MORTE E RENASCIMENTO NO HINDUÍSMO* por Lokasaksi Dasa
asato mā sad gamaya
tamaso mā jyotir gamaya
mṛtyor mā ‘mṛtam gamaya
"Do irreal conduz-me ao real.
Das trevas conduz-me à luz.
Da morte conduz-me à imortalidade".
(Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, 1.3.28).
Esta prece dos Vedas proclama o desejo humano de viver plenamente o real, de ter a
consciência iluminada e de sobreviver eternamente, conquistando a morte. Certa
ocasião,Yudhisthira Mahārāja, um grande rei sábio, foi questionado por Yama, a personificação
da morte, para responder à seguinte pergunta, “Qual é coisa mais maravilhosa deste mundo?”
Ao que Yudhisthira respondeu prontamente:
ahany ahani bhūtani gacchantīha yamālayam
eṣā sthāvaram icchanti kim ācaryam ataḥ para
“Todo dia centenas e milhões de entidades vivas entram no reino da morte. Mesmo assim, as
que ficam aspiram por uma situação permanente. O que poderia ser mais maravilhoso que
isto?” (Mahābhārata,Vaṇa-parva, 313.116).
Na milenar tradição védica, mais conhecida hoje como Hinduísmo, este inconformismo com a
morte sempre foi visto como uma indicação da eternidade da alma. Em nosso inconsciente,
não podemos aceitar a morte, pois intuímos o fato da nossa imortalidade. Ninguém aceita
facilmente a realidade da morte, porque o que morre de fato é o corpo temporário e não a alma
eterna.
Mas, eventualmente, todos temos de confrontar a morte. Para os seguidores da tradição
védica, isso não é algo para ser temido. Sabemos que já nascemos e morremos várias vezes.
O karma e a transmigração da alma fazem o inevitável parecer algo natural, pois morrer é
como adormecer, e nascer é como despertar do sono. Algo tão simples. Os que têm sabedoria
falam da morte alegremente, como se fosse a libertação de um cativeiro, a volta ao lar, o
retorno à nossa origem.
As escrituras védicas declaram que a alma é imortal: ajo nityaḥ śāśvato’ yam, “a alma é não-
nascida, eterna e sempre existente” (Bhagavad-gītā, 2.20). Ainda assim, sofremos, pois este é
o preço do apego ao corpo material e às coisas não permanentes. Com conhecimento, deve-se
questionar, discriminar e encontrar a compreensão que torne a morte aceitável. Assim, a morte
consciente, como uma exaltada e potente experiência pessoal, pode dar sentido à vida e levar
ao autoconhecimento.
O ser eterno e a morte do corpo
Segundo Śrīla A. C. Bhaktivedānda Swami Prabhupāda, compreender nossa identidade como
algo à parte do corpo é o primeiro passo no auto realização. Compreender que “eu não sou
este corpo, mas sim uma alma espiritual” é uma realização essencial para qualquer pessoa que
deseja transcender a morte e entrar no mundo espiritual que está mais além [1].
Essa é preocupação de todos os místicos, seja no Ocidente, seja no Oriente. Por exemplo, Sri
Ramana Maharshi, quando ainda adolescente, foi tomado pelo pensamento de sua morte
iminente – o medo existencial do não-ser. Em vez de ser dominado pelo medo da morte, ele
aceitou a possibilidade da morte e começou a indagar sobre o mistério da vida, utilizando o
método muito simples chamado ātma-vicārana, auto indagação ou indagação pelo ātman (o Si-
mesmo), que consistia em fazer para si mesmo uma única e constante pergunta: ko’
ham [2], “quem sou eu”[3]?
Mas, embora possa-se compreender teoricamente que não somos esses corpos, mas o si-
mesmo, que é consciente do corpo, ainda assim todos se identificam com a vestimenta
corpórea. A tradição védica busca, portanto, na experiência prática, estruturar a vida da
pessoa, por meio de vários caminhos (mārgas), para que ela possa realizar a sua posição
constitucional como alma espiritual (ātman).
No Oriente, entretanto, há outras opiniões sobre a natureza da alma. No Budismo, por
exemplo, não temos a crença em uma entidade permanente, em uma alma ou ātmā, que seria
o sujeito da morte e do renascimento. Isso tem sido tema de debates intensos, pois o Budismo
sustenta adoutrina do anattā ou anātmavāda, a “não-alma”.
Diferentemente dos seguidores da cultura védica,que acreditam no “ser”, na “condição de isto”
(tat-tva), os budistas acreditam no “tornar-se”, na “condição de assim” (tathā-tā). Dessa forma,
no Budismo não há ator além da ação, nem perceptor além da percepção. Em outras palavras,
não há um sujeito consciente por detrás da consciência. Isto,em resumo, leva ao conceito de
ação (karma) sem ator (kartā). Então, em última instância, não pode haver transmigração ou
renascimento da alma, mas apenas um processo de transformação perpétua dos agregados
(skandhas), compostos da forma, percepção, consciência, ação e conhecimento, que
manifestam os sintomas do que conhecemos por vida.
Mas, no conhecimento védico, a vida não é vista apenas como mero sintoma de condições que
a torna possível, mas sim, decorrente da presença da própria alma espiritual. Para eles,
acreditar no karma sem aceitar os conceitos da alma individual (jīvātmā) e seu renascimento
(punar-janma) é algo desconcertante.
Śrī Kṛṣṇa estabelece, na Bhagavad-gītā, inequivocamente a imortalidade da alma, quando
declara, para seu amigo e discípulo Arjuna que:
na tu evāham jātu nāsam na tvam neme janādhipāḥ
na caiva na bhaviṣyāmaḥ sarve vayam ataḥ param,
“Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem tu, nem todos esses reis; e no futuro
nenhum de nós deixará de existir” (Bhagavad-gītā,2.12).
avināṣi tu tad viddhi yena sarvam idaṁ tatam
vināśam avyayasyāsya na ka cit kartum arhati
“Deves saber que aquilo que penetra o corpo inteiro é indestrutível. Ninguém é capaz de
destruir a alma imperecível” (Bhagavad-gītā,2.17).
Não é possível entender os conceitos da morte e o renascimento do Hinduísmo, sem saber a
diferença entre a alma permanente (ātmā) e o corpo material temporário. A Bhagavad-
gītā explica a natureza da alma com a seguinte analogia:
yathā prakā ayaty ekaḥ kṛtsnaṁ lokam imaṁ raviḥ
kṣetraṁ kṣetrī tathā kṛtsnaṁ prakāśayati bhārata
“Assim como o Sol ilumina sozinho todo esse Universo, do mesmo modo, a entidade viva,
sozinha dentro do corpo, ilumina o corpo inteiro através da consciência” (Bhagavad-gītā,
13.34).
A consciência evidencia concretamente a presença da alma dentro do corpo. Num dia nublado,
o Sol pode não estar visível, mas sabemos que ele está lá no céu, através da presença da luz
solar. Analogamente, podemos não ser capazes de perceber diretamente a alma, mas
podemos concluir que ela existe pela presença da consciência. Na ausência da consciência, o
corpo é simplesmente um monte de matéria morta. Somente a presença da consciência faz
com que esse monte de matéria morta possa respirar, falar, amar e temer.
Essencialmente, o corpo é um veículo para a alma,por meio do qual ela pode satisfazer seus
desejos. A alma dentro do corpo está“sentada em uma máquina feita de energia material
[yantrārūḍhāni māyayā]”(Bhagavad-gītā, 18.61). Ela se identifica falsamente com o
corpo,transportando suas diferentes concepções da vida de um corpo para outro, assim como o
ar transporta os aromas. Do mesmo modo, como um automóvel não pode funcionar sem o
motorista, igualmente, o corpo material não pode funcionar sema presença da alma.
A Bhāgavad-gītā explica claramente a diferença entre o que é real e o que é irreal: nāsato
vidyate bhāvonā bhāvo vidyate sataḥ , “não há continuidade para o inexistente, nem cessação
para o existente” (Bhagavad-gītā 2.16).
O corpo material vem a existir em certo momento, cresce, amadurece, gera subprodutos
(filhos) e gradualmente degenera e morre. O corpo físico, neste sentido, é irreal, pois ele
desaparecerá no devido tempo. Mas, apesar de todas as mudanças do corpo material, a
consciência, o sintoma da alma que está dentro, permanece imutável. Conclui-se, portanto, que
a consciência possui a qualidade inata de permanência, que lhe permite sobreviver às
mudanças e destruição do corpo. Sri Krishna afirma: na jāyatemriyate vā kadācin, “para a alma
nunca há nascimento nem morte...”; na hanyate hanyamāne śarīre, “ela não é aniquilada
quando o corpo é aniquilado” (Bhagavad-gītā, 2.20).
Mas, se a alma “não é aniquilada quando o corpo é aniquilado”, então o que acontece com ela?
Segundo a Bhagavad-gītā, ela entra em outro corpo:
dehino ‘smin yathā dehe kaumāram yauvanaṁ jarā
tathā dehāntara-prāptir dhīras tatra na muhyati
“Assim como, neste corpo, a alma corporificada seguidamente passa da infância à juventude e
à velhice, do mesmo modo,chegando a morte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoa
ponderada não fica confusa com essa mudança” (Bhagavad-gītā, 2.13).
vāsāṁsi jīrṇāni yathā vihāya navāni gṛhṇāti naro‘parāṇi
tathā śarīrāṇi vihāya jīrṇāny anyāni saṁyāti navānidehī
“Da mesma forma que alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita
novos corpos materiais, abandonando os velhos e inúteis” (Bhagavad-gītā, 2.22).
Dessa forma, a alma permanece enredada no samsara, o ciclo interminável de nascimentos e
mortes, pois, jātasya hi dhruvo mṛtyurdhruvaṁ janma-mṛtasya ca, “Para aquele que nasceu, a
morte é certa; e para aquele que morreu, o nascimento é certo” (Bhagavad-gītā, 2.27).
As entidades vivas nascem perpetuamente em várias espécies de vida, de acordo com a
natureza de seus desejos, pois, segundo a Bhagavad-gītā:
yaṁ vāpi smaraṁ bhāvaṁ tyajaty ante kalevaram
taṁ taṁ evaiti kaunteya sadā tad-bhāva-bhāvitaḥ
“Qualquer que seja o estado de existência de que alguém se lembre ao deixar o corpo, esse
mesmo estado ele alcançará impreterivelmente” (Bhagavad-gītā, 8.6).
Tudo o que pensamos e fazemos durante nossa vida deixa uma impressão na mente, e a soma
total de todas essas impressões influencia nossos pensamentos finais na hora da morte.
Estas influências são causadas pelos gunas, “cordas” ou modos da Natureza material. Eles
são as três polaridades ou qualidades básicas constitutivas da Natureza material, assim como
a luz branca constitui-se de três cores básicas. Os gunas são: rajas -paixão, atividade ou
expansão; tamas - ignorância, inação ou escuridão; e sattva - bondade, harmonia ou
luz. Sattva conduz para cima, rajas mantém no meio, tamas leva para baixo.
A Bhagavad-gītā esclarece que estas qualidades da natureza material funcionam sob o
controle divino e prendem as almas neste mundo: daivī hy eṣa guṇa-mayī mama māyā
duratyayā, “Esta energia divina, que consiste nos três modos da natureza (gunas), é difícil de
ser superada” (Bhagavad-gītā, 7.14). Sua influência sobre as almas encarnadas é total:
sattvaṁ rajas tama iti guṇāḥ prakṛti-sambhavāḥ
nibadhnanti mahā-bāho dehe deninam avyayam
“A natureza material consiste de três modos –bondade (sattva), paixão (rajas) e ignorância
(tamas). Ao entrar em contato com a natureza, ó Arjuna de braços poderosos, a entidade viva
eterna condiciona-se a esses modos” (Bhagavad-gītā, 14.5).
Consequentemente, de acordo com a qualidade de nossos pensamentos, na hora da morte,
recebemos da Natureza material um corpo adequado. A Bhagavad-gītā explica como a
influência dos gunas na consciência, e o apego a eles determinam a natureza do nascimento
da pessoa:
yadā sattve pravṛddhe tu pralayaṁ yāti deha-bhṛt,
tadottama-vidāṁ lokān amalān pratipadyate
“Quando alguém morre no modo da bondade (em sattva), ela atinge os mundos superiores e
puros, onde residem os grandes sábios” (Bhagavad-gītā,14.14).
rajasi pralayaṁ gatvā karma-saṅgiṣu jāyate,
tathā pralīnas tamasi mūḍha-yoniṣu jāyate
“Quando alguém morre no modo da paixão (em rajas), nasce entre os que se ocupam em
atividades fruitivas; e, quando morre no modo da ignorância (em tamas), nasce no reino
animal” (Bhagavad-gītā,14.15).
puruṣaḥ prakṛti-stho hi bhuṅkte prakṛti-jān guṇān,
kāraṇaṁ guṇa-saṅgo’ sya sad-asad-yoni-janmasu
“Dessa forma, a entidade viva dentro da natureza material segue os caminhos da vida,
desfrutando os três modos da natureza. Isto decorre de sua associação com essa natureza
material. Assim, ela se encontra com o bem e o mal, entre as várias espécies de vida”
(Bhagavad-gītā,13.22).
O tipo de corpo que se tem agora é a expressão tanto da influência causada pelos gunas na
consciência, quanto do mérito acumulado das ações (karma) em vidas passadas. Esse karma é
definido como: bhūta-bhāvodbhava-karo visargah karma-samjñitah, “Karma é a ação que
desencadeia o desenvolvimento dos corpos materiais das entidades vivas” (Bhagavad-gītā,
8.4).
Assim, a Bhagavad-gītā explica que:
śrotram cakshuh sparśanam ca rasanam ghrānameva ca
adhishthāya mana cāyam vishayān upasavate
“A entidade viva, aceitando esse outro corpo grosseiro, obtém um certo tipo de ouvido, olho,
língua, nariz e sentido do tato, que se agrupam ao redor da mente. Ela, então, desfruta de um
conjunto específico de objetos dos sentidos” (Bhagavad-gītā, 15.9).
Portanto, segundo o hinduísmo tradicional, o caminho da reencarnação nem sempre leva para
o alto; o ser humano não tem garantia de um nascimento humano em sua próxima vida. Por
exemplo, se alguém morre com mentalidade de um cachorro, então, em sua próxima vida,
receberá os olhos, ouvidos, nariz etc. de um cachorro, para que ele desfrute de prazeres
caninos. Krishna confirma tal destino dizendo: tathā pralīnas tamasimūdha-yonishu jāyate,
“Quando morre no modo da ignorância, nasce em corpo irracional, como de um
animal”(Bhagavad-gītā, 14.15).
Na Bhagavad-gītā, encontramos que os seres humanos que não indagam sobre sua natureza
metafísica, superior, são compelidos pela lei do karma a continuar o ciclo de nascimentos,
mortes e renascimentos, aparecendo ora como humanos, ora como animais ou plantas. Nossa
existência no mundo material deve-se às múltiplas reações kármicas desta vida e das
anteriores, e o corpo humano fornece a única saída através da qual a alma pode escapar. Por
utilizar propriamente a forma humana de vida, procura-se resolver todos os problemas da vida
(nascimento,velhice e morte) e quebrar o ciclo interminável de reencarnações. Esta seria
amissão da vida humana: athāto brahma-jijñāsā, “questionar sobre a Verdade Absoluta”
(Vedānta-sutra, 1.1.1).
Se, entretanto, uma alma, tendo se desenvolvido até a plataforma humana, desperdiça sua
vida ocupando-se unicamente em atividades para o prazer dos sentidos, ela pode facilmente
criar karma suficiente nessa vida atual para manter-se enredada num ciclo de nascimentos e
mortes, por muitas vidas. E há o perigo de talvez nem todas elas serem humanas.
Os corpos ou coberturas da alma
Na tradição védica, identificam-se os corpos materiais da alma com os kośas, termo em
Sânscrito que significa “invólucro, cobertura, bainha, vaso ou recipiente”. O conceito dos“cinco
invólucros” (pañca-kośa) constitui um paradigma quântico que vê a alma condicionada e
acondicionada em um organismo psicofísico multidimensional.Isso pode ser encontrado nos
textos das Upaniṣads (Taittirīya Upaniṣad,2.2-5; 3.10.5; Sarvarāra Upaniṣad, 2; Tejobindu
Upaniṣad, 4.75).
Esses invólucros (kośa) são roupagens que revestem a alma quando ela está condicionada
neste mundo material. A Bhagavad-gītā explica que a identidade da alma é ser eternamente
parte integrante fragmentária da Divindade:
mamaivāṁśo jīva-loke jīva-bhūtaḥ sanātanaḥ ,
manaḥ-ṣaṣthānīndriyāṇi prakriti-sthāni karṣati
“As almas condicionadas neste mundo são Minhas eternas partes fragmentárias. Por força da
vida condicionada, elas empreendem árdua luta com os seis sentidos, entre os quais se inclui a
mente” (Bhagavad-gītā, 15.7).
Assim como o corpo físico permite que ela viva na dimensão física, os invólucros ou corpos
sutis permitem que ela possa viver simultaneamente em vários planos de existência, como nos
sonhos, transes, desdobramentos e regressões psíquicas, e, depois da morte, viver nas
dimensões ou mundos sutis.
Os kośas, em ordem de maior sutileza, são: 1) Anna-maya kośa: “invólucro feito de alimento”
– é o corpo físico, também chamado de sthula-śarīra “corpodenso”; 2) Prāna-maya
kośa:“invólucro feito de prāna (energiavital)” – é o corpo vital, onde se aloja os sentidos, ele é
étereo eco-existe com o corpo físico, como sua fonte de energia e vitalidade, e faz a conexão
com os invólucros mais sutis; 3) Mano-maya kośa: “invólucro feito de mente” – é o corpo
emocional ou o sentido interno, onde se processam as emoções, sentimentos, pensamentos e
desejos; 4)Vijñāna-mayakośa: “invólucro feito de sabedoria” – é o corpo intelectual, onde
reside a memória, a discriminação, a criatividade, a compreensão e a intuição; 5) Ānanda-
maya kośa: “invólucro feito de bem-aventurança” – é o corpo causal, onde pode ser realizada a
identidade e individualidade da alma, o local da consciência pura ou trans-pessoal.
O termo “corpo sutil” geralmente indica os invólucros que constituem o corpo sutil, não-físico,
da alma, chamado em Sânscrito de sukshma śarīra, e inclui os seguintes invólucros: prāṇa-
maya kośa, mano-maya kośa e o vijñāna-mayakośa. Ele permite que a alma atue na dimensão
ou plano astral.
Na hora da morte, envolvida pelos invólucros (kośas) energético (prāṇa-maya), emocional
(mano-maya), intelectual (vijñāna-maya) e causal (ānanda-maya) do corpo sutil, a alma deixa o
seu invólucro físico (anna-maya).
O fenômeno da morte
Na tradição védica descreve-se a morte como mahā-prasthāna, a grande partida. É uma
experiência muito intensa e determinada pela qualidade da morte da pessoa. Há quem tenha
visões, que variam da experiência de encontrar-se com seres assustadores – descritos
comoyamadūtas, “mensageiros da morte”, que arrancam à força a alma apegada ao corpo – à
experiência de ser conduzido harmoniosamente por um túnel de luz, em cujo fim há seres
divinos. Quem teve a experiência de quase-morte nos dá o testemunho desses encontros
transformadores.
Uma senhora que “morreu” durante um trabalho departo, mas foi revivida imediatamente por
procedimentos médicos, descreveu:“Era muita energia – uma luz incrível. Eu praticamente
flutuava nela. Minha consciência foi tomada por sentimentos de amor incondicional, de
segurança completa, de perfeição total. Então, sentia que era imortal, que era quase in-
destrutível. Não podia mais ser ferida, nem me perder. O mundo me parecia perfeito”.
Centenas de pessoas falam de experiências similares, confirmando o que as tradições do
Oriente sempre descreveram – que a morte pode ser uma transição bem-aventurada,
iluminada, de um estado para outro, tão simples e natural como a troca de roupas. Algo
completamente diferente das alternativas mórbidas e infernais que gera tanto medo e
insegurança nas pessoas
A morte é uma série de mudanças pelas quais todos passam, e como a separação da alma do
seu corpo físico, torna-se o ponto inicial da jornada para uma vida nova e melhor. A morte não
é o fim da personalidade e da autoconsciência. Ela meramente abre a porta para outra forma
de vida. A morte quando experimentada de forma consciente pode tornar-se o portal para a
plenitude da vida.
Nascimento e morte são meros ardis de Māyā, o aspecto ilusório da energia material. Na
realidade, vida é morte, e morte é vida. Quem nasceu já começou a morrer, e quem morreu já
começou a viver. Isso é o que afirmam as escrituras védicas: jātasya hi dhruvo mṛtyur
dhruvaṁ janma mṛtasya ca, “certa é a morte do que nasce, e certo é o nascimento do que
morre” (Bhagavad-gītā, 2.27).
Quando, por algum motivo, a alma (jīvātmā ou jīva) tem de abandonar definitivamente o corpo
físico (anna-maya-kośa), os canais (nādīs), onde circulam os ares vitais (prānas), perdem o
vigor e ficam incapacitados de expandir-se e contrair-se, para exalar e inalar o ar. Assim, o
corpo perde sua harmonia e fica agitado. Então, o ar inalado não sai adequadamente, nem o ar
exalado entra novamente no corpo. Assim, a respiração para. E, com a parada da respiração,
surge a inconsciência, e considera-se então que ocorreu a morte.
Nesse momento, todos os desejos e ideias se retraem, pois o jīva carrega dentro de seu corpo
sutil (sukṣma-śarīra) todos os seus vāsanās, que são os desejos ou impressões mentais do
passado. Com a morte do corpo físico, os prāṇas, que carregam as coberturas mais sutis – e,
dentro delas, a própria alma – saem do corpo e vagam pelo ar.
Considera-se que a atmosfera está saturada de uma enormidade de prāṇas que levam dentro
de si os jīvas, que, por outro lado, comportam potencialmente dentro delas todas as suas
experiências de vida. Naquele momento, o si-mesmo ou alma individual, com todos
os vāsanās dentro de si, passa a ser denominada de preta (quem foi para o outro mundo).
Nas Upaniṣads e na Bhagavad-gītā, encontramos mais detalhes de como a alma muda de
corpos:
tam utkrāmantam prāno’nūtkrāmati prānamanūtkrāmantam sarve prānā anūtkrāmanti, sa-
vijñāno bhavati sa-vijñānamevānvavakrāmati, tam vidyā-karmanī samanvārabhete pūrva-prajñā
ca
“Quando a alma parte do corpo, o ar vital a segue; e quando o ar vital parte, é acompanhado de
todos os sentidos. Então, a alma adquire um tipo especifico de consciência e passa ao corpo
adequado a essa consciência. Ela é seguida pelo conhecimento, karma e impressões latentes
passadas” (Bṛhadāranyaka Upaniṣad, 4.4.2).
tad yathā trina-jalāyukā trinasyāntam gatvā anyam ākramamākramya ātmānam upasamharati,
evam evāyam ātmā idaṁ śarīram nihatya avidyāṁ gamayitvā anyam ākramam ākramya
ātmānam upasamharati
“Assim como uma lagarta na grama, chegando ao fim da folha, retrai-se e busca outro suporte,
da mesma forma este ātmā deixando o corpo atual, que fica inconsciente, retrai-se e aceita um
novo corpo” (Bṛhadāranyaka Upaniṣad, 4.4.3).
vāsāṁsi jīrnāni yathā vihāya navāni grihnāti naro‘parāni,
tathā śarīrāni vihāya jīrnāny anyāni samyāti navānidehī
“Assim como alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos
materiais, abandonando os velhos e inúteis”(Bhagavad-Gītā, 22).
tad yathā peśas-kārī peśaso mātrām upādāyānyannavataraṁ kalyānataraṁ rūpam tanutei,
evam evāyam ātmā idaṁ śarīramnihatya avidyāṁ gamayitvā anyaṁ navataraṁ rūpam kurute
pitryam vā gāndharvaṁ vādaivam vā prājāpatyaṁ vā brāhmaṁ vā anyeshāṁ vā bhūtānām
“Assim como um artesão, pegando um pouco de ouro, molda outra forma - mais nova e melhor
-, da mesma forma, este ātmā deixando o corpo atual, que fica inconsciente, cria outra forma -
mais nova e melhor -, como a dos manes (pitris), cantores celestiais (gandharvas), deuses
(devas), Prajāpati e Brahmā” (Bṛhadāranyaka Upaniṣad,4.4.4).
yathā-kārī yathā-cārī tathā bhavati, sādhu-kārīsādhur bhavati, pāpa-kārī pāpo bhavati,
apunyaḥ punyena karmana bhavati pāpaḥ pāpena
“Como faz e age, assim a pessoa se torna. Fazendo obem, ela se torna boa, e fazendo o mal,
ela se torna má; torna-se virtuosa por ações virtuosas e torna-se viciosa por ações viciosas”
(Bṛhadāranyaka Upaniṣad,4.4.5).
Os destinos da alma
Depois da morte, segundo natureza de sua consciência e o mérito cármico de suas atividades
passadas, a pessoa toma rumos diversos. A Bhagavad Gītā descreve dois caminhos
principais: devayāna e pitriyāna. O primeiro deles, chamado de devayāna, é o caminho dos
deuses, que é trilhado por almas espiritualmente avançadas. Estas levaram uma vida
extremamente pura, devotando-se integralmente à meditação no Absoluto (Brahman), mas,
apesar de possuírem conhecimento espiritual, não conseguiram obter auto realização plena
(jīva-mukti) antes da morte. Elas, então, são conduzidas para Brahmaloka, o sistema planetário
mais elevado do universo material, e, de lá, no devido tempo, obtêm a liberação. Esse caminho
é o caminho que não têm volta e é descrito no Chāndogya Upaniṣad:
tad ya itthaṁ viduḥ ye ceme’ranye śraddhā tapaity upāsate te’ rcisham abhisambhavanty
arcisho’ harahna āpāryamānapakshamāpūryamānapakshad yān shad udann eti māsāms tān
“Então, aqueles que estão em conhecimento e aqueles que, vivendo na floresta, seguem uma
vida de fé e austeridades vão para a luz, da luz para o dia, do dia para a quinzena clara, da
quinzena clara para os seis meses em que o Sol está ao Norte” (Chāndogya Upaniṣad, 5.10.1).
sāmebhyaḥ samvatsaraṁ samvatsarād ādityam ādityaccandramasam candramaso vidyutam
tat purusho ‘ mānavah sa enān brahma gamayatiesha devayānah panthā iti
“Dos meses, eles vão para o ano, do ano para o Sol, do Sol para a Lua, e da Lua para o
relâmpago. Lá, uma pessoa não humana conduza alma para o Brahman. Esse é o caminho
dos deuses” (ChāndogyaUpaniṣad, 5.10.2).
O segundo, conhecido como pitriyana, é o caminho dos antepassados, que é seguido pelas
almas que, seguindo os rituais prescritos nas escrituras, foram muito caridosas e piedosas,
cultivaram desejo pelo resultado de suas caridades, austeridade, votos e adoração. Seguindo
esse caminho, elas são conduzidas para Candraloka, a região lunar, onde podem desfrutar de
imensa felicidade como recompensa por suas ações virtuosas. Entretanto, quando o saldo
cármico se exaure, elas têm de voltar para a Terra, visto ainda terem desejos terrenos.
Descreve-se esse caminho também no Chāndogya Upaniṣad:
atha ya ime grama iṣtāpūrte dattam ity upāsate tedhūmam abhisambhavanti dhūmād rātrim
rātrer aparapakṣa aparapakṣād yān shaddakṣinaiti māsāms tān naite samvatsaram
abhiprāpnuvanti
“Mas, aqueles que vivem em vilas, praticando sacrifícios e trabalhos de utilidade pública e de
caridade, vão para a fumaça (dhūma), da fumaça para a noite (rātri), da noite para a quinzena
escura, da quinzena escura para os seis meses em que o Sol está ao Sul. De lá, eles não
alcançam o ano” (Chāndogya Upaniṣad, 5.10.3).
māsebhyaḥ pitrilokam pitrilokād ākāśam ākāśāccandramasam
“Dos meses, eles vão para o mundo dos antepassados, do mundo dos antepassados, para o
espaço, do espaço para a Lua” (ChāndogyaUpaniṣad, 5.10.4).
tasmin yāvat sampātam ushitvāthaitam evādhvānampunar nivartante
“Residindo ali até esgotar o resultado de suas ações, elas voltam novamente pelo mesmo
caminho por onde vieram” (ChāndogyaUpaniṣad, 5.10.5).
Além desses dois caminhos, há um terceiro caminho,que conduz ao inferno, trilhado por almas
que levaram uma vida impura e pecaminosa, com consciência degradada, e que executaram
atividades proibidas pelas escrituras.
Depois de alcançarem umbrais ou dimensões infernais, elas renascem em espécies inferiores,
muitas vezes animais e vegetais, para sofrerem e satisfazerem seus desejos inferiores. Isto é
explicado na mesma Upaniṣad, ātha ya iha kapūya-caranā abhyāśoha yat te kapūyām yonim
āpadyeran śva-yonim vā sūkara-yonim vā candāla-yonimvā, “Mas, aqueles cujo resíduo
cármico é mau, logo nascem em ventres inferiores, como o de um cachorro, porco ou pária”
(Chāndogya Upaniṣad, 5.10.7). Mas, ainda assim, depois da expiação de suas atividades
pecaminosas, elas renascem em corpos humanos.
Os místicos yogīs ou bhaktas que alcançaram a perfeição espiritual e se liberaram ainda em
vida (jīvanmuktas) não são conduzidos por nenhum desses caminhos, mas, de acordo com a
natureza de sua liberação – se ela é impessoal ou pessoal -, eles obtêm o destino supremo
(param gati), fundem-se na existência e imanifesta do Absoluto (param jyoti), ou são
resgatados pessoalmente pela Personalidade da Divindade (Bhagavan), que os abriga em sua
moradaespiritual (param dhama).
Compara-se o morrer com o dormir, e as experiências do pós-morte, com os sonhos. Assim
como os pensamentos e ações acontecidos no estado de vigília determinam a natureza dos
sonhos, da mesma forma, depois da morte, a alma experimenta o resultado dos pensamentos
acalentados e das ações executadas durante sua vida na Terra. As experiências do pós-morte
são reais para a alma, assim como um sonho é real para o sonhador, e ninguém pode
determinar a sua duração.
Segundo as escrituras védicas, algumas almas renascem como seres humanos logo depois da
morte, sem passar pela experiência do paraíso ou inferno. A questão de renascimento da alma
em formas inferiores à humana, apesar de ser considerada um lapso, não constitui um
retrocesso na evolução espiritual da alma para o auto conhecimento ou amor místico. O que
deve ser compreendido é que a próxima vida é determinada pela consciência da pessoa na
vida presente, que, por sua vez, determinaria o último pensamento da pessoa na hora da
morte. O último pensamento do moribundo inevitavelmente reflete seu desejo mais íntimo.
A Bhagavad-gītā afirma: yam vāpi smaram bhāvam tyajaty antekalevaram, tam evaiti kaunteya
sadā tad-bhāva bhāvitah, “Qualquer que seja o estado de existência do qual alguém se lembre,
ao deixar o corpo, ó Filho de Kunti, esse mesmo estado ele alcançará impreterivelmente”
(Bhagavad-gītā,8.6).
Krishna também descreve a posição daqueles que adotam bhakti, o caminho da devoção pura,
e dependência à Personalidade da Divindade: naiti sritī pārtha jānan yogī muhyati
kaścanatasmāt sarveshu kāleṣu yoga-yukto bhavārjuna, “Os devotos que conhecem estes dois
caminhos [devayāna e pitriyāna], ó Arjuna, nunca se confundem. Portanto, mantém-te sempre
fixo na devoção” (Bhagavad-gītā,2.27). Na posição da Suprema Personalidade da Divindade,
Krishna também afirma: ananya-cetāh satatam yo mām smarati nityaśah, tasyāham
sulabhahpārtha nitya-yuktasya yoginah, “Ó filho de Prithā, aquele que se lembra de Mim sem
desvios, Me alcança facilmente, por causa de sua ocupação constante” (Bhagavad-gītā,8.14)
Conceitos hindus do pós-morte
As Upaniṣads falam da essência imutável e consciente de todos os seres, plurais ou
singulares, como a “alma”ou o “si-mesmo”. Isso, em Sânscrito recebe o nome
de ātmā (ou ātman). Essa alma seria o “ser interior consciente” dentro de cada um de nós,
identificada ontologicamente (quando a sua natureza de “ser” ou “existir”) como Brahman.
O Brahman seria o Ser absoluto e supremo, a Divindade em seu aspecto unitário, além de
todas as particularidades. Mas, quando essa mesma Divindade suprema, identificada
ontologicamente com o Brahman, é observada do ponto de vista da consciência
(psicologicamente), Ela é descrita como o Ātman supremo. Por isso as Upaniṣads descrevem
a unidade dos dois, pois se tratam de dois aspectos da mesma realidade: sa vā ayam ātmā
brahma,“ este Ātmā é na verdade o Brahman” (Bṛhadāranyaka Upaniṣad, 4.4.5).
Do ponto de vista do Absoluto, Ātmā é o próprio Paramātmā, o Si-mesmo supremo, a
Superalma, a Divindade em sua onipresença e onisciência. Mas, quando observado da
perspectiva relativa e individual, da pluralidade dos seres ou centelhas
espirituais, ātmā é jīvātmā, a alma ou entidade viva consciente individual. A alma individual
(jīvātmā) seria igual à Divindade quanto ao “ser” (sat), mas seria diferente quanto à
“consciência” (cit).
Nas Upaniṣads, mostram-se as diferenças entre dois tipos de almas – ambas eternas, mas,
uma Absoluta, e outras relativas; uma singular, e outras plurais; uma independente, e outras
dependentes: nityonityānām cetanaś cetanānām, eko bahūnām yo vidadhāi kāmān, “Eterno
entre os eternos, Consciente entre os conscientes, Um entre os muitos, Ele satisfaz os desejos
de todos.” (Katha Upaniṣad,5.13).
Apesar da sua natureza espiritual e transcendente,de seu ser não poder ser afetado pelas
variações do tempo e espaço, ainda assim, a consciência do jīvātmā, por ser fragmentária,
quando se esquece de sua relação com o Paramātmā, ele é influenciado pela energia
material. Com isso, ele se envolve no ciclo de samsara (roda de nascimento e mortes).
O que prende a todos no ciclo de samsara é a lei do karma. Em sua forma mais simples, a lei
do karma age impessoalmente, como uma lei natural, assegurando que toda ação, seja ela boa
ou má, eventualmente retorne ao indivíduo na forma de recompensa ou punição proporcional à
natureza da ação executada.
A necessidade de “colher os frutos do karma” é o que obriga os seres humanos a nascer
novamente (punar-janma), reencarnando em vidas sucessivas. Em outras palavras, se alguém
morre antes de colher os frutos de suas ações passadas, o processo cármico forçará o seu
retorno em vida futura. Voltar em outra vida também possibilita que as forças cármicas
recompensem ou punam a pessoa através das circunstâncias de seu nascimento. Assim, por
exemplo, quem foi generoso em uma vida poderá retornar como alguém muito próspero na sua
próxima reencarnação.
Para todas as tradições religiosas do Oriente, a emancipação na hora da morte constitui a meta
suprema de todos os esforços humanos. Considerando a sua diversidade religiosa, o
Hinduísmo, da execução de sofisticados rituais, passando por formas austeras de disciplinas
de autoconhecimento, yoga e meditação e, chegando à devoção mística, busca várias formas
de liberação.
O ritualismo do Karma Mārga (caminho das ações fruitivas), representado pela tradição
sacerdotal dos brâmanes, busca, por meio da correta hermenêutica das escrituras védicas, a
execução adequada dos ritos e a entoação correta dos mantras, para elevar o praticante às
dimensões celestiais dos deuses e depois obter melhor renascimento nesse mundo. Nesta
tradição materialista, não se busca o fim do ciclo de nascimento e mortes, mas sim obter a
maior felicidade possível.
A tradição gnóstica do Hinduísmo do Jñāna Mārga (caminho do conhecimento), representada
principalmente pela escola Smarta do Vedānta Advaita, considera que a meta final da
existência é alcançar mokṣa, termo em Sânscrito que indica a liberação do ciclo infinito de
nascimento e mortes. O que acontece coma pessoa quando ela obtém mokṣa? Nessa tradição,
acredita-se que, com mokṣa, o ātman individual funde-se no Brahman universal. Utiliza-se a
imagem da gota d’água que cai no oceano e perde sua individualidade. A gota torna-se igual ao
oceano. Apesar de ser muito utilizada, esta metáfora não expressa bem o sentido de fundir-se.
Em vez da perda da individualidade, a compreensão das Upaniṣads é a de que o ātman nunca
existe separado do Brahman. Portanto, o sentido de separação é que é ilusório, e mokṣa é o
despertar desse sonho de separação.
A tradição mística do Yoga Mārga (caminho do misticismo), representada por austeros
renunciantes, busca, por meio do controle das funções psicofísicas, elevar a consciência para o
estado de Samādhi, transe místico que conduz ao mokṣa, a liberação do ciclo de nascimentos
e mortes.
A tradição devocional do Bhakti Mārga (caminho da devoção amorosa) por sua vez, rejeita as
posturas impessoais, tanto do ritualismo brâmane como do Vedānta Advaita, com sua ênfase
intelectual nas afirmativas unitárias das Upaniṣad. Nessa tradição,Deus é visto como uma
Deidade pessoal eterna, supremamente amorosa e que, por sua graça, corresponde à
adoração devocional de seu devoto. O pós-morte no teísmo devocional não é uma bem-
aventurança estática e abstrata, causada pela fusão da identidade individual da alma no
oceano da refulgência do Brahman. Pelo contrário, a tradição devocional considera que as
almas liberadas participam eternamente de uma relação bem-aventurada com a Divindade, em
sua morada eterna, o Céu espiritual (param-vyoma). Apesar de esse mundo místico de amor
espiritual, de alguma forma, lembrar o Paraíso eterno das religiões ocidentais, não deve ser
confundido com o paraíso temporário dos deuses (devas) e dos antepassados (pitris).
Juntamente com a existência de regiões celestiais,destinado aos justos e piedosos, podemos
também encontrar no Hinduísmo o conceito bem desenvolvido de dimensões infernais, nas
quais as pessoas excepcionalmente pecaminosas são punidas psiquicamente. Muito dos
tormentos que acontecem nas regiões infernais do Hinduísmo fazem lembrar os infernos
semita-cristãos, bem ao estilo dos Infernos de Dante. Mas, com sua devida diferença, pois os
infernos hindus não são destinos definitivos para a alma. Seriam mais como purgatórios, onde
as almas experimentariam uma forma limitada de sofrimento, determinada pelo seu karma e
com propósito corretivo para possibilitar sua evolução espiritual. Depois decumprir sua pena
cármica, a alma poderia sair do inferno e voltar a participar do ciclo de reencarnação.
Antyesti-kriyā –o último sacramento
No Hinduísmo, o funeral é um sacramento (samskāra),como o nascimento e o casamento. Ele
seria como o sacrifício ou o rito final (antyeṣti).É um ritual executado para que a alma se
desapegue do corpo e não corra o perigo de tornar-se um fantasma (bhūta ou preta),
garantindo sua promoção para um mundo melhor.
A crença nos fantasmas é muito comum entre os indianos, sejam eles hindus, budistas ou
jainistas. O termo bhūta aplica-se a qualquer classe de espírito desencarnado (bom ou mal),
assim como ao fantasma de uma pessoa morta. Já, o termo preta indica especificamente esse
mesmo espírito no período antes do término dos ritos funerais pós-mortes. Acredita-se que a
alma de um falecido às vezes vagueia sofrendo como um preta e não consegue renascer. Ou
seja, ela não pode alcançar o destino determinadopelos seus karmas, até que os ritos
funerários sejam executados.
Na tradição védica, como regra, não se enterram os mortos, que são cremados de acordo com
injunções das escrituras. Isto tem como base a crença de que o corpo da jīva é constituído dos
“cinco elementos”[4] da prakriti (natureza material), que precisam ser devolvidos à sua fonte
quando da morte. Deles o fogo, a terra, a água e o ar pertencem ao corpo denso (o sthula-
śarīra, que é formado do anna-maya-kośa) e procedem deste mundo físico, enquanto que o
quinto elemento o éter (espaço) pertence à dimensão do corpo sutil (o sukṣma-śarīra, que é
constituído dos kośas mais sutis) e procede dos mundos superiores. Quando o corpo é
cremado, apenas os quatro elementos densos são devolvidos às suas respectivas esferas,
enquanto que o corpo sutil, juntamente com a alma, retorna às dimensões superiores mais
sutis para a continuação da sua vida pós-morte.
Todavia, a cremação não é o único método prescrito para a remoção do corpo. Crianças até
certa idade e pessoas santas ou iluminadas são enterradas. Por exemplo, um mestre spiritual,
é enterrado em uma sepultura chamada de Samādhi, onde é colocado sentado em postura de
lótus, em estado de mahā-samādhi, para receber a veneração de seus discípulos ou
seguidores. Apesar de a cremação ser o procedimento padrão, alguns hindus preferem ser
sepultados nas águas de um rio sagrado, como o Ganges, onde as cinzas dos que foram
cremados também são jogadas. Acredita-seque esses rios sagrados purifiquem a alma de seus
pecados.
Para algumas pessoas, a morte pode ser vista como odia da liberação, celebrada no lugar da
data do aniversário. Até certo ponto,os ritos funerários servem para notificar a alma que ela de
fato está morta.
É possível que uma alma desorientada, não consciente de que está do outro lado, fique com
sua consciência ainda presa no plano físico. Ela pode observar esse mundo material, e até
mesmo testemunhar o seu próprio funeral. Alguns dos hinos funerários se dirigem ao falecido,
persuadindo-o a abandonar os apegos e continuar sua jornada.
Os ritos são também para os vivos, pois permitem que a família se despeça de uma forma
respeitável e digna, que expresse suador, perda e outras emoções que naturalmente vêm à
tona neste momento crítico. O significado mais profundo dos ritos funerários se constitui em
fazer a conexão dos mundos sutis interiores (Svarga ou Pitri-loka)com o mundo físico exterior
(Bhū-loka), e o reconhecimento de que a família não consiste apenas das gerações vivas, mas
também abrange os ancestrais.
Há almas que encarnam seqüencialmente na mesmafamília. O neto pode ser a reencarnação
da alma do avô. Dessa forma, o karma eo dharma coletivo são inteiramente resolvidos. Quem
está nomundo sutil interior ajuda os parentes que estão no mundo manifesto. Depois,quando
retornam ao mundo exterior, eles se esforçam para avançarespiritualmente, pois esse
progresso só é possível em uma encarnação física. Acerimônia ritual de união do falecido com
seus antepassados e a veneração anual dos antepassados mantêm aberta a comunicação sutil
que possibilita prosperidadee longevidade para a família.
Os ritos fúnebres hindus são realizados com os propósitos de propiciar à alma migração segura
e sobrevivência agradável no outro mundo, além de proteger ou membros familiares de
contaminações energéticas decorrentes da morte do parente. Segundo as crenças hindus,
quando morre alguém da família, independente de ela estar perto ou longe, seus parentes
ficam poluídos pelo mero processo de sua morte. Essa contaminação continua até que a alma
tenha completado a sua jornada para o outro mundo e todos tenham sepurificado pelos rituais.
Até mesmo quem viu o cadáver ou entrou no local onde ele estava, fica de, alguma forma,
contaminado.
Quando a pessoa morre, seu corpo, depois de recebero último banho, é levado para o
crematório por seus amigos e parentes, ao somda entoação dos nomes de Deus. O corpo é
cremado geralmente no mesmo dia, senão um ou dois dias depois. Na pira funerária, que
geralmente é acesa pelo filho mais velho, coloca-se o corpo com os pés em direção ao Sul, que
é a direção de Yama, o deus da morte.
De três a dez dias depois da cremação, as cinzas são coletadas e guardadas em urnas, para
serem espalhadas em vários locais. São misturadas com terra, água, água e ar, para simbolizar
o retorno do corpo aos elementos.
As cerimônias de Śrāddha
Na longa lista dos sacramentos (Samskāra) do Hinduísmo, há determinados ritos que devem
ser executados para aqueles que já partiram do mundo físico. Eles recebem o nome genérico
de Śrāddha e são executados pela família do falecido, logo depois do funeral. Consistem de
uma série de oferendas cerimoniais em que preparações de alimentos e libações de água são
dedicadas aos manes, pais ou ancestrais já falecidos.
Isso é algo natural para os hindus, pois, para eles nunca houve uma barreira espessa entre os
mundos visível e invisível, entre os“vivos” e os “mortos”. O contato entre essas duas dimensões
sempre caracterizou essa tradição religiosa, pois consideram-se os deuses (devas) e os manes
(pitris) tão reais como os humanos.
Nas cerimônias iniciais de Śrāddha, chamadas de Ekoddishta Śrāddha ou Preta-kriyā, os filhos
do falecido cantam mantras e oferecem preparações, à alma que partiu, para fornecer-lhes
nutrição. São tortas de arroz, conhecidas como pindas, ou outros ingredientes como leite,
coalhada etc., que, oferecidos como oblação nos sacrifícios, adquirem uma forma sutil
chamada apūrva (sem precedente) e se prende ao sacrificador. Os jīvas, envolvidos pela água
suprida pelos ingredientes oferecidos em oblação nos sacrifícios e fortalecidas
energeticamente pelos mantras, desenvolvem um corpo etéreo adequado que permita sua
sobrevivência à caminho do mundo dos ancestrais. Essas oferendas devem ser realizadas
durante dez dias. Cada dia equivale a um mês do período normal de gestação do embrião
humano no ventre.
Quem executa sacrifícios satisfaz aos deuses no paraíso e desfruta com eles. Tornam-se
associados úteis dos deuses e contribuem para o desfrute deles, por meio de sua presença e
serviço naquele mundo. Eles desfrutam em Candraloka e retornam à Terra, com o fim do
estoque de seu mérito
Muitas vezes, quando o falecido não teve morte natural e consciente, ele, na condição de preta,
pode atormentar os membros de sua família. Então, as oferendas da cerimônia
de Śrāddha podem tranquilizar a alma. Tais oferendas destinam-se a garantir aredenção da
alma do falecido da condição de fantasma, que é o corpo de preta, e ajudá-lo a renascer
novamente, de acordo com seu karma passado acumulado. O Garuḍa Purāna, (2.13.1-23)
explica como a alma do falecido pode ficar imobilizada por muito tempo na condição de preta,
sem corpo e sentidos físicos. Não pode nascer para desfrutar de seu karma. Então, nessa
condição de preta, ela vaga por todos os lugares, sofre fome e sede, até que os ritos funerários
sejam executados.
Também se explica que, depois da morte, a alma do falecido adquire o corpo etéreo (ātivāhika
śarīra) de preta (Garuḍa Purāna, 2.10.75-77). E que ela deixa este corpo e adquire um
corpo pinda-deha, feito de pindas (GaruḍaPurāna, 2.10.82, 2.15.37-38 e 2.15.66-67), como
resultado das oferendas de pinda (tortas ou bolos de arroz), feitas na cerimônia deEkoddiṣṭa
Śrāddha, durante os primeiros dez dias após a morte.
Entretanto, quando o corpo pinda-deha também se dissolve, como resultado dos Ekoddiṣṭta
Śrāddha executados mensalmente, durante um ano, a alma está livre para deixar a dimensão
intermediária e entrar no mundo dos antepassados. Nessa ocasião realiza-se acerimônia
de Śrāddha, conhecida como sapindī-karaṇa, que facilita a entrada da alma no mundo dos
ancestrais (pitṛloka) e sua permanência lá a partir de então.
Ficou bem claro que a não execução dos śrāddhas fazcom que haja impedimento no
cumprimento da lei do karma. Cria-seimpedimento no karma-vipāka, ou fruição
do karmaacumulado.
Considerações finais
Sentir medo em face da experiência inevitável da morte é consequência da ignorância da
verdadeira natureza da alma espiritual, das possibilidades de ela viver em diferentes
dimensões e o próprio processo transformador dessa experiência. Punar-janma, o
renascimento que liga uma vida a outra, reduz qualquer morte particular a um mero incidente
dentro de uma série indefinida de incidentes.
Então, o que teria valor para o jīvātmā eterno não seria seu corpo material temporário e as
parafernálias ligadas a ele, como família, bens materiais e posição social, mas sim a própria
essência de eternidade, consciência e bem-aventurança. Assim como quem consegue algo
superior, ele não tem dificuldade alguma de abandonar as coisas inferiores. Da mesma
forma, quem está situado em auto conhecimento, na plataforma espiritual, consegue facilmente
situar-se além dos prazeres materiais temporários. Na plataforma de auto realização, o místico
também sente prazer (ramante), porém, seu prazer é infinito (anante). Isso é explicado
no Padma Purāṇa: ramante yogino 'nantesatyānanda-cid-ātmani, “A felicidade dos místicos é
ilimitada e real, pois vêm da Verdade Absoluta”.
Porque na plataforma do auto realização há o reconhecimento da existência continuada do ser
(sat), da consciência ou conhecimento ilimitados (cit) e da satisfação estética infinita (ānanda),
a morte do corpo e a perda dos prazeres dos sentidos temporários não representam perda. O
que ocorre é manifestação de um ganho maior. Portanto, não há motivo para medo e
ansiedade. Morrer é algo tão natural e normal, que jamais se considera o “morto” como tal. Ele
apenas foi para outro lugar, para outra dimensão. Foi morar em outro lugar.
Referências
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[1] A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda, Além do nascimento e da morte. São Paulo:
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[2] Forma contraída de kah aham (asmi):“Quem eu (sou)?”.
[3] Ramana Maharshi. The collected Works of Ramana Maharshi, ed. Arthur Osborne.New
York: Samuel Weiser, 1997, pp. 25, 29.
[4] Terra, água, ar, fogo e éter.
Bibliografia
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