Multiculturalismo – examinando a política de reconhecimento. Taylor, C Edições 70, 1988 (Recensão)
Multiculturalismo – examinando a política de reconhecimento
O homem contemporâneo tem uma forma de vida muito diferente do homem antigo.
Para o homem contemporâneo, o primeiro de todos os valores é a liberdade. Reclama um
espaço à singularidade e criatividade e o respeito pela ideia de propriedade privada. Não tem
obrigações profundas e permanentes para com a comunidade.
Embora tenha obrigações para com o Estado, nomeadamente o cumprimento das leis
e a aceitação da legitimidade das instituições fundamentais do sistema democrático - não tem
obrigação de sacrificar toda a sua liberdade individual: Já no século XIX Benjamin Constant o
reconhecia de forma clarividente:
O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os
cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam
liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios
privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituições a esses privilégios.
É neste quadro de aparente conflito ontológico/antropológico do homem moderno
que podemos compreender a problemática do “Multiculturalismo e da Política do
Conhecimento”. Diariamente assistimos em muitos locais do planeta, a conflitos sangrentos
entre Povos, que têm consequências profundamente nefastas para a humanidade. São, na
maior parte das vezes, conflitos de cariz étnico, religioso ou cultural que se afiguram de difícil
resolução. Falta, muitas vezes, a quem tem por obrigação de resolver estes conflitos
multiculturais, uma análise racional profunda das raízes desses conflitos. A filosofia pode dar
esse contributo, nomeadamente a Filosofia Política das duas últimas décadas.
Partindo de uma análise da obra “Multiculturalismo – Examinando a Política do
Conhecimento” (1998), de Charles Taylor, neste ensaio procura-se compreender a relação entre
1
a identidade de indivíduos e culturas e as Políticas de Reconhecimento. E analisa-se a tese de
Taylor equacionando duas perspetivas diferentes: a «Política da igual dignidade», que se funda
naquilo que todos os seres humanos partilham, e a «Política da Diferença» que coloca enfoque
em grupos e indivíduos e na sua especificidade. Nos comentários que, despretenciosamente,
se apresentam no final deste trabalho procurar-se-á refletir criticamente sobre a perspetiva de
Taylor, enfatizando-se, entre outras, a relação entre as Políticas de Reconhecimento e a
Cidadania.
Se, como reconhece Taylor, a identidade de cada indivíduo ou de cada cultura é
formada pela “existência ou inexistência de reconhecimento” (1998:45), como compatibilizar
esta imperativa necessidade de reconhecimento com uma sociedade contemporânea marcada
pelo “atomismo dos indivíduos absorvidos em si mesmos” (2009). Como conceber a identidade
de cada indivíduo/cultura se este se encerra na sua liberdade individual dos tempos modernos?
Parte I – “Multiculturalismo” (1998), segundo Charles Taylor
1.1. Identidade, autenticidade e reconhecimento
Embora Hegel seja considerado “o ‘pai’ e inaugurador das teorias do reconhecimento”
(Sylla, 2014), o conceito e o discurso de reconhecimento ganharam o seu legítimo espaço na
Filosofia Política nos últimos 20 anos, contando com Alex Honneth e Charles Taylor como os
mais proeminentes defensores do reconhecimento no século XX. Neste ensaio darei particular
enfoque à Teoria do Multiculturalismo, de Charles Taylor, sustentada na obra
“Multiculturalismo – Examinando a Política do Reconhecimento” (1998), deste filósofo.
Na obra “Multiculturalismo”, o filósofo canadiano Charles Taylor procura examinar a
política do reconhecimento, compatibilizando-a com o conceito de identidade. No centro desta
perspetiva Tayloriana está uma visão dialógica da pessoa e da sua identidade, daí atribuir uma
grande importância à linguagem. A linguagem humana também nos torna agentes humanos
com identidade porque nos coloca em interação dialógica com o outro.
Taylor começa por clarificar o conceito de identidade. O que define cada sujeito? A
identidade de cada um corresponde ao modo como se auto-define, ou seja, à imagem que cada
um faz ou tem de si. No entanto, a imagem que cada um faz de si subordina-se à imagem que
o outro faz de si: “É perante o tu que posso, e faz sentido, dizer eu”, afirma Fabrízia Raguso
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(2007:197). Assim, não há identidade sem reconhecimento, declarando Taylor que a nossa
identidade é formada pela “existência ou inexistência de reconhecimento” (1998:45)1. Um
reconhecimento incorreto de um indivíduo ou grupo pode afetar negativamente ou “ser uma
forma de agressão” à pessoa ou grupo. Isto acontece quando existe a “projeção de uma imagem
do outro como ser inferior e desprezível” (1998:57).
O Discurso da identidade e reconhecimento, segundo Taylor, é recente e emergiu a
partir do desaparecimento das hierarquias sociais tradicionais, no pós- revolução Francesa e
Americana, que introduzem o conceito de cidadania universal, que, supostamente, entra em
rutura com o mundo do “status”, de honra e dos privilégios feudais:
“num sistema de honra hierárquica, estamos em competição uns com
os outros: a glória de uns tem de ser o opróbrio de outros, ou, pelo
menos tem de implicar a sua insignificância.”
Taylor, (1998:69)
Contra a noção de honra (que implicava um tratamento preferencial, desigual e, por
isso, injusto) surgiu a noção moderna de dignidade, que hoje possui um sentido universalista e
igualitário. Como afirma Maria Xose Agra (s.d): o “fundamento do multiculturalismo está na
substituição da honra pela dignidade (…) afirmando-se na igualdade jurídica e política abstrata
de todos os indivíduos”. É esta noção de dignidade que é compatível com a democracia, onde
valores como a igualdade, a justiça, o bem comum são fundamentais, e são também
incompatíveis (pelo menos abstratamente) com o conceito tradicional de honra.
A noção de reconhecimento e da identidade do sujeito está também ligada a outro
conceito ou ideal: o ideal que Taylor designa de “autenticidade”. Socorrendo-se do contributo
de Herder, Taylor afirma que a autenticidade corresponde a uma “maneira original de ser
humano” (1998:50). Esta noção de autenticidade sugerida inicialmente por Rousseau, surge no
final do século XVIII e enfatiza o sujeito e a sua consciência, afastando Deus ou a ideia de bem,
como fontes da moral. Agora, a fonte do bem ou do mal está em nós, como afirmava Rousseau,
é “uma voz da natureza dentro de nós” (1998:49). Deste modo, o ideal moderno de
autenticidade preconiza que ser verdadeiro para comigo mesmo significa ser verdadeiro para
1 Ideia já desenvolvida por Hegel segundo o qual ninguém se pode desenvolver sem o reconhecimento do outro, “sem o reconhecimento de uma consciência singular pela consciência geral e vice-versa” (Sylla, 2014)
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com a minha originalidade. É este princípio também que sustenta a própria autorrealização do
indivíduo e o reconhecimento como condição necessária desta autorrealização. Este ideal é
aplicável tanto no indivíduo como na cultura/grupo. Assim, uma genuína política do
reconhecimento implica uma genuína política de reconhecimento da
originalidade/autenticidade de um indivíduo ou de uma cultura e, como veremos à frente, o
respeito pelo seu valor intrínseco, contra uma atitude de dominação e até de discriminação dos
elementos de culturas não dominantes ou não hegemónicos.
1.2. Política de igual dignidade e Política da diferença
Dando, por isso, maior enfoque à esfera pública do que à esfera íntima do
reconhecimento, Taylor procura explorar o significado de uma política de reconhecimento
igualitária.
Nas políticas sociais do reconhecimento podemos falar de duas perspetivas diferentes:
a «Política da igual dignidade», que se funda naquilo que todos os seres humanos partilham, e
a «Política da Diferença» que coloca enfoque em grupos e indivíduos e na sua especificidade.
No primeiro caso temos a política do universalismo que reconhece dignidade igual para
todos os cidadãos e visa a igualdade dos direitos e privilégios, excluindo-se assim “cidadãos de
primeira” e “cidadãos de segunda”. Esta política, que surgiu por influência de Kant e Rousseau2,
o “pai da nova política de igual dignidade” (1998:70) implica o princípio da igual cidadania. No
segundo caso, (Política da Diferença) o princípio orientador não é a igual cidadania, ou seja, a
igualdade universal, “um cabaz idêntico de direitos e imunidades” mas o reconhecimento do
caráter singular de cada um (indivíduo ou grupo): “é precisamente esta singularidade que tem
sido ignorada, disfarçada, assimilada a uma identidade dominante ou de maioria”, afirma
Taylor (1998:58) que considera que se as políticas de igual dignidade se baseiam na ideia de
que todas as pessoas/grupos são igualmente dignos de respeito, então a cada indivíduo ou
cultura deve ser garantida a formação e definição da sua própria identidade. Isto só é possível
através de uma política da diferença (1998:63):
2 Apesar de Rousseau ter introduzido um novo discurso sobre a honra e a dignidade dando importância à estima e recusando o tratamento preferencial, Taylor considera que “a solução por ele apresentada é decisivamente imperfeita” (1998:70) pois, neste filósofo, “a margem para reconhecer a diferença é extremamente pequena”. (1998:71)
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“a suposta sociedade justa e ignorante das diferenças é, não só
inumana (porque subjuga identidades), mas também ela própria
extremamente discriminatória, de uma maneira subtil e inconsciente”
Taylor considera que é possível encontrar sociedades liberais que conseguem
compatibilizar uma Política de Igual Dignidade com uma Política da Diferença, defendendo
determinados objetivos coletivos e o respeito por diferenças (Conceição, C. 2013:228). Diz este
filósofo canadiano que são sociedades que, apesar de darem habitualmente mais relevância a
certas formas de tratamento uniforme em detrimento da sobrevivência cultural, são modelos
que, por vezes, assumem a importância da sobrevivência cultural onde a “integridade das
culturas ocupa um lugar importante” (1998:81). Por isso, é este modelo que Taylor subscreve,
porque o papel do Estado relativamente a uma “definição de vida boa” é neutral mas “não pode
nem deve pretender uma neutralidade cultural completa” (1998:83), porque os princípios
liberais, supostamente neutros são “um particularismo disfarçado de universalismo” e porque,
tratando todos por igual, ignoram diferenças e potenciam a discriminação. Walzer, no seu
comentário a Taylor faz a distinção entre estes dois tipos de liberalismos descritos por Taylor,
e denomina-os de “Liberalismo 1” e “Liberalismo 2” (1998:117). Segundo Walzer, o primeiro
tipo (de que são exemplo os EUA) reconhece direitos individuais havendo um Estado
“rigorosamente neutral” sem objetivos coletivos além da liberdade pessoal, da segurança e do
bem-estar dos cidadãos. O segundo tipo de liberalismo permite um Estado comprometido com
“a sobrevivência e o florescimento de uma determinada nação, cultura ou religião (…) desde
que os direitos básicos dos cidadãos estejam protegidos” (1998:118). Walzer julga que Taylor
prefere o segundo tipo de liberalismo num sentido “optativo”, como atrás ficou claro
relativamente à neutralidade “incompleta” de um Estado Liberal.
1.3. O pressuposto igual valor das culturas
A ideia central da filosofia política do reconhecimento de Charles Taylor é a convicção
de que todos os grupos culturais têm direito a ser reconhecidos pelo Estado porque fornecem
bens irredutivelmente sociais que os indivíduos sozinhos não são capazes de assegurar (Rosas,
J.C. Thaler, M. e González, I., 2012:194). É deste modo que Taylor conclui que todas as culturas
merecem a nossa admiração e respeito, mesmo que possuam um lado que condenamos e
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rejeitamos acrescentando que “só a arrogância ou outra falha moral semelhante nos pode
privar desse sentido” (1998:93). Taylor faz referência ao modo como os currículos nas
universidades e escolas secundárias de países ocidentais são definidos. E afirma que a conceção
dos currículos de cursos universitários (centrados em autores/obras de culturas europeias)
exprime “o desejo de menosprezar vítimas de exclusão” (1998:87). Na opinião de Taylor, obras,
conhecimentos ou teorias das sociedades não hegemónicas não são valorizados pelos
ocidentais “devido ao preconceito, à má vontade ou ao desejo de subjugar.” (1998:89). A
valorização das culturas tradicionais é para Taylor quase um imperativo universal:
“Da mesma maneira que todos devem possuir os mesmos direitos civis
e de voto, independentemente da raça ou da cultura, assim devem todos
usufruir do pressuposto de que as respetivas culturas tradicionais têm
valor” (1998:89).
Segundo Taylor, os verdadeiros juízos de valor de obras e criações diferentes
contribuem para posicionar todas as culturas no mesmo nível. Considera assim importante
incluir obras de culturas não dominantes nos “curricula” universitários das “culturas
hegemónicas” partindo do pressuposto que aquelas têm valor para a humanidade (mesmo sem
sabermos se é elevado ou baixo) – “o pressuposto de igual valor”.
Parte II - Comentários
2.1. “Reconhecimentos” e “Reconhecimento”
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Como referido acima, a idade moderna, pós- revolução Francesa e Americana marca o
início do fim das hierarquias sociais tradicionais baseadas no estatuto socialmente herdado e
não na dignidade, mérito ou esforço do indivíduo, introduzindo-se o conceito de cidadania
universal. A noção de honra deu lugar à noção moderna universalista de dignidade. Segundo
Taylor, as políticas de reconhecimento são um fator-chave para a promoção da identidade de
cada indivíduo/cultura e da respetiva dignidade. No entanto, (e esta é uma crítica por vezes
atribuída ao multiculturalismo de Taylor) a dignidade e o reconhecimento nas sociedades
contemporâneas talvez não se obtenha fundamentalmente através do reconhecimento
cultural:
“O mal maior desta nossa época do capitalismo avançado, dizem estes
críticos, ainda é a desigualdade material e não a desigualdade
simbólica.
(Rosas, J.C. Thaler, M. e González, I. , 2012:192)
O reconhecimento do valor “cultural” é uma condição necessária mas não suficiente,
para a “conquista” da autenticidade e identidade de um indivíduo/cultura (particularmente de
culturas minoritárias). Uma das críticas que Fraser dirigiu a Honneth vai aliás neste sentido.
Fraser considera que há dois tipos de justiça, um ligado ao conceito de reconhecimento, outro
ao conceito de redistribuição de bens. Assim, questiona se o reconhecimento é uma questão
da justiça (questão moral), ou antes uma questão da auto-realização (questão ética)? Onde é
que se devem procurar as razões das injustiças, nas condições económicas ou nas condições
culturais? (Sylla, 2014). A identidade de um indivíduo/cultura/grupo também decorre, por isso,
da sua (pelo menos) potencial possibilidade de alcançar não apenas “formas” autónomas de
vida mas também “níveis” de vida próximos ou similares aos seus pares e a outros
grupos/culturas (hegemónicas, por exemplo). Esses “níveis” de vida são potencialmente
alcançáveis se houver igualdade de direitos básicos – “liberdades fundamentais, aquelas que
nunca devem ser violadas” (1998:80) - mas também de oportunidades, de acesso a benefícios
sociais, económicos e políticos na sociedade.
Uma sociedade justa, bem ordenada, não é apenas a sociedade que garante igualdade
de direitos e um respeito e valorização das diferentes culturas. Uma sociedade justa é também
aquela que garante aos seus membros a igualdade de oportunidades e compense ou corrija
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desigualdades naturais (a raça, a origem étnica, por exemplo) ou decorrentes de causas não
controladas pelo próprio sujeito que dificultam ou impedem pessoas de concretizar os seus
legítimos desejos e interesses. Esta é a perspetiva de John Rawls, que, além de defender a não
discriminação defende que “todos os cidadãos devem ter as condições efetivas para aceder às
diferentes funções e posições, mesmo que tenham nascido em condições especialmente
desfavorecidas” (Rosas, 2011:28).
E como a justiça numa sociedade depende, conforme afirma, “essencialmente da
forma como são atribuídos os direitos e deveres fundamentais, bem como das oportunidades
económicas e condições sociais nos diferentes setores da sociedade” (Rawls, 1993:30), propõe
a instituição de princípios da justiça social “aplicáveis a estruturas sociais cuja natureza é
pública”, pois “são eles que fornecem um critério para atribuição de direitos e deveres nas
instituições básicas e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios” (Rawls, 1993,
p.28). Estes princípios obrigam a correções ao nível da estrutura básica da sociedade, como por
exemplo, limitação de grandes fortunas pela via fiscal ou ajudas na educação, retificando
fatores resultantes daquilo a que Rawls chama “lotaria natural” ou “lotaria social. Se, por
exemplo, o Estado não garante oportunidades equitativas de acesso à educação, então está a
promover a desigualdade social e consequentemente a contrariar uma autêntica política de
“reconhecimento”.
2.2. Um problema complexo
As lutas pelo reconhecimento, como defende Habermas, são fenómenos complexos
que envolvem o “feminismo, o multiculturalismo, o nacionalismo e a luta contra a herança
eurocêntrica do colonialismo” e que “não devem ser confundidos uns com os outros”
(1998:134). Há, inclusive, sociedades onde, o multiculturalismo não é um problema prioritário,
tal como é enfatizado por Taylor. Se a questão a que a teoria política tenta responder referindo-
se ao conceito de reconhecimento corresponde ao modo como as instituições políticas e
jurídicas das democracias liberais respondem às pretensões colocadas pelas minorias, há que
perceber, em cada caso (país ou cultura) quais as minorias (sexuais, religiosas, étnicas e
culturais) que se encontram em situação de “não reconhecimento” ou discriminação. No caso
de Portugal, por exemplo, que se reconhece como uma sociedade multicultural, as minorias
étnicas significativas são a comunidade cigana e cidadãos imigrantes provenientes das ex-
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colónias portuguesas, bem como de países de Leste. No entanto, há a considerar, nas políticas
de reconhecimento, em Portugal, também a comunidade gay, os deficientes, as religiões ou
expressões religiosas minoritárias que vêm com alguma dificuldade o reconhecimento social e
público da sua identidade e autonomia. Por outro lado, o problema pode colocar-se não apenas
do lado das “minorias” mas também das “maiorias”. Serão os pobres, por exemplo, uma
minoria? E poderemos falar, de acordo com o referido em 1. de um reconhecimento incorreto
desse grupo social, devido à sua condição económica frágil, que pode afetar negativamente ou
“ser uma forma de agressão” decorrente de desigualdades económicas e consequentemente
sociais?
2.3. Multiculturalismo é respeito pela diversidade
Taylor defende o igual respeito por todas as culturas. E é muito crítico relativamente
ao modo como supostamente os intelectuais (universitários) ocidentais avaliam e valorizam as
obras e criações de culturas minoritárias, dando o exemplo do modo com se define os currículos
de cursos universitários e obras de referência. A não inclusão ou consideração de obras nestes
currículos resulta para Taylor de “preconceitos e má vontade”, bem como “arrogância” e
“superioridade sobre povos antigamente subjugados” (1998:88). É provável que haja
circunstâncias em que se encontram motivos para tal imputação. No entanto, a não
consideração de obras de culturas não dominantes nos meios académicos ocidentais pode
resultar de outros fatores, tais como o hábito ou tradição cultural dos meios universitários e
não de menosprezo ou violento desrespeito dessas culturas. Susan Wolf (Taylor:1998) observa
que Taylor sugere que a política do reconhecimento exige que demos a todas as culturas a
presunção de que têm algo de importante a dizer a todos os seres humanos e que as estudemos
para perceber o que têm (ou não) de valioso, de distintivo (1998:98). Mas, afirma Susan Wolf,
a questão do Reconhecimento não é saber se uma pessoa ou grupo que não são reconhecidos
têm algo de importante a dizer a todos os seres humanos. O importante, defende Wolf, é que,
estando disponíveis elementos de cultura, tais como livros ou outras criações, e ao tomarmos
contacto com esses elementos disponíveis, reforcemos o reconhecimento das sociedades
ocidentais como sociedades multiculturais e o reconhecimento dos membros dessa
comunidade em toda a sua diversidade. Wolf considera que não há nada de errado em termos
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um interesse especial (em valorizarmos mais) por uma cultura que é a nossa, desde que sejamos
capazes de reconhecer quem somos como comunidade (1998:104).
2.4. O Reconhecimento da cidadania
A identidade de cada sujeito/grupo/cultura granjeia-se pelo reconhecimento correto
do outro. Deste modo, como acima referido, uma genuína política do reconhecimento implica
o respeito pelo seu valor intrínseco, contra uma atitude de dominação e até de discriminação.
Reconhecer o valor intrínseco do outro ou da outra cultura, inclui também a possibilidade de
lhe proporcionar a participação livre e coletiva na própria construção dessa sociedade, pois,
como defende Honneth (mas também Hegel), “a autonomia e a auto-realização só são possíveis
inter-subjectivamente” (Rosas, J.C. Thaler, M. e González, I. , 2012:190). Neste sentido, adquire
importância primordial o reconhecimento genuíno do outro como “cidadão”. Ser um cidadão
implica ter certos direitos e responsabilidades, mas estes variam imenso de país para país. Nos
contextos filosóficos, a cidadania refere-se a um ideal normativo substancial de pertença e
participação numa comunidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como
um membro pleno e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político
(Kymlicka, 1998). Admitindo a relevância da participação do cidadão na comunidade (mas
também a sua liberdade de não participação), cabe ao Estado, representado nas instituições
políticas (por exigência assertiva dos cidadãos) proporcionar todas as condições logísticas,
formais e informais para a participação política de todos. Não apenas a participação política
limitada à “cabine de voto” mas a participação ativa em decisões que afetam diretamente os
indivíduos.
Em “A Ética da Autenticidade” (2009), Charles Taylor fala das maleitas da era moderna
que denotam uma “perda ou declínio” na sociedade/civilização contemporânea. A primeira é o
“individualismo” porque, segundo Taylor, as pessoas apenas se concentram nas suas “vidas
individuais”, no seu “eu”, tornando a vida “pobre de sentido e menos atenta aos outros e à
sociedade” (2009:20). Este “egocentrismo anómalo e lamentável” tem tido consequências
nefastas para a sociedade, nomeadamente o fraco cuidado pelas coisas públicas e, por isso
pouca participação política ativa, porque as pessoas “preferirão ficar em casa a gozar os
prazeres da vida privada” (2009:24). A segunda maleita, segundo Taylor, é a “primazia da razão
instrumental” que define como “o tipo de racionalidade a que recorremos quando ponderamos
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a aplicação dos meios mais simples para chegar a um dado fim. A máxima eficiência, a melhor
‘ratio’ custo-produção, é a medida do sucesso”. Assim sendo, as decisões políticas que deveriam
ser tomadas à luz de outros critérios seguem muitas vezes cegamente a “razão instrumental”
através da valorização excessiva de aspetos económicos (o lucro, o mercado, a eficiência, etc…)
Este enfoque na razão instrumental e o individualismo que teve na sua origem a reivindicação
da liberdade individual, implica uma perda considerável de liberdade, tanto individual ou
coletiva. Por outro lado, há o risco de surgirem novos despotismos ou tiranias, encobertas por
mecanismos democráticos “mínimos” como as eleições, mas que deixam o cidadão
desprotegido e dominado por um “despotismo suave” (ibidem). Taylor antevê com
preocupação o “atomismo dos indivíduos absorvidos em si mesmos” referindo que “arriscamo-
nos a perder o controlo político do nosso destino (…) a nossa dignidade como cidadãos”. Embora
no ensaio “Multiculturalismo” Taylor não dê muito enfoque a esta questão, no entanto, ela tem
um papel relevante para a sociedade. Assim, à luz desta perspetiva, só a política do
reconhecimento igualitário permitirá que as sociedades superem o progressivo fortalecimento
da postura atomista e instrumental em relação aos outros e ao mundo e ultrapassar “a
crescente alienação dos eleitores em relação aos mecanismos próprios do processo
democrático” (Moreira, C., 2013:226), pois o funcionamento do mercado, o “excesso de
individualismo”, o Estado burocrático tendem a debilitar a participação democrática, com
prejuízos assinaláveis para a justiça social e a identidade autêntica de indivíduos e grupos.
Como bem reconhece Habermas, as discussões democráticas também proporcionam
aos cidadãos a oportunidade de esclarecerem «quais as tradições que querem perpetuar e quais
as que querem abandonar, como é que querem relacionar-se com a sua história, entre si, com
a natureza, etc…» (1998:12)
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12
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