-ceu durante algumas semanas sob
o efeito do surto psicótico, desenca-
deado pelo consumo daquela subs-
tância Continuava ater alteraçõesno pensamento, sentia uma inse-
gurança extrema. Não queria sair
do quarta janelas fechadas, com
medo das forças exteriores que po-deriam atingi-la e, novamente, de-
formar-lhe o corpo.Nunca vimos M. Foi Graça Vi-
lar, psiquiatra, diretora clínica do
Instituto da Toxicodependência
que nos contou a sua história Se-
guiu-a durante um mês. A última
vez que a viu, estava ainda receo-
sa. Nunca mais queria repetir. O so-
frimento porque tinha passado fo-
ra devastador. Na gíria chama-se
bad trip. Uma viagem pelos canais
menos explorados do nosso siste-
ma nervoso central. Na base, subs-
tâncias que se vendem em algu-mas smartshops. São viagens que
podem não ter regresso."Tenho sabido de histórias de
colegas de vários hospitais e visto
doentes que chegam às urgências
profundamente descompensadosdo ponto de vista psíquico por te-
rem ingerido algumas destas no-
vas substâncias, exatamente da
mesma forma como descompen-sam com as drogas ilegais, nomea-
damente haxixe ou cocaína." Os
números ainda não foram contabi-
lizados. A psiquiatra relata-nos so-
bretudo casos de jovens que come-
çam agora a fazer os primeirosconsumos diretamente numa lojade porta aberta, com o carimbo de
garantia da legalidade.
UM NEGÓCIO ALUCINANTEEm 2007 abria num centro comer-
cial de Aveiro a primeira smart-
shop portuguesa. Para quem ainda
não saiba, é um estabelecimento
comercial que vende drogas le-
gais. A maioria assume-se como lo-
ja de produtos naturais ou ervaná-
ria especializada. Na realidade,
uma parte dos produtos que ven-dem em sacos coloridos e apelati-vos insere-se no grupo das subs-
tâncias psicoativas sintéticas que
ao serem ingeridas, inaladas, fuma-
das ou injetadas produzem efeitos
semelhantes aos da canábis, ecs-
tasy, cocaína e LSD.
Em cinco anos, o negócio das
smortsfiops proliferou, banalizou-
-se, tornou-se moda. Do Instituto
da Droga e da Toxicodependência(IDT) chega a informação de que jáexistem de norte a sul do pais mais
de 30 lojas que prometem ummundo variado e recreativo de sen-
sacões alucinogénias, estimulan-
tes ou relaxantes, com a conivên-
cia tranquilizante do slogan: "A tua
loja de drogas legais."As drogas legais, cujo nome de
código internacional é legal hights,
começaram a surgir em meados
dos anos 90 em forma de herbá-
ceas e hoje são maioritariamente
produzidas em laboratório por de-
signers moleculares que descobri-
ram uma fórmula prodigiosa de
contornar a lei: a partir do núcleo
psicoativo das drogas ilegais, intro-
duzem uma pequeníssima altera-
ção na sua estrutura molecular e
criam uma nova substância que
passa a ter uma composição dife-
rente, que não se inscreve nas lis-
tas de substâncias proibidas. Este
processo transformou-se num jo-
go do gato e do rato, iludindo siste-
maticamente o controlo dos labo-
ratórios judiciais, ocupando assim
um vazio legal. O jogo não tem fim.
Segundo dados do Observató-
rio Europeu da Droga e da Toxico-
dependência (OEDT), nos últimos
três anos foram identificadas 150
novas drogas em circulação no
mercado global. Só no ano passa-
do, através do sistema de alerta da
União Europeia, foram identifica-
das 49 novas substâncias psicoati-vas. Este número constitui um au-
mento significativo em relaçãoaos dois anos anteriores. Também
se apurou que uma percentagemconsiderável se inclui no grupodas catinonas ou canabinoides sin-
téticos. Muitas delas foram deteta-
das em produtos à venda em smart-
shops ou na net (contabilizam-se
mais de 600 lojas oníine).
O que possibilita a venda de
algumas destas substância nas
smartshops é um ovo de Colombo.
A maioria é importada como in-
censo ou fertilizante "É assim que
entram no mercado grossista, quenão as identifica para a comerciali-
zação a que se destinam. Só poste-riormente é que são empacotadas,em pequenas quantidades, e pos-tas à venda nas lojas", explica João
Goulão, presidente do IDT. Um des-
tes pequenos pacotes chama-se
charlíe, o fertilizante-sensação do
momento no site da Magic Mush-
room, à venda online e nas dez lo-
jas que a cadeia tem espalhadas pe-lo país. Na embalagem de design so-
fisticado, charlie é um diabinho
com ar maroto. No verso pode ler-se: "Fertilizante para plantas que
estimula o desenvolvimento e cres-
cimento da folha e raiz. É apropria-do para uso de plantas de interior
e exterior. Atenção: manter longedo alcance das crianças. Charlie é
um fertilizante para plantas. Não
somos responsáveis pelo seu uso
inadequado." Esta advertência re-
pete-se na maioria das embala-
gens dos produtos à venda.
"Ninguém sabe exatamente o
que é que contém a maioria destes
pacotes que se podem adquirir nas
smartshops. Ninguém sabe a exten-
são dos danos", dizem-nos vários
profissionais de saúde nas áreas
de psiquiatria e da toxicodepen-dência O negócio das smartshops
inundou as ruas das cidades da Eu-
ropa e tem sido tema de debate e
observação, com alertas cada vez
mais insistentes. Todas as vozes es-
tão em sintonia: atenção, estamos
a entrar na red zone.
PASSEIO NO LADO SELVAGEM
João, 34 anos, é chefe de vendas de
uma multinacional. Olha-me de
frente, muito direito sentado numbanco do jardim. Esfrega as mãos
continuamente. Tem dificuldade
em falar com uma estranha sobre
o que lhe aconteceu. Era um ho-
mem saudável, um desportista,com uma vida profissional estável
e bem-sucedida. Perto dos 30 anos
começou a consumir cocaína Tor-
nou-se consumidor regular. Quan-do percebeu que o caos estava
prestes a instalar-se decidiu lar-
gar. Fez uma desintoxicação numaclinica. Cortou com velhos hábitos.
Há um ano, alugou com a namora-da uma casa de fim de semana per-to do mar. Um dia repara na lojaem frente a casa, ainda não tinhadado por ela. Nesse dia, estava a fa-
zer um churrasco no jardim e o le-
treiro luminoso piscou-lhe o olho:
"Free your mmd." Foi isto que ele
leu, na realidade a loja chama-se
Freemind. "Não sabia o que era."
No dia seguinte entrei. "Primeiro
vi os óleos, os estimulantes, os
comprimidos para serem experi-mentados a dois, é a zona da sex-
shop." Todas estas lojas têm uma
secção de estimulantes sexuais.
João continuou a investigação: "A
seguir, comecei a ver os cachim-
bos, os bongos, as mortalhas, toda
a parafernália de acessórios para o
consumo da canábis. Pensei queera uma daquelas lojas como as de
Amesterdão, as cof/eeshops." O quehaverá mais por aqui? O emprega-do mostrou o catálogo: "Havia coi-
sas parecidas com erva, com MD-MA (mais conhecida como a drogado amor), com ecstasy, com cocaí-
na. Coisas a que chamam substân-
cias. Na realidade, nenhum empre-gado sabia explicar o que aquelascoisas eram."
João e a namorada começa-ram a experimentar. Todos os fins
de semana, os dois sozinhos na ca-
sa da praia. Bloom, blow, bliss, pozi-nhos mágicos que se podem adqui-rir nas lojas e nos sites a partir de 15
euros, com informações sobre a
posologia, os efeitos e a duração.
Prometem, no mínimo, euforia e
desinibição social. Tudo legal. "Pen-
sei que fosse um selo de garantia",diz-nos João.
Até ao fim de semana da tra-
gédia "Acho que o problema foi
com um bliss, nem sei bem. Perce-
bemos a diferença pelo sabor, tal-
vez fosse especialmente amargo.Perdi a perceção da realidade, dei-
xei de saber quem era. Olhava pa-ra a minha companheira e tam-bém não sabia quem era, parecia--me outra pessoa. Lembro-me de
lhe começar a perguntar: 'O que é
que estás aqui a fazer?' Dizia coi-
sas que comecei a interpretar malDepois apaguei. Ainda hoje não
consigo distinguir se sonhei ou se
vivi." João viveu mesmo um pesa-delo. Atingiu um grau de agressivi-dade tão descontrolado que quase
pôs em perigo a vida da namora-da.
"O surto psicótico induzido pe-la substância provocou-lhe um cor-
te com a realidade. Uma coisa des-
tas pode levar à loucura", diz o mé-
dico que o assistiu. Luís Patrício,
psiquiatra clínico, ex-diretor do
centro das Taipas, que se tem dedi-
cado a uma campanha feroz nos
bloques e em debates que promo-ve sobre o tema. "Estamos a discu-
tir assuntos muito sérios que estão
a ser tratados como brincadeira",continua o médico: "Não vale a pe-na diabolizar os donos das lojas. Al-
guém lhes permitiu a comercializa-
ção livre destes produtos. Estão su-
jeitos ao IVA, pagam impostos. Co-
mo é que isto acontece? O que se
pode ainda fazer com esta farsa
instituída? Anda toda a gente a as-
sobiar para o lado."
João Goulão relata: "Quandoé lançada uma nova substância
no mercado internacional e é
identificado o seu uso ou comer-
cialização em qualquer país de Eu-
ropa, temos um sistema de alerta,
através do Observatório Europeuda Droga, e ficamos com as ante-
nas no ar. Em Inglaterra, porexemplo, quando qualquer nova
substância pslcoativa surge, é colo-
cada de quarentena durante umano numa espécie de proibição
preventiva. Isto pode ser feito ape-nas por despacho de um membrodo Governo. Em Portugal, quando
queremos acrescentar uma nova
substância à lista das proibidas, te-
mos de ter a aprovação da Assem-
bleia da República, o que torna o
processo muito mais lento e invia-biliza uma fiscalização mais ágil e
atempada."Foi o caso da mefredona, que
começou por ter o nome de rua de
miau-miau, uma droga recreativa
com propriedades psicoestimulan-
tes, que se popularizou em 2007. Aocorrência de mortes suspeitas re-lacionadas com esta droga levou a
que vários países a proibissem em2010. Em Portugal, só em marçodeste ano a mefredona entrou na
lista das substâncias controladas e
passou a ser vendida no circuito
das drogas ilegais.
Entretanto, o bloom, que conti-
nha mefredona, foi Já alterado emlaboratório na sua composição e
estrutura molecular, contendo ago-ra outras substâncias novas.
NO LADO NEGRO DA LUA
A voz é direta e grave. Respondeàs perguntas sem hesitar. A comu-
nicação, por telemóvel, cai várias
vezes. Chove torrencialmente emLisboa e no Funchal. "Pode-me tra-tar por Carla. É o meu nome, não
me importo que o escreva."
Carla entrou no mundo da
droga pela porta do fundo. Cocaí-
na aos 15 anos. Diretamente naveia. A heroína chegou depois. Te-rá andado uns anos nisto. Quantosnào consegue precisar, tem falhas
de memória, baralha-se com datas.
Fez algumas tentativas de desinto-
xicação, começou com o programade tratamento da metadona. Háum ano, mais coisa menos coisa, ti-nha parado de consumir. Até ao
dia em que um amigo lhe falou nu-ma lo]a que tinha aberto muito per-to do Dolce Vita. "O centro comer-
cial, sabe?" E o nome da loja? "Não
me lembro." Era a primeira stnart-
shop que abria na Funchal, neste
momento Já existem cinco. Carla
pediu ao amigo que a levasse até
lá. A informação que Unha é que se
podia comprar uma coisa parecidacom cocaína, a velha amiga das via-
gens na adolescência que entretan-
to saíra de circuito e era dificílima
de encontrar. Entrou na loja Esta-
va pronta para o bloom.
Ela conta: "Primeiro assustei-me.É esquisito uma loja dessas aberta
ao público." Carla, metade de uma
vida em consumos pesados, sabe
que qualquer droga tem o seu pre-ço, talvez por isso lhe tenha pareci-do tão estranha aquela facilidade.
O selo de garantia não a conven-
ceu da ausência de perigo. Meio
grama custa 20 euros. "Quando ha-via cocaína um grama custava
cem euros". Começou a injetar três
a quatro gramas por dia. Ao princí-
pio "era tão bom como tinha sido a
heroína." Na noite de 26 de dezem-
bro de 2011 não conseguiu pararde consumir e de repente começa-ram as alucinações. "Via bichos, po-lícias a perseguirem-me." Pânico.
Ela a querer voar da janela do só-
tão da casa do namorado. Ele a
não conseguir retê-la. Pediu ajudaà irmã. Levaram-na à força para as
urgências do hospital do Funchal.
Ela não se lembra de nada.
"Não há muitos segredos.Existem grandes danos a nível so-
cial e de saúde pública. Estas subs-
tâncias, como por exemplo a me-
fredona, derivadas das catinonas,
provocam distúrbios que podemser irreversíveis", diz-nos Licínio
Santos o médico que assistiu Car-
la. Como pode ter a certeza de
que a descompensação de Carla
esteve diretamente relacionada
com o consumo daquela droga?"Não havia história prévia de sin-
tomatologia psicótica. Houve
uma remissão e quando os sinto-
mas desapareceram ela voltou ao
normal. Não voltou a apresentarsintomas psicóticos. Neste mo-
mento, está equilibrada e sem
consumos." Licínio Santos ainda a
trata. Carla, que abandonou a es-
cola, quer voltar a estudar malacabe o tratamento. Tem 24 anos.
"A realidade da Madeira é
particular. Muitos consumidores
de heroína em tratamento têm
descompensado e abandonado os
programas terapêuticos pela dis-
ponibilidade da substância psicoa-tiva na ilha. Ao contrário dos res-
tantes países da Comunidade Eu-
ropeia, aqui injetam-na", conclui.
Da Madeira soube-se no principiode setembro da existência de qua-tro mortes relacionadas com o
consumo desta droga. Ao contrá-rio do continente, os números es-
tão contabilizados, 150 ao longodo último ano: "Todos os dias che-
gam às urgências dos hospitaistrês a quatro casos em descom-
pensação e com manifestações de
paranóia, surtos psicóticos, arrit-
mias graves", diz ainda o médico.
AS LOJAS SMART
Drogas recreativas. O termo exclui
o estigma. Recreativo tem o gla-mour de festa. Os novos consumi-
dores que chegam agora à idade
pré-adulta cresceram a associar as
palavra toxicodependência a umavida de 'carocho', de arrumador de
carros. Agora os consumos têm o
ar deste novo tempo. As embala-
gens, com nomes sugestivos e de-
sign ligeiramente infantil, ligeira-mente psicadélico, recordam he-
róis de séries de infância: ninja,
charlie, gorbi mix, jldel tnix... A bone-
ca do bloom tem a cara atrevida de
heroína de banda desenhada Nas
lojas vendem-se isqueiros, bolsas
para cigarros, moedores de eiva e
até chupa-chupas com o desenho
colorido da canábis. Todo um mer-
chcmdising ligado à iconografia dos
consumos, misturado com os in-
censos, chás, pós, ervas, energéti-
cos, cogumelos mágicos, afrodisía-
cos. A linguagem comercial é su-
gestiva, convoca evasão e a liberta-
ção da mente, o cenário é amigá-vel. Nas flyers das smartshops a
mensagem é esta: "Diverte-te e
traz um amigo." Consumir é ser
cool. Ter controlo. Não ter medo. A
porta está aberta.
No Bairro Alto, na Rua das Flo-
res, na descida para o Cais do So-
dré, em Santos, na Rua dos Márti-res da Liberdade, no Porto, em
Coimbra, em Aveiro, na Covilhã,
em Faro. Em todos os centros das
nossas cidades, onde há estudan-
tes e diversão noturna, há uma
smartshop, com horários compatí-veis, algumas estão abertas das
seis da manhã à meia-noite. Aceita-
-se cartão de crédito. Oferece-se
cartão de cliente, que acumula
pontos, fazem-se promoções e en-
tregas ao domicílio. Os emprega-dos são gentis, também eles Jo-
vens, também eles cooL Não impin-
gem nada a ninguém. Informamsobre as novidades, explicam os
efeitos de cada um dos produtos e
como devem ser utilizados. Todos
garantem que a informação está
disponível para quem a quiser sa-
ber. Na maioria das embalagens
pode ler-se: "Impróprio para con-
sumo humano." ©
asoromenhoaim presa.pt