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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MULHERES, AGROECOLOGIA E A TRAJETÓRIA DA ATER NO BRASIL
Liliam Telles1
Anajá de Oliveira Arantes2
Alair Ferreira de Freitas3
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a trajetória da Assistência Técnica e
Extensão Rural (Ater) no Brasil a partir de uma abordagem de gênero. O trabalho elabora uma
revisão crítica das ações voltadas às mulheres desde a Revolução Verde até a construção de uma
Ater setorial para as mulheres e a implementação da Lei 12.188 de 11 de janeiro de 2010 – a Lei de
Ater, dando visibilidade à articulação entre a agenda política mulheres rurais e da agroecologia
nesse processo. Para a elaboração do artigo foram analisados documentos sobre o marco legal da
Ater, relatórios e atas do grupo de trabalho operacional do Comitê de Ater CONDRAF e
documentos produzidos pela sociedade civil com reflexões, críticas e propostas para a Ater no
Brasil. Este material é complementado por registros pessoais da autora em observações realizadas
entre 2012 a 2015 em atividades do Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural da
Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Percebeu-se
com as análises que historicamente a Ater no Brasil reforçou o papel das mulheres no âmbito
doméstico, invisibilizando o trabalho na produção e a sua contribuição econômica para a agricultura
familiar. Entretanto, marcadamente a partir de 2003, a convergência das agendas políticas do
movimento feminista e agroecológico, somado à criação de novas institucionalidades no MDA e,
particularmente, o fortalecimento de um organismo de políticas para as mulheres, estimulou que
novas referências, voltadas à construção da autonomia pessoal, política e econômica das mulheres
rurais, tivessem visibilidade na Ater pública e fossem cada vez mais institucionalizadas no âmbito
do Estado.
Palavras-chave: Mulheres Rurais. Agroecologia. Políticas Públicas. Extensão Rural.
Introdução
De modo geral, a bibliografia em torno da análise da Assistência Técnica e Extensão Rural
(Ater) no Brasil se debruça sobre a operacionalização dos serviços e metodologias adotadas em
distintas realidades em contextos específicos ou nos aspectos institucionais que antecederam o novo
marco legal a partir de 2010. Poucos estudos (Caporal, 2011; Diesel et al., 2015; Diniz, Tavares e
Almeida, 2011) se concentram na descrição ou análise das mudanças institucionais ocorridas no
período pós 2010, seus efeitos sobre a contratação dos serviços de Ater ou, em relação à
incorporação da agroecologia e ações afirmativas para a ampliação do acesso das mulheres à Ater.
1 Mestranda, Universidade Federal de Viçosa/MG, Brasil. Contato: [email protected]. 2 Mestranda, Universidade Federal de Viçosa/MG, Brasil. Contato: [email protected]. 3 Professor do Depto. de Economia Rural, Universidade Federal de Viçosa/MG, Brasil. Contato:
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O presente artigo buscar revisar os principais aspectos da trajetória da Ater no Brasil, que
possibilitaram ou limitaram o acesso das mulheres, até o momento recente, tendo como o foco
principal as mudanças ocorridas desde o lançamento da Política Nacional de Ater (PNATER) em
2004 até a sua instituição pela Lei N° 12.188 de janeiro de 2010 e seus desdobramentos. Para isso
está dividido em quatro partes: esta introdução; a abordagem voltada às mulheres na trajetória da
Ater até a implementação de uma Ater Setorial para as Mulheres; a incidência das mulheres a partir
do novo marco legal, pós Lei de Ater em 2010 e as considerações finais. Ao longo de todo o texto
será demarcada a evolução das interfaces entre a pauta das mulheres rurais e a agroecologia, como
parte do processo de construção de convergências e de negociação da política pública.
Para a elaboração do artigo foram analisados os documentos sobre o marco legal da Ater,
relatórios e atas dos espaços de controle social (Grupo de Trabalho Operacional – GTO – e Comitê
de Ater do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável – CONDRAF) e documentos
produzidos pela sociedade civil com reflexões, críticas e propostas para o aprimoramento da
execução da Ater no Brasil. Além disso, a autora lançou mão de anotações e observações realizadas
entre 2012 a 2015, período em que atuou como consultora do Departamento de Assistência Técnica
e Extensão Rural (DATER) vinculado à Secretaria de Agricultura Familiar (SAF) do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA). Neste período a autora acompanhou diretamente o processo de
negociação e elaboração das chamadas públicas No 12 e 13/2013 (Ater Agroecologia), que
expressam avanços para ampliar o acesso das mulheres à Ater pública e agroecológica.
Da Revolução Verde à Construção de uma Ater Setorial para Mulheres
A história da Ater no Brasil está relacionada à origem das iniciativas implementadas nos
Estados Unidos no início do século XX, para assegurar a mudança do modelo agrícola escravista
para um modelo mercantil e capitalista, que acompanhasse as transformações ocorridas com a
ascensão do capitalismo e o processo de industrialização do país. Desde a criação dos serviços de
Ater no Brasil em 1948, a proposta de trabalho da extensão rural teve a propriedade e a família rural
como unidades de ação, conforme ilustra a passagem seguinte, de Fonseca (1985, p. 91):
A base material da ação educativa da extensão era a empresa familiar. A família rural era a
unidade sociológica sobre a qual os projetos de ensinar a “ajudar a si mesmos” (e por isso
eram entendidos como democráticos) deveriam surtir efeitos. O importante era persuadir
cada um dos componentes familiares – o chefe de família (o agricultor), a dona de casa e os
filhos – a usarem recursos técnicos na produção para conseguirem uma maior produtividade
e consequentemente o bem estar social. A sociedade parecia estar formada de pequenos
núcleos sociais, cuja base era a família (FONSECA, 1985, p. 91).
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Ainda que nessa trajetória o foco da Ater tenha sofrido algumas mudanças – já bastante
registradas na literatura sobre o tema – no sentido de adequar o investimento público às exigências
de modernização do país, dois eixos permaneceram como estruturantes da ação extensionista: a
vertente da produção agrícola e a da economia doméstica. A primeira tinha como objetivo aumentar
a produtividade das lavouras por meio da adoção do pacote tecnológico da Revolução Verde –
sementes, adubos, agrotóxicos e máquinas/equipamentos – e contou ao longo do tempo com
recursos disponibilizados pelo governo federal: do Crédito Rural Supervisionado na década de 1940
(BRASIL, 2008) ao PRONAF nos dias de hoje. A vertente da economia doméstica era direcionada
às mulheres rurais, com foco no cuidado com a casa e a família, para a garantia do bem-estar social.
Esta tendência teve uma implicação profunda ao reforçar o papel social das mulheres no âmbito
doméstico. A visão da família como unidade harmônica predomina nas ações de Ater até os dias
atuais e resultou, historicamente, na exclusão sistemática das demandas das mulheres e na
invisibilidade do trabalho desenvolvido por elas na unidade de produção.
Já na década de 1990, com o aprofundamento da crise econômica do Estado brasileiro e da
implementação de uma clara política de cunho neoliberal, os serviços de Ater no país são
desestruturados. Nesta trajetória, é apenas em 2003, com o início do governo de Luiz Inácio Lula da
Silva, que ganha força a construção de uma proposta de reestruturação dos serviços de Ater no
Brasil, com a participação de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e prestadoras
oficiais de Ater pública. Os processos de mobilização e reivindicação da sociedade civil organizada
foram determinantes para construir um terreno fértil às propostas de reestruturação da Ater no
Brasil e para a consolidação de uma Ater setorial para as mulheres.
Neste percurso, a ação articulada das mulheres rurais no Brasil se expressou no ano 2000, na
primeira Marcha das Margaridas, que propunha um novo processo organizativo e uma nova
estratégia de ação coletiva, com reivindicações por políticas públicas e pela garantia de direitos
sociais, previstos na constituição cidadã de 1988, para as trabalhadoras rurais. Este foi um momento
de convergência importante de mulheres de diferentes setores do movimento sindical e dos
movimentos sociais na luta por direitos. A Marcha das Margaridas se constituiu num embrião para a
articulação entre as agendas de luta das mulheres rurais e da agroecologia no Brasil, incorporando
em sua primeira pauta de reivindicações a proposição de programas de combate ao uso de
agrotóxicos, a moratória aos transgênicos e o acesso a tecnologias ecologicamente sustentáveis para
a produção. A interlocução entre as agendas políticas das mulheres e da agroecologia se fortalece no
marco da constituição da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) no Brasil, no ano de 2002,
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após a realização do primeiro Encontro Nacional de Agroecologia (ENA). Este evidenciou a
diversidade de atores e sujeitos políticos que tinham a agroecologia no centro de suas agendas de
luta e culminou com a apresentação de uma série de propostas aos candidatos às eleições
presidenciais, incluindo propostas das mulheres por uma Ater específica.
Neste contexto, de crescente expressão das mulheres rurais como sujeito político, a criação
de novas institucionalidades no governo federal voltadas às políticas para as mulheres ou a sua
reorientação, foram marcadamente importantes. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SPM) – criada em 2002, ligada ao Ministério da Justiça – a partir de 2003 passa a ter status de
ministério e vincula-se diretamente à presidência da república (BUTTO E LEITE, 2010). No
interior do MDA ocorreram mudanças, de modo a criar as condições para implementação de
políticas setoriais, articuladas com as ações previstas no PNPM. A partir de 2003, o Programa de
Promoção de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia (PPIGRE), criado em 2001, sofre mudanças
significativas no foco de seu trabalho. A elaboração de uma política integral para as mulheres
rurais, capaz de alterar a divisão sexual do trabalho e criar condições para uma maior autonomia
econômica, passa a ser a agenda de trabalho do PPIGRE (BUTTO E LEITE, 2010).
Cintrão e Siliprandi (2011, p. 188) registram que no período de 2003 a 2009, as ações de
gênero no MDA foram coordenadas pelo PPIGRE, “que centrou sua atuação na revisão da
legislação e dos mecanismos regulatórios dos programas existentes, com vistas a um melhor
atendimento das demandas das mulheres”. Internamente, foram objeto das ações do PPIGRE as
políticas de acesso à terra, à documentação, ATER e Crédito (BRASIL, 2007).
No ano de 2004, no âmbito da sociedade civil, é constituído o Grupo de Trabalho de
Mulheres da ANA (GT Mulheres) como um ator político e um espaço de convergência das pautas
das mulheres dos diferentes movimentos e setores na interface com a agroecologia, a exemplo do
movimento sindical rural, dos movimentos de luta pela terra e pela reforma agrária e do movimento
feminista. No início deste ano é constituído no MDA, no âmbito da SAF, o DATER. A PNATER é
instituída a partir de um intenso diálogo com a sociedade civil e movimentos sociais. Uma ação
coordenada entre a equipe do PPIGRE e os movimentos sociais e de mulheres possibilitou
incorporar a questão da igualdade de gênero e da agroecologia entre seus princípios, diretrizes,
objetivos e orientações estratégicas. (BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2004).
Ainda em 2004, como parte do processo de construção da PNATER e do Programa Nacional
de Assistência Técnica e Extensão Rural (PRONATER), o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) retoma a estruturação dos serviços de Ater nos assentamentos, por meio
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do Programa de Assessoria Técnica Social e Ambiental à Reforma Agrária (Ates). Neste processo,
diversas oficinas regionais foram realizadas com as mulheres assentadas para avaliar o programa, o
que resultou na proposição de ajustes tanto nas normas como no seu manual operativo. Tais
alterações foram implementadas posteriormente pelo INCRA para a oferta de serviços de assessoria
técnica visando à promoção da autonomia econômica das mulheres e o reconhecimento de seu
protagonismo nos processos de produção e transição agroecológica (BUTTO e HORA, 2008b).
Neste esforço de proposição de ações afirmativas para superar as desigualdades de gênero
pelo MDA e INCRA a Ater era vista como um eixo central e, para ampliar o seu acesso pelas
mulheres, as principais estratégias adotadas pelo PPIGRE foram: a formação de agentes de
Ater/Ates, a articulação com o Programa de Organização Produtiva das Mulheres Rurais (POPMR)
e o apoio à projetos de Ater específicos para as mulheres (BUTTO e HORA, 2008a). O POPMR foi
instituído pela Portaria Interministerial Nº 02 de 24 de setembro de 2008 e seu comitê gestor
nacional era composto por mulheres de diferentes movimentos sociais e sindicais, incluindo uma
representação do GT Mulheres da ANA. As principais ações previstas no POPMR foram: o
mapeamento de grupos produtivos de mulheres; atividades de formação em políticas públicas;
articulação institucional com programas e projetos de apoio à comercialização, como o PAA e
PNAE; e oferta de financiamento para gestão, agregação de valor e comercialização (BUTTO e
HORA, 2008a).
Em 2009 o PPIGRE é transformado em Assessoria Especial de Gênero, Raça e Etnia
(AEGRE), vinculada ao gabinete do ministro e em 2010 a AEGRE é transformada em Diretoria de
Política para as Mulheres Rurais e Quilombolas (DPMRQ), por meio do Decreto Nº 7.255, de 4 de
agosto, vinculada à secretaria executiva do MDA. No período de 2004 a 2010 o MDA direcionou
recursos para a organização de um serviço de Ater setorial, por meio das chamadas públicas de Ater
para mulheres, coordenadas a partir de 2010 pela DPMRQ. Além da Ater Setorial, a DPMRQ em
diálogo com a SAF, também incluiu dentre as metas obrigatórias, ações de apoio à organização
produtiva de mulheres rurais nos convênios e contratos celebrados com as redes nacionais e
regionais de assistência técnica no país (BUTTO e LEITE, 2010). Tais ações foram de fundamental
importância para promover a inclusão produtiva das mulheres e a sua autonomia econômica, na
medida em que contribuíram para o reconhecimento e valorização do trabalho desenvolvido por
elas na produção, beneficiamento e comercialização dos produtos da agricultura familiar.
No ano de 2010 também foi promulgada a Lei No 12.188 de 11 de janeiro, instituindo
efetivamente a PNATER e o PRONATER. Em 15 de junho do mesmo ano foi, então, publicado o
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Decreto No 7.215 que dispõe sobre o PRONATER e regulamenta a contratação dos serviços de Ater
no país, que passa a ser realizada por meio de chamada pública com dispensa de licitação. As
mudanças no marco legal implicaram em novos desafios para a garantia do atendimento às
mulheres rurais e a incorporação do enfoque agroecológico pelos serviços de Ater, que serão
abordados na seção seguinte.
O novo marco legal da Ater no Brasil e a incidência das mulheres rurais
No caminho inverso da construção da PNATER em 2003 e 2004, pode-se afirmar que a
institucionalização da política de Ater em lei federal em 2010, se deu a partir de um processo
contraditório e com pouco diálogo com a sociedade civil, conforme cita Caporal (2011). Essa
situação se expressou inclusive nos debates da instância máxima de controle social de políticas
públicas para a agricultura familiar, o CONDRAF, cujos membros da sociedade civil apontavam as
dificuldades para incidir mais qualificadamente sobre o processo de ajustes ao Projeto de Lei Nº
5.665/2009, posteriormente transformado na Lei Nº 12.188 (Lei de Ater), sancionada pelo
Presidente da República em 11 de janeiro de 2010.
O novo marco legal impõe alterações nos procedimentos para a contratação de serviços de
Ater, que passam a ser contratados por meio de chamada pública, com dispensa de licitação, e a
serem considerados como serviços continuados, baseados em demandas sociais. Esta mudança, por
si só, teve impactos significativos nas ações da SAF/DATER e da DPMRQ, exigindo, em primeira
instância, a criação de instrumentos e metodologias capazes de qualificar as demandas sociais para
subsidiar a elaboração de chamadas públicas de Ater.
Nesse período, visando superar os obstáculos que ainda dificultavam o acesso das mulheres
rurais às políticas públicas, a DPMRQ firma convênio com duas organizações sociais de base
feminista e agroecológica: a Sempreviva Organização Feminista (SOF) e o Centro Feminista 8 de
Março (CF8) para o desenvolvimento de um projeto, integrado por um conjunto de atividades de
formação e articulação, em 86 Territórios da Cidadania no Brasil (BUTTO et al., 2014). Por meio
deste projeto foram realizadas oficinas territoriais e seminários estaduais para captar e qualificar as
demandas das mulheres para uma Ater específica, que subsidiaram a elaboração das primeiras
chamadas públicas de Ater para as mulheres. Esta foi uma contribuição metodológica importante
para o processo de qualificação das demandas sociais para a elaboração das chamadas públicas.
Esta etapa de qualificação das demandas, no entanto, ainda permanece como um entrave para a
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execução de serviços de Ater de qualidade, especialmente se consideramos as especificidades de
distintos públicos como as mulheres, jovens, indígenas e povos e comunidades tradicionais.
Ainda assim, após a promulgação da Lei de Ater, a contratação e a gestão dos serviços
evoluiu ano-a-ano, em termos da execução física e financeira. Ampliou-se a quantidade e a
diversidade do público da agricultura familiar acessando tais serviços, incluindo as mulheres,
conforme consta no documento de referência da 2ª Conferência Nacional de Ater (CNATER):
Ao longo dos três anos após a 1ª CNATER, observa-se que os recursos do Governo Federal
para a ATER aumentaram substancialmente. De 2010 até 2014, o DATER/SAF aplicou 1
bilhão e 180 milhões reais em ATER, beneficiando diretamente 565.866 famílias e 556
organizações da agricultura familiar. [...] No período de 2011 a 2014, o INCRA alocou 1
bilhão e 65 milhões de reais em serviços de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à
Reforma Agrária (ATES), beneficiando 401.300 famílias, que representam 41% das
famílias assentadas pela reforma agrária. [...] Existe, ainda, a chamada pública de ATER
para mulheres, que foi instituída a fim de fortalecer a autonomia econômica das mulheres e
reconhecer seu papel como agricultoras. Um de seus grandes diferenciais como ATER
específica é a oferta de recreação infantil, que possibilita que a mulher participe com
qualidade das atividades. Desde 2004, aproximadamente 60 mil mulheres foram atendidas
pela ATER mulheres (BRASIL, 2015, p.7).
Como pode ser observado acima, a ação de ATER Setorial para Mulheres implementada
pela DPMRQ/MDA teve papel fundamental para a garantia do acesso das mulheres à ATER. Uma
das inovações da Ater Setorial para Mulheres, posteriormente incorporada às demais chamadas
públicas, foi a garantia de atividades de recreação infantil, contribuindo para a participação efetiva
das mulheres nas ações de assessoria técnica. No entanto, se por um lado havia a constatação de que
era necessário avançar com ações afirmativas para a igualdade de gênero, por outro, a
implementação das chamadas públicas de Ater demonstrou que problemas operacionais para a
gestão e execução dos contratos e para o atendimento específico às mulheres tornaram-se cada vez
mais evidentes. A concepção da família como unidade de atendimento, que predominava na maioria
das chamadas de Ater mistas, era – e continua sendo – estruturante de uma série de dificuldades
para o acesso das mulheres a Ater específica.
As chamadas públicas de Ater para Mulheres também foram alvo de críticas pelas
organizações da sociedade civil, direcionadas num primeiro momento ao reduzido número de
mulheres atendidas em todo país e sua limitação aos Territórios da Cidadania. Críticas também
foram feitas ao fato da chamada não prever recursos para as atividades de emissão da Declaração de
Aptidão ao PRONAF (DAP), já que boa parte das mulheres ainda não tinha acesso a esse
documento. Associado a isso, o curto prazo de execução da chamada, de apenas um ano, dificultava
o atendimento às agricultoras de modo geral e, em particular, àquelas sem DAP, devido às
difculdades para a sua emissão.
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Do ponto de vista metodológico, também foram apontadas críticas ao fato de que a chamada
pública de Ater para mulheres – assim como as demais chamadas lançadas pelo MDA e outros
ministérios – reforçava o atendimento individual, em detrimento do atendimento coletivo, praticado
por boa parte das organizações como estratégia metodológica para a transição agroecológica. Além
disso, a exigência da realização de atividades obrigatórias como o diagnóstico, atividades de
formação com temas específicos e a elaboração de projetos de crédito e de acesso ao PAA e/ou
PNAE, embora carregadas da intencionalidade de garantir o atendimento às demandas das mulheres
e de viabilizar a sua organização produtiva, acabavam engessando a execução por parte das
organizações e, em alguns casos, impondo um ritmo de atividades que não coincidiam com as
demandas apresentadas pelas agricultoras.
Apesar disso, de modo geral havia um consenso de que as chamadas de Ater para mulheres
possibilitaram dar visibilidade à contribuição econômica das mulheres rurais e, além disso,
mobilizar as expertises acumuladas pelas organizações feministas e autônomas de mulheres na
execução da assessoria técnica com enfoque agroecológico, influenciando outras organizações
mistas na execução dos serviços de Ater. Ao mesmo tempo, geraram reflexões no âmbito nacional –
no Comitê Gestor do POPMR, na ANA, no Comitê de Ater do CONDRAF, na Coordenação da
Marcha das Margaridas etc – que influenciaram o delineamento das políticas públicas no âmbito do
governo federal, a exemplo das mudanças propostas pela sociedade civil e incorporadas nas
chamadas públicas de Ater Agroecologia No 12 e 13/2013. Neste processo de negociação das
políticas públicas, a reivindicação pela ampliação da Ater setorial para mulheres foi incorporada
como uma das ações previstas no I Pano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
(PLANAPO), lançado em 2013.
Nesta trajetória, é importante destacar, que a proposição de ações afirmativas para a
igualdade de gênero na Ater reforçou e foi reforçada pelo vínculo com a pauta da agroecologia,
especialmente reivindicado pelas organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Ou seja, a
Ater que se propunha para as mulheres – e para o público geral – deveria ser centrada na construção
da autonomia econômica, pessoal e política das mulheres e na transição a sistemas de produção
mais sustentáveis, baseados nos princípios da agroecologia, em consonância com a PNATER.
Ao longo de sua execução, as chamadas públicas foram adequadas, a partir do diálogo com
a sociedade civil em instâncias criadas para esta finalidade após a 1ª Conferência Nacional de Ater
(CNATER). A chamada pública de Ater Agroecologia, lançada em 2013, é considerada ainda hoje,
a que mais avanços incorporou para o atendimento às mulheres. Dados do Sistema Informatizado de
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Ater de 2015 evidenciam que do total de cerca de 28.500 beneficiários da Ater Agroecologia, 73%
eram mulheres (CALAÇA, 2017).
O Grupo de Trabalho Operacional (GTO) do Comitê de Ater do CONDRAF, criado após a
1ª CNATER e do qual também participavam mulheres de organizações mistas e autônomas
articuladas no GT Mulheres da ANA, propôs uma série de adequações para que a Ater efetivamente
contribuísse para a construção da autonomia das mulheres rurais e para a transição agroecológica.
Neste processo, recuperou-se a proposta deliberada na 2ª Conferência Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CNDRSS), realizada em 2013, de garantir o
atendimento a, pelo menos, 50% de mulheres nos serviços de Ater, incorporando-a na chamada de
Ater Agroecologia. Além disso, foram apresentadas duas novas propostas: a obrigatoriedade de
investimento de pelo menos 30% dos recursos em atividades específicas para as mulheres e a
contratação de, pelo menos, 30% de mulheres nas equipes técnicas.
Outra contribuição importante para garantir assessoria técnica qualificada às mulheres foi
incorporar o instrumento de Caracterização dos Agroecossistemas (CA) em substituição aos longos
questionários de caracterização das Unidades Familiares de Produção (UFPs) adotados nas
chamadas públicas de Ater anteriores. À luz das contribuições teóricas da economia feminista, foi
proposta a adoção do quadro de uso dos tempos como parte da metodologia de CA, também
definida no âmbito do GTO. Este quadro consiste em levantar, junto aos diferentes membros da
família, os tempos gastos com o trabalho doméstico e de cuidados, com a produção, a participação
cidadã e com o lazer. Conforme afirma Teixeira (2014), a análise feminista contribui para “[...]
discutir em outros termos as políticas públicas e de modificar a perspectiva de análise; ela
reconhece e dá valor ao trabalho não remunerado, realizado tradicionalmente pelas mulheres e cujo
objetivo direto é o cuidado da vida humana”. Deste modo, ao mesmo tempo em que possibilita uma
reflexão sobre a divisão sexual do trabalho no âmbito da família, permite às/aos técnicas/os
compreender a sobrecarga de trabalho a que as mulheres estão submetidas para planejar as
atividades de assessoria, visando transformar essa realidade.
Outras ações de incidência das mulheres estavam em curso, especialmente após a criação da
Agência Nacional de Ater e na construção da Marcha das Margaridas em 2015. No entanto, essa
trajetória de formulação e implementação de ações afirmativas voltadas à construção da autonomia
das mulheres rurais e da promoção da agroecologia foi interrompida com a crise política e
econômica que culminou com o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016. Apesar disso,
tais experiências demonstram a importância da implementação de uma Ater Setorial para as
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mulheres com enfoque agroecológico e ao mesmo tempo, da ampliação do acesso das mulheres à
Ater mista, como estratégias centrais para a superação das desigualdades de gênero.
Considerações Finais
A análise da trajetória dos serviços de Ater no Brasil demonstra como, ao longo de tempo, o
Estado contribuiu para reforçar o papel das mulheres na esfera doméstica e desconsiderou o papel
econômico e produtivo das mulheres, ao ter como foco da assessoria técnica o cuidado com a casa e
a família. Neste percurso também ficou evidente a interface entre a agenda política das mulheres
rurais no Brasil e a pauta da agroecologia, a partir da reivindicação de uma ação estatal que
promova, ao mesmo tempo, uma Ater setorial para as mulheres e uma Ater mista com o
atendimento a, pelo menos, 50% de mulheres, ambas voltadas à transição agroecológica.
A partir de 2003, a ampliação do acesso das mulheres a Ater só foi possível devido a dois
fatores principais: a existência de um organismo de políticas para as mulheres no MDA com uma
política marcadamente voltada à construção da autonomia econômica; e a participação articulada
das mulheres dos movimentos sociais e organizações em processos de formulação e controle social
de políticas públicas no Brasil. As experiências construídas demonstram a importância da
ampliação do acesso das mulheres a uma Ater específica e voltada à transição agroecológica, para a
superação das desigualdades de gênero no campo.
Referências
BRASIL, Política Nacional de Ater. Ministério do Desenvolvimento Agrário, Brasília, DF, 22 p,
2004.
BRASIL. Congresso Nacional. Lei No 12.188 de 11 de janeiro de 2010. Institui a Política Nacional
de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária - PNATER
e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na
Reforma Agrária - PRONATER, altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 2010. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12188.htm>. Acesso em: 22 mai.
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BRASIL. Decreto No 7.215 de 15 de junho de 2010. Regulamenta a Lei no 12.188, de 11 de janeiro
de 2010, para dispor sobre o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na
Agricultura Familiar e na Reforma Agrária - PRONATER. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
16 jun. 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Decreto/D7215.htm>. Acesso em: 22 mai. 2016.
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BRASIL. Decreto No 7.255 de 04 de agosto de 2010. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro
Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas do Ministério do
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Women, agroecology and Ater's trajectory in brazil
Astract: This article aims to analyze the trajectory of Technical Assistance and Rural Extension
(Ater) in Brazil from a gender approach. The paper elaborates a critical review of the actions
directed at women from the Green Revolution to the construction of a sectorial Ater for women and
the implementation of Law 12.188 of January 11, 2010 - the Ater Law, giving visibility to the
articulation between the political agendas of rural women's and agroecology in this process. For the
preparation of the article, documents were analyzed on Ater's legal framework, reports and minutes
of the Ater CONDRAF Committee working group and documents produced by civil society with
reflections, criticisms and proposals for Ater in Brazil. This material is complemented by the
author's personal records in observations made between 2012 to 2015 in activities of the Technical
Assistance and Extension Department of the Department of Family Agriculture of the Ministry of
Agrarian Development (MDA). It was noticed with the analyzes that historically Ater in Brazil
reinforced the role of women in the domestic scope, making invisible the work in the production
and its economic contribution to the familiar agriculture. However, markedly since 2003, the
convergence of the political agendas of the feminist and agroecological movements, coupled with
the creation of new institutions in the MDA and, particularly, the strengthening of a women's policy
organisms, has stimulated new references to construction of the personal, political and economic
autonomy of the rural women, had visibility in the public Ater and were increasingly
institutionalized within the State.
Keywords: Women. Agroecology. Gender. Public Policy. Rural Extension
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