Narrativas de memória de ex-moradores da Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida –CEUACA (1960-1970): uma reflexão sobre o uso de fontes orais em História da Educação
MARCOS LUIZ HINTERHOLZ*
RESUMO: A temática da moradia estudantil universitária ainda é pouco visitada pela
historiografia, em especial no campo da História da Educação, assim como na produção
científica brasileira de um modo geral. Isto pode ser decorrente da redução destes espaços ao
seu caráter assistencial, em abordagens que não os contemplam enquanto lugar de formação e
de troca de saberes. Pretendo, a partir das narrativas de memória de ex-moradores da Casa do
Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida (CEUACA), fazer uma reflexão sobre o
uso da metodologia da História Oral na produção de fontes para o estudo desta comunidade
universitária de Porto Alegre nas décadas de 1960 e 1970. Concomitantemente, apresentarei
alguns resultados parciais desta pesquisa, que tem por objeto uma Casa autogerida, às
margens da institucionalidade, onde busco por sentidos, formas de ser/estar estudante naquele
período e dentro desta coletividade determinada, amparado em perspectivas abertas pela
História Cultural.
INDRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é refletir o espaço da Casa do Estudante Universitário
Aparício Cora de Almeida (CEUACA) na perspectiva da história da educação e as
potencialidades do emprego da metodologia da história oral neste sentido. Trata-se de uma
avaliação parcial sobre as potencialidades da utilização de tal método para a pesquisa em
questão e os direcionamentos para os quais as primeiras narrativas de memória estão a
apontar, em leituras interpretativas amparadas pela vertente teórica da história cultural.
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na
linha História, Memória e Educação.
A temática da moradia estudantil é pouco visitada pela historiografia brasileira e pela
produção científica de um modo geral. Garrido e Mercuri (2013), fazem um levantamento nas
principais bases de dados do país, sobre a presença desta temática, onde observam a
2
predominância da análise de aspectos como: a noção de territorialidade nestes espaços; o
discurso dos moradores sobre o consumo de drogas; o perfil pessoal, acadêmico e político dos
estudantes; suas perspectivas de emprego e/ou de estudo após a conclusão do curso de
graduação; suas formas de participação política no ambiente acadêmico; sua trajetória escolar.
Podem ser localizados ainda trabalhos que resgatam o histórico desses locais e outros que tem
seu foco mais centrado na assistência aos estudantes.
É na produção norte-americana que Garrido e Mercuri (2013) vão localizar uma série
de trabalhos que trazem a moradia estudantil como local de formação complementar,
inclusive com dados quantitativos. Também em Portugal pode-se encontrar trabalhos como
estes, especialmente sobre as repúblicas de Coimbra, trabalhos que enfocam as casas como
polos dinamizadores de cultura e de sociabilidade da cidade e também como espaços de
formação. Com relação ao caso português, Andrade (2014) destaca os “centenários”, que vêm
a ser as festas de aniversário destas Repúblicas, tendo este nome, pelo lema que refere um ano
passado numa república correspondente a 100 anos na “vida comum”, em virtude das intensas
vivências e aprendizados, sobretudo com o modo de vida comunitário e a autogestão das
casas.
No caso da CEUACA, mais do que autogerida, estamos diante de uma Casa autônoma,
posto que não é vinculada a nenhuma instituição de ensino ou poder governamental. Sua
própria criação é emblemática: surge por iniciativa e mobilização dos estudantes, que foram e
ainda são responsáveis pela captação dos recursos financeiros e administração da Casa como
um todo, aspectos dos quais deflui uma autogestão em sentido pleno.
Nas linhas introdutórias desta escrita, não posso deixar de referir as minhas
implicações com o objeto de pesquisa aqui apresentado. Vivi a CEUACA durante quase 7
anos, entre 2006 e 2013. O que experimento no processo de feitura deste trabalho é uma
sensação de redescoberta. Sempre atribuí à Casa importância central para minha formação,
tanto na perspectiva da assistência estudantil, quando de desenvolvimento pessoal. Agora ela
adquire, ao longo desta pesquisa, um sentido político e histórico muito mais profundo.
Na administração das consequências desta implicação, amparo-me, entre outros, em
Chartier (2008), para quem deve-se substituir o mascaramento das condições de produção dos
discursos históricos (que Certeau chama de “leis do meio”), demonstrando o caráter subjetivo
da história, os preconceitos e as curiosidades do historiador. Ressalta, no entanto, que
relacionar os enunciados científicos às suas condições históricas de possibilidade não significa
desconsiderar que produzem conhecimento, submetidos a técnicas e a critérios de validação.
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As fontes utilizadas nesta pesquisa são as três narrativas de memória de ex-moradores
da Casa produzidas até o presente momento. Com a finalidade de preservar a identidade dos
entrevistados, atribuí-lhes como pseudônimos os nomes das suas cidades de origem2. “Lagoa
Vermelha”, “Dois Irmãos” e “Passo Fundo” têm em comum o fato de serem todos homens,
com instrução de nível superior, oriundos de famílias pobres do interior do estado do Rio
Grande do Sul, com mais de sessenta anos de idade e que viveram a CEUACA nas décadas de
1960 e 1970. Observe-se que as mulheres não eram oficialmente admitidas no período em
questão. O recorte temporal visa contemplar a análise da experiência autogestional e
democrática destes estudantes, num dos períodos mais críticos para as liberdades individuais,
provocado pelo regime ditatorial civil-militar brasileiro. As entrevistas, embora privilegiem o
livre fluir da memória, possuem um roteiro que as estrutura em três grandes pontos: a
trajetória do entrevistado antes, durante e depois da Casa.
É assim que se produziram as fontes que aqui utilizarei: narrativas deste complexo
fenômeno neurológico e social, a memória. Trata-se apenas de uma apresentação das
incipientes leituras possíveis e dos sinais que as reminiscências dos três primeiros
entrevistados parecem estar emitindo, na direção daquelas que poderão vir a ser categorias de
análise nas próximas etapas deste trabalho.
A INSTITUIÇÃO FORA DAS INTITUIÇÕES
A história da CEUACA remonta a agosto de 1934, quando os estudantes
da Faculdade de Direito de Porto Alegre se organizaram e fundaram a então chamada “Casa
do Estudante Pobre”. A referida instituição não tinha sede própria. Utilizava-se dos mais
diversos espaços, muitos dos quais inadequados. Com a morte de seu filho Aparício, em 1935,
Israel Almeida e Maria Antônia Cora doam o prédio do antigo Edifício Almeida, situado na
rua Riachuelo, região central de Porto Alegre, ao Estado Gaúcho, para que ali fosse sediada
aquela que então passou a chamar-se “Casa do Estudante do Rio Grande do Sul”.
2 Cidade de origem refere-se à cidade natal do entrevistado. Optei por esta forma de atribuição de pseudônimos
(que será usada sempre entre aspas: “Lagoa Vermelha”, “Passo Fundo”, etc....) em virtude da significação que
existia quanto a este aspecto dentro da Casa. Nas conversas iniciais com os demais moradores e nas rodadas se
apresentação, esta questão sempre estava posta. Além disso, eram recorrentes os casos em que o apelido do
morador correspondia ao nome da sua cidade ou estado de origem.
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No ano de 1959, a Casa é reconhecida como uma Entidade de Utilidade
Pública Estadual, ato referendado pelo então Governador do Estado, Leonel Brizola. O nome
de Casa do Estudante Aparício Cora de Almeida (CEUACA) lhe é dado em 1961. Um ano
depois, ela é reconhecida como Entidade de Utilidade Pública Federal.
A instituição também sentiu sobre si o peso do Governo Militar, de modo que
entre os anos de 1964 até o final da década de 1970, viu-se diante de uma intervenção federal,
que acompanhava as reuniões e assembleias dos estudantes, chegando a efetuar trocas na
direção da casa e a expulsar moradores. Teve ainda significativo papel nas atividades
do Movimento Estudantil, servindo como ponto de encontro e confraternização entre
estudantes de dentro e de fora da casa e intelectuais da época. Já a década de 1980 ficou
marcada pelo fato de mulheres serem aceitas como moradoras, uma vez que desde sua criação
em 1934, recebia apenas estudantes do sexo masculino. Foi uma das últimas casas para
estudantes universitários do estado a implantar o sistema de moradia mista.
Atualmente a CEUACA luta por manter o espírito que impulsionou a sua criação,
prestando auxílio de moradia a estudantes de graduação e pós-graduação carentes de recursos
socioeconômicos e abrigando estudantes de todas as partes do Brasil e do mundo, com
capacidade para cerca de 100 moradores. Destaca-se pelo fato de ter, durante seus 80 anos,
mantido um sistema de autogestão, inclusive dos recursos financeiros, que em sua grande
maioria eram captados pelos próprios moradores, através da realização dos mais variados
eventos. Também contavam com a doações de ex-moradores e de entidades, além do aporte
de recursos que era feito pelos próprios estudantes, o chamado “rateio”. Raras e escassas
foram as verbas recebidas dos governos Estadual e Federal. Essa situação se agravou quando
a partir da década de 1990 a casa não contou mais com qualquer tipo de auxílio externo.
O prédio começou a deteriorar-se e não havia recursos para qualquer tipo de reforma.
A situação chegou ao extremo nos anos 2000, quando a casa foi sucessivamente interditada e
sofreu inúmeros processos judiciais no sentido de evacuá-la. Houve movimentos de
resistência dos moradores e mobilizações junto ao poder público. Em 2014, quando a casa
completou seus 80 anos, mediante negociação com o Governo do Estado e o Ministério
Público, chegou-se a um acordo sobre a reforma, e os estudantes foram realocados para
diversos imóveis na região central de Porto Alegre, mediante pagamento de aluguel social por
parte do governo.
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A história cultural traz uma nova atitude diante do sujeito e diante da história como
um todo. Objetos, conteúdos e métodos são redefinidos e são atenuadas as fronteiras
disciplinares que passam a se inter-relacionar. Fecundas parcerias são formadas com a
antropologia, a literatura e a psicanálise. Sob sua égide está a história da educação aqui
concebida, ultrapassando os limites da educação formal, ao passo que amplia também as suas
fontes, permitindo iluminar práticas sociais do passado. É deste modo que, ainda que estando
“nas margens do instituído” (CUNHA,1999), a CEUACA se viabiliza enquanto objeto de
estudo deste campo historiográfico.
“ISSO TAMBÉM É UMA ESCOLA”: AUTOGESTÃO E EXPERIÊNCIA
FORMATIVA
Numa leitura das primeiras narrativas sobre a moradia na CEUACA, as referências aos
aspectos formativos desta experiência já se fazem notar. “Dois Irmãos’, que então era
estudante de Artes Plásticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e hoje
artista internacionalmente reconhecido, em uma de suas falas confunde morar com estudar,
naquilo que pode ou não ter sido um ato falho, mas que é emblemático da proposição inicial:
“[...] a casa já tinha naquela época uma coisa nova, porque estudou ali o Stédile, o Pedro
Simon estudava ali, então eles eram uma referência para os outros. ”3
A Casa como “escola” também aparece em outras falas. “Passo Fundo” é hoje corretor
de imóveis aposentado e, à época que morou na CEUACA, cursava Engenharia de Minas na
UFRGS.
Ali os próprios moradores faziam a administração. Isso também é uma escola né.
Para várias ONGs, para várias entidades, no sentido da autogestão. Outra grande
escola né, aonde os moradores aprenderam formas de gerir depois outras entidades
do seu futuro. (“Passo Fundo”4)
A ideia da narrativa acima transcrita parece ter lastro na própria atuação social em
instancias políticas na vida pós-Casa do entrevistado, que participou durante dois mandatos
do Conselho Municipal de Cultura, onde chegou a ser Presidente. Como tradicionalista, foi
3 Entrevista com “Dois Irmãos”, realizada em 19/09/2015. 4 Entrevista de “Passo Fundo” 08/10/15 1h22min
6
representante de CTGs (Centro de Tradições Gaúchas), na Comissão de Cultura do
Orçamento Participativo de Porto Alegre. Também foi eleito Coordenador do Fórum
Municipal dos Conselhos das Cidades. Atualmente ele é uma das lideranças envolvidas na
disputa judicial contra a Prefeitura e a Secretaria de Cultura de Porto Alegre, em virtude do
fechamento, segundo ele, arbitrário, do Conselho do qual fazia parte, e a abertura de outro,
“ao bel estilo deles”.5
As narrativas que concebem a Casa como “escola” também estão a apontar aspectos
formativos além daqueles decorrentes da autogestão, indo na direção das trocas culturais e
formação ideológica. A fala de “Lagoa Vermelha”, formado em Direito pela UFRGS e que
atua como advogado é expressiva neste sentido:
E aí então inicia a vida na Casa do Estudante. Uma vida cheia de aprendizado, a
Casa do Estudante, durante todo esse período que eu fiquei, durante toda a
faculdade, durante todos os 5 anos, de 1965 até 1970, foi a maior escola que eu já
tive. Uma escola de sociologia prática, de política pragmática, escola de
amadurecimento de vida, principalmente. E um traço anárquico, socialista, que me
marcou até os dias de hoje. (“Lagoa Vermelha”)
Segundo o relato de “Passo Fundo”, os grupos ideológicos direita/esquerda eram bem
divididos e dão conta de uma influência ativa de determinados moradores, que atuavam como
lideranças, aos quais chama de “influenciadores” e “lavadores de cabeça”.
Mas ali na Casa, sempre esteve bem formado esses lados políticos. A esquerda e a
direita. E eram aguerridos. Eram influenciadores, eram lavadores de cabeça.
Faziam lavagem cerebral. Quando você entrava, ou você entrava para a esquerda
ou você entrava para a direita. De acordo com a tua.... ou de acordo onde você
caía, porque os bichos entravam no quarto de passagem. Se você tivesse a sorte de
entrar do lado dos veteranos de direita era mais fácil você entrar para a direita do
que para a esquerda. Porque terminavam fazendo a tua cabeça. Se você tivesse a
sorte ou azar, sei lá, vai de cada um, naqueles quartos de esquerda, que é onde eles
se concentram, sempre fazem uns grupinhos, para poder facilitar as discussões e as
parcerias, era óbvio que você iria para o lado da esquerda. (“Passo Fundo”)
O contexto histórico no qual o país vivia nas décadas de 1960 e 1970, com sérias
restrições políticas e para as liberdades individuais, certamente fizeram da Casa um espaço
7
privilegiado para estas discutições, para o embate ideológico nas instâncias internas como as
assembleias gerais e em outros espaços decisórios, como o Conselho Deliberativo. Mas não
só, como se vê no relato acima, na medida em que as trocas culturais entre os moradores
ocorreram nos próprios quartos. Espaços de discussão interdisciplinar, de circulação de ideias,
uma vez que abrigava estudantes de vários cursos, como transparece o relato de “Dois
Irmãos”:
Nós trazíamos filmes, que nem “Queimada! ”6, um filme que me marcou muito
numa época, do Carlo Pontecorvo, que tinha o Marlon Brando como ator principal.
Nunca mais vi este filme. Muito interessante este filme, deste imperialismo,
colonialismo. E com isto é claro, muita coisa respingava para a casa do estudante.
Eu trazia muita coisa para a casa do estudante. Talvez não tanto em termos de
entrada, mas como dicas do que estava se passando. (“Dois Irmãos”)
Os desafios de trabalhar com a história oral, no caso específico de uma Casa de
Estudantes, pode guardar diversas armadilhas, principalmente por tratar-se do tempo de
juventude do entrevistado, da aventura, das paixões a flor da pele, mas também pela tendência
de uma narrativa em forma de epopeia, de um passado de sacrifícios, que confere sentido mais
nobre ao presente. A memória, como sabido, é uma forma de representação do passado em
constante processo de construção e reconstrução, ligando-se ao contexto em que estava
inserido o entrevistado no momento da narrativa. É o que se percebe, por exemplo, quanto as
suas posições ideológicas de agora dos ex-ceuacanos, que embora não declaradas, são
facilmente perceptíveis:
Acontecia assim, a direita ganhava um ano, dois anos, três anos, quatro anos. E a
esquerda tentando angariar adeptos com a bicharada. Aí chegava uma época em
que eles conseguiam ultrapassar os da direita. Aí eles ganhavam. Ganhavam um
ano. Aí acontecia algo na administração, muito peculiar. Aquele ano a situação
econômica da Casa degringolava. Porque o pessoal da esquerda gosta muito de
discutir, gosta muito de se reunir, gosta muito e se impor, gosta muito disso, gosta
muito daquilo, mas de trabalhar, de procurar dinheiro, que a casa procurava
constantemente, uma busca permanente por recursos. Eles não eram muito desta
parte. (“Passo Fundo”)
6“Queimada! ” é um filme italiano de 1969 do gênero aventura histórica dirigido por Gillo Pontecorvo. No
século XIX um representante inglês é mandado para uma ilha do Caribe que se encontra sob domínio português,
para incentivar uma revolta para favorecer os negócios da coroa
inglesa.(emhttp://www.adorocinema.com/filmes/filme-14313/ acesso em 25/04/2016).
8
Pollak (1992) fala de uma ligação fenomenológica bastante estreita entre a memória e o
sentimento de identidade que é, a grosso modo, o sentido da imagem de si, para si e para os
outros, imagem esta construída ao longo da vida. Esta memória e identidade devem ser
compreendidas como essências de uma pessoa ou um grupo, ainda que possam ser negociadas
com base em critérios como aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade.
QUEM MATOU APARÍCIO?
Em 1962 a Casa da Estudante alça Aparício Cora de Almeida à condição de seu
patrono, levando-o no nome a partir de então. A contextualização das circunstâncias da morte
de Aparício são importantes para melhor compreender como a sua imagem foi apropriada na
construção de uma identidade ceuacana. Este personagem habita o imaginário dos estudantes
até os dias de hoje e surge nas narrativas de memória dos ex-moradores.
Então nós passaríamos a ser subordinados legalmente, coisa que nós não
aceitamos, seria, digamos, violar a iniciativa do próprio patrono da Casa, que era o
Aparício Cora de Almeida, como você já deve estar sabendo, era um comunista,
tinha traços até anarquistas, e que morreu numa passeata. Como filho único, os
pais resolveram então fazer esta doação do imóvel, para que servisse de fim à
residência de estudantes pobres. (“Lagoa Vermelha”)
Aparício foi encontrado morto no dia 13 de outubro num restaurante do bairro
Tristeza, em Porto Alegre. O inquérito feito pelo delegado de plantão, apontou um acidente
como a causa da morte. Familiares e amigos de Aparício, por terem “encontrado certas
circunstâncias que julgaram inexplicáveis”7, não se conformaram com a referida conclusão,
ao que formularam uma queixa, encaminhada ao Governador do Estado e ao Chefe de Polícia.
Muitos rumores passaram a circular na cidade de Porto Alegre em torno desta morte, razão
pela qual o governo do estado ordenou que as investigações prosseguissem. Nomeou para
tanto uma comissão, composta por um desembargador, pelo presidente do Instituto da Ordem
dos Advogados e um promotor público designado pelo Procurador Geral do Estado. A
comissão estava composta ainda por advogados indicados pela família de Aparício.
Ao final de quase um mês, a referida comissão chegou ao seguinte parecer:
7“A propósito da morte do Dr. Aparício Cora de Almeida”. A Federação, Porto Alegre, 25 out. 1935.
9
Em face, portanto, dos elementos colhidos no inquérito, examinadas todas as
circunstâncias anteriores, concomitantes e posteriores ao fato investigado a
comissão conclui pela ausência de crime, e considera a morte do Dr. Aparício Cora
de Almeida o resultado lamentável duma funesta e imprudente brincadeira que
pretendeu fazer com o seu próprio revólver. (A FEDERAÇÃO, 21/11/1935)
Quanto ao aspecto factual, passados mais de 80 anos do ocorrido, com base nas
escassas informações do inquérito policial e demais fontes, não é possível responder com
certeza quem matou Aparício. É importante pensar em que medida os mistérios que cercam o
episódio desta morte foram um campo fértil para as apropriações e ressignificações da figura
de Aparício, tal como invocada pela comunidade ceuacana. Ora como uma espécie de mito
fundacional, ora nos discursos de resistência que perpassam as narrativas de memória de ex-
moradores, especialmente por aqueles identificados com um campo ideológico mais à
esquerda, tal personagem pode ter sido estrategicamente resgatado, consciente ou
inconscientemente, em prol da constituição de um sentimento de grupo e de uma memória
coletiva.
A CASA DAS VIGAS GEMENTES
A casa tinha corredores né, a gente subia uma escada, aí tinha um corredor, tinha
um espaço interno aberto... Eu sonho muitas vezes. [pausa] Aí tinha um corredor,
uns paus assim pra cima, e tinha umas madeiras desenhadas recortadas em cima. E
aí tinha um corredor, de um metro e meio mais ou menos, que a gente ia para os
quartos. E daí cada canto, pelo menos os dois cantos da frente, era uma sala
comum, que ia dar num banheiro. Nessa sala comum, meus vizinhos muitas vezes
deixavam eu pintar, apesar do cheiro da tinta. [...] Quando eu falo dos corredores
eu tenho vontade de chorar, que nem agora a pouco. (“Dois Irmãos”)
Nestes mais de 80 anos de existência e resistência, a luta da CEUACA foi
fortemente marcada pela busca ou pelo mantimento de um prédio sede. Em 1934, quando da
criação, os estudantes conseguem, junto a Prefeitura de Porto Alegre, por intermédio do então
prefeito Alberto Bins, a cedência de um edifício situado na Rua Demétrio Ribeiro 1145, para
sediar a Casa. Ampla, possuía dois pavimentos e tinha capacidade para abrigar cerca de 40
estudantes. Tudo parecia bem, quando em 1938, a Prefeitura Municipal prepara um plano de
remodelação da cidade. Uma das ações previstas era a abertura de uma praça (hoje Praça
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Daltro Filho, em frente ao Capitólio), justamente onde ficava a Casa do Estudante, que seria
demolida.
Após negociações com o então prefeito José Loureiro da Silva, os estudantes foram
realocados para o Parque da Redenção, no pavilhão construído para expor os produtos típicos
do estado do Paraná, utilizado na Exposição de 1935, por ocasião do centenário da Revolução
Farroupilha. O jornal Correio do Povo trouxe na época uma reportagem, sob o título de “A
Casa das Vigas Gementes”, onde descreve a precaríssima condição na qual os estudantes se
encontravam: “o pavilhão mede 240m2. Seu forro é de aniagem, as paredes são de stuck e
estão todas esburacadas; as divisões internas, algumas de taboa, outras de papelão, são
feitas em forma de baias”8. Além disso, a iluminação era mal distribuída e não havia água
encanada.
Quando o vento sopra um pouco forte [...] o pavilhão mexe-se e as suas vigas
gemem. Essa fragilidade toda [...] acompanha o movimento do vento e, vezes ha,
que parece partir-se, acabar-se, caindo sobre os estudantes, que não dormem.
Nesses instantes horríveis [...] partem daqui preces mudas para o céu e Deus
compadece-se deles e permite que esta carcaça permaneça de pé, para continuar
abrigando-os como único refúgio que possuem… (Palha, Juliano. A Casa do
Estudante. Revista do Globo, n.354, 1ª quinz. Jan. 1944, p.25)
No ano de 1942, a Federação Universitária de Porto Alegre, através de
mobilizações, aluga um prédio na Rua Duque de Caxias, 1707, para onde a Casa se transfere.
Dois anos mais tarde, em 1944, a Casa é novamente transferida, agora de forma definitiva,
para o Edifício Almeida, na Rua Riachuelo, 1355. O prédio, que consta ter sido um antigo
hotel, foi doado pelo casal Israel Almeida e Maria Antônia Cora ao estado gaúcho, para que
ali fosse sediada aquela que então passou a chamar-se “Casa do Estudante do Rio Grande do
Sul”. A doação, como já referido, foi em homenagem ao filho do casal, Aparício
Por fim, em 2014, a Casa sofre novo revés, sendo interditada e seus moradores
remanejados para diversos imóveis pela cidade, locados pelo poder público. A volta para o
prédio original, segue indefinida, posto que não há previsão de início das reformas.
Nas narrativas, os espaços da Casa e a sua arquitetura parecem funcionar como
uma espécie de suporte para a memória contra o esquecimento. Neste sentido, é possível
estabelecer uma relação com aquilo que Ricoeur (2007) chame de “lugares de memória”:
8 A Casa das Vigas Gementes. Correio do Povo, 25 set. 1938, p.19.
11
A transição da memória corporal para a memória dos lugares é assegurada por
atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se, e, acima de tudo, habitar. É na
superfície habitável da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado locais
memoráveis. Assim, as “coisas” lembradas são intrinsecamente associadas a
lugares. E não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela
teve lugar. (RICOEUR, 2007, pág. 58)
A aventura da universidade para o grupo aqui estudado é fortemente marcada pelo
habitar de um espaço: a Casa do Estudante, um prédio na Riachuelo, 1355. Uma arquitetura
que não é neutra, como as narrativas vêm demonstrando. “Os lugares habitados são, por
excelência, memoráveis. Por estar a lembrança tão ligada a eles, a memória declarativa se
compraz em evocá-los e descrevê-los. ” (RICOEUR, 2007, pág. 59). A casa do estudante é
marcada pela partilha de espaços em comum, como a sala, a cozinha. É aí que se encontram
para conviver e tratar de assuntos os mais diversos.
UM PECADO VENIAL?
Claro que ninguém é perfeito, e se existia algum pecado venial lá era por nós não
termos avançado na época ainda em relação ao Clube do Bolinha. Na época havia
a vedação de residência para mulheres, que foi uma grande conquista que
aconteceu, eu fiquei muito contente quando tomei conhecimento disso. (“Lagoa
Vermelha”)
Outra questão que o emprego da metodologia da história oral vem revelando é a
presença feminina na CEUACA. Oficialmente admitidas como moradoras somente a partir de
1987, as mulheres, já nas décadas de 1960 e 1970, circulavam pela Casa, como as narrativas
estão a demonstrar. Seja como moradoras clandestinas, frequentadoras dos bailes que lá
ocorriam ou aquelas que faziam da Casa o seu ponto de prostituição, a presença das mulheres
naquele período vem se mostrando marcante nas narrativas.
A autogestão parece ter permitido algumas soluções negociadas para alguns problemas
críticos pelos quais os estudantes (e não estudantes também, como se verá a seguir) passavam.
É o caso de “Dois Irmãos”, então morador, que consegue, no início da década de 1970,
convencer a direção da Casa e os colegas ceuacanos a admitir sua companheira (que não era
universitária e trabalhava como vendedora nas Lojas Marisa, no centro de Porto Alegre)
permitindo que ambos morassem juntos no mesmo quarto. Foi a alternativa encontrada pelo
12
jovem casal para viver o romance proibido pelos pais da moça. Se por um lado a casa cometia
o “pecado venial” de não permitir o ingresso das estudantes do sexo feminino, por outro lado
acabou mostrando-se acolhedora em determinados episódios:
É, deixaram ela, porque nós éramos namorados, e os pais dela eram contra, porque
eu tinha barba e cabelo comprido, e eles acharam que eu era maconheiro e
vagabundo. Todo artista naquela época era bicha e vagabundo. Mas o bicha não o
bicha de hoje, que é com dignidade, tinha uma conotação muito marginal. Tinha que
ser é homem! Todo artista então era bicha e vagabundo. Já tinha este negócio. Aí
eles foram gentis e deixaram. E aí os pais da mãe da minha filha, obviamente foram
contra, porque “eu era vagabundo” e eu tinha cabelo comprido e então eles
achavam que eu usava droga. (“Dois Irmãos”)
São recorrentes também relatos que dão conta da presença das mulheres como
visitantes, como namoradas ou como frequentadoras dos bailes que ocorriam nos finais de
semana.
E as moças vinham, mas já ficavam lá, praticamente. Naquele tempo era só homem,
mas se podia receber visitas, era totalmente livre. As mulheres vinham para a
reunião e já ficavam, dormiam por lá. O outro sexo eram simplesmente as visitas. E
que as vezes vinham e ficavam dois três dias. Ficavam as vezes o final de semana
inteiro. [...] Tinha tudo. Ali acontecia de tudo o que você imaginava. Acontecia de
tudo. Tudo aquilo que você possa imaginar na relação entre homem e mulher
acontecia por ali. (“Passo Fundo”)
As falas transparecem os grupos sociais aos quais pertenciam estas frequentadoras da
CEUACA, em sua maioria, não-universitárias e dão conta de que algumas mães inclusive
levavam as suas filhas até estes bailes, na expectativa de conseguirem um bom casamento
para estas.
Haviam umas gurias, que se não fossem namoradas, seriam companheiras dos
caras ali, e tinham umas gurias muito simples lá, assim tipo, não é guria de vila,
mas gurias muito simples, que eram companheiras daqueles caras que iriam ser os
médicos daqui a dois, três anos. Isso se já não eram formados, se não estavam
fazendo pós-graduação. E eu sempre me perguntava, o que vai ser destas meninas, o
que eles vão fazer com essas meninas. [...] Eram gurias talvez com o primeiro grau
incompleto. Também eram meninas muito pobres. Muitas delas ficavam o dia inteiro
encerradas ali dentro esperando um xis, uma comidinha que vinha. (“Dois Irmãos”)
[...] havia situações inclusive, [...] em que algumas mães acompanhavam as filhas,
nas reuniões. Não eram, evidentemente universitárias, as reuniões transcorriam
normalmente, e ali se estabelecia namoros. [...] vislumbravam (as mães) a
possibilidade de um futuro, com estes estudantes universitários pobres. E havia,
13
uma certa simpatia das mães, em relação a aqueles que tinham, digamos, a
possibilidade de um êxito mais rápido. No caso, por exemplo, um futuro médico, que
eram vistas como profissões de futuro. (“Lagoa Vermelha”)
A narrativa de “Dois Irmãos” da conta da presença de prostitutas na Casa e da
complexa relação que estas estabeleciam com os estudantes. Ora relacionando-se sexualmente
com estes, ora dispensando-lhes um cuidado fraternal. Teriam ainda atraído clientes para os
bailes, ajudando no “caixa” da Casa.
Mas o que mais, tinha uma boate lá atrás, domingos à noite, tinha boate, na casa, e
as gurias da Voluntários da Pátria, grande parte, muitas delas, era muito bonito,
porque elas se vestiam diferente, frequentavam a casa, a boate lá. Faziam os caras
gastarem, para nós termos dinheiro para o dia seguinte comprar feijão e arroz.
[...]E elas amavam a gente, as prostitutas amavam a gente. Elas eram tipo umas
irmãs da gente. Eu me lembro que elas passavam lá, a gente conversava... A gente
era muito sozinho, a família ficava longe, a gente era perdido em Porto Alegre.
Solidão também por outro lado, tu tinha que estudar muito para passar na UFRGS.
Não era assim fácil. Eu ainda tinha o precedente da falta de grana também, e as
gurias “davam” de graça, e elas também precisavam daquilo, então esta caridade
né tchê! Se tu tem muito, tu dar 5 reais não é nada, agora tu dar tudo quando não
tem quase nada...é muito bonito! E eu pensava muitas vezes naquilo... o que vai ser
destas pessoas. (“Dois Irmãos”)
PRIMEIRAS (IN) CONCLUSÕES
O emprego metodológico da história oral está permitindo o alcance de representações
para além da oficialidade dos estatutos que regeram a Casa, das atas das assembleias e das
reportagens jornalísticas, possibilitando refletir sobre as formas de significação desta
experiência para aqueles que a viveram, situando as memórias dos ex-moradores e o cotidiano
da CEUACA das décadas de 1960 a 1970 em uma configuração inteligível da formação
social, das práticas e dos saberes observados através destas narrativas, numa busca sempre
articulatória, nunca totalizante
Partindo das representações em torno da participação nesta coletividade, a Casa do
Estudante, pretendo fazer uma leitura de como tal experiência foi significada na formação
pessoal dos ex-moradores entrevistados, a partir das suas narrativas. Identifico, neste ponto de
feitura da pesquisa, a possibilidade de aprofundamento em algumas hipóteses: a ideia por
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parte dos ex-moradores de que aquela foi uma experiência formativa, associada em grande
medida à característica de autogestão da Casa, sobretudo numa ideia de capacitação pessoal
para a liderança e a democracia; a figura de Aparício Cora de Almeida, evocado como uma
espécie de símbolo de resistência democrática no período da ditadura; a presença feminina
“não-oficial” e a rede de sociabilidades “não-ditas” que orbitavam a Casa; o poder simbólico
que alguns elementos arquitetônicos do prédio sede na rua Riachuelo e a própria concepção
de “casa” exerceram na composição das subjetividades e das reminiscências ora examinadas.
Por último, e para além das questões metodológicas ou das contribuições que este
trabalho porventura possa vir a dar ao campo da história da educação, venho aqui confessar
um medo: o de que um dia a CEUACA desapareça. É nas palavras de Galeano, numa
passagem sobre o povo uitoto, no livro “Os Filhos dos Dias”, que busco algum alento:
Por esses dias, e em outros dias também, os narradores que contam
contos a viva voz, escrevendo no ar, celebram seus festivais.
Os contadores de contos têm numerosas divindades que os inspiram e
amparam.
Entre elas, Rafuema, o avô que contou a história da origem do povo
uitoto, na região Colombiana de Araracuara.
Rafuema contou que os uitotos nasceram das palavras que contaram
seu nascimento. E cada vez que ele contava isso, os uitotos tornavam
a nascer. (GALEANO, 2014)
Talvez seja esta a finalidade última deste trabalho, contar uma história da CEUACA,
ouvindo as histórias de outros sobre ela.
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