UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRACURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
“RECONSTRUÇÕES DE 1964.”
Nome: Eduardo Madureira LealOrientador: Prof.º Murilo Sebe Bon Meihy
NITERÓI2006
EDUARDO MADUREIRA LEAL
“RECONSTRUÇÕES DE 1964.”
Monografia apresentada à diretoria do curso de graduação da Universidade Salgado de Oliveira, como requisito para a obtenção da Licenciatura em História, sob a orientação do Prof.º Murilo Sebe Bon Meihy.
NITERÓI2006
II
“RECONSTRUÇÕES DE 1964.”
EDUARDO MADUREIRA LEAL
Aprovada em ____/____/_____.
BANCA EXAMINADORA
Murilo Sebe Bon Meihy
Titulação: __________________________________
Universidade Salgado de Oliveira
Mauricio Parada
Titulação: __________________________________
Universidade Salgado de Oliveira
Poméia Genaio
Titulação: __________________________________
Universidade Salgado de Oliveira
CONCEITO FINAL: _____________________
III
Dedico este trabalho à minha tão querida filha Amanda de Barros Madureira que, com gestos simples e linguagem inocente, tem o dom de penetrar-me o coração, iluminar minha alma e, lembrando-me que o segredo da felicidade está nas coisas simples da vida, figura nas páginas principais da minha história. Agradeço-te, filha amada, por ser minha maior fonte de alegria e peço perdão por não poder ter tido mais e mais momentos dedicados a você principalmente em prol desta minha meta, desta minha realização. Que ela possa lhe servir de estímulo para a vida, para superação constante e para que você nunca desista de realizar seus sonhos.
IV
AGRADECIMENTOS
Não poderia deixar de agradecer à minha família, em especial à minha mãe,
JÚLIA DE SOUZA MADUREIRA. Nada do que pudesse escrever aqui seria suficiente para
externar a gratidão, afeto e o amor que lhe reservo. Afinal, abdicou de seus sonhos para que
eu pudesse sonhar; passou noites em claro para que eu dormisse tranqüilo; enxugou minhas
lágrimas para que fosse feliz; acreditou em mim mesmo nas minhas fraquezas; graças à sua
extremada dedicação, carinho e obstinação, hoje me reconheço como pessoa; é graças a ela,
graças as suas mãos a guiar às minhas no aprendizado das primeiras letras, das primeiras
palavras, que hoje posso dedicar-lhe esta singela homenagem.
Quantos aos amigos, ah os amigos, o que seria de nós sem eles? Tenho receio de,
por ato falho, esquecer de citar o nome de algum e, assim, prefiro me abster do risco.
Entretanto, tenham todos a certeza de que seu apoio foi fundamental nesta empreitada e que
minha gratidão é tão grande quanto os laços de amizade que nos unem.
Apesar de serem muitos os amigos que corroboraram para a realização deste
objetivo, há aqueles que por justiça não posso deixar de citar; aqueles que fizeram às vezes de
correligionários concedendo-me apoio irrestrito e incondicional. Ademais, se a formatura é o
coroamento de uma história de sucesso, personagens como ELENIZETE PEREIRA NUNES
e CARLOS JOSÉ SOUZA DAS CHAGAS atuaram como protagonistas neste episódio.
Solícitos às minhas necessidades, estiveram sempre prontos a me auxiliar no que fosse
necessário e, por isso, muito me apraz dedicar-lhes estas linhas singelas de agradecimento.
Ao meu Orientador, Professor MURILO SEBE BON MEIHY que, com
profissionalismo, ética, empenho e entusiasmo me conduziu neste processo de compilação
monográfica. À Professora POMÉIA GENAIO que, dentre tantos outros profissionais do
ensino que compartilharam conosco seu suor, seus conhecimentos, me concedeu orientação
paralela específica sobre o assunto que escolhi como tema, uma vez que é profundamente
especializada na área. Assim, apesar de ser grato a todos, imortalizo-os na minha história com
esta singela nota de agradecimento.
Existe ainda Àquele, que tornou tudo isso possível; Àquele a quem não caberiam
agradecimentos no maior de todos os livros já editados mas que, em ao mesmo tempo, se
contenta com nossa sincera gratidão no recolhimento de nossas orações; compete aqui tornar
público o agradecimento a DEUS pelo dom da vida, da sabedoria, pela oportunidade e pelo
privilégio de poder estar concluindo mais esta etapa na caminhada da minha vida, vitória esta
conquistada em Seu nome, louvor e glória.
V
RESUMOEsta monografia relativiza a história oficial reproduzida sobre os acontecimentos
de 1964 à luz de novas metodologias e fontes. Para tanto, utiliza-se tanto de fontes
“tradicionais” como as diversas bibliografias, quanto de depoimentos, insumo básico da
“história oral.” Apesar de considerar as análises marxistas, busca trabalhar os fatos e dados à
luz dos Annales.
Remonta à conjuntura da década de cinqüenta para explicar a construção da crise
de 1964 através dos aspectos econômicos, sociais e, sobretudo, políticos que a precederam,
assim como vislumbra sucintamente os desdobramentos e distorções imputados a este fato
histórico a posteriori, reflexos de ideologias hegemônicas. Esta conjuntura se inicia pelos
aspectos globais e afunila-se para o Brasil do após-Guerra. A nível nacional são considerados
os aspectos do segundo governo do Presidente da República Getúlio Vargas e de seu sucessor,
Juscelino Kubitscheck. A análise da confluência de ambos deságua nas dificuldades
encontradas por Jânio Quadros e, consequentemente, por João Goulart na condução do
governo e das políticas públicas.
Considera-se também a ação norte americana que, direta e indiretamente,
influenciou a América Latina e mais especificamente o Brasil. Contudo, muitos autores e
entrevistados atribuem como fator principal da crise a inapetência administrativa de Jânio
Quadros, fato que é discutível se vislumbradas as dificuldades que se impuseram à
implantação de seus projetos de governo.
Por fim, prestigia-se à história oral colhida através dos depoimentos de
protagonistas militares do regime. Em geral, todos atestam ter sido um movimento
desarticulado que, apesar de suas motivações burguesas por vezes camufladas sob os preceitos
da “segurança nacional”, tiveram incentivo de vários segmentos da sociedade para a sua
consolidação. Hoje, a maioria dos entrevistados reconhece ser uma impropriedade lingüística
atribuir o termo “revolução” a 1964 uma vez que não houve ruptura com os modelos pré-
estabelecidos, assim como é muito relativo o uso stricto sensu da terminologia “golpe” ou
mesmo “ditadura”, sobretudo quando comparadas com fatos de outros períodos históricos.
Enfim, ao passo que os militares se ressentem do desprestígio que lhes foi dispensado pós
“Diretas Já”, fica o alerta para a necessidade de identificar à que hegemonias interessam este
achaque e quais as ideologias que elas têm praticado e reproduzido.
Palavras-chave: história – política – governo – 1964 – militar – regime – crise
VI
ABSTRACTThis monograph relativizes reproduced official history on the events of 1964 to as
of new methodologies and sources. For in such a way, it is used in such a way of “traditional”
sources as the diverse bibliographies, how much of depositions, basic element of “verbal
history.” Although to consider the marxist analyses, it searchs to work the facts and data to as
of the Annales.
It retraces to the conjuncture of the decade of fifty to explain the construction of
the crisis of 1964 through economic, social aspects e, over all, politicians who had preceded
it, as well as succinctly glimpses the unfoldings and distortions imputed to this historical fact
as, consequences of hegemonic ideologies future. This conjuncture if initiates for the global
aspects and is funnelled for Brazil of the post-war one. The national level is considered the
aspects of as the government of the President of the Republic Getúlio Vargas and its
successor, Juscelino Kubitscheck. The analysis of the confluence of both drains in the
difficulties found for Jânio Quadros and, consequently, João Goulart in the conduction of the
government and the public politics.
The American north action is also considered that, directly and indirectly,
influenced Latin America more specifically and Brazil. However, many interviewed and
authors attribute as main factor of the crisis the administrative inability of Jânio Quadros, fact
that arguable if is glimpsed the difficulties that if had imposed to the implantation of its
projects of government.
Finally, it is sanctioned harvested verbal history through the depositions of
military protagonists of the regimen. In general, all certify to have been a disarticulated
movement that, although its bourgeois motivations for times camouflaged under the rules of
the “national security”, had had incentive of some segments of the society for its
consolidation. Today, the majority of the interviewed ones recognizes to be a linguistic
impropriety to attribute to the term “revolution” the 1964 a time that did not have rupture with
the daily pay-established models, as well as is very relative the use in one-way of the
terminology “blow” or same “dictatorship”, over all when compared with facts of other
historical periods. At last, to the step that the military if resent at the disreputation that was
excused to them after “Diretas Já”, are the alert one for the necessity to identify that
hegemonies interest this extortion and to which the ideologies that they have practised and
reproduced.
Key-Word: history – politics – government – 1964 – to militate – regimen – crisis
VII
SUMÁRIO
CAPA .......................................................................................................................... IFOLHA DE ROSTO ................................................................................................... IIFOLHA DE APROVAÇÃO ....................................................................................... IIIDEDICATÓRIA ......................................................................................................... IVAGRADECIMENTOS ............................................................................................... VRESUMO .................................................................................................................... VIABSTRACT ................................................................................................................ VIISUMÁRIO .................................................................................................................. VIII
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 09CAPÍTULO I – Arcabouço da crise 14
1.1) Relações mundiais do pós-guerra ......................................................... 141.2) A sedução ideológica na América Latina ............................................. 171.3) O Brasil do pós-Guerra ......................................................................... 21
CAPÍTULO II – O Brasil em crise 252.1) Processo de consolidação do modelo econômico brasileiro ................ 252.2) Do espectro econômico ao ativismo sócio-político .............................. 302.3) Influência norte-americana para a crise de 1964 .................................. 47
CAPÍTULO III – Memórias das conspirações 493.1) O uso da memória na consolidação da história nacional ...................... 493.2) Irrupções das “memórias proibidas” na história do Brasil ................... 54
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 61FONTES & REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ........................................................ LXIV
VIII
INTRODUÇÃO
A história pode e deve ser reexaminada sempre que surgirem novos dados, fontes,
interpretações, teorias ou fatores que corroborem para incitar o interesse por um tema em
função das demandas sociais, institucionais ou conjunturais. A História deve, portanto,
flexibilizar-se através do constante exercício da relativização que promove não só uma
efervescente atividade intelectual, como também é expressão maior do exercício da
cidadania. Faz-se mister relativizar os fatos históricos de forma que nenhum dado seja
negligenciado, que todas as vertentes sejam contempladas, trazendo à tona às transcrições
percepções do passado com a maior verossimilhança possível.
Em 1985, com o movimento das “Diretas Já,” o poder foi devolvido aos civis no
Brasil após uma longa transição sob regime militar. Houve então uma explosão de estudos
acadêmicos que privilegiaram as análises de teor essencialmente marxista. Assim, estudos
sobre os militares reduziram-se drasticamente visto que o grande foco dos analistas passou a
ser a consolidação democrática. Não obstante, os próprios militares recolheram-se à caserna
pautando sua conduta em um silêncio político rarissimamente suplantado. Esse relativo
desinteresse é expressão viva das idéias e teses contingenciadas no período mais duro do
regime, quando foram coibidas pela censura.
As análises e explicações sobre os acontecimentos que levaram ao desfecho de
1964 poderiam ser muito abrangentes mas, mormente, o são feitas através de critérios
econômicos. Tal recorte é inteligível e até louvável visto que a corrente historiográfica
predominante no período assim doutrinava. Para o marxismo, a luta entre classes e as questões
econômicas estão no cerne de todos os acontecimentos históricos e esta assertiva é muito
coerente, sobretudo para explicar a crise em questão. Contudo, tal determinismo
historiográfico aplicado por qualquer corrente que supervalorize um aspecto em detrimento de
outros, empobrece o resultado da pesquisa ao limitar drasticamente as vertentes de um dado
problema, ainda que este seja pano de fundo presente e consistente no recorte histórico.
Mesmo cientes de que é utópico pretender reconstituir integralmente um fato
passado porque “os diversos aspectos sociais, políticos, econômicos, éticos, jurídicos,
estéticos, religiosos de uma densa problemática constituem apenas isto – aspectos de uma
realidade complexa que os engloba”1, é preciso buscar não limitar a complexidade da ação
humana na análise dos fatos históricos visto que “O erro consiste quase sempre em atribuir a
um único fator a plena e cabal explicação de fenômenos complexos que pervadem diversas
1 Tarcílio Meirelles PADILHA, Brasil em Questão.Rio de Janeiro, J.Olímpio, 1975. p. 25.
9
áreas do conhecimento humano.”2 Portanto, a economia brasileira e as motivações capitalistas
concatenadas com outros fatores, se alinharam e culminaram com a crise de 1964.
Naturalmente, uma vez oficializada a abertura, os pesquisadores atiraram-se sobre suas teses
contidas que, em geral, não tinham como objeto as relações militares salvo quando para
denegri-los.
Não se pretende aqui fazer apologia ou ataques3 a uma ou outra corrente, mas
reserva-se uma crítica construtiva acerca dos pensadores de Marx ou à interpretação que ela
induz: o vislumbre específico do aspecto econômico. Ora, quando o cientista ou pesquisador
analisa diferenciadas questões sob um único prisma – neste caso, o econômico –, está fadado
a ter uma reconstrução fragmentada, cética e, quiçá, inverossímil. A frieza dos números de
que se alimenta a economia por vezes gera um esforço sobrecomum para análise dos fatos.
Este esforço só é bem recompensado quando pensamos no todo, no macro. Porém, à medida
que vamos afunilando a análise rumo ao micro, às especificidades, percebe-se que este
método tende a se tornar surreal. Mas,
“Para quem só conhece o saber enquanto estruturado em termos
quantitativos, seguramente não temos como recusar a assertiva de que
este [pensar] é totalmente carente de sentido cientifico. Mas não
julgamos possa o dogmatismo da quantidade impor seu domínio a
todo o saber. Os valores pelos quais lutamos, as crenças que sulcam o
solo das culturas e as inspiram, as instituições que fundamentam todo
o modo humano de viver e de conviver exprimem, na linguagem da
Axiologia, os parâmetros de sua vigência. Assim, os aspectos
econômico, social, político, moral, religioso, ético, geofísico e outros
hão de estar presentes na configuração da realidade do homem que
[se pretende analisar]...”4
Assim, sobre os recortes como os de Pierre Salama, José Serra, Conceição Tavares
e outros autores de mesma linha, 2 Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 24.3 Ainda existem seguidores céticos da ideologia de Karl Marx e Friderich Engels assim como, do outro lado do extremo, existem àqueles pesquisadores que atestam em seus estudos as atividades satânicas de ambos. Segundo estes (como Huascar Terra do Valle, por exemplo), os pensadores em questão foram introduzidos ao satanismo por Moritz Hess. Ainda segundo o pesquisador, “Satanismo e comunismo comungam com a mesma idéia, pois ambos rejeitam os valores morais da civilização ocidental. A palavra de ordem, de Lênin é conhecida: “quanto pior, melhor,” uma confissão descarada de satanismo. Torna-se evidente que Marx e Engels, ambos graduados em satanismo, após longas lucubrações diabólicas, chegaram a uma versão light do culto ao demônio, sob o fraudulento nome de “COMUNISMO”, capaz de confundir e atrair milhões de pessoas, inclusive intelectuais (...) No Brasil, comunistas entre a burritzia brasileira, incluindo as universidades, são legiões.”4 Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 50.
X
“podemos concluir que algumas pecam por serem parciais (por mais
que esteja formulada corretamente, uma parte da verdade nunca
chega a ser suficiente para explicar a verdade em seu todo) e, outras,
por um pecado de origem ao tomar como eixo central, para a
explicação da crise de 64, o problema da realização.”5
Ignoram o populismo levado à efeito desde a nova Era Vargas passando por
Juscelino Kubitschek e declinando com Jânio Quadros. Desta forma, não dá conta dos anseios
e da crescente politização da sociedade brasileira. Desprezam ainda a taxa de crescimento
demográfico e os seus impactos naturais sobre a sociedade. No Brasil, na década de 1950
retomamos para 3,6% o incremento populacional que havia decaído nas duas décadas
anteriores e na década seguinte, a população brasileira ascendeu para 93.000 pessoas
registradas, um ritmo de 2,9%. Se penetrarmos ainda mais rumo às individualidades,
perceberemos que outros inúmeros fatores deixam de ser contemplados qualitativamente por
esta metodologia como a distribuição da população, a qualidade de vida das pessoas, o êxodo
rural,6 o grau de escolaridade, etc.
Mesmo sabendo que o país já possuía direcionamento capitalista consolidado,
sobretudo por políticos populistas, e que a esmagadora maioria da população era contrária à
idéia de um golpe inspirado em Stalin, Mao Tse-tung ou Fidel Castro – seja por influenciação
ideológica ou não –, a maior parte das pesquisas insiste tendenciosamente em valorizar as
possibilidades de um futuro comunista que teria sido negado por um golpe militar. A forte
oposição ao Presidente da República João Goulart levada a efeito pelo partido da União
Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Social Democrático (PSD) normalmente é
ofuscada por conjecturas acerca da intervenção. Contudo, dá-se um tom genérico a estes
estudos e raramente temos noticia sobre autores que pesquisam os fatos do período sob outro
viés.
À luz deste raciocínio, perceber-se-á que esta obra está dividida em três capítulos:
o primeiro apresenta um sucinto esboço da conjuntura do pós-guerra, do embate ideológico
entre as super-potências, suas conseqüências para a América Latina e, mais especificamente,
para o Brasil; o segundo trata das questões econômicas, da influência do capital multinacional
na política, da conversão dos interesses econômicos em ativismo sócio-politico e da influência
5 Maria MORAES, Considerações sobre a crise de 1964,______________ p. 42. (O grifo é meu)6 Em 1960, por exemplo, 55% da população era rural e 45% urbana. Esta diferença já era bem menor do que na década anterior e logo seria ultrapassada na posterior.
XI
norte-americana para as “conspirações” brasileiras. Já o terceiro capítulo trabalha a questão
dos depoimentos, das memórias – fontes primárias menos convencionais.
Em principio, por censo comum, a memória seria um fenômeno individual, íntimo,
próprio de cada individuo. Porém, segundo Maurice Halbwachs, a memória deve ser
entendida também como um fenômeno coletivo e social, construído coletivamente e passível
de transformações constantes. A memória passa por processos de adequação ou
“enquadramento” no qual reinterpreta e recombina infinitas referências associadas que podem
estar sendo estruturadas tanto para modificar as fronteiras sociais como para mantê-las face as
conjunturas do presente e as perspectivas do futuro. Contudo, esta reinterpretação constante
do passado carece de credibilidade e coerência nos discursos sucessivos o que pode pôr em
xeque a identidade individual de um grupo. “Esse trabalho de enquadramento da memória tem
seus atores profissionalizados, profissionais da história das diferentes organizações de que são
membros, clubes e células de reflexão.” Observou-se nos trabalhos de Maurice Halbwachs e
Michael Pollak a existência de numerosas memórias coletivas. Elas fazem parte de uma
memória maior e melhor organizada de nível nacional.
Por certo, foi grande o esforço de compreensão, análise, pesquisa e reflexão
dispensada pelos cientistas para tratar das dificuldades nacionais por ocasião da
redemocratização face aos novos desafios político-econômicos do devir. Porém, o
distanciamento cronológico é mister para uma análise menos emotiva e mais cientifica, capaz
de vislumbrar os fatos pelo viés dos “vencidos” mas também sob o prisma dos tidos como
“vencedores” – até porque, os papéis se inverteram no desenrolar histórico tupiniquim. Assim,
42 anos após a intervenção militar e passados exatos 21 anos sob “regime democrático pleno”,
faz-se necessário repensar as questões que levaram a intervenção bem como todo o período
governado sob regime militar à luz de novas perspectivas, de novos enfoques, de metodologias
mais recentes e de novas fontes de informação. Este afastamento do objeto não significa a
retomada do viés “neutro” e “independente” defendido pela doutrina positivista, contudo uma
visão mais centrada se faz cientificamente necessária para a análise em questão.
Além de pesquisar os fatos calcados também nos militares, ainda bastante
desconhecidos, é necessário compreender melhor as razões que levaram à intervenção e à
longa duração do regime, tarefa incompleta que precisamos melhor compreender para termos
melhores perspectivas do futuro e para que possamos ter um retrato austero da sociedade
brasileira identificando em seu seio quais são e que interesses têm as hegemonias dominantes.
Esta monografia não visa enfim condenar, celebrar e tampouco julgar este ou
aquele grupo. A intenção desta obra é fazer uma nova e sucinta análise relativizando a
XII
história oficial à luz de novas metodologias e fontes. Para tanto, trabalha-se tanto com fontes
“tradicionais” como as diversas bibliografias, quanto com depoimentos, insumo básico da
“história oral.” Os depoentes aqui citados não tiveram uma liderança destacada nos atos
conspiratórios face a sua pouca antiguidade hierárquica à época. Contudo, constituíram
elementos importantes na implementação e manutenção do regime até porque, dentro de
muito pouco tempo, estes militares ascenderam e tornaram-se responsáveis pela
administração de importantes esferas na caserna e no governo. Eles passaram a ocupar os
principais cargos nos órgãos de informação, importantes funções de assessoria, comandos e
até ministérios nos anos subseqüentes à intervenção. Naturalmente, eles também vivenciaram
o movimento de abertura e de depreciação militar que se seguira às “Diretas Já.” Em geral, os
pesquisadores ainda não exploraram este conjunto de militares a contento visto que os
Oficiais-Generais de 1964 roubaram todas as atenções. Eles, sem dúvida, “foram agentes
ativos do processo e suas carreiras foram, em grande parte, afetadas por ele.” Porque negar-
lhes então a voz? Afinal, como dizia Marc Bloch7, “causas não [devem ser] postuladas,
[devem ser] buscadas” e, em tom ainda mais grave, dizia também que “os historiadores são
obrigados a refletir sobre hesitações e arrependimentos.”8
7 Medievalista francês, nascido em 1886 torturado e morto pela GESTAPO em 16 de julho de 1944 na cidade de Didier de Formans. Marc Leopold Benjamin Bloch instituiu uma nova corrente historiográfica junto a Lucien Febrve conhecida como Escola dos Analles ou Nova História – corrente que busca problematizar e relativizar os recortes históricos recorrendo, inclusive, à métodos e conceitos interdisciplinares.8 Marc Leopold Benjamin BLOCH. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2001, p.11.
XIII
CAPÍTULO I
ARCABOUÇO DA CRISE
1.1) Relações mundiais do pós-guerra
Hoje as ciências biológicas comprovam que mesmo pequenas mudanças causam
stress. Em sua forma mais particular, este stress – superficialmente entendido como sendo o
“conjunto de reações do organismo a agressões de ordem física, psíquica, infecciosa e social,
capazes de perturbar-lhe a homeóstase” – é externado de diferentes modos, conforme a
individualidade dos organismos, culturas e circunstâncias em que se lhe é permitido
exteriorizar sem contudo imputar grandes alterações no meio. Também é sabido que, caso
contido, a irrupção dos seus sintomas e eventuais conseqüências tendem a aflorar com muito
mais violência e, muitas vezes, no mais inoportuno dos momentos.
Numa esfera macro poderíamos tratar também como conseqüência de stress –
desta vez entendido como fricção, desgaste – os grandes cataclismos da humanidade à medida
em que alteram a relação harmoniosa dos seres e da sociedade em geral. Seja ele de natureza
ambiental, social ou político-econômico, ao atingir os limites intrínsecos de sua estricção,
irrompem provocando grandes desastres, derrocadas e convulsões sociais.
Assim foi ao fim da Segunda Grande Guerra. As estruturas sócio-politicas
mundiais foram drasticamente modificadas. Economias foram arrasadas, grandes potências
ruíram ou esmoreceram em sua esfera de influência enquanto outras despontaram na nova
ordem. Pode ser considerada um divisor de águas crucial que marcou a consolidação
econômica e a supremacia política do capital monopolista nos centros industriais e
financeiros. As novas formas de capitalismo realizavam-se agora em níveis globais através de
uma articulação complexa e contraditória com as várias formações sociais nacionais,
traduzidas basicamente em corporações multinacionais.
Rússia, Estados Unidos, Grã Bretanha, China e França permaneceram ostentando o
status quo de potência mundial criando, inclusive, em 26 de junho de 1945, a Organização das
Nações Unidas (ONU) na qual ocupam o cargo de membros permanentes até hoje. Entretanto,
Grã Bretanha, China e França, na prática, só permaneceram sob este status a título honorifico,
pois suas reais condições sócio-econômicas estavam, a esta altura, longe de corresponder ao
título.
Ainda estupefata pelo terror, a humanidade esperava ver desabrochar e expandir-
se, de fato, o ideário Liberté, Igualité e Fraternité, proclamado pela Revolução Francesa ou
XIV
ainda, de forma mais palpável, a materialização das Quatro Liberdades previstas na Carta do
Atlântico.9 Ao contrário, pairavam o medo e a fome sobre grande parte do globo; prevalecera
a expectativa por uma guerra de conseqüências apocalípticas, face o implemento bélico
nuclear e ao recrudescimento de políticas autoritárias em busca de expandir e reafirmar seus
respectivos territórios. Apesar disto, os nacionalismos de então tinham uma outra tessitura,
com cunho mais voltado a ideais libertadores e democráticos do que de culto ao poder
nacional10 até porque, com a expansão do sentimento internacionalista, um novo arranjo
universal havia de tomar forma para suprir o vácuo deixado pela antiga Liga das Nações.
Talvez a conseqüência menos manifesta e, em contrapartida, mais importante da
Segunda Guerra foi justamente a aceleração da revolução universal pela qual o mundo
passava desde os idos de 1789 e que marcou a transição da Idade Média para a Moderna. 11
Fica evidente que todos os grandes conflitos ocorridos no século XX – inclusive as
Grandes Guerras – tiveram uma motivação econômica comum apesar de, por vezes, 9 A carta do Atlântico foi escrita no dia 9 de Agosto de 1941, o Primeiro Ministro Winston Churchill, em representação do Governo de Sua Magestade do Reino Unido, embarcado no cruzador "Príncipe de Gales" e o Presidente dos Estados Unidos da América, Franklin Roosevelt, embarcado no cruzador "Augusta", encontraram-se na Argentina Bay, Terra Nova. No dia 14 foi tornada pública a "Carta do Atlântico que rezava: “El Presidente de los Estados Unidos de América y el Primer Ministro representante del Gobierno de S. M. en el Reino Unido, habiéndose reunido en el Océano, juzgan oportuno hacer conocer algunos principios sobre los cuales ellos fundan sus esperanzas en un futuro mejor para el mundo y que son comunes a la política nacional de sus respectivos países:
1. Sus países no buscan ningún engrandecimiento territorial o de otro tipo.2. No desean ver ningún cambio territorial que no esté de acuerdo con los vo tos libremente expresados de
los pueblos interesados.3. Respetan el derecho que tienen todos los pueblos de escoger la forma de gobierno bajo la cual quieren
vivir, y desean que sean restablecidos los derechos soberanos y el libre ejercicio del gobierno a aquellos a quienes les han sido arrebatados por la fuerza.
4. Se esforzarán, respetando totalmente sus obligaciones existentes, en extender a todos los Estados, pequeños o grandes, victoriosos o vencidos, la posibilidad de acceso a condiciones de igualdad al comercio y a las materias primas mundiales que son necesarias para su prosperidad económica.
5. Desean realizar entre todas las naciones la colaboración más completa, en el dominio de la economía, con el fin de asegurar a todos las mejoras de las condiciones de trabajo, el progreso económica y la protección social.
6. Tras la destrucción total de la tiranía nazi, esperan ver establecer una paz que permita a todas las naciones vivir con seguridad en el interior de sus propias fronteras y que garantice a todos los hombres de todos los países una existencia libre sin miedo ni pobreza.
7. Una paz así permitirá a todos los hombres navegar sin trabas sobre los mares y los océanos.8. Tienen la convicción de que todas las naciones del mundo, tanto por razones de orden práctico como de
carácter espiritual, deben renunciar totalmente al uso de la fuerza. Puesto que ninguna paz futura puede ser mantenida si las armas terrestres, navales o aéreas continúan siendo empleadas por las naciones que la amenazan, o son susceptibles de amenazarla con agresiones fuera de sus fronteras, consideran que, en espera de poder establecer un sistema de seguridad general, amplio y permanente, el desarme de tales naciones es esencial. Igualmente ayudarán y fomentarán todo tipo de medidas prácticas que alivien el pesado fardo de los armamentos que abruma a los pueblos pacíficos.
Franklin D. Roosevelt - Winston Churchill14 de agosto de 1941”
In: http://www.historiasiglo20.org/TEXT/cartaatlantico.htm10 Como o foram os regimes de Hitler e Mussolini, por exemplo.11 Revolução Industrial, de cunho econômico e prático que ocorrera quase concomitantemente com a Revolução Francesa, se cunho social e ideológico. Em face desta proximidade entre os eventos, alguns autores chegam a tratá-los como “Múltiplas Revoluções.”
XV
camufladas sob fatos que serviram de estopim. Esta motivação fora a expansão da Revolução
Industrial, o implemento de novo modo-de-produção e seus conseqüentes desdobramentos.
Eles estão intimamente ligados às raízes do fascismo e do próprio comunismo.
Contudo, o capitalismo, entendido como sistema econômico de livre concorrência,
empreendimento e com produção voltada à realização de lucro teve sua funcionabilidade
comprometida mais uma vez. De fato, salvo as exceções, este sistema mostrou-se ineficiente
para aumentar os padrões de vida, reduzir a fome, as privações e otimizar a exploração
sustentada e eficaz dos recursos naturais do planeta, sobretudo em regiões como a Índia e o
Oriente Médio.
Este sistema econômico era marcado por ciclos de expansão e depressão. Após a
crise de 1929 muitos se tornaram descrentes na sua capacidade de auto-superação.
Entrementes que, em 1939, a grande escalada de desperdício e destruição em proporções
homéricas proporcionadas pela Segunda Guerra, originou uma nova onda de “prosperidade”
pela fabricação e venda em massa de material bélico em geral. Ainda assim, restava a dúvida
se ao término de mais esta epopéia degenerante da existência humana haveria possibilidade de
recuperação. Logo percebeu-se que sim. Uma tônica recuperação sucedeu-se no após-guerra
com uma procura maciça por bens duráveis como geladeiras, automóveis, televisores, etc. Isto
ocorreu paralelamente ao começo das hostilidades para com a Coréia e fez os anos de 1945 a
1950 figurarem entre os mais prósperos da História.
Neste processo, mais uma vez despontaram os Estados Unidos da América (EUA)
em detrimento dos vencidos e neutros. Porém, diferentemente do que ocorrera outrora, os
EUA sinalizavam que não iriam adotar a política do isolacionismo. Antes ao contrário,
potência inconteste como passou a ser, logo cedo denunciou seu intuito de estabelecer-se
como líder imperialista do bloco ocidental, expoente do “capitalismo progressista.” Para
tanto, o Congresso norte americano perdoou dividas astronômicas dos vencidos através do
regime conhecido como Lend-Lease – algo na ordem de nove décimos – e liberou, em 1946,
quatro bilhões de dólares dos quais beneficiou-se, sobretudo, a Inglaterra. Com estas medidas
o governo norte-americano angariava simpatizantes e difundia sua dominação econômico-
ideológica.
Não há dúvidas de que o descrédito e desilusão no sistema econômico fomentaram
o surgimento do coletivismo. Dentro desta doutrina, sob filosofias pessimistas em função dos
ciclos de ascensão e crise do capitalismo, ganhava força a inspiração marxista e a expansão do
modo-de-produção socialista, liderados pela União Soviética (URSS). Vale lembrar que Karl
XVI
Marx (1818-1873)12 fundamentou seus trabalhos justamente nas contradições do sistema
capitalista. Em seu Manifesto Comunista, por exemplo, tece duras criticas e sombrias análises
premonitórias sobre a falência modo-de-produção capitalista e sua substituição natural pelo
comunismo no desenrolar histórico.
Estes fatos dividiram opiniões. Uns defendiam a instauração e manutenção de
governos fortes e nacionalistas como os fascismos; outros investiam no liberalismo político-
econômico; outros no coletivismo liberal; e outros, partícipes do ideário de Marx, apostavam
no coletivismo socialista e comunista.
1.2) A sedução ideológica na América Latina
Consolidaram-se assim dois blocos: o capitalista e o socialista. Do embate entre
ambos surgiu um novo tipo de conflito: a Guerra Fria. As duas frentes desejavam ascender
como paradigma do mundo. Ambos temiam ataques de seus opositores e, sob este pretexto,
armavam-se cada vez mais.
Enquanto os Estados Unidos desejavam reconstruir o mundo de acordo com o
padrão anterior a 1939 – coisa que poucos acreditavam ser possível –, a União Soviética tinha
concepções diversas. Desejavam acesso livre aos mares – Mediterrâneo, Báltico – aos
Oceanos Índico e Pacífico, maior participação na administração e exploração das indústrias do
Ruhr, o controle de Bósforo e dos Dardanelos, bem como revisões territoriais e expensas da
Turquia e da China. Seu projeto maior, entretanto, era disseminar o comunismo pelo mundo
inteiro.
O Presidente norte-americano Harry S. Truman, em 1947, enunciou sua política
estrangeira que ficaria sendo conhecida como Doutrina Truman.13 Ela declarava que os EUA
acorreriam em auxílio de qualquer país cuja “liberdade e independência” estivesse ameaçada
12 Karl Marx e Friderich Engels na verdade não foram os primeiros a pensar o comunismo. Estudos mostram que o judeu apóstata Moritz Hess (1812-1875) foi o primeiro dentre os "jovens hegelianos" a admitir ser um comunista. Ele representava em Paris, de 1842 a 1843, o jornal radical Rheinische Zeitung (Gazeta do Reno), quando conheceu Karl Marx e, depois, Friedrich Engels. Depois de doutrinados por Hess, Marx e Engels se conheceram em Paris e, após muitos entendimentos, lançaram o Manifesto Comunista.13 A expressão Doutrina Truman designa um conjunto de práticas do governo dos Estados Unidos da América, em escala mundial, à época da chamada Guerra Fria, que buscava conter a expansão do socialismo junto aos chamados "elos frágeis" do sistema capitalista. Harry S. Truman, sob pressão inglesa de Winston Churchill, pronunciou em 12 de Março de 1947, diante do Congresso Nacional daquela nação, um violento discurso assumindo o compromisso de defender o mundo capitalista contra a ameaça comunista. Estava lançada a Doutrina Truman e iniciada a Guerra Fria que propagou para todo o mundo o forte antagonismo entre os blocos capitalista e comunista. Em seguida, o secretário de estado George Catlett Marshall anunciou a disposição dos Estados Unidos de efetiva colaboração financeira para a recuperação da economia dos países europeus. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Doutrina_Truman
XVII
de agressão interna ou externa, numa correlação direta com a expansão do comunismo na
Europa Oriental.
Pouco depois, Truman enunciou o Plano Marshall14 – Programa de Recuperação
Européia –, elaborado por George C. Marshall, seu secretário de estado. Declarava que não se
dirigia “contra qualquer país ou doutrina, mas contra a fome, a pobreza, o desespero e o
caos.” Ao mesmo tempo, advertia que qualquer governo que tentasse se opor à recuperação
econômica ou perpetuar em proveito próprio a miséria humana, não receberia nenhum auxílio.
Alguns historiadores crêem que o Plano Marshall em essência visava realmente
ajudar na recuperação da Europa como uma contribuição para a paz. Entretanto, é consenso
que tanto ele como a Doutrina Truman tinham entre si muitos pontos coincidentes que, se não
o eram ao menos aparentavam, uma conspiração contra a Rússia Soviética. Estes por sua vez,
possuíam um poderoso solvente dos laços imperialistas que consistia na filosofia do levante
das massas exploradas contra os dominadores estrangeiros. Como resultado, Índia, Palestina e
Birmânia haviam se libertado do domínio inglês enquanto a Indonésia plocamara sua
independência da possessão holandesa.
A ONU em seus primeiros oito anos de atividade não conseguiu reduzir o número
de armas e nem reduzir as fricções entre russos e americanos. Ao contrário, entre outras
facetas que incitaram os atritos, determinou a retirada de tropas russas do Irã e nomeou uma
comissão para investigar os comunistas estrangeiros na Grécia.
Mediante infindáveis embates, representantes do Politburgo de Moscou reuniram-
se secretamente em 1947 com comunistas dos potentados da Rumânia, Iugoslávia, Bulgária,
Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Itália e França a fim de fundar a Agência Comunista de
Informações – o “COMINFORM” – no intento de combater o imperialismo e, sobretudo, se
opor ao Plano Marshall. Também em oposição ao Plano Marshall, os comunistas criaram o
14 O Plano resultou em doações para países europeus, entre 1948 e 1952, que somariam uns US$ 150 bilhões em dinheiro de hoje. O sucesso foi absoluto em reconstruir e reativar a economia européia, de cuja prosperidade dependia, em boa medida, a própria economia americana. Não deve haver dúvida estava em jogo também, e principalmente, o objetivo de proteger a democracia do avanço do comunismo. É comum a percepção de que o Plano Marshall só fez sentido no contexto da Guerra Fria, mas muitos economistas enxergam algo bem maior na iniciativa. O Plano Marshall instituído pelos americanos resultou em incrível crescimento econômico para os países europeus envolvidos. A produção industrial cresceu 35%, e a produção agrícola havia superado níveis dos anos pré-guerra. Recentemente os historiadores vêm questionando tanto os verdadeiros motivos e os efeitos gerais do Plano Marshall. Alguns historiadores acreditam que os benefícios do plano foram na verdade o resultado de políticas de laissez faire que permitiram a estabilização de mercados através do crescimento econômico. Além disso, alguns criticam o plano por estabelecer uma tendência dos EUA ajudarem economias estrangeiras com dificuldades com o dinheiro dos impostos dos cidadãos norte-americanos. O comunismo passou a ser considerado pelos dirigentes da Europa Ocidental como uma ameaça menor, e a popularidade dos partidos o organizações comunistas na região caiu bastante. [Este é um ponto interessante que demonstra as intenções intrinsecas do Plano Marshall]. In: http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/veja52.htm e http://pt.wikipedia.org/wiki/Plano_Marshall
XVIII
Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON) em 1949. Este conselho era
orientado pelos princípios da planificação econômica e foi criado pela URSS para ajudar na
reconstrução do Bloco Socialista.
Aos olhos dos cidadãos ocidentais, degustadores da ideologia capitalista, Stalin
não era melhor que Hitler e tal pensamento tornava o comunismo uma doutrina tão nociva
quanto ou mesmo pior que o nazismo. Os próprios ditames dos precursores socialistas
alimentavam esta visão quando Lênin dizia, por exemplo, ser “inconcebível que a própria
república soviética continue por muito tempo a co-existir com os estados imperialistas” ou
quando Stalin declarava que:
“o poder soviético, e só o poder soviético, é capaz de arrancar o
exército ao comando burguês e transformá-lo, de instrumento de
opressão do povo, num instrumento para libertar o povo do jugo da
burguesia, tanto interior como exterior.”
Convencidos de que os russos soviéticos eram uma ameaça ao mundo por querer
conquistá-lo, os americanos engajaram-se na criação da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) que se deu em abril de 1949. A maioria dos países atlânticos foi catequizada
por esta idéia e a função precípua desta Organização seria “proteger a liberdade, a herança
comum e a civilização” dos povos do Atlântico e prover a estabilidade e o bem-estar dessa
região do globo. Esperava-se que, neste clima tenso de incertezas, a OTAN estivesse pronta a
enfrentar eventuais emergências que resultassem da política expansionista da Rússia
Soviética. A URSS por sua vez, criou em 1955 o Tratado de Assistência Mútua da Europa
Oriental, conhecido como “Pacto de Varsóvia” – aliança militar do Bloco Socialista e
formada por países da Europa Oriental e a URSS.
Muitos tratados surgiram no período. A maioria dispunha sobre a desmilitarização
e o pagamento de reparações.15 O tratado com o Japão assinado em setembro de 1951 com a
participação de cinqüenta e uma nações, por exemplo, privava-o de todo o seu território
ultramarino em troca do direito à sua soberania e do direito de rearmar-se. Quando entrou em
vigor em 1952, a Rússia manifestou-se profundamente insatisfeita visto que, se o Japão fosse
posto por terra como desejava, seria uma presa fácil para o comunismo.
Neste contexto, a cobiça de ambas as potências pairavam sobre a América Latina e
os países do Continente Africano pois, pelo seu subdesenvolvimento e dependência, seriam
campos férteis à implantação de um novo modo-de-produção. Caberia assim aos EUA
15 Que iam desde 70 milhões o caso da Bulgária, até 360 milhões no caso da Itália.
XIX
reafirmar o modelo capitalista enquanto aos soviéticos competia cativar adeptos à doutrina
socialista.
Não por acaso, e intervenções militares se fizeram presentes em na América Latina
como um todo entre 1945 e 1989 16 – período que compreende a Guerra em questão. Ocorre
que os EUA, preocupados com o avanço socialista, incentivaram e pressionaram para que
regimes de extrema direita – representadas, numa esfera global, pelas Forças Armadas (FA) –
dessem um Golpe de Estado em seus respectivos governos como maneiro de torná-los campos
inférteis ao ideário socialista. Afinal, se o modo-de-produção alternativo prospera-se, seria o
caos norte-americano bem como no Velho Mundo Ocidental. No Brasil não fora diferente.
Tal receio não era descabido. Antes da Guerra o único país dito comunista17 era a
Rússia e, nos três anos subseqüentes ao fim do conflito, Tchecoslováquia18, Polônia,
Alemanha Oriental e todos os estados balcânicos excetuando-se a Grécia já haviam se
curvado ao novo modo-de-produção socialista. Pouco mais tarde, seria vez de China e Cuba
tornarem-se comunistas, àquela em 1º de outubro de 1949, sob a vitória do líder
revolucionário Mao Tse-tung, e este, em janeiro de 1959, com Fidel Castro e Ernesto Che
Guevara.
Fica bem claro que o atrativo soviético bem como sua esfera de influência se faz
sentir pelas mazelas sofridas por àqueles países que, em sua órbita, foram adjudicados pela
Grã Bretanha e pelos EUA. Já noutros como França, Alemanha, Itália e tantos mais, o
fenômeno da sua popularidade crescente só pode ser explicado pela descrença no capitalismo.
Os vácuos de poder criados pelo após-guerra não podem ser desconsiderados uma vez que
tenderam a ser preenchidos pelo ideário comunista.
Os resultados de todas as injunções aqui vislumbradas davam vigor ao comunismo
pelo mundo. Estima-se que havia cerca de onze milhões de comunistas declarados dispersos
pela Europa além Rússia. Constituíam um quarto do eleitorado italiano e dois milhões de
partidários alemães e franceses.
16 Incluindo-se o Brasil e desconsiderando àqueles países onde se verificou o recrudescimento militar, foram 08 no total (Na Venezuela, em 1948; no Peru, em 1968; na Bolívia, em 1971; no Equador, em 1972; no Uruguai, em 1973; na Argentina, em 1976; e, na Colômbia, surgem as Forças Armadas Revolucionárias (FARC), em 1964).17 Segundo Marx, o comunismo abarca uma série de características tais que, para serem atingidas, passariam forçosamente por um processo prévio de socialização. Observando seus critérios e características, não houve país comunista em essência mas sim nações socialistas.18 Na Tchecolosváquia, mesmo antes que os comunistas assumissem o controle governamental em fevereiro de 1948, 65% das indústrias já haviam sido nacionalizadas.
XX
1.3) O Brasil do pós-Guerra
No campo político, o país vinha atravessando uma série de transformações no pós-
guerra. Saindo do regime ditatorial de Getúlio Vargas (Estado Novo, 1930-1945), os
brasileiros se aperceberam que defendiam a democracia em território estrangeiro enquanto
que o solo nacional era gerido sob uma pesada ditadura. É interessante notar que a deposição
de Vargas assim como sua impostura se deu por ação de militares e, paradoxalmente, foram
eles que conduziram o processo de redemocratização sob o governo do General Dutra.
Contudo, em 31 de janeiro de 1951, Getúlio Vargas recebia novamente – agora pela força do
voto – a faixa presidencial. Era o inicio de uma nova gestão de expressão marcadamente
populista.
Entretanto, o Brasil de 1950 era bem diferente do estado novismo. A taxa de
crescimento demográfico subira para 3,6% ao ano o que levaria à marca de 71.000.000 de
habitantes em fins da década, cerca de 20% a mais que os últimos anos do Estado Novo.19 Em
qualquer sociedade o crescimento demográfico tende a ser proporcional ao número de
problemas, principalmente se não for feito de forma planejada. Aqui o número de analfabetos,
por exemplo, crescia em número apesar de decrescer percentualmente;20 as classes operárias
urbanas cresciam em função do êxodo rural enquanto que a classe média urbana e os
industriais encontravam-se muito fortalecidos pelos processos de urbanização e
industrialização levados a efeito por Dutra enquanto que as mazelas e o abismo social criado
pela concentração e má distribuição do capital aumentavam. Alinhado e consolidado como
nação capitalista, o país seguia a tendência mundial de aquecimento do mercado
principalmente no tocante aos bens duráveis.21
O capitalismo brasileiro, porém, deu-se de forma tardia e dependente.
Transformou-se em transnacional e oligopolista, subordinado-se aos centros de expansão
capitalista – principalmente aos EUA. O capital dito "nacional" no período de Getúlio Vargas,
dava lugar ao capital estrangeiro coexistindo com este principalmente nas empresas estatais
onde o capital transnacional teria um papel proeminente através de empreendimentos
19 Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 61.20 Enquanto o número de analfabetos maiores de 15 anos cresceu de 13,3 milhões na década de 1940 para 15,8 na década de 1960, o percentual considerando-se a progressão populacional caiu de 56% para cerca de 39% nos respectivos períodos. Este dado é um dos fundamentais para a compreensão do processo de politização social, uma vez que o sufrágio não era universal e analfabetos eram impedidos de votar. In: Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 61.21 Como o Brasil à época possuía industrialização insipiente, houve necessidade de investimentos em massa nesta área. Assim, entram em cena as principais vertentes de análise de cunho marxista: a inversão do modelo de exportações, crise de realização ou busca por um novo pacote de investimentos. In: Maria MORAES, Considerações sobre a Crise de 1964, _____________________, p. 19.
XXI
conjuntos (joint ventures) entre multinacionais e o Estado, exercendo controle sobre parte das
ações de empresas brasileiras.
A influência do após-Guerra, sobretudo a comunista, também se fazia presente em
território tupiniquim. Aliás, se na década de 1930 o Brasil sediava o maior grupo nazista fora
da Alemanha,22 poder-se-ia também quantificar os ânimos acerca do comunismo em fins da
década de 1950 e durante o transcorrer da década seguinte, sob movimentos como a Liga
Camponesa, liderada por Francisco Julião, ‘da União Nacional dos Estudantes (UNE), da
Ação Popular (AP), Ação Libertadora Nacional (ALN), Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR), entre outros.
O comunismo fora amplamente debatido no Brasil, principalmente na academia.
Isto é algo bastante natural se observarmos que o mundo passava por uma reformulação no
pensar científico – sobretudo as áreas de ciências humanas. Tratava-se a substituição do
modelo positivista pelos moldes marxistas. Não obstante, sabedores do risco de uma nova
guerra potencialmente apocalíptica e do alarde que isto gerava nos meios de comunicação,
seria utópico pensar diferente. Direta ou indiretamente, a inspiração marxista estava
entrelaçada com o desenrolar histórico.
O governo populista do presidente Juscelino Kubtschiek, seguindo o embalo norte-
americano desenvolvimentista, aplicou no Brasil um audacioso Plano de Metas cujo jargão
exemplificava bem sua audácia e dinamismo: “50 anos em 5.” Entretanto, sua política
acelerou em grande escala a crise econômica que estaria por vir e, com ela, a crise política.
Jânio Quadros, presidente da república sucessor de JK teve um governo
semiditatorial de apenas sete meses (de janeiro a agosto de 1961). Sua gestão, apesar do seu
inconteste carisma e popularidade, não resistiu por muito tempo aos extremos a que foram
submetidos o pacto populista face aos interesses e diferenças entre os grupos dominantes.
“Um legado de problemas [o] aguardava, incluindo a inflação que se tornara incontrolável, a
estagnação agrária, dificuldades na balança de pagamentos, bem como a exaustão do mercado
de consumo de bens duráveis que beneficiava a classe média alta.” A ausência de um plano de
governo substancial corroborou para que sua permanência se tornasse insustentável e, em
agosto de 1961, renunciou à presidência na esperança de ser conclamado e retornar ao cargo
22 O “Integralismo” ou Partido Integralista era atuante, sobretudo nos estados do sul do Brasil. Antes dele, porém existia um grupo chamado genericamente de Landesgruppe Brasilien (ou "o grupo do país Brasil"), que pode ser identificado como um partido nazista no Brasil. Segundo Ana Maria Dietrich, desde o início a organização não era urna célula isolada e integrava uma rede mundial com outras filiais do partido presentes em 83 países, com 29 mil integrantes. Quando foi oficializado, em 1928, seu líder, Hans Henning von Cassel, estava apenas a dois degraus hierárquicos do próprio Hitler. "O partido chegou a ter 2 900 integrantes e era, de longe, o maior entre os partidos nazistas que operavam fora da Alemanhà', diz Ana Maria. O segundo maior era o da Holanda, com 1 600 membros.
XXII
nos braços do povo e da classe média, o que lhe daria poderes Bonapartistas-civis. Contudo
isto não aconteceu e, ao que parece à Maria Celina D'Araújo, só não houve um golpe de
imediato porque o General Machado Lopes, do Terceiro Exército (RS), foi convencido a ficar
do lado dos legalistas, ameaçando pegar em armas caso fosse necessário o que fez com que o
grupo militar mais radical recuasse.
Coube então ao secretário de imprensa Raul Riff comunicar na madrugada do dia
25 de agosto de 1961 ao vice-presidente João Belchior Marques Goulart,23 de 42 anos, na
suíte do Hotel Raffies em Cingapura no que seria sua última parada da viagem diplomática
pela União Soviética e China, que ele era constitucionalmente o novo presidente do Brasil.
Goulart enfim ocuparia a cadeira que havia sido de seu padrinho político, Getúlio Vargas.
Entrementes, no Brasil, uma crise política se instaurou. Vários setores se opunham
à sua posse, sobretudo os ministros militares.24 Por isso sua viagem de regresso ao país foi
longa, com várias paradas alternativas, pois era grande o receio do então presidente sobre as
conseqüências do seu regresso naquele momento. Mas, sob grande pressão legalista
sobretudo por parte do Governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, seu cunhado e
correligionário, e de oficiais militares proeminentes como o Marechal Henrique Teixeira
Lott, ex-Ministro da Guerra e companheiro de chapa de João Goulart, implantou-se o regime
parlamentarista a fim de amenizar a crise e afastar a possibilidade de um mal maior pois,
segundo o historiador Daniel Aarão Reis, da UFF, “a nação esteve à beira da guerra civil".25
23 “Advogado, nascido na cidade de São Borja, estado do Rio Grande do Sul, em 1° de março de 1918. Iniciou sua atividade política no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tendo sido fundador desta agremiação em São Borja (1946) e presidente do diretório do Rio Grande do Sul (1950-1954). Elegeu-se deputado estadual (1946-1950) e deputado federal (1951), licenciando-se do mandato para assumir a Secretaria do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul (1951-1952). Foi deputado federal pelo PTB-RS (1952-1953), ministro do Trabalho, Indústria e Comércio do governo de Getúlio Vargas (1953-1954) e presidente nacional do PTB (1952-1964). Candidatou-se ao Senado em 1954, mas foi derrotado. Foi vice-presidente da República no governo Juscelino Kubitschek e, por força de dispositivo constitucional, presidente do Senado (1956-1961). Em 1960 reelegeu-se vice-presidente, na chapa de oposição ao candidato udenista Jânio Quadros. Com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, João Goulart, ou Jango, como era conhecido, foi empossado na presidência da República, em 7 de setembro, após a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional que instaurou o regime parlamentarista de governo.” In: http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_jango.htm24 Conforme nota de René Dreiffus, “O [Ministro do Exército] Marechal Denys deu um ultimatum ao Congresso no sentido de que se descobrissem recursos constitucionais para impedir a ascensão de João Goulart ao poder. Se não fosse tomada nenhuma providencia, o Marechal Denis e o General Cordeiro de Farias formariam uma junta militar.” (O grifo é meu) In: Telegrama de Delgado/ Arias nº 271 127 Z ao Departamento de Estado em 27 de agosto de 1961. Este documento se encontra nos arquivos JFK, Boston, Massachussets. Segundo a historiadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Maria Celina D'Araújo, "Foi um 'golpe branco', que só não deu certo porque a população, incluindo grande parte dos contingentes das próprias Forças Armadas, levantou a bandeira da legalidade e da democracia.” (o grifo é meu) In: Roberto CIVITA. Ditadura no Brasil.Rio de Janeiro, Ed. Abril, 04/2005. Separata da revista “Aventuras na História”, série Dossiê Brasil, p. 15.25 “o presidente do Senado Federal, Senador Auro de Moura Andrade, incontinenti [comunicou a renúncia de Jânio Quadros] à Câmara Alta, que declarou a vacância da Presidência da República, determinando a posse imediata do sucessor legal, no caso, o então presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Ranieri Mazzilli.” In: Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 120.
XXIII
Jango assumiu a Presidência em 7 de setembro de 1961, sob um regime criado às pressas.
“Um parlamentarismo à brasileira [onde]: o presidente, não o primeiro-ministro, era quem
tinha poder para nomear ministros, vetar projetos de lei e nomear para cargos federais. Mas
quem propunha projetos e até o orçamento era o primeiro-ministro - Tancredo Neves, do
PSD.”26
26 A pesquisadora Argelina Figueiredo afirma ter sido “um sistema híbrido que custou o bom funcionamento do governo (...) O novo regime excluía a possibilidade de reformas políticas e sociais profundas.” A historiadora Maria Celina D’Araújo concorda quando diz que “O arranjo castrava o poder do presidente e dava mais força ao Congresso, que era conservador.” In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 15.
XXIV
CAPÍTULO II
O BRASIL EM CRISE
2.1) Processo de consolidação do modelo econômico brasileiro
“Desde o fim da Segunda Guerra, o Brasil crescia de forma acelerada (...) o
aumento do produto nacional bruto (PIB) fora espetacular - 9,7% em 1960 e 10,3% em 1961.
Mas a economia entra em crise e, em 1963, o PIB cresce apenas 0,6%, a menor taxa desde
1947.”27 1964 começaria com preços subindo alucinadamente pouco dinheiro no bolso dos
cidadãos o que “Foi mais um susto para a classe média, já suficientemente apavorada com o
fantasma do comunismo”, comenta o historiador Jorge Ferreira.
Segundo Tarcísio Meirelles Padilha, logo após à crise política que marcou a sua
posse, o presidente João Goulart acabou “revelando desde logo uma manifesta insuficiência
de condições para o exercício do cargo e ainda nítida inapetência para os assuntos da
administração pública, [vendo-se] manietado por facções políticas de orientação ideológica
marxista e paramarxista.”28 Contrariando esta análise, alguns historiadores como Maria Celina
D’Araújo defendem que a gestão do presidente da república João Goulart foi fortemente
comprometida pelo sistema parlamentarista que se implantou. Assim, segundo ela, além das
dificuldades herdadas por seus antecessores, Jango teria que lutar para recuperar seus poderes
presidenciais desvencilhando-se do Congresso – fato que só iria acontecer em janeiro de 1963
mediante o adiantamento de um plebiscito popular previsto para 1965 – e pondo então seus
projetos em prática.29 Para tanto, teria o apoio dos governadores da Guanabara (O ex-
comunista Carlos Frederico Werneck de Lacerda), de Minas Gerais (Magalhães Pinto) e da
Bahia Quaraci Magalhães), além do popular ex-presidente Juscelino Kubitschek – todos de
olho nas eleições presidenciais marcadas para 1965.
Uma das primeiras medidas de Jango após recuperar os poderes presidenciais foi
lançar um plano de combate à inflação e de incentivo ao desenvolvimento conhecido como
“Plano Trienal”30, o que desagradou a setores empresariais e irritou os trabalhadores. O 27 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 15.28 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 120.29 “Em 6 de janeiro de 1963, em plebiscito antecipado, 11.500.000 dos 18 milhões de eleitores compareceram à votação, confirmando a opção pelo presidencialismo por larga margem de votos.” Seus projetos basicamente seriam as chamadas reformas de base - agrária, bancária, tributária, eleitoral e urbana. In: http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_jango.htm30 “Em dezembro de 1962, foi divulgado o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. Elaborado por Celso Furtado, futuro ministro Extraordinário para Assuntos de Desenvolvimento Econômico, o plano seria adotado e conduzido pelo ministro da Fazenda San Tiago Dantas. Seu principal objetivo era a contenção da inflação aliada ao crescimento real da economia, prevendo também as chamadas reformas de base, já anunciadas
XXV
projeto visava dar forma às reformas de base. Entretanto, sem apoio de setor algum, o
programa vigorou por apenas três meses. Neste ínterim, a combalida economia nacional
piorou.
Com razão, a economia é com freqüência apontada como uma das razões de
fundo para o golpe militar – senão a maior. O capital sem dúvida teve papel sumário neste
processo. Foi durante a década de cinqüenta, que o capital transnacional passou a integrar a
economia do país na forma de prestação de serviços, extração e comercialização de produtos
agrícolas e em menor grau, em empresas industriais. Os interesses do capital estrangeiro
foram redirecionados com o advento do Plano de Metas para outros setores, expandindo a
economia local no ramo manufatureiro.31
Este processo está diretamente relacionado com o padrão dos investimentos
americanos pós 2ª Guerra quando o percentual de capital investido na manufatura alcançou o
mesmo patamar daquele investido nas companhias de utilidade pública (39%), sendo o resto
distribuído entre a mineração, o comércio, extração e refino petrolífero. “Em 1950 a
manufatura já representava 44%, subindo a 54% em 1960 e atingindo 68,0% em 1966.”32
A influência das organizações multinacionais e a integração da indústria são
incontestes no contexto em que se desvela a crise da transição das décadas de 1950 para 1960.
Mudanças na divisão internacional do trabalho e a penetração na economia brasileira de
multinacionais representadas principalmente por norte-americanos33 deram lugar a novas
relações econômicas e políticas que proporcionaram crescente concentração econômica e
centralização de capital nos cofres de grandes unidades industriais e financeiras além de
promover um processo de controle oligopolista do mercado.34
O governo brasileiro, sobretudo o do Presidente Juscelino Kubstichiek, foi
no regime parlamentarista e que incidiam sobre as estruturas agrária, bancária, fiscal, entre outras. Durante esses anos de governo, as reformas e os reajustes salariais e a estabilização da economia, com o controle da inflação, foram os dois pólos de conflito da política econômica e da tentativa de implementação do Plano Trienal. Às pressões externas, do governo americano e do Fundo Monetário Internacional (FMI), condicionando os empréstimos externos à adoção de medidas restritivas ao crescimento, correspondiam as reivindicações populares e dos setores da esquerda brasileira.” In: http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_jango.htm31 Fato denominado de "segundo estágio de substituição de importação" por autores como Maria da Conceição TAVARES, José SERRA, Pierre SALAMA e Maria MORAES In: Considerações sobre a crise de 1964.______, abril de 1974.32 René Armand DREIFFUS. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 53.33 Os americanos representavam 13 grupos (48 %) do total de 29 grupos multinacionais bilionários.34 De um total de 144 grupos "nacionais", somente 78 não tinham ligações bem definidas com interesses multinacionais (...) Os americanos representavam também 48 % do total de interesses multinacionais e 15,6% do total de grupos bilionários nacionais e multinacionais (...) Dos 55 grupos multibilionários encontrados no Brasil, 31 deles (56,4%) eram multinacionais e 24 deles (43,6%) eram locais ou "nacionais" dos quais, por sua vez, 62,5% tinham ligações variadas com grupos transnacionais. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 50.
XXVI
fomento para o "sistema e regime político penetrado"35 com seu método desenvolvimentista
exarcebado e inconseqüente permitindo que “mais de 65% dos grupos multinacionais
[operassem] em áreas de atividade onde tinham controle total, ou quase total, do mercado
[chegando ao controle de 92,4% do mercado brasileiro].”36
A maior parte dos investimentos feitos por corporações norte-americanas no
Brasil o era através de organizações locais em consonância com a lei brasileira para que
pudessem usufruir de vantagens administrativas e tributárias. Muitas vezes as corporações
eram organizadas sob um nome para disfarçar seu vinculo com a matriz, estratégia adotada
para ganhar identidade local. Os investimentos eram voltados basicamente para indústrias cuja
produção ajustava-se a um mercado consumidor de classe média e não tanto para a
exportação. Daí a necessidade de aquecer e consolidar esta classe como pré-requisito para o
crescimento e a saciedade dos interesses econômicos internacionais em detrimento das classes
trabalhadoras urbanas e rurais.
Não obstante, JK iniciou uma crescente industrialização de base com recursos
captados do exterior em detrimento da própria capacidade do PIB37 brasileiro de quitar tal
divida externa. Este movimento pró “50 anos em 5” e “pró nacionalista” permitiu o controle
oligopolista transnacional do setor secundário do mercado38, o mais rentável e dinâmico deles,
aumentando paradoxalmente a subserviência nacional a médio prazo, além dos abismos e
mazelas sociais no longo prazo. Portanto, “o capital monopolista transnacional ganhou uma
posição estratégica na economia brasileira, determinando o ritmo e a direção da
industrialização e estipulando a forma de expansão capitalista nacional”, exatamente pela
aplicação dos cinco setores chave de Juscelino – energia, transporte, alimentação, indústrias
básicas e educação, subdivididos em trinta objetivos ou “metas” onde a construção de Brasília
era o símbolo de um novo tempo. Senão vejamos: os investimentos nos setores energéticos, de
transporte, alimentação e indústrias básicas em geral eram de custo elevado, privilegiavam
fornecedores estrangeiros além de ter retorno lento e irrisório; na área da educação, os
recursos foram aplicados sobretudo na área técnica, de formação profissional, pois era
necessário prover mão-de-obra para as indústrias e multinacionais; e, por fim, a construção de
Brasília que trouxe certos benefícios à nação como maior integração e interiorização, ao
35 Diz-se que um sistema político é penetrado quando indivíduos não-membros da sociedade nativa participam diretamente e com autoridade, por ações realizadas em conjunto com elementos da referida sociedade, da designação de seus valores ou da mobilização de apoio na defesa de seus objetivos.36 Uma evidência clara da tendência dos grupos multinacionais para o estabelecimento de um controle oligopolístico do mercado pode ser obtida observando o grau de monopolização no setor metalúrgico sediado em São Paulo. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 56.37 Produto Interno Bruto; mensuração da soma de todas as riquezas produzidas por um país.38 Setor relativo à prestação de serviços, comércio, transporte, etc.
XXVII
mesmo tempo em que proporcionou um aumento grosseiro da divida externa. Assim, fica
evidente que apesar do véu popular-nacionalista, atendia-se na verdade aos interesses das
classes dominantes.
Aquelas que eram consideradas grandes empresas nacionais passaram a ser
controladas predominantemente por multinacionais. A dependência daquelas em relação a
esta possuía fulcro ainda mais profundo do que a simples dependência financeira pois a
dependência tecnológica as fazia integrar-se ainda mais, dando às multinacionais a primazia e
a facilitação para concentrar-se em setores especializados de atividades. Isto culminou em
uma concentração de capital e conseqüente poder que dentro em breve seria expresso em
termos de pressão política. “A concentração de mercado outorga poder adicional às
corporações multinacionais livres das restrições do mercado competitivo.” Dessa forma, as
corporações nacionais passaram a ser empresas associadas (ou transnacionais) e o processo de
internacionalização seria estendido ainda mais depois de 1964 face às suas características
hegemônicas.
Concomitante com o processo de concentração industrial, houve extrema
concentração de posse de terra com conseqüente êxodo rural e um processo vigoroso de
monopolização bancário.39 Houve também um processo de monopolização empresarial
facilitado pela concentração econômica em nível financeiro de maneira que um único grupo
integrava diversas empresas pelo processo de holding.40Os grupos empresariais nacionais
eram caracteristicamente empreendimentos multi ou uni familiares como os grupos
oligopolistas de Ermírio de Moraes, Bueno Vidigal, Quartim Barbosa, Villares, Mourão
Guimarães e Matarazzo, entre outros.41
“De tal maneira se verifica esta preponderância familiar na vida do
País, que a história política não pode ser compreendida fora da
perspectiva das grandes famílias que dominaram e ainda dominam
várias áreas territoriais ou sociais (...)42 Aqui, a família enfeixou nas
mãos uma enorme soma de poderes. Além de concentrar poder 39 10,4% dos estabelecimentos agrícolas controlavam 79,9% da terra. O comércio agrícola estava ligado a uma grande parte da estrutura bancária. No setor bancário, o processo de concentração determinou, entre 1958 e 1963, o aumento do número de agências bancárias de 3.937 para 5.943, enquanto o número de matrizes diminuiu de 391 para 324. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 60.40 Processo pelo qual organizações financeiras trans ou multinacionais mantém e gerenciam o controle acionário e as operações de um certo grupo de empresas nativas.41 “O comportamento do brasileiro até hoje reflete a supremacia da família. Tudo se admite quando está em jogo o interesse familiar. O cidadão incapaz de pedir favores, de reivindicar privilégios para si não consegue manter coerência de comportamento quando se defronta com o interesse superior da família. Daí o nepotismo, o filhotismo e todo este imenso cortejo de atuações decorrentes da presença familiar no cenário institucional.” In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 75.42 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p.75.
XXVIII
econômico, exerceu e ainda exerce parcela expressiva do poder
político.”43
Uma das formações mais representativas do processo de integração capitalista
senão a maior que ocorria no período em estudo foi a gigantesca Atlantic Community
Development Group for Latin América, formada em 1962 e mais conhecida pela sigla
ADELA. Foi proposta por parlamentares da OTAN e senadores dos Estados Unidos.
Registrada no Grão-Ducado de Luxemburgo em setembro de 1964, operou na América Latina
através de um escritório em Lima, capital peruana.
Ela foi capaz de exercer forte pressão sobre os governos dos países latino-
americanos uma vez que era financiada por alguns dos maiores complexos industriais e
financeiros internacionais tendo amplo acesso a informações privilegiadas. Desta forma,
atingia com relativa facilidade seus propósitos que eram:
a) criar um clima favorável para investimentos usando sócios locais;
b) o desenvolvimento da estratégia de penetração através de investimentos diretos,
assistência técnica e perícia administrativa, análise de mercado e comunicações com focos
locais de poder; e
c) a realização de contratos com instituições financeiras internacionais, estendendo suas
atividades a praticamente todos os setores econômicos.
O interesse e ingerência econômico americano sobre os países latinos era tão
evidente que estudos eram encomendados pelo Senado norte-americano e seus relatórios –
frutos desses estudos – apontavam que “corporações multinacionais conduziam-se como "um
determinante crítico do desempenho econômica brasileira.”
Percebe-se assim que o peso econômico de interesses multinacionais na economia
brasileira tornou-se um fator político central no final da década de cinqüenta. O capital
transnacional desenvolveu-se organizacionalmente, acrescendo capacidade política própria
suficiente para influenciar as diretrizes políticas nacionais além, é claro, de fazer valer seu
poder econômico. Essas “qualidades” foram incorporadas ao manejo das classes política,
técnica, empresária e militar, proporcionando a crise do populismo.
2.2) Do espectro econômico ao ativismo sócio-político
43 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p.79.
XXIX
Parte dos militares dizia que a “ameaça comunista” era a causa da anarquia e do
embaraço na administração federal. Nesse contexto iriam se desenvolver três episódios
principais para a deflagração do golpe segundo relatos a posteriori dos próprios
conspiradores: a rebelião dos marinheiros – desencadeada pela prisão do Cabo José Anselmo,
o comício na Central do Brasil com a participação de João Goulart – quando então assinou o
decreto da reforma agrária diante de 350 mil pessoas, no Rio, e a reunião dos sargentos no
Automóvel Clube. Na opinião de Gláucio Soares, estes foram fatos que levaram os militares
que estavam comprometidos com o golpe à ação e estimularam os indecisos ou neutros a
apoiar os golpistas, mesmo sem participar. Houve reação imediata expressa pela Marcha da
Família com Deus pela Liberdade que levou 200 mil pessoas às ruas de São Paulo em 19 de
março44 e pela propaganda levada a efeito por diversos atores em detrimento do governo,
como conta Argelina Figueiredo no livro Democracia ou Reformas?
A intelectualidade foi fator preponderante na estruturação do bloco econômico
que se consolidava no Brasil representados pelos intelectuais orgânicos45 ombreando-se com
empresários46 e tecno-empresários. Aliás, seguindo o raciocínio de Sílvio Romero,
“A mestiçagem [– entendida enquanto miscigenação cultural,
ideológica e não meramente étnica –] é [a principal] responsável pela
flexibilidade do homem brasileiro, nada inclinado à adoção rígida de
ideários e de regras permanentes. Nela podemos detectar uma das
fontes mais genuínas da mentalidade aberta do povo, menos no que
44 A denominação deste movimento na verdade congrega todas as movimentações que expressavam contrariedade ao comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964. Foi Articulado pelo Deputado Cunha Bueno juntamente com o padre capelão norte americano Patrick Peyto além de contar com o apoio do governador Ademar de Barros, que se fez representar no trabalho de convocação por sua mulher, Leonor de Barros, organizada pela União Cívica Feminina e pela Campanha da Mulher pela Democracia, patrocinadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES. Os métodos utilizado pelo IPES para fazer que houvessem manifestações eram simples: primeiro foram convocadas as esposas de empresários, doutrinadas sobre como o comunismo poderia ser prejudicial a elas e, principalmente seus filhos; Em seguida foram convocadas as esposas dos empregados das empresas participantes, sendo as mulheres doutrinadas pelas esposas dos patrões em reuniões de senhoras com fins filantrópicos e religiosos. Simultaneamente eram distribuídos panfletos entre a população. A sociedade cristã foi mobilizada para a primeira Marcha da Família com Deus Pela Liberdade. Dela participaram quinhentas mil pessoas no dia 19 de Março de 1964. A massa humana saiu da praça da República chegando à praça da Sé sendo rezada uma missa pela "salvação da Democracia", pelo padre Patrick Peyton, capelão do Exército Norte-americano, enviado pelo governo dos Estados Unidos. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_da_Fam%C3%ADlia_com_Deus_pela_Liberdade45 Segundo teoria de Antônio Gramsci, “todo grupo social que passa a existir no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica traz consigo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que proporcionam homogeneidade ao grupo, bem como a conscientização de sua própria função, não somente no campo econômico mas também nos campos social e político. O empresário capitalista cria consigo o técnico industrial, o especialista em economia política, os organizadores de uma nova cultura, de um novo sistema legal.”46 Utiliza-se o termo “empresário” de forma abrangente nesta obra visto que, no período, o termo é aplicado de forma genérica a comerciantes, banqueiros, e aos próprios industriais.
XXX
concerne à adoção de um modelo determinado de organização do
poder, do que na disponibilidade intelectual que nos domina.”47
No transcorrer do processo de formação do neo-imperialista, muito mais que concentração de
produção e centralização do capital, houve também um forte acréscimo de poder político-
corporativo.
Estruturalmente, a ampliação das redes multinacionais favoreciam a formação de
elites nacionais vinculadas sócio-culturalmente aos seus patrocinadores de várias formas, seja
por aspirações profissionais, seja por almejar os padrões de vida das matrizes desenvolvidas.
A resultante desta vinculação é a liderança de empresários estrangeiros, detentores do poder
decisório ao mesmo tempo que libertos dos problemas sociais vizinhos às transacionais.
Obviamente, ainda que sob outros discursos, esta burguesia detentora das corporações
multinacionais48 preocupava-se muito mais com seu próprio enriquecimento do que com
questões éticas e morais como independência ou soberania nacional".
Os balancetes e estratégias monopolistas dependiam diretamente das ações
políticas, o espectro de dominação transcendia os aspectos econômico e financeiro-industriais.
Por isso diretores e profissionais brasileiros que acumulavam funções estatais influentes eram
manipulados a fim de proporcionar apoio político através dessas posições. Como esses
profissionais e empresários acumulavam também cargos de diretoria em diferentes
companhias multi e transnacionais, eles exerciam considerável pressão econômica nas
administrações de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros.
Surgiu então a figura do “técnico-empresário” cuja função precípua nada mais era
do que organizar e estruturar suas próprias corporações sistematizando e viabilizando
interesses particulares sob a aparência de interesse nacional. Por natureza, este grupo burguês
opunha-se vivamente ao regime político populista e tornar-se-iam importantes coadjuvantes
(mentores intelectuais) da luta contra a politização popular que desencadearia no episódio da
queda de Jango. Os tecno-burocratas eram expressão máxima da abordagem empresarial dada
aos problemas de desenvolvimento e a colocação propriamente dita de tais problemas em
termos capitalistas, “o que era exemplificado pela conhecida política de desenvolvimento de
Juscelino Kubitschek”.
A Escola Superior de Guerra (ESG) trouxe para o solo brasileiro as idéias e as
atitudes maniqueístas predominantes no cenário internacional criado pela Guerra Fria apesar 47 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 46.48 De acordo com Herbert de Souza, “A corporação multinacional é um microcosmo onde a organização global para a produção existe em seu mais alto grau; os sistemas de organização da força de trabalho, os sistemas de comunicações e informações, os sistemas financeiro, administrativo e de controle, existem todos em função da atividade global do capital mundial.”
XXXI
de, segundo Padilha, ser “totalmente infensa à implantação de uma ditadura.”49 Encorajou
dentro das Forças Armadas normas de desenvolvimento associado e valores empresariais em
que o Estado seria estável à medida que o autoritarismo político fosse incorporado na doutrina
de segurança nacional.50 O cerne ideológico desta Escola girava em torno do preceito de que
“O desenvolvimento é [um] processo e não [um] fim (...) Segurança é fator condicionante do
desenvolvimento. Jamais sua causa.” Ambos então – desenvolvimento e segurança nacional –,
seriam diretamente proporcionais.
Ela recebia intelectuais orgânicos empresariais para a realização de seminários e
conferências que também eram realizados em associações comerciais e industriais, clubes
sociais de prestígio, centros culturais e através de organizações acionárias que se tornariam os
focos de suas atividades ideológicas. O tipo de planejamento que dera certo em meados da
década de cinqüenta já não era suficiente para os problemas da virada da década e técnicos,
empresários, economistas influentes e militares passaram a exigir um planejamento indicativo
que consideravam essencial a um empreendimento de nível nacional. Argumentou-se então
pela sua institucionalização em debates acalorados em associações de classe empresariais, na
ESG e nos think-tanks51 governamentais.
O planejamento era necessário ao capitalismo monopolista porque servia para
selecionar temas, tópicos e diretrizes ao passo que determinava o acesso de frações ou setores
nos centros burocráticos de tomada de decisão.52 Este tópico passou a ter grande projeção
como recurso estatal e, ao ser articulado por tecnocratas53, corroborou para atenuar ou mesmo
dissolver críticas e pressões por parte dos governantes populistas bem como das classes
49 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit, p. 124.50 A ESG impulsionou e difundiu um sistema fechado de idéias baseado na aceitação de premissas sociais, econômicas e políticas que raramente se faziam explícitas além da visão estática de uma sociedade eternamente dividida entre elite e massas. Tal abordagem excluía também a presença de representantes das classes traba-lhadoras, ou mesmo das camadas intermediárias, no quadro de professores regulares ou convidados da ESG. O argumento em prol do desenvolvimento era apresentado somente por empresários, tecno-empresários e, em menor escala por políticos, assim como por convidados estrangeiros, tanto civis quanto militares. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 80.51 Grupo de especialistas organizado por uma empresa ou agência governamental comissionado para realizar estudos intensivos e pesquisa de problemas específicos. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit.. p. 61.52 “Racionalização, intencionalidade, decisões ou escolhas, escala hierárquica, tudo dentro de um complexo de ações intimamente relacionadas: é essa a essência de todo e qualquer planejamento.” Palavras do General Golbery do Couto e Silva em relação ao vínculo entre o SNI (Serviço Nacional de Informações) e o Ministério do Planejamento. In: Golbery do Couto e SILVA. Planejamento da segurança nacional. ESG. Documento n. C-83-54.53 O termo “tecnocrata” (junção semântica entre os substantivos “técnico” e “burocrata”) é empregado como estratégia de marketing para induzir uma idéia apolítica, de imparcialidade em prol da administração da coisa pública, passou a ser utilizado em fins da administração JK e ganhou força após 1964. Porém, cabe a ressalva de que técnicos (arquitetos, engenheiros, etc) tem formação empresarial e, portanto, tem vocação moldada à “eficiência e o lucro privado,” e não às ideologias necessárias a um político. In: René Armand DREIFFUS, Op.Cit., p. 72.
XXXII
inferiores. Sob a bandeira da neutralidade e do nacionalismo, o planejamento se auto-
justificava ocultando do público a trama de interesses existente por detrás dos bastidores
político-econômicos onde era construída a racionalização dos interesses das classes
dominantes e a transcrição destes interesses como se fossem objetivos nacionais.
As diretrizes políticas do governo tinham de se basear em uma racionalidade
empresarial e afastar considerações socioeconômicas populistas, desprezando em grande parte
as aspirações populares. Neste esforço, um controle rígido do aparelho estatal e rigoroso
planejamento indicativo e alocativo era exigido para que o crescimento econômico não fosse
questionado. Isto englobava mudança constitucional, orientação de ação e mobilização de
recursos o que não haveria de ser problema pois, como disse João Camilo de Oliveira Torres,
“ Somos o povo mais plástico do mundo. Damos um jeito em tudo.” Ratificando a afirmativa
do autor mineiro e cumprindo recomendações da Comissão Mista, estabeleceram-se uma série
de agências e órgãos públicos e dentre eles o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE)54
que foi criado para dar apoio financeiro a investidores privados. A esta altura já não causa
mais surpresa que os principais beneficiários de tais apoios tivessem sido as grandes
multinacionais. A população brasileira que vinha sofrendo com constantes aumentos
tributários desde a década de 1950 – que subsidiavam o pagamento dos juros da divida feita
principalmente por JK para custear seu Plano de Metas, assistia agora as parcelas tributadas
de sua remuneração financiar a acumulação de capital de verdadeiros impérios.
As Forças Armadas, instituições permanentes e regulares destinadas a manter a
paz, a ordem e a soberania nacional e, portanto, absortas no ideal progressista e de defesa
nacional, agregaram-se sutilmente ao esforço pelo crescimento industrial. Assim, o
proletariado militar fornecia mão-de-obra barata para a consolidação dos “objetivos
nacionais” enquanto que sua “elite intelectual”55 se ocupava em legitimá-los, orientando os
critérios de eficiência sob a ideologia da “segurança nacional” numa via de desenvolvimento
54 O Banco Nacional do Desenvolvimento foi criado pela Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952 em decorrência da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e colocado sob a jurisdição do Ministério da Fazenda. Sua função era a de executor e agente financeiro da União nas operações do Plano de Reaparelhamento. O principal apoio financeiro do BNDE seria o Fundo de Reaparelhamento Econômico, constituído dos adicionais sobre o imposto de renda e de depósitos obrigatórios de parte das reservas técnicas das companhias de seguro e capitalização. Caberia ao banco promover a negociação de empréstimos externos para o financiamento do Plano de Reaparelhamento e executar as operações financeiras conexas. Em julho do mesmo ano constituiu-se a sua diretoria, assumindo como diretor econômico o Sr. Roberto Campos. Em maio de 1953 foi criado o Grupo Misto de Estudos BNDE-CEPAL, sob a direção do economista Celso Furtado. Dois anos depois, o grupo divulgaria o relatório final de seus trabalhos - "Esboço de um programa de desenvolvimento para a economia brasileira - período de 1955-1962" -, que constituiria a base do Programa de Metas do governo Juscelino Kubitschek. In: http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/Verbetes_HTM/1023_2.asp
55 Aqueles de patente hierarquicamente superior.
XXXIII
inspirada em interesses transnacionais orquestradas pelo Estado. Outras instituições como o
Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) também
objetivavam preparar quadros para a administração pública e privada já tangenciando as
diretrizes políticas conforme a análise da situação politico-econômica que ofereciam aos seus
discentes.56
Dentre a “elite intelectual” militar haviam grupos conservadores, legalistas e
verdadeiramente nacionalistas ao passo que existia também o grupo “modernizante-
conservador” alinhado com os interesses burgueses. Em geral, após a campanha na Itália e a
experiência que foi reforçada pela participação em cursos de instrução e treinamentos nos
Estados Unidos, começou-se a questionar a realidade brasileira frente a dos países
desenvolvidos. Essa experiência comum fez com que um número grande de oficiais se
afiliassem a partidos políticos57 como a UDN (União Democrática Nacional), o PSD (Partido
Social Democrático) e em menor escala ao PDC (Partido Democrático Cristão). Também se
intensificou a organização em redutos político e ideológicos como na ESG e nas reuniões de
Suboficiais e Sargentos.58
O Brasil celebrara acordos com os EUA que indicavam a intencionalidade destas
relações.59 Acordou-se, por exemplo, o Programa de Assistência Militar (PAM)60 e nos idos de
1952 um acordo com os EUA que era a expressão personificada da proximidade oligárquica-
militar: a “Lei de Segurança Mutúa” que, em sua seção 516 demonstrava seu caráter.61 56 “Em 1962, a maioria dos tecno-empresários mencionados anteriormente, assim como os técnicos do IBRE e FGV, constituíram parte da estrutura política dos aparelhos ideológicos dos interesses multinacionais e associados em sua campanha contra a convergência de classe populista e seu Executivo, ou então tomavam parte, de várias maneiras, na ação política organizada da burguesia para derrubar o regime em 1964.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 77.57 Dentre eles destacam-se: o Marechal Henrique Teixeira Lott ,Brigadeiro Eduardo Gomes, General Juracy Magalhães, General Menezes Cortes e o Coronel Nei Braga.58 Como a que ocorreu em 30 de março de 1964, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, e contou com a participação do próprio João Goulart e mais sete ministros. In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.59 Transcrição de telegrama enviado a Thomas Mann pelo embaixador americano no Brasil enviado a 04 de março de 1964: “O nosso PAM é um fator altamente influente na adoção pelos meios militares de uma atitude pró- Estados Unidos e pró-Ocidente; a importância do PAM neste setor é cada vez maior. Em decorrência de treinamento e suprimento de material, o Programa de Assistência Militar torna-se veículo essencial no estabelecimento de um estréio relacionamento com os oficiais das Forças Armadas.” In: Jornal do Brasil, 20 de dezembro de 1976.60 O General Robinson Mather, comandante da delegação americana na Comissão Mista Militar Brasil-Estados Unidos e chefe do Programa de Assistência Mútua, explicou em sua palestra na ESG, em princípios de 1964, que a principal ameaça a que o Brasil estava exposto era mais a da "subversão comunista e agressão indireta, do que a agressão direta vinda de fora do Hemisfério." Assim, de acordo com o General Mather, o PAM tinha o objetivo primordial de "assegurar a existência de forças nativas militares e paramilitares suficientes para combater a subversão comunista, a espionagem, a insubordinação e outras ameaças à segurança interna, sem que se tornasse necessária uma intervenção militar direta dos Estados Unidos e de outras forças do mundo livre." Visto o cenário de intensa mobilização política que ocorria no Brasil durante os primeiros meses de 1964, a conferência do General Mather insinuava-se carregada de intenções. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 81.61 A seção 516 da sua "lei de Segurança Mútua" expunha a necessidade de se encorajar "a eliminação de barreiras e de se proporcionar incentivos para um aumento constante na participação da empresa privada no
XXXIV
Entrementes, é bom lembrar que “a participação militar na empresa privada era
uma realidade, embora esse fenômeno não fosse tão difundido quanto sua participação em
agências tecno-burocráticas estatais ou sua presença nos conselhos de diretoria das
corporações multinacionais e associadas após 1964. Alguns oficiais militares eram diretores
importantes ou acionistas de corporações privadas.”62 Porém, há de se ter cuidado para não
generalizar visto que o proletariado militar passava pelas mesmas agruras que a sociedade
civil – ou seja, inflação galopante em detrimento dos salários, alta carga tributária, etc – ainda
com o ônus de ter que resignar-se aos seus ditames castrenses63 em defesa da máquina do
Estado.
O Estado brasileiro, que deveria ser uma instituição gestora da coisa pública
orientada em beneficio do bem comum visto que é a representação da sociedade politicamente
organizada, deixou-se distorcer por interesses, ideologias e pelo grande capital que se
opulentou em detrimento da própria sociedade.64 A ideologia político-econômica que
caracterizou a construção contemporânea do Estado brasileiro foi, sem dúvida, a liberal cuja
evolução foi gradual e teve como representante maior fora o Partido Social Democrático
(PSD). Seu desenrolar em território nacional foi por vezes controvertido e, quando se viu
ameaçado por outra ideologia – a marxista –, tendeu a usar o poder do capital expresso em
políticas de exceção. 65
desenvolvimento dos recursos dos países estrangeiros... (e) ... desencorajar, na medida do possível e sem interferir na realização dos objetivos dessa lei, a prática de monopólio e de cartel que prevalece em certos países.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 78.62 René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 79.63 Impossibilidade de greves ou manifestações de quaisquer caráter; inobservância na percepção de direitos trabalhistas (como hora extra, por exemplo) e de participação em programas assistenciais do governo (como apoio ao acesso à casa própria); a imposição de condições de trabalho precárias e em progressivo sucateamento; etc...64 Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) faz uma reflexão interessante que ajuda a tornar esta dissimulação do caráter do Estado brasileiro liricamente mais inteligível quando diz que “o Brasil se formara às avessas, começara pelo fim. Tivera Coroa antes de ter povo. Tivera parlamentarismo antes de ter eleições. Tivera escolas superiores antes de ter alfabetismo. Tivera bancos antes de ter economias. Tivera salões antes de ter educação popular. Tivera artistas antes de ter artes. Tivera conceito exterior antes de ter consciência interna. Fizera empréstimos antes de ter riqueza consolidada. Aspirava a potencia mundial antes de ter a paz ea força superior. Começara quase tudo pelo fim. Fora uma obra de inversão, produto (...) de um longo oficialismo.” In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit.,p. 96.65 Estas políticas se traduzem por um sentimento compatível com o desabafo de Bernardo Pereira de Vasconcelos quando, frente as revoltas imperiais e regenciais no Brasil das décadas de 20 e 30 do século XIX, proclamou: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade; os princípios democráticos tudo ganharam, e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salva-la; e por isso sou regressista. (...) Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e a defesa da liberdade? (...) Os perigos da sociedade variam; o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir no seu país? (VASCONCELOS, 1978, p. 25)” In: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/art5_10.html
XXXV
Dos contatos entre as Forças Armadas norte-americanas e brasileiras através de
seus serviços de segurança – Central Intelligency Agency (CIA) e Serviço Nacional de
Informações (SNI) –, construções ideológicas que reservavam ao Exército a função societária
de moderadores nos conflitos políticos e entre facções das classes dominantes foram
enaltecidas e legitimadas por muitos estudiosos da política brasileira.66 De fato este não é um
pensamento surreal haja vista a grande e ativa participação política dos militares desde que
proclamada a República mas, todavia, esse papel moderador conflitava com a identificação
partidária de alguns oficiais. O posicionamento ideológico burguês-mercantil, ainda que
minoritário, fragmentou as instituições militares a ponto de proporcionar confrontações
aguerridas no seio da corporação. Associado a isto, havia ainda a influência sindical,
camponesa e popular que visava atrair indivíduos dos baixos e médios escalões militares na
tentativa de ampliar o número de interlocutores de uma ideologia reformista-revolucionária.
Como exemplo, pode-se citar o caso do Cabo José Anselmo da Marinha que incitou o
movimento entre seus pares através da organização de uma associação da classe.67 Ao ser
preso, estourou a rebelião dos marinheiros em 26 de março de 1964 e, como o governo
federal, admoestou os envolvidos, a crise se agravou pela quebra da disciplina e hierarquia,
pilares daquelas instituições. Assim, este episódio acabou acirrando os ânimos militares
contra o Executivo e dando ainda mais cores de legitimidade à ação das classes dominantes
tidas no episódio como defensoras da ordem constitucional, e da própria insurreição de 1964,
visto que a atitude de Jango fora interpretada – conveniente ou assertivamente – expressão
clara de seu caráter comunista, o que deu ao movimento burguês-militar de abril daquele ano
o tom de ação salvadora.
Apesar da identificação primordial ser com o povo, a postura de alguns lideres
fardados alinhadas com os valores da classe média e ideais burgueses, pôs o ideário e a
possibilidade de uma verdadeira Revolução por terra.68 Ainda assim, mesmo em detrimento
do que parece ser uma evidência histórica, “o mito do papel moderador proporcionou a
racionalização para o controle militar autoritário do sistema político depois de 1964.”
Do esforço de cunho ideológico, político e militar levado a efeito pela burguesia a
fim de derrubar o Executivo de João Goulart, seriam baluartes vários empresários importantes
66 “sabemos que a queda de Vargas se deu por ação das Forças armadas que, entre nós, desempenham a missão moderadora reservada no Império ao Imperador” In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 119.67 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.68 A exemplo da ex-União Soviética, caso houvesse coordenação e um movimento uníssono entre o povo e as Forças Armadas, estariam unidos os elementos necessários a uma verdadeira revolução (entendida como sendo uma transformação radical e, por via de regra, violenta, de uma estrutura política, econômica e social): o povo, com sua ideologia calcada em suas reais necessidades e no bem comum; e os militares, com sua estrutura, preparo e poder para fazer valer, pela força, o desejo dos primeiros.
XXXVI
ligados à corporações que, direta ou não, seriam patrocinadores da campanha que levaria à
queda do regime populista. Companhias ligadas à International Finance Corporation – IFC e
integrantes da ADELA, estiveram à frente desta campanha.
Formaram-se grupos desejosos por compartilhar do governo político e moldar a
opinião pública, o que fizeram através da criação de grupos de ação política e ideológica. O
primeiro desses grupos com expressão nacional foi o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD), criado sob a demagógica bandeira da defesa democrática. Sua composição básica
contava com membros da American Chambers of Commerce e de outras associações de classe
importantes, do Conselho Superior das Classes Produtoras (CONCLAP) e figuras
proeminentes das tradicionais associações de classe do Rio e São Paulo. Influenciou
diretamente no legislativo e nos governos estaduais, interveio em assuntos eleitorais
apontando alguns sindicatos em particular. Promoveu ainda alguns líderes camponeses e
sindicais, movimentos estudantis e organizações de pressão dentro das classes médias tudo no
intuito de desestabilizar o governo populista de Jango. Para tanto, além do exposto,
sincronizou atividades de organizações paramilitares como o Movimento Anticomunista
(MAC), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a Organização Paranaense Anti-
comunista (OPAC), à organização católica Centro Dom Vital69 e a Cruzada Libertadora
Militar Democrática (CLMD). Com esta última, compartilhava ainda pessoal, técnicas e
recursos.
O IBAD originou a Ação Democrática Popular (ADEP) e a Incrementadora de
Vendas promotion S.A a fim de disseminar suas idéias políticas. Conseguiu projeção maior
ainda durante a campanha de 1962, pois serviu de conduto de fundos maciços para com o
intuito único de influenciar o processo eleitoral e coordenar a ação política de indivíduos,
associações e organizações ideologicamente compatíveis. A ADEP possuia escritórios bem
equipados espalhados pelo país, geralmente dirigidos por oficiais de alto escalão reformados
do Exército, que contaram também com a cobertura do movimento Ação Democrática
Popular (ADP) no Congresso.
69 É interessante notar o envolvimento de grupos de orientação católica interagindo no movimento como a organização católica Centro Dom Vital, a Ação Popular (AP) e a Juventude católica (JC). Tal fato é explicável analisando a “encíclica Gaudium et Spes, [que mostra] um grande cuidado em fixar principios e conciliá-los com o crescente interesse que a Igreja vem revelando pela questão social (...) De um lado, o documento não deixa dúvida sobre a missão precípua da Igreja, que não é de ordem política, econômica ou social. Sua missão é religiosa. Mas acrescenta que cabe à Igreja proferir um juízo moral sobre a realidade política (...) Cumpre, sim, à Igreja emitir um juízo ético sobre a realidade social, política e econômica, simplesmente porque lhe incumbe cuidar do homem e preservar-lhe a humanidade, a fim de que ele (...) possa caminhar para sua destinação sobrenatural (...)É nesta perspectiva que se situa a ação fecundante da Igreja,” influenciando e propagando a sociedade com sua ideologia. Aliás, tal propagação fora fenomenal uma vez que o número de católicos no Brasil girava em torno de 92,5% em fins da década de 1950. In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit, p. 84, 88 e 89.
XXXVII
O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) é congênere e contemporâneo do
IBAD. Houve grande integração de pessoal, material e de fontes financeiras tudo em
detrimento do governo vigente. Numa analogia com o Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS).
O exercício do domínio político no ápice do regime populista – de 1945 a 1960 –
foi possível graças a uma combinação entre força e autoridade, limitação e pluralismo,
coerção e consentimento, que se deu de forma “harmoniosa”, sem que a força substituísse o
consenso.70 Contudo, as classes dominantes proscreveram o Partido Comunista, intervieram e
expurgaram os sindicatos e deixaram mais de 50% do eleitorado privado do direito ao voto
em decorrência do analfabetismo, fotos que evidenciam a falta de um consentimento
hegemônico ou pluralismo democrático no início da década de sessenta. Partidos de “centro-
direita”71 expressaram, por certo tempo, as demandas populares enquanto o PTB representava
algumas das reivindicações populares.
A sociedade brasileira parecia mesmo, até certo momento, negar a presidência
aos militares uma vez que, desde a experiência com o Marechal Eurico Gaspar Dutra não
elegeu, pela terceira vez consecutiva, um candidato militar para a presidência da republica em
1960, quando candidatou-se pelo PSD e com apoio do Partido Comunista o Marechal
legalista Henrique Teixeira Lott, companheiro de chapa de João Goulart. O resultado das
urnas mostrava que, estatística e aparentemente, a população brasileira quando consultada,
apoiava uma combinação de reformas populares sociais, de desenvolvimento nacionalista e
de austeridade e eficiência administrativas. Essa combinação de demandas é um tanto quanto
curiosa sabendo-se que, no período histórico em questão, o voto não era universal, grande
parte do eleitorado consistia justamente de representantes dos interesses empresariais
multinacionais e associados, que a noção de progresso foi internalizada pela classe média
alta, seja por interessar diretamente a esta classe, seja por depender do logro auferido pelas
grandes empresas para sua manutenção e, quiçá, a melhoria das suas condições salariais e de
trabalho.72
70 Entenda-se por “consenso” e “força” as formas políticas “de cabresto”, como o peleguismo, o coronelismo, o paternalismo, clientelismo, protecionismo, o apadrinhamento, etc., ferramentas muito utilizadas nas relações políticas de domínio no rápido processo de industrialização de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. As ações restritivas e retaliativas estavam na base do que era de fato um regime político autoritário, apesar de ser levado a efeito cautelosa e disfarçadamente por civis.71 Nossos políticos, salvo alguns ícones, são marcados pela “síndrome da conciliação.” Sempre, mesmo em momentos de crise, procura-se evitar posições extremistas ou radicais. Assim, surgem interessantes – quando não incongruentes – coligações no teatro político nacional como “centro-direita” ou “centro-esquerda” que tendem a eximir a postura de seus respectivos coligados de eventuais interpretações radicais. É o viés político do “jeitinho brasileiro.”72 Ao contrário do que pode parecer, João Belchior Marques Goulart não era um consenso nacional. Antes ao contrário, nem no Rio Grande do Sulo parecia ser bem quisto visto que “foi decididamente derrotado em sua
XXXVIII
Jânio Quadros herdou de seu antecessor uma economia enfraquecida face ao
crescimento desenfreado e aos entraves burocrático-administrativos populistas que se
revelavam insatisfatórios para os interesses multinacionais ou mesmo dos capitais locais de
maior proeminência. O governo já não tinha mais como cumprir seus contratos e quitar suas
dividas.73
A inflação era galopante, havia déficit interno, o setor agrário estava estagnado, o
mercado de consumo de bens duráveis estava enfraquecido e com ele enfraquecia-se a classe
média alta. Não obstante, fruto do patrocínio ideológico de João Goulart enquanto vice-
presidente de JK, era crescente o número de congressos trabalhistas nacionais que
reorganizavam-se em torno de uma classe industrial efervescente a conflitante com a
estrutura sindical vertical, o que reduzia as condições que haviam permitido a manipulação
das massas.
A inflação golpeou também a renda das classes médias pois reduziu capacidade
de consumir bens duráveis, afetando principal e diretamente os interesses multi e
transnacionais do setor além de prejudicar também o potencial de poupança de classes
médias, o que restringiu recursos que se esperava fossem captados por intermédio de bancos
privados e agências estatais para o financiar a indústria privada.
Jânio Quadros já não contava mais com o apoio empresarial por conta da agitação
descontrolada dos sindicatos e tampouco dos setores oligárquicos do PSD ou de outros
partidos menores que outrora o apoiaram, tudo porque não foi capaz de satisfazer aos
interesses da classe média. Eram necessárias reformas que envolveriam sacrifícios das classes
trabalhadoras acompanhados de fortes limitações econômicas e políticas aos setores
oligárquicos tradicionais, bem como aos interesses industriais locais. Assim, após fracassadas
as suas tentativas de contornar a estrutura populista pelos “bilhetinhos” e pela sua manobra
político-militar74, renunciou ao mandato em agosto de 1961, sete meses após a posse.
tentativa de tornar-se senador pelo PTB por seu estado natal.” In: Thomas SKIDMORE, Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 183.73 “Um relatório da Embaixada Americana que trazia uma análise de Herbert K. May, adido do Departamento de Finanças, concluía que o Banco do Brasil praticamente não possuía divisas estrangeiras, e que o governo de Juscelino Kubitschek havia "esgotado todos os recursos 'éticos' e 'não-éticos' de que dispunha para cobrir o déficit da balança de pagamentos, permitindo que esse deixasse o cargo no dia 31 de janeiro com as finanças em aparente liquidez”. Tal telegrama foi enviado a 23 janeiro de 1961 e pode ser analisado em Phyllis PARKER. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 de março. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, p.31. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 12874 Jânio Quadros que indicou o Marechal Odílio Denys Ministro do Exército, o Almirante Sílvio Heck Ministro da Marinha e o Brigadeiro Gabriel Moss, do IBAD, Ministro da Aeronáutica, trazendo para si o apoio militar com líderes de direita e tentando com isso conduzir o esboço de uma guinada militar. João Goulart não gozou em nenhum momento do apreço deste setor visto que o repudiava por sua “tendência” comunista e por não corresponder aos interesses burgueses. Tanto o é, que percebeu clara e ativa impedância no seu retorno e posse como presidente legitimo – que só foi enfim consentida graças à ferramenta improvisada do sistema
XXXIX
Enquanto isso acontecia, seu vice-presidente se achava convenientemente em missão de “boa
vontade” comercial na China. Os empresários e seu próprio bloco partidário não estavam
prontos para apoiá-lo.
A assunção do vice-presidente só se fez possível em grande parte pela ação
legalista de um grupo de militares – sobretudo pelo General Lott, ministro da Guerra – em
detrimento dos interesses multinacionais, burgueses, da ala militar “revolucionária” e dos
próprios intentos internacionais75 que, ao invés de um golpe direto, buscaram uma solução
alternativa constitucional.
Em principio, João Goulart só obteve apoio da pequena e média burguesia
industrial e do setor agrário pois ambos sentiam a pressão do caráter concentracionista do
processo de expansão capitalista no país e percebiam suas conseqüências – a deterioração dos
salários reais das classes trabalhadoras urbanas que provocava reflexos em todos os setores.
Assim, na empreitada nacional-reformista pretendida, o novo bloco de poder agro-industrial,
apoiado pelas classes trabalhadoras urbanas e pelo campesionato mobilizado seriam as bases
da reconstrução do sistema político brasileiro. Com essa base, o Executivo tomou medidas
que fizeram tremer os interesses multi e transnacionais.76
Jango fez com que limitações de remessas de royalties forçassem as companhias
multinacionais a investir capital no país pelo fato de terem de reinvestir seus próprios lucros.
Buscou monopolizar a importação de petróleo e desapropriar as cinco refinarias privadas do
Brasil, revendo também concessões de mineração dadas à multinacionais. Numa luta inglória
– visto a disparada da inflação –, tentou reajustar os salários mínimos mantendo o poder de
compra do proletariado quando então estabeleceu uma política de controle de preços.
Decretou o primeiro estágio da Reforma Agrária, que visava desapropriar, com compensação
prévia e efetiva, áreas improdutivas localizadas próximas a ferrovias e rodovias. Outro dos
objetivos de Jango foi controlar e limitar o redesconto bancário para combater a especulação
financeira, enquanto negociava o reescalonamento da divida externa com os países credores
- que fez com que os americanos tivesse que aceitar as mesmas condições acordadas com os
parlamentarista. 75 Segundo David Rockefeller, durante uma palestra frente a uma platéia militar e acadêmica em West Point no final de 1964, “fora decidido desde o inicio que Goulart não era bem vindo à comunidade financeira americana e que teria de sair.” In: Knippers BLACK, United States penetration of Brazil.Manchester, Manchester Univ. Press, 1977. p. 78.76 “a lei restringindo a remessa de lucros pelas companhias multinacionais às suas matrizes, o que, de qualquer forma, impedia a saída maciça do capital. Essa medida implicou também em controle mais rigoroso das atividades do capital transnacional no Brasil, retirou-lhes os extraordinários privilégios concedidos em grande parte durante a administração de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros. A partir dessa cláusula, o capital estrangeiro e o capital nacional seriam tratados em igualdade de condições.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit.,p. 131.
XL
europeus. Além disso, o governo de João Goulart propôs uma reestruturação do sistema
tributário baseado na taxação da renda, uma reforma eleitoral dando a analfabetos e soldados
o direito a voto e concedendo novamente a sargentos a elegibilidade ao legislativo, bem como
uma reforma do sistema educacional popular.
Os golpes desferidos pelo governo contra o capital estrangeiro contribuíam para
uma redução do investimento multinacional e, consequentemente, para uma atitude
apreensiva por parte do grande capita1 preocupado com os beneplácitos com que o Executivo
acenava para as classes populares, indústrias de porte médio e setor agrário.77 Os
investimentos que chegavam a média de 110 milhões de dólares até 1962, caíram para cerca
de 9 milhões apesar das empresas americanas terem mantido aparentemente um retorno
lucrativo bastante alto mesmo no período auge da crise.78
As estatais responsáveis pelos setores infra-estruturais, como eletricidade,
petróleo, aço, portos, transporte e construção, começaram a ruir. Convenientemente
transpareceu a “ineficiência” do Estado para o ramo empreiteiro, o que serviu de argumento
dos seus críticos. O funcionalismo público também cooperou com a crise estatal uma vez que
desencadearam várias greves de onde surgiram algumas demandas políticas melhor
articuladas. Ficou bastante claro que, ao diminuir a velocidade com que se dava o
desenvolvimento, tanto as classes trabalhadoras quanto o governo viravam alvo fácil ao
ataque da mídia e da opinião pública.79 “O homem descobriu meios de solapar as instituições
recorrendo, de preferência, aos meios de comunicação social, para assim minar
gradativamente os valores da sociedade (...) [e] se utilizam dos instrumentos da [própria]
democracia para melhor feri-la.” Desta forma, conforme a conveniência da época, as
77 “Tentou-se uma distribuição de renda através de aumentos salariais e, indiretamente, através da alocação de uma parte maior dos recursos públicos para a educação gratuita, para os serviços de assistência médica gratuita, para a habitação e transporte público. O governo implementou também uma política de controle de preços sobre bens de consumo, ao mesmo tempo em que tentava controlar os lucros desmedidos das companhias multinacionais em áreas vitais como a de produtos farmacêuticos. Agindo contrariamente às diretrizes anteriores de industrialização, que beneficiava a expansão de corporações multinacionais fornecedoras de um reduzido mercado de alto poder aquisitivo, o governo nacional-reformista objetivou redirecionar o tipo de produção, principalmente produtos alimentícios, vestuário e aparelhos eletrodomésticos básicos. Conseqüentemente, as indústrias de porte médio e os setores agrários, que produziam bens básicos de consumo para um grande mercado de baixa renda, foram estimulados.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit. p. 133.78 8% entre 1960 e 1962; 5,7% nos anos de 1963-1964; e 9,8% entre 1965 e 1967, segundo Celso Furtado.79 “A doutrinação geral visava a apresentar as abordagens da elite orgânica aos responsáveis por tomadas de decisão políticas e ao público em geral, assim como causar um impacto ideológico em públicos selecionados e no aparelho do Estado. A doutrinação geral através da mídia era realizada pela ação encoberta e ostensiva, de forma defensiva e defensiva-ofensiva. Constituía-se basicamente numa medida neutralizadora. Visava infundir ou fortalecer atitudes e pontos de vista tradicionais de direita e estimular percepções negativas do bloco popular nacional-reformista.” “Os canais de persuasão e as técnicas mais comumente empregadas compreendiam a divulgação de publicações, palestras, simpósios, conferencias de personalidades famosas por meio da imprensa, debates públicos, filmes, peças teatrais, desenhos animados, entrevistas e propagandas no rádio e na televisão.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit. p. 231-232.
XLI
diretrizes políticas reformistas – sobretudo as políticas redistribuitivas que visavam reduzir as
diferenças sociais – foram atacadas e classificadas como “românticas”; a nacionalização, as
medidas estatizantes e o redirecionamento da produção foram taxadas de ineficientes. Mais
tarde, esta mesma mídia que apregoava a necessidade de uma intervenção militar se voltaria
contra a própria instituição das Forças Armadas.
Em tempo oportuno e com fulcro legitimador, todos os esforços do Executivo de
João Goulart foram considerados – com fundamentos aparentemente convincentes – como
sendo de inspiração comunista. Obviamente, todo o conjunto de medidas “reformista-
comunista” desagradava a emergente classe média, os interesses oligárquicos e os detentores
do grande capital multinacional que desejava exatamente o oposto destas ações em beneficio
próprio. A crise era palpável e estava consistentemente instalada.80
Apesar de sua aparente boa-fé com seus projetos reformistas, o fracasso de suas
medidas, a inflexão econômica traduzida na inflação exorbitante e no despencar do PIB81
promoveram o “caos econômico e social” “criando [um] círculo vicioso [de] pobreza.” Este
posicionamento de Tarcisio Meirelles Padilha em severo detrimento da gestão de Jango,
apesar de refutados por outros autores, é bastante pertinente e seus argumentos, salvo alguns
equívocos primários como a heroicidade atribuída aos parlamentares da ADP, não chegam a
ser vazios de sentido. Segundo ele, havia dificuldade em formar bases políticas estáveis face
a multiplicidade de partidos o que prejudicava a aprovação de reformas – muitas delas
demagógicas –, distanciava a participação popular em torno de um programa ideológico-
partidário; os partidos, a esta altura tornara-se muito mais personalísticos do que
nacionalistas, dissolvendo as bases do governo e conturbando todo o cenário político; as
instituições de ensino superior e afins haviam se tornado “centros de agitação político-
pedagógica” onde uma minoria radical de universitários persuadia todo o núcleo acadêmico a
participar de suas ações mesmo com prejuízos aos discentes e às pesquisas; o presidente, que
80 As vertentes mais conhecidas de argumentação enfatizam a crise econômica do período e a exaustão do estágio de substituição de importações da industrialização. Entretanto, observa-se que, conforme denuncia do Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica Roberto Campos em seu documento nº 1 – A crise brasileira e as diretrizes de recuperação econômica., as classes dominantes perceberam a atuação de outros fenômenos sociais. Em uma análise preparada para a reunião ministerial de 4 de junho de 1964, Roberto Campos explicou que, “em particular, a paralisação do desenvolvimento em 1963 foi conseqüência de fatores climáticos e sócio-políticos.” Entre os fatores político-institucionais, foram apontados os seguintes:a) “a tensão política constante criada pela desarmonia entre o Executivo Federal de um lado e o Congresso Nacional e governos estaduais de outro, que levantaram suspeitas quanto às intenções continuístas do presidente João Goulart";b) a tendência estatizante que ameaçava investidores privados;c) a infiltração comunista que ameaçava subverter a ordem social e econômica; ed) a paralisação sucessiva da produção pelos líderes grevistas, freqüentemente com objetivos políticos claros.” 81 A inflação beirava os 100% em 1963 ao passo que o crescimento do Produto Interno Bruto decaíra para 1,5% no mesmo ano. In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit, p. 120.
XLII
cria ter bases sindicais profundas, apoiava greves e manifestações ao invés de procurar
reverter o quadro geral da crise;82 “Dera-se a vacância moral da presidência da República.”
Tudo isso era alimentado ainda pela propensão de João Goulart aos princípios comunistas aos
quais não só os militares e a burguesia temiam, como também grande parte da sociedade
brasileira. O temor por um golpe de esquerda oriundo do próprio Executivo não era
infundado. Jango já se havia mostrado simpático à ícones comunistas como Fidel Castro,
Francisco Julião e, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros encontrava-se em franca visita à
China. Ainda segundo Padilha, “O próprio chefe do partido [comunista] no Brasil declarara
que já detinha o poder. Faltava-lhe apenas chegar ao governo.” Portanto, por mais que haja
esforço em comprovar que tais visitas pretendiam uma expansão econômica “neutra” no
contexto da Guerra Fria como pretendia Afonso Arinos de Mello Franco,83 Ministro das
Relações Exteriores de Jânio, as circunstâncias em que os fatos se deram os acontecimentos a
posteriori apontam para tal conclusão apesar de Maria Celina D’Araújo afirmar que "É
especulação dizer se o presidente ia ou não derrubar a democracia, porque tudo aconteceu
muito rápido, [mesmo sabendo que] havia um discurso da esquerda contrário à ordem
democrática.”84
Com o propósito firme – apesar de cambaleante pela conjuntura – de impor uma
autonomia relativa, o Estado acabou por desvendar a até então encoberta sujeição ao capital
em detrimento dos trabalhadores. A composição característica do Estado brasileiro, em
contraposição às diretrizes nacional-reformistas do governo, não podia mais ser disfarçadas
ou ocultas aos olhos da sociedade. Assim, instituições militares, políticas e burocráticas do
Estado tiveram que, obrigatória e abertamente, se alinhar com uma das vertentes sociais
82 O autor exemplifica citando o caso do porto de Santos que, “durante o período de um ano (...) permaneceu em greve por mais da metade dos dias úteis” promovendo enormes perdas tanto pelo apodrecimento de cargas perecíveis, quanto pela impossibilidade de receber maquinário e matérias-primas destinados à indústria. In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 122.83 “Afonso Arinos de Melo Franco nasceu em Belo Horizonte em 1905, filho de uma tradicional família de políticos, intelectuais e diplomatas (...) [Liberal], Com a volta de Vargas ao poder, em janeiro de 1951, passou mover intensa oposição ao governo. Tornou-se então líder da UDN na Câmara (...) Na crise deflagrada em 1954, que culminaria no suicídio de Vargas, propôs a renúncia do presidente e a intervenção das Forças Armadas (...) Em janeiro de 1961, com a posse de Jânio Quadros na presidência da República, foi nomeado ministro das Relações Exteriores. Desenvolveu à frente do Itamarati uma política externa independente, marcada pelo não alinhamento automático aos Estados Unidos, a aproximação com os países do bloco socialista, o reconhecimento do governo de Fidel Castro em Cuba e a condenação explícita do colonialismo na África e na Ásia. Com a renúncia de Jânio em agosto do mesmo ano, deixou o ministério, voltou ao Senado e aí cumpriu importante papel no encaminhamento da emenda parlamentarista, solução proposta para contornar as resistências de setores militares à posse do vice-presidente João Goulart. Iniciado o governo Goulart em setembro sob a vigência do sistema parlamentarista, voltou a chefiar o Itamarati no gabinete Brochado da Rocha (julho-setembro de 1962) (...) Partidário do golpe militar que depôs Goulart em 1964, foi um dos fundadores, em 1966, da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido político de sustentação ao regime militar.” (O grifo é meu) In: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_afonsoarinos.htm84 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.
XLIII
conflitantes. As relações de classe tornavam-se cada vez mais politizadas e, como as
instituições estabelecidas sob o jugo do grande capital internacional certamente partiriam em
sua defesa, esta politização proporcionou um bloqueio à ideologia socialista de Karl Marx em
prol de um nacionalismo desenvolmentista empresarial.
O período foi marcado por uma desagregação partidária e ideológica. Vários
grupos partidários surgiram sem, contudo, apresentar novas propostas ou ideologias de
caráter nacional mas sim personalística. Após a eleição, o candidato vitorioso considerava-se
livre de suas próprias promessas, de suas obrigações para com o partido quanto e para com o
eleitorado que o havia eleito. Alianças não se formavam em decorrência de afinidades
ideológicas mas sim em função de interesses de ordem pessoal e oportunistas.85
Restou então ao eleitorado, unir-se à recém-formada Frente Parlamentar
Nacionalista (FPN), à Ação Democrática Parlamentar (ADP) ou ao ainda ilegal Partido
Comunista (PCB). As organizações políticas com tendências nacional-reformistas também
eram muito bem quistas pelo eleitorado. Foi criada também a Frente de Mobilização Popular
(FMP), “bloco extra parlamentar organizado a nível nacional, dirigida contra o abuso
econômico transnacional, as restritivas estruturas oligárquicas rurais e a organização
administrativa, cultural e social populista,”que incluía a Frente Parlamentar Nacionalista, as
Ligas Camponesas e os sindicatos rurais, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto
de União e a Ação Sindical (PUA), União Nacional dos Estudantes (UNE), a Ação Popular
(AP), de orientação católica, tendo ainda o apoio de oficiais militares nacional-reformistas e
do ilegal Partido Comunista (PCB), se tornando um “desafeto” para as forças dominantes.
As massas trabalhadoras urbanas passaram a denunciar o pacto populista visto
que não tinham participação nos lucros das empresas – decorrentes do aumento de
produtividade – e viam deteriorar seu nível de participação na renda nacional como um todo.
As reivindicações unificaram as classes trabalhadoras públicas e privadas, além de aproximar
as demandas de trabalhadores rurais com as dos trabalhadores industriais. Como recompensa
pelo seu ativismo político, a taxa de exploração foi interrompida em sua escalada de altas.
85 “O estudo de Assis Ribeiro chamou a atenção para a tendência existente entre o eleitorado de afastar-se do espectro político. O declínio e a insuficiência dos partidos tradicionais como mecanismos de controle social e mobilização dirigida tornavam-se evidentes. Essa tendência foi confirmada por uma análise da percentagem de votos obtidos pelos partidos majoritários em três eleições para o Congresso. Assim, os três maiores partidos, que haviam obtido em 1945 78,7% dos votos, receberam, dezessete anos mais tarde, somente 38,9% deles, enquanto alianças partidárias obtinham 41 %. Por outro lado, o número de votos em branco subiu de 468.000 (4,8%) em 1954 para 2.149.111 (15%) em 1962. Assim, os três maiores partidos, que haviam obtido em 1945 78,7% dos votos, receberam, dezessete anos mais tarde, somente 38,9% deles, enquanto alianças partidárias obtinham 41 %. Por outro lado, o número de votos em branco subiu de 468.000 (4,8%) em 1954 para 2.149.111 (15%) em 1962.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit, p. 138.
XLIV
Os quadros médios e superiores das Forças Armadas associados à burguesia
tecnocrata estavam insatisfeitos por conta da queda de seu poder aquisitivo em função da
inflação e da relativa depreciação dos seus salários. Oficiais militares passaram a crer,
fundamentados nos fatos e nas ações paternalistas de Jango, que o governo encorajava as
greves e que os aumentos salariais dados ao funcionalismo civil contribuíam para a inflação,
violência e o desgaste em suas posições de comando. Essa análise foi significante pois a
reação política deste grupo voltou-se contra o movimento de massas e a incipiente agitação
nos baixos escalões de suas respectivas hierarquias que, provocados principalmente por
agentes de direita no intuito de promover um confronte entre o governo e as forças populares,
ameaçavam também o seu status-quo. A burguesia financeiro-industrial temia que as classes
trabalhadoras pusessem à prova seus entrincheirados privilégios. Os oligárquicos ruralistas
temiam uma revolta camponesa enquanto que a burguesia agrária registrava impactos das
pressões sobre o comércio, temendo o uso do seu capital como subsídio para a
industrialização local que necessitava de investimentos. Os políticos não rejeitavam as regras
do pacto populista visto que era ele que dava o espaço que eles necessitavam, mas
condenavam o governo por ter permitido a mobilização das classes trabalhadoras através dos
sindicatos, seu meio tradicional de controle.
Profundas mudanças ocorreram no universo ideológico das Forças Armadas em
direção a uma atitude intervencionista, mediante o agravamento da crise. Buscou-se respaldo
nas disposições constitucionais – ou na inobservância destas pelo presidente em exercício – e
argumentos ou acontecimentos que concedessem caráter “legal” ao movimento.86 A deserção
em termos de lealdade ao Executivo e à figura do presidente foi articulada por parte dos
oficiais militares – àqueles vinculados à burguesia e ao grande capital – e encontrou forte
oposição dentro das próprias instituições armadas por parte daqueles oficiais legalistas que,
por várias outras vezes, já haviam coibido tais intentos intervencionistas. Assim, fora grande
a pressão exercida pelos altos e médios escalões que dependiam ainda de vários outros
fatores.87 86 Vários fatores serviram como subsídio para legitimar uma intervenção militar naquele momento. Havia implicações que a tornavam legitimas mediante às classes burguesas – as principais interessadas, como já foi visto; às classes mais baixas da sociedade civil – que vinha sofrendo com o aumento desenfreado da inflação, com os constantes conflitos que já estavam tomando ares de guerra civil além do descontentamento estimulado sobretudo pelos sindicatos; à camada rural – que requeria principalmente a reforma agrária e um melhor amparo ao setor; e aos próprios militares, determinados em refutar à ideologia comunista em prol da doutrina de manutenção da segurança nacional promovida pela ESG, conforme orientação capitalista já estabelecida, reaver a “ordem” e preservar os próprios princípios de disciplina e hierarquia no seio das instituições armadas.87 É evidente que o manejo das questões políticas envolvia apenas às classes hierarquicamente superiores (Oficiais Superiores e Oficiais Generais) e que estes calcavam-se nos pilares da disciplina e hierarquia para fazer valer sua ideologia, convertendo-a em ação no ano de 1964 através dos subordinados. As Praças em sua grande parte – nesta obra tratada como “proletariado militar” – mostravam-se simpáticas às medidas nacionais-
XLV
As Forças Armadas, ao menos a partir de 1930, foram muito influentes dentro da
política nacional na disputa político-ideológica entre as facções nacional-reformista e
desenvolvimentista-associada, mas agora ocorria que uma parcela considerável dos oficiais
de mais alta patente – não tanto numericamente, mas sim proporcionalmente, considerando
nível hierárquico e o poder de manobra – eram ativistas ou não se opunham à formação de
um Estado Maior antipopulista. Solidária à classe burguesa antipopulista e antipopular, os
militares ativistas, financiados e sob influência das forças transnacionais, passaram a
capitanear suas ações a partir dos vários escritórios de consultoria, anéis burocrático-
empresariais e associações de classe dominantes dos quais se serviam o complexo
IPES/IBAD. Associado a este, que a esta altura funcionava abertamente como líder e núcleo
estratégico para a ação política, representantes da ESG estabeleceram a “crítica das armas.”
Aos olhos dos incautos, e para estes com justa razão, a intervenção militar era
uma resposta enérgica e necessária ao caos, corrupção, à estagnação e a subversão. O próprio
clima de guerra civil que se alastrava pelo país corroborava com este sentimento e com as
criticas feitas aos sistema populista. Desta forma, houve grande e genérico apoio popular à
intervenção paradoxalmente ao objetivo precípuo desta ação que, por ser um movimento com
fundo classista, buscava justamente conter o avanço das forças proletárias.
João Goulart não obteve amparo substancial dos militares88 talvez por não ter tido
a mesma habilidade política como fez seu antecessor – Jânio Quadros – que indicou aos
respectivos ministérios oficiais influentes e congruentes com a sua linha de ação.89
2.3) Influência norte-americana para a crise de 1964
Há diversos indícios de ingerência americana nos episódios pré (e pró) 1964. Além
dos variados acordos como o PAM e a Lei de Segurança Mutua, há de se destacar os
reformistas e, portanto, “A intervenção militar dependia do grau de manipulação e controle que os oficiais exerciam sobre os escalões inferiores e sua capacidade de manter uma unidade político-operacional quando em ação.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 142.88 O apoio do Comandante do 2º Exército de São Paulo General Amaury Kruel, legalista e amigo particular do presidente, teria sido decisivo nos rumos da história do Brasil. Sua adesão ao movimento era decisiva para seu sucesso visto que segundo Thomaz Skidmore, o controle do Vale do Paraíba era essencial no caso de uma guerra civil. “No dia 31 de março, pressionado pelos outros golpistas, Kruel ligou para Goulart e lhe pediu que recuasse, decretando o fechamento do CGT [Central Geral dos Trabalhadores]. Goulart disse não e [ambos escolheram seus lados].” Kruel pôs suas tropas rumo a Minas e Goulart fugiu para o Rio Grande do Sul e posteriormente para o Uruguai, onde morreu em 1976 e infarto. In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 14.89 Jânio Quadros indicou o Marechal Odílio Denys ao Ministério do Exército; o Almirante Sílvio Heck para o Ministério da Marinha; e o Brigadeiro Gabriel Moss, do IBAD, para o Ministério da Aeronáutica. Assim, trouxe para si o apoio militar com líderes de direita. Já o seu vice – João Goulart – não gozou em nenhum momento de tal apreço, mesmo antes de sua posse, que se deu em meio a forte oposição e só foi enfim consentida graças à ferramenta improvisada do sistema parlamentarista.
XLVI
incentivos táticos, bélicos, doutrinários e, sobretudo, financeiros.90 O próprio IBAD chegou a
ser denunciado como fantoche político da CIA no Rio de Janeiro, pois a ADEP, movimento a
ele vinculado, era uma ação política patrocinada pela estação carioca da CIA que manejava
campanhas eleitorais e lobbying.91
Entretanto, analisando as fontes, o papel dos EUA não aparenta ter sido decisivo
no desfecho da crise em 1964. Os próprios militares citam o apoio como irrelevante para que
se consumasse a intervenção, apesar de admitirem que era muito interessante aos norte-
americanos que presidentes mais “esquerdistas” não perdurassem no poder.
O fato do Brasil ter passado a contar com maior “boa vontade” norte-americana,
principalmente no setor econômico, é um dos principais argumentos para legitimar a idéia de
“patrocínio” dos EUA. De fato o intervencionismo militar foi providencial àquele país
enquanto líder do bloco capitalista, mas o que não se pode esquecer é que já existia um forte
vínculo entre os dois países desde o período ditatorial de Getúlio Vargas, na década de 1940,
consolidado no inicio dos anos cinqüenta com a criação da Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos por exemplo. Se o apoio e crédito norte-americano cessou, fora em virtude do não
pagamento das dividas, do déficit orçamentário, da crise política e da improbidade
administrativa que se aqui se instaurou. Assim, os EUA só o apoio econômico ao Brasil após
a estabilização do governo, do direcionamento político pós-1964 e, sobretudo, da
estabilização da economia.
O jornalista Elio Gaspari cita um apoio bélico formal e efetivo denominado de
“Operação Brother Sam” em que, segundo o jornalista, o presidente norte-americano Lyndon
Johnson – sucessor de John Kennedy, assassinado em fins de 1963 –, teria enviado uma
esquadra composta por um porta-aviões, um porta-helicópteros, seis contra-torpedeiros e
quatro petroleiros carregados com 533 mil barris de combustível em direção ao Brasil no
intuito de apoiar os conspiradores caso estourasse uma guerra civil. Em 31 de março, esta
esquadra estaria fundeada no mar do Caribe mas, como não houve reação, retornou ao seu
país. Gaspari afirma ainda que estas tripulações estavam a postos desde 20 de março de 1964
e que o embaixador americano no Brasil, Lincon Gordon, já estruturava o plano desde julho
de 1962.92 Outros autores mais exaltados e ao que parece menos embasados fazem
elucubrações mirabolantes sem apresentar sequer uma bibliografia, como é o caso de Jaime
Sautchuk, ao afirmar que “em solo nacional estariam quarenta mil soldados americanos.”93
90 Segundo citação de Skidmore, G.R. Mather afirma que entre 1963 e 1964 o Brasil recebeu cerca de 75 milhões de dólares por intermédio do programa de segurança pública. 91 René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 103.92 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 16.93 Jaime SAUTCHUK, Luta Armada. São Paulo: Anita, 1995, p. 37.
XLVII
Entrementes, se seguirmos a mesma linha de raciocínio, teriam sido os próprios norte-
americanos os responsáveis pela queda do regime militar uma vez que a gestão de Jimmy
Carter apregoava uma política externa pró direitos humanos, o que ia de encontro aos moldes
brasileiros pouco ortodoxos de lidar com os opositores no período conhecido como “anos de
chumbo.” Entretanto, o movimento que culminou com as “Diretas Já” é visto muito mais
como um processo de redemocratização encetado pelo povo, pelo enfraquecimento da
máquina estatal militar e pela ação de intelectuais do que por intervenção internacional.
Assim, é mais sensata a assertiva da historiadora Maria Celina D’Araújo quando diz que
“Apesar de criticar o regime e incomodar os militares, a administração Carter não interferiu
de fato no Brasil.”94
94 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.
XLVIII
CAPÍTULO III
MEMÓRIAS DAS CONSPIRAÇÕES
3.3) O uso da memória na consolidação da história nacional
Neste capítulo utilizar-se-á da história oral a fim de abrir o leque das
possibilidades. Esta metodologia traz consigo o beneficio de aproximar o contemporâneo da
realidade de outrora, uma vez que se apropria das memórias dos próprios agentes de um dado
processo – neste caso, movimento de 1964.
A memória pode ser dita uma “operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar.” A referência ao passado é a base para a
manutenção da coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para
definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também suas individualidades e
posições irredutíveis. Assim, as duas funções essenciais da memória comum seriam a
manutenção da coesão interna e a defesa das fronteiras daquilo que um grupo tem em comum.
“O trabalho político é sem dúvida a expressão mais visível desse trabalho de enquadramento
da memória.”95
Émile Durkheim,96 sociólogo que forneceu as primeiras ferramentas teóricas para a
efetivação do método, dá ênfase na força quase institucional da memória que seria dita
“coletiva”, reforçando suas observações à nível de duração, continuidade e estabilidade.
Maurice Halbwachs97, ao criar o conceito de memória coletiva, não via nessa uma imposição,
95 Pierre BOURDIEU, La représentation politique, Actes de la recherche en sciences sociales, 36/37,1981, p.3.96 Émile Durkheim (1858 -1917) foi o fundador da escola francesa de sociologia, posterior a Marx, que combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica. É reconhecido amplamente como um dos melhores teóricos do conceito da coerção social. Partindo da afirmação de que “os fatos sociais devem ser tratados como coisas”, forneceu uma definição do normal e do patológico aplicada a cada sociedade, em que o normal seria aquilo que é ao mesmo tempo obrigatório para o indivíduo e superior a ele, o que significa que a sociedade e a consciência coletiva são entidades morais, antes mesmo de terem uma existência tangível. Essa preponderância da sociedade sobre o indivíduo deve permitir a realização desse, desde que consiga integrar-se a essa estrutura. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Emile_Durkheim97 Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês da escola durkheimiana. Escreveu uma tese sobre o nível de vida dos operários, e sua obra mais célebre é o estudo do conceito de memória coletiva, que ele criou. Na École Normale Supérieure, em Paris, estudou filosofia com Henri Bergson, o qual o influenciou enormemente. Lecionou em vários liceus antes de viajar à Alemanha em 1904, onde estudou na Universidade de Gottingen. Retornou à França em 1905, onde encontrou Émile Durkheim e se interessou por sociologia. Reuniu-se ao conselho editorial do Année Sociologique, onde trabalhou com François Simiand editando a seção de economia e estatística. Em 1909 voltou à Alemanha para estudar marxismo e economia em Berlim. Durante a Primeira Guerra Mundial Halbwachs trabalhou no Ministério da Guerra. Logo após o fim da guerra ele tornou-se professor de sociologia e pedagogia na Universidade de Strasbourg. Manteve a posição por uma década. Foi professor visitante por um ano na Universidade de Chicago. Em 1935 foi chamado para a Sorbonne, onde ensinou sociologia, trabalhou com Marcel Mauss e foi editor dos Annales de Sociologie, o jornal que sucedeu o Année Sociologique. Em 1944 ele recebeu uma das maiores honrarias da França, uma cátedra de psicologia
XLIX
uma forma específica de dominação ou violência simbólica mas sim as funções positivas
desempenhadas pela memória comum, o reforço da coesão social pela adesão afetiva ao grupo
que viria a formar o que ele chamou de “comunidade afetiva.” Portanto, para Halbwachs a
coesão não se faria especificamente pela coerção social – conceito desenvolvido por
Durkheim – e, segundo ele, “a nação é a forma mais acabada de um grupo, [sendo] a memória
nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva.”
Para Halbwachs não se trata mais de lidar com os fatos sociais como “coisas”
simplesmente – como pretendia seu mestre –, mas sim de analisar como se dá este processo de
“coisificação” dos fatos sociais, bem como descobrir o meio e por quem eles são solidificados
e dotados de duração e estabilidade. Uma vez associada à memória coletiva, essa abordagem
aterá seu interesse nos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de
formalização das memórias. Por este método a escolha dos objetos de pesquisa prioriza as
áreas onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.
Um exemplo claro e até clássico para a ilustração é o papel desempenhado pela
reescrita da história no processo de “destalinização” européia. Este processo deu-se em duas
fases distintas98 que produziram uma reviravolta da visão histórica ligada à linha política.
Promoveu a destruição progressiva dos signos e símbolos que lembravam Stalin na União
Soviética e nos países satélites, desfez a imagem de Stalin como “pai dos pobres” e culminou
com a retirada de seus despojos do mausoléu da Praça Vermelha. Uma das conseqüências
deste movimento foi o alardear de diversas manifestações – dentre elas a revolta húngara –
onde a população se encarregou da destruição das estátuas de Stalin e interagiram em uma
estratégia para obter a independência e autonomia. Uma outra conseqüência que evidencia
bem a aplicação dos conceitos de Halbwachs foi o despertar da liberdade, do senso crítico que
trouxe à tona traumatismos profundamente intrincados que ganharam forma e corpo através
de um projeto para construção de um monumento em homenagem às vítimas do estalinismo.99
Esse fenômeno consiste na irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de
uma memória que jamais pôde se exprimir publicamente. A clivagem entre memória oficial
social no Collège de France. Desde muito tempo socialista, Halbwachs foi detido pela Gestapo após a ocupação nazista de Paris e deportado para Buchenwald, onde foi executado em 1945. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maurice_Halbwachs98 A primeira delas após o XX Congresso do PC da União Soviética, quando Nikita Kruschev denunciou pela primeira vez os crimes estalinistas. Depois, reemergiu cerca de trinta anos mais tarde no quadro da glasnost e da perestroika.99 Uma vez rompida a censura (ainda que subjetiva), as memórias subterrâneas invadem o espaço público e são expressas em reivindicações múltiplas, dificilmente previsíveis, que se acoplam a essa disputa da memória. Por isso é necessário aos dirigentes elaborar uma associação que relacione uma profunda mudança política a uma revisão (auto)crítica do passado. In: Michael Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. publicado em Estudos Históricos (1989) e rememorado em conferência no CPDOC proferida em 1987.
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dominante e memórias subterrâneas está, na maior parte das vezes, ligada a fenômenos de
dominação mas, além da oposição entre Estado dominador e sociedade civil, pode remeter
também às relações entre grupos minoritários e sociedade como um todo.100 Essa memória
“proibida” e, logo, “clandestina”, ocupa os mais variados segmentos e setores: do cultural
(como cinema e pintura) ao editorial e aos próprios meios de comunicação, o que comprova o
fosso que separa a sociedade da ideologia oficial de grupos ou do próprio Estado que pretende
a dominação hegemônica. Esta doutrinação ideológica, entretanto, não consegue irromper as
lembranças individuais e suas mesclas com às coletivas, que tendem a perdurar confinadas ao
silêncio, transmitidas eventual e oralmente através de gerações. Assim, o silêncio sobre o
passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade impotente
opõe ao excesso de discursos oficiais. Sabedores disso, as hegemonias formadoras de opinião
se esmeram em construir uma história que lhes seja interessante no sentido de que as
reafirmem no poder, seja este político, ideológico ou mesmo econômico.
Em oposição à memória nacional, as lembranças individuais ou minoritárias vão
sendo transmitidas no quadro familiar, em associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou
política. Essas lembranças proibidas (falando-se de Brasil, é caso das memórias em mercê ao
regime militar), indizíveis (caso dos torturados em geral – fosse pelos militares, fosse pelos
movimentos armados) ou vergonhosas (caso dos torturadores) são inconscientemente
guardadas em estruturas de comunicação informais e passam despercebidas pela sociedade
englobante. Com o movimento ideológico maciço, estas estruturas tendem a ficar cada vez
mais tímidas uma vez que as fronteiras dos silêncios e “não-ditos” com o esquecimento
definitivo e o reprimido inconsciente não são estanques e estão em perpétuo deslocamento.
O limiar entre o dizível e o indizível separa uma memória coletiva subterrânea da
sociedade dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que
resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o próprio Estado deseja passar e impor.
“Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de
saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado.”101
100 O silêncio sobre o passado – no que concerne à minorias – está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação. Não provocar o sentimento de culpa da maioria torna-se então um reflexo de proteção da minoria. Contudo, essa atitude é ainda reforçada pelo sentimento de culpa que as próprias vítimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas.101 “O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que venha à tona nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples ‘montagem’ ideológica, por definição precária e frágil.” In: Michael Pollak. Memória, esquecimento,
LI
Os elementos que constituem as memórias individuais ou coletivas são aqueles
acontecimentos vividos pessoalmente. Também existem os acontecimentos que Michael
Pollak102 chamou de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. Estes últimos são aqueles que por suas
dimensões e pela sua ligação com a pessoa – ainda que imaginária –, mesmo que ela dele não
tenha participado, tomam tamanho e relevo tal que torna-se praticamente impossível para a
pessoa distinguir se ela teve ou não participação. Acontecimentos, personagens e lugares são
os três critérios conhecidos como marcos resgatáveis pela memória podendo ser reais, ou a
meras projeções de outros eventos.103 A organização em função das preocupações presentes,
cotidianas, mostra que a memória é um fenômeno construído. Os modos de elaboração desta
construção podem ser conscientes ou inconscientes, fazendo com que a memória individual
grave, recalque, exclua ou relembre, num verdadeiro trabalho de organização. “Podemos
portando dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante
do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si.”
A memória especificamente política é motivo de disputa entre várias organizações,
trabalho este parcialmente realizado por nós historiadores. Segundo Pollak, existem
historiadores que Gramsci chamaria de “orgânicos” – por exemplo, àqueles partidários do
movimento gaullista, do Partido Comunista, os historiadores socialistas, os sindicalistas etc. –,
cuja tarefa é precisamente enquadrar a memória. Relacionando o trabalho destes historiadores
à herança do século XIX – sobretudo à brasileira –, há de se ter em mente que estes se
silêncio. publicado em Estudos Históricos (1989) e rememorado em conferência no CPDOC proferida em 1987.102 Michael Pollak nasceu em Viena, Áustria, em 1948, e morreu em Paris em1992. Radicado na França, formou-se em sociologia e trabalhou como pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique -CNRS. Seu interesse acadêmico, voltado de início para as relações entre política e ciências sociais, tema de sua tese de doutorado orientada por Pierre Bourdieu e defendida na École Pratique des Hautes Études em 1975,estendeu-se a diversos outros campos de pesquisa, que confluíam para uma reflexão teórica sobre o problema da identidade social em situações limites.Entre seus últimas trabalhos incluem-se um estudo sobre mulheres sobreviventes dos campos de concentração publicado sob o título L'expérience concentrationnaire: essai sur le maintien de 1'identité sociale (Paris, Éditions Metailié, 1990), e uma pesquisa sobre a Aids (Lês homosexuels face au SIA). Pollak esteve no Brasil entre outubro e dezembro de 1987 como professor visitante do CPDOC e do PPGAS do Museu Nacional. Na ocasião concedeu uma entrevista sobre a Aids a Alzira Alves de Abreu e Aspásia Camargo publicada em Ciência Hoje, vol. 7, n.º 41 (abr. 1988). 103 Numa série de entrevistas que a equipe de Pollak fez sobre a guerra na Normandia – cidade que foi invadida em 1940 pelas tropas alemãs e foi a primeira a ser libertada –, encontrou-se pessoas que, na época do fato, deviam ter por volta de 15,16,17 anos e se lembravam dos soldados alemães com capacetes pontudos (casques à pointe). Ora, os capacetes pontudos são tipicamente prussianos, do tempo da Primeira Guerra Mundial, e foram usados até 1916, 1917. Tratava-se portanto de uma transferência característica, a partir da memória dos pais, da ocupação alemã da Alsácia e Lorena na Primeira Guerra, quando os soldados alemães eram apelidados de ‘capacetes pontudos’, para a Segunda Guerra. “Uma transferência por herança, por assim dizer.” In: Relatos de Michael Pollak, proferidos em conferência no CPDOC em 1987.
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debatiam contra o nacionalismo exarcebado e suas conseqüências desastrosas. Desta forma
pode-se imaginar o quão importante não fora a função destes historiadores – imersos à época
na corrente historiográfica marxista –, nesse trabalho de enquadramento visando à formação
de uma história nacional. Por assim dizer, o trabalho de enquadramento da memória pode ser
considerado em termos de “investimento” pois, a cada reconstrução da memória coletiva, há
de se ter um trabalho de manutenção, coerência, unidade e continuidade da sua organização.
Portanto, neste sentido, investimentos do passado podem “render juros” às hegemonias que se
estabelecem em função desta construção.
“A organização das lembranças se articula igualmente com a vontade
de denunciar aqueles aos quais se atribui a maior responsabilidade
pelas afrontas sofridas...” e “Ainda que quase sempre acreditem que ‘o
tempo trabalha a seu favor’ e que ‘o esquecimento e o perdão se
instalam com o tempo’, os dominantes freqüentemente são levados a
reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o intervalo pode
contribuir para reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos
dominados, que se exprimem então com os gritos da contra
violência.”104
Nas articulações da construção da história nacional brasileira, percebe-se
nitidamente a aplicação das proposições de Pollak. O trato e o teor destinado aos recortes
históricos indicam uma manipulação ideológica que precisa constantemente reconstruir os
fatos com ênfase absoluta, sensacional e por vezes inverídica, naqueles que fortalecem e
legitimam as hegemonias dominantes em seu modus faciendi.
3.2) Irrupções das “memórias proibidas” na história do Brasil
104 Michael Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. publicado em Estudos Históricos (1989) e rememorado em conferência no CPDOC proferida em 1987.
LIII
Segundo a definição do jornalista Elio Gaspari, “a ‘Ditadura’ começou
envergonhada.” Toda a casta civil que fomentou e apoiou a intervenção criam que o governo
militar – então concedido por eleição indireta – seria apenas um “mandato tampão” e que
sairia de cena com a mesma facilidade com que chegou ao poder até porque, grande vertente
dentre os militares era legalista – como já foi visto nesta obra – e defensora dos princípios
democráticos sendo, portanto, favoráveis a uma transição rápida para o regime
intervencionista. Já os mais radicais, auto conclamavam-se revolucionários e não tinham
previsto plano de governo e tão pouco uma data limite para a transição.
O presidente então empossado, o general Humberto de Alencar Castelo Branco, o
principal e talvez mais fervoroso dentre os legalistas, manteve o Congresso em funcionamento
mesmo em detrimento da opinião de segmentos militares.105 Foi necessário redigir uma nova
Constituição que justificasse a nova ordem. O Ato Institucional número 1 (AI -1), assinado
em nove de abril pela Junta Militar106 que governou provisoriamente o país, permitiu a
violação de direitos políticos, a cassação de personalidades civis, funcionários públicos e
membros das próprias Forças Armadas.107 Foram suspensos, em até dez anos, os direitos de
ocupar cargos públicos, de votar ou ser eleito. Esta “limpeza”, conforme Elio Gaspari, atingiu
também aos tribunais que não escaparam dos expurgos, contribuindo para deixar a Justiça sob
a tutela preponderante de partidários do regime.108
Alusões e análises como as do Sr Gaspari são clássicas. Contudo, depoimentos de
militares corroboram para que seja estabelecido um viés diferente do tradicional que
105 Esta titulação legalista lhe é atribuída em várias fontes, das oficiais às orais e o fato de ter desagradado em certa medida à frações militares ao não fechar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal de imediato fica nitido em depoimentos como o do Cyro Guedes Etchegoyen: “O que nos preocupava era a situação do país, os problemas que queríamos ver resolvidos. Mas, o escolhido fora o Castelo que, muito legalista, não quis fechar o Congresso e o Supremo Tribunal. Aí talvez resida o problema.”In: ETCHEGOYEN, Cyro Guedes. Cyro Guedes Etchegoyen (depoimento, 1992/1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 52 p.106 A Junta Militar era formada pelo vice-almirante Augusto Grünewald, da Marinha, o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia Melo e o general Arthur da Costa e Silva. O AI-I também determinou a ‘eleição’ do novo presidente de forma indireta. O escolhido para o cargo foi o general Humberto de Alencar Castello Branco, empossado em 15 de abril de 1964.107 “Já em abril de 1964, foram cassados 41 deputados federais, 29 líderes sindicais, 122 oficiais das Forças Armadas simpáticos a João Goulart e várias personalidades públicas, como o antropólogo Darcy Ribeiro - então reitor da Universidade de Brasília -, o economista Celso Furtado e o ex-presidente Jânio Quadros (...) o ex presidente Juscelino Kubitschek (...) [e] Os funcionários públicos que foram considerados ameaça à ‘segurança do país’ foram demitidos [e/ou exilados]. Os expurgos atingiram em cheio as Forças Armadas, que teve quase 3 mil integrantes punidos em 1964.” In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 19.108 Também houve as prisões e as torturas. Documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos mencionam 5 mil detenções feitas em poucas semanas após a derrubada de Jango. No balanço de 1964, nada menos que 203 denúncias de maus-tratos foram registradas. No ano seguinte, o presidente Castello Branco baixou o Ato Institucional número 2, instituindo que os processos políticos seriam julgados, daí em diante, pela Justiça Militar. ‘Deu-se assim o primeiro grande passo no processo de militarização da ordem política nacional’, sustenta Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada.” In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 19.
LIV
normalmente prestigia a economia ou enfoques outros, tratando a categoria protagonista como
massa amorfa. Este grupo institucionalizado cria representar uma fração da sociedade capaz e
disposta a implementar medidas de “catarse do sistema político” brasileiro, extirpando a
corrupção, contendas e ideologias que estavam conduzindo o país à bancarrota. Ao que tudo
indica, esta pretensão fundamentava-se “na idéia de que os militares eram, naquele momento,
superiores aos civis em questões como patriotismo, conhecimento da realidade brasileira e
retidão moral.”109
Entretanto, este raciocínio não deve ser generalizado para toda a corporação pois,
como vimos no capítulo anterior, o proletariado militar em sua grande maioria não
comungava do mesmo ideário dos oficiais generais. Ao contrário, a disseminação deste
pensamento sectário foi levada a efeito por poucos, por àqueles que encontravam-se no ápice
do poder e compartilhavam das prerrogativas e interesses burgueses. Acredita-se que este seja
o motivo dos ressentimentos e dos traumas que podem ser percebidos nos depoimentos de
muitos deles, tornando-os obtusos quanto à admissão das críticas visto que grande parte da
culpa não lhes cabe mas que afetou, e continua afetando toda a corporação através das
gerações.110
Dos depoimentos podemos extrair sumariamente dois parâmetros norteadores da
intervenção militar – ao menos sob o prisma daquela classe:
a) A decepção em relação à renúncia do presidente Jânio Quadros, pois grande
parte dos militares esperavam que ele recolocasse o país nos trilhos do desenvolvimento. Até
porque, a aversão a João Goulart era maciça entre a oficialidade – mas não entre as praças –,
“Não [necessariamente por ele ser visto] como alguém intrinsecamente perverso nem como
comunista. Seria, antes de tudo, um fraco, que se deixou levar pela esquerda, ou pela
‘maléfica’ influência de Leonel Brizola, este, talvez, para os militares, o maior vilão da
história.”111
109 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG). Visões do Golpe: A memória militar de 1964. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 9.110 Maurice Halbwachs nos diz que a memória é seletiva e que passa por um processo de “negociação” a fim de conciliar memória coletiva e memórias individuais: ‘Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum.’” Neste embate, nesta negociação entre memória individual e coletiva, muitas vezes a primeira não condiz com a segunda, visto que esta é uma construção elaborada nacionalmente à luz de vários interesses e conjecturas. Certamente por isso existe um conflito entre as memórias dos militares e cidadãos comuns contemporâneos ao regime e a memória coletiva que tem sido construída sobre àquele período histórico no Brasil. Sobre memória coletiva vide: M. Halbwachs, La mémoir e collective, Paris, PUF, 1968.
111 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit.,, p. 11.
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b) O anticomunismo entre os militares é fator preponderante na explicação dos
motivos que levaram ao golpe,112 possuindo fulcro histórico na revolta comunista de 1935
(Intentona Comunista). Este episódio marcou pela sua demonstração do potencial que a
doutrina comunista pode ter quando internalizada nos quartéis, dissolvendo a hierarquia, a
disciplina e as próprias diretrizes da corporação. Portanto, “anticomunismo” sob o viés militar
representa muito menos do que a possibilidade de instauração de um governo socializante,
mas sim à ameaça que o comunismo representava à própria existência das instituições e da
corporação militar.
O anticomunismo é mal visto pela classe armada no espectro internacional,
sobretudo no pós-guerra, já que a estratégia comunista de conquista do bloco capitalista
baseia-se em subversões e revoluções, desenvolvida através do acirramento da luta entre
classes no seio dos próprios países.113 Segundo os depoentes “não há espaço para dúvidas de
que havia uma guerra revolucionária, comunista, em marcha no Brasil. Nesse sentido, 1964 é
visto como um contragolpe ao golpe de esquerda que viria, provavelmente assumindo a feição
de uma ‘república sindicalista’ ou ‘popular’.”114 Assim, levantes isolados contra o governo
como os de Jacareacanga e Aragarças tornaram-se corriqueiros nos quartéis, sobretudo porque
não havia um serviço de informações ou inteligência voltado para este fim. Quando houve a
revolta dos sargentos em 1963, dos marinheiros e fuzileiros navais em março de 1964, além
do jantar oferecido pelos sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, dezessete dias após o
comício da Central do Brasil, no Automóvel Club – reunião ao qual o próprio presidente da
república acompanhado por mais sete ministros compareceu –, teve-se a nítida impressão de
112 Em várias entrevistas este ponto é tido como fundamental motivação. O General Carlos Alberto Fontoura, por exemplo, quando perguntado sobre a principal causa que levara à intervenção ele respondera que: “Foi a virada que o país estava dando para a esquerda. Ameaça comunista. Comunista, populista, sindicalista. Mista, esquerdista. E a prova está aí, que nós estávamos com a razão, que o comunismo acabou, implodiu. Nem foi derrubado, nem foi derrotado, não foi nada. Implodiu. Caiu como castelo de areia.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.113 Em uma palestra realizada pelo Brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira para os alunos da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica – ECEMAR – no início de 1964, disse ele: “Os assuntos dessa conferência (isso foi no começo dos cursos de 1964, ainda não tinha havido a revolução) constituem uma síntese das idéias que nortearam a Escola de Comando do Estado-Maior no trato, em 1963, do problema da guerra revolucionária. Elas têm servido de subsídio para a elaboração pelo estado-maior da Aeronáutica da doutrina de emprego da FAB na segurança interna.” Mais adiante, referindo-se à Guerra Fria, dizia: “Esse tipo de guerra foi estudado e analisado pelos fundadores do comunismo, que praticamente a incorporaram como idéia básica de sua doutrina. Isto se deve a Friedrich Engels, nascido em Barmen, na Alemanha, em 1820, filho de um industrial alemão, amigo incondicional de Karl Marx, com quem colaborou por mais de 40 anos. Dedicou-se à análise da arte militar e tanto nela se aprofundou que os amigos o chamavam afetuosamente de ‘general.’ Com a ajuda de Marx, estudou a guerra dentro da filosofia comunista e foi buscar em Klausewitz, que considerava o melhor no assunto, o aspecto ideológico das mesmas, e sua classificação em guerras de conquista e de libertação.” (O grifo é meu) In: SIQUEIRA, Deoclécio Lima de. Deoclécio Lima de Siqueira (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 39 p. dat.114 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 12.
LVI
que estes eram sinais latentes da desagregação iminente na caserna conforme os intentos
comunistas.115 Para os militares, razões tais como inflação, greves e corrupção, são elementos
secundários à consolidação do movimento.116 “Alguns depoentes chegam a afirmar que, caso
Jango tivesse dado sinais claros de que não compactuaria com a quebra da hierarquia e da
disciplina, suas chances de continuar no governo seriam boas, e a correlação de forças não se
definiria em favor dos golpistas.”117 Portanto, quando o presidente da República prestigiou os
baixos escalões, ultrapassou a tênue linha divisória do pseudo-poder, da subordinação que
“delimita a fronteira entre a ordem e o caos.”
Apesar de parecer um contra-senso, foi esta mesma quebra de hierarquia tão
temida pelos militares que proporcionou o intervencionismo militar e o conseqüente sucesso
da conspiração – ou, baseado nos relatos, “das conspirações.”118 Gesto maior desta
indisciplina ativista fora a deflagração do movimento em Minas Gerais por Olímpio Mourão
Filho, visto que este comandante de divisão não consultou seus superiores e tão pouco
aguardou o sinal que seria dado pelo governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, como
combinado previamente.
Julgando-se os indícios dos depoimentos, a gravidade afeta à ruptura dos preceitos
da disciplina e hierarquia iminente, foi o diferencial para que o movimento de 1964 tenha se
generalizado a partir das “várias conspirações”, ao contrário do que acontecera com
quarteladas anteriores. A necessidade de extirpar os germes comunistas explica porque foram
expurgados tantos membros das próprias forças armadas como vimos nos dados revelados
pelo jornalista Elio Gaspari.
115 Estes teria sido um dos principais estopins para a intervenção, fato observável unanimemente em todos os depoimentos como no de Cyro Guedes Etchegoyen, quando perguntado sobre a principal causa: “Foram aqueles comícios do Automóvel Clube, aquele comício da Central do Brasil, aquela greve dos marinheiros...” In: ETCHEGOYEN, Cyro Guedes. Cyro Guedes Etchegoyen (depoimento, 1992/1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 52 p.116 Em vários depoimentos estes fatores são citados mas sempre em esfera secundária. No do General Carlos Alberto da Fontoura, por exemplo, fica evidente que a corrupção era prática corriqueira: “Havia muita corrupção. Assisti coisas com um ministro, assisti por força de circunstância: me mandaram ao aeroporto receber o ministro da Educação. Não lembro quem era o ministro. Era um ministro do Jango. Chegou lá, eu fui recebê-lo. Ele me convidou: ‘Coronel, o senhor me acompanha até a prefeitura, vamos tomar um cafezinho.’ Ele tirou o talão de cheque do bolso e dava dinheiro para todo mundo.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.117 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 12.118 Todos os depoentes afirmam não ter havido uma movimento centrado ou ordenado. Ao contrário, relatam que o que havia eram “Ilhas. Ilhas. Pode escrever isso. Nós nunca centralizamos. Só houve um início de centralização na véspera da revolução. Houve uma circular do general Castelo Branco, chefe do estado-maior do Exército (...)Ilhas, pelo Brasil afora. Então, essa circular do Castelo, de certa forma, nos deu unidade, uma relativa unidade, resquícios de unidade.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.
LVII
Como os depoimentos deixam claro, a intervenção foi desejada e solidamente
apoiada em seu principio por vários segmentos sociais que receavam a supressão das suas
liberdades, a abrupta mudança econômica, política e, porque não dizer, cultural que
proporcionar-se ia com um golpe de esquerda nos moldes de Josef Stalin.119 “Nas palavras de
Leonidas Pires Gonçalves, ‘a Revolução saiu sob pressão da sociedade civil. Não podemos
esquecer isso. Tenho o hábito de repetir, e se não ouviram de alguém, vão ouvir pela primeira
vez: acho que as Forças Armadas até hoje são ressentidas com a sociedade brasileira. Porque
a sociedade brasileira nos levou, foi uma das responsáveis pela Revolução de 64, e hoje em
dia a mídia não se cansa de nos jogar na cara que nós somos torturadores, que somos
matadores, que somos isso, somos aquilo, esquecendo que todos esses movimentos são feitos
por criaturas humanas e que os descaminhos ocorrem. Acho que há muita injustiça’.”120 Para
ele, na sua indignação, isto seria uma “safadeza histórica.”
Muito mais que demonstração de “mágoas ou ressentimentos”, muito maior que a
intenção de legitimar o movimento de outrora, as palavras do Sr. Leônidas devem servir de
alerta para a não propagação maciça e indiscriminada de fatos históricos adulterados –
conscientemente ou não. Afinal, independentemente das motivações intrínsecas e da ideologia
de fundo, a sociedade participou sim do levante para a intervenção121 e dela dependeu o
sucesso da empreitada como dependeria em quaisquer outras circunstâncias.122 Afinal, se
houvesse uma movimentação popular contrária à deposição de Jango, teria se interposto
minimamente uma resistência, fato que não houve. Ademais, se a mídia, as editoras de livros
119 “Havia [muito contato com civis], porque os [eles] nos chamavam de covardes. Eu fui chamado de covarde várias vezes – fardado – , por gente desconhecida na rua da Praia, que é a rua do Ouvidor de Porto Alegre. Diziam: ‘Vocês são uns covardes. O que é que estão esperando?’ Eu cansei de ouvir da família. Não a mulher e os filhos, mas outras pessoas da família: ‘Estão esperando o quê? Que o Stalin venha sentar aqui em Brasília?’ Era nesse tom. Quer dizer, nós fomos atrás do povo. Na verdade, o Exército não saiu na frente, as forças armadas não saíram na frente do povo. Eu lhe digo isso com toda a sinceridade. Se o povo não quisesse... Sem o apoio do povo, não se faz nada. Eu conversava com os meus oficiais mais chegados, quando estava o Brizola pregando aquela reforma agrária: ‘Tomem a terra, tirem a terra. Entrem nas fazendas e matem o gado’. Isso ele dizia todas as semanas pelo rádio. Todo gaúcho daqueles ranchinhos tinha um rádio de pilha ouvindo o Brizola das sete às oito horas da noite, todas as sextas-feiras. Um dia, mandei meus filhos lá. Os dois. ‘Vão lá ver.’ E tinha uma multidão batendo palma para ele. E eles foram. Eram estudantes, novinhos, de 18, 19 anos, voltaram dizendo: ‘Papai, tu sabes o que são aqueles aplausos? Há um disco. Não tem ninguém lá, é só o Brizola. É um disco. Cada vez que ele diz uma frase, eles botam o disco dos aplausos’. Parecia uma multidão aplaudindo o Brizola. Meus filhos viram isso.” In: Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 210.120 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 14.121 E isto pode ser facilmente observado mesmo através de imagens visto que exames iconográficos revelam a população celebrando a deposição de João Goulart pelas ruas do país, em meio aos tanques do Exército.122 Outra fonte oral afirma que houve a intervenção: “Porque São Paulo quis que acontecesse. É chato dizer isso, não é? São Paulo quis acabar com o governo Jango, que era podre. Que era podre, que tinha todos os defeitos que nós reconhecíamos. Mas quem botou todo mundo contra Jango foi São Paulo. Como fizeram com o Collor agora [1993/1994].” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat. Não obstante, a assertiva é bastante pertinente visto que várias outras fontes escritas e/ou oficiais confirmam a movimentação popular, empresarial e religiosa ocorrida naquele estado.
LVIII
didáticos e os formadores de opinião se empenham tanto em propagar esta história
translúcida, em tantos pontos inverossímil, cabe alvitrar a população para que o senso comum
não se reproduza em beneficio dos atuais interesses das hegemonias dominantes.
Dentre os depoimentos analisados, pode-se perceber também uma convergência de
opiniões acerca dos oficiais legalistas ou pró-Jango, fossem eles de esquerda ou não.123
Àqueles que mantinham esta posição em prejuízo dos radicais, eram rotulados pelos colegas
como “melancias”124 – apelido depreciativo que os taxava de incompetentes, vaidosos,
personalísticos, maus exemplos para a tropa e, sobretudo, profundamente equivocados sobre a
extensão da conspiração em curso. Aliás, paradoxalmente, teria sido por culpa destas
personagens que Jango fora surpreendido pela fragilidade do “dispositivo militar” que
imaginava leal ao Executivo. Por isso, nas palavras de Deoclécio Siqueira, o governo
"desmoronou como um castelo de areia".
Em suma, contrariando a interpretação predominante entre os historiadores – que
crêem ter sido a intervenção (ou golpe) o substrato de um plano conspiratório bem arquitetado
entre o empresariado nacional, os militares e as forças econômicas multinacionais –, o
consenso militar (e aqui pode-se incluir também os subalternos, sabendo-se que sua visão é
muito mais fragmentada) a define como sendo resultado de ações multilaterais, dispersas,
isoladas mas “embaladas, no entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a
corporação.”
Também é consenso, segundo os depoimentos, que “todos teriam passado grande
parte da conspiração à procura de líderes.” Os mais cotados eram general Costa e Silva, então
chefe do Departamento de Produção e Obras, e o general Castelo Branco, então chefe do
Estado-Maior do Exército, de índole legalista. “Há unanimidade quanto à resistência de
Castelo Branco em aderir aos planos conspiratórios”, até porque ele era tido como veemente
legalista – por isso relutou até às vésperas do golpe em apoiar os conspiradores. Ambos foram
necessários para dar credibilidade ao movimento mas, contudo, foram “líderes forjados no
123 “Fui a favor da posse. Não do João Goulart, fui a favor da posse do vice-presidente da República que era ele. Podia ser outro, podia ser a senhora, podia ser qualquer um. Reuni os oficiais, disse: ‘A minha decisão é essa. Alguém está contra?’ Havia vários udenistas. Vários. Mas ninguém disse nada. Ninguém disse não. Eu disse: ‘Vou agora ao quartel-general dizer ao general que o regimento está reunido e unido a favor da decisão do III Exército de dar posse ao presidente João Goulart.’ Mas eu era contra ele, contra João Goulart (...) Porque eu achava que ele não tinha condições de ser presidente da República. Não tinha condições. Era um populista, era um demagogo. Tinha um coração enorme, era capaz de tirar o casaco para dar ao senhor. Agora, para presidente da República não dava. Sem dúvida era bondoso.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p124 A correlação com a fruta está no fato desta ser “verde por fora e vermelho por dentro.” Analogamente, os oficiais pró-Jango também seriam assim: apesar de ostentar o verde-oliva de suas fardas, símbolo de obediência e devoção aos valores nacionais, eram vermelhos (comunistas) no seu intimo, em sua ideologia.
LIX
meio da conspiração, e não conspiradores históricos.” Castelo Branco e Costa e Silva, haviam
sido colegas de turma no Colégio e na Escola Militar, porém tinham personalidades muito
diferentes. Assim, Costa e Silva se tornaria líder da ala militar mais radical, conhecido mais
tarde como “linha dura”125 enquanto que os moderados, legalistas e conservadores acercavam-
se do general Castelo Branco, representante dos oficiais ligados ao grupo da “Sorbornne”, que
pregavam por uma intervenção rápida com restabelecimento breve do poder aos políticos
civis.
Os relatos confirmam que não havia um projeto prévio de governo, nem contra e
nem a favor de nada o que prova o caráter não revolucionário do movimento – visto que não
houve ruptura com uma conjuntura pré-estabelecida. A única certeza dos conspiradores é que
Jango tinha que sair e as instituições tinham que ser “limpas” em sua ideologia, política e
moral, ficando os projetos com prioridade secundária naquele momento, a cargo de uma
equipe de técnicos e economistas com a tarefa de formular o Plano de Ação Econômica do
Governo – o PAEG. Contudo, “É bom lembrar que a "limpeza" não se baseou apenas em
critérios estabelecidos pelos militares: foi também uma oportunidade para ajustes de contas
entre a classe política despedaçada pelos conflitos recentes e para vinganças de cunho
pessoal.”126
Esta ausência de projetos teve influência direta na duração do regime. Isto ocorreu
porque não havia consenso sobre o tempo certo de fazer nova transição para o meio civil. O
ponto comum na análise de todos é que não havia alternativa melhor do que a permanência
dos militares naquela época apesar de concordarem que deveriam ter saído “por cima”, até
mesmo para evitar desgastes e proteger a imagem das instituições militares.
As disparidades entre costistas e castelistas crescem tanto que, “eleito” Costa e
Silva, chegou ao poder como adversário do seu colega Castelo Branco. “Eles não eram mais
água da mesma fonte.”
125 O general Arthur da Costa e Silva se auto intitulava “comandante supremo da Revolução.”126 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 18.
LX
CONCLUSÃO
No Brasil sabe-se que a participação militar na vida política foi uma constante
desde a proclamação da República e, via de regra, esta influência sempre oscilou entre grupos
conspiradores ou ativistas e legalistas, os quais corroboram inúmeras vezes para a manutenção
da democracia (entendida enquanto “vontade do povo”). Houve ditaduras (nem sempre
militares), golpes e “contra-golpes”, dentre os quais figura a intervenção militar de 1964.
Ao pesquisar e discorrer sobre os fatos que culminaram com a transição de poder
ocorrida em princípios de 1960, pode-se notar claramente que a classe militar fora utilizada
pela alta burguesia como “bode expiatório.” Muito ardilosas, estas hegemonias se valeram da
conjuntura periclitante estabelecida para fazer valer sua ideologia e seus próprios interesses
sobre os diversos segmentos e mesmo sobre a massa do proletariado.
É claro que havia elementos dos altos escalões militares que, por pertencer ou
estarem intrinsecamente ligados à burguesia ou mesmo ao grande capital, eram co-genitores
destes ideais. Apregoando argumentos em pró soberania, segurança e defesa dos interesses
nacionais – valendo-se também do clima da Guerra Fria –, estes grupos hegemônicos
cativaram grandes frações de tropas;127 corroborando para a deterioração e atacando a política
econômica, conquistaram as classes mais baixas que pagavam o alto preço da estagflação; sob
a fachada de institutos e instituições “autônomos”128 fazendo largo uso da propaganda e
marketing, o capital multinacional e a grande burguesia obtiveram o apoio da maior parte dos
brasileiros em beneficio próprio. A partir de dado momento, quando os interesses burgueses
já haviam sido atingidos e, sobretudo, eles passaram a sentir dificuldade para manietar e/ou
subtrair os militares instaurados no poder, estas mesmas hegemonias passaram a usar das
mesmas ferramentas para fazê-los sucumbir. Da mesma maneira, a conjuntura político-
ideológica em dias de aspirações socialistas servia como pano de fundo para os vários grupos
armados que surgiam opondo-se em essência ao capitalismo mas, como este sistema
econômico estava consolidado no país e neste momento protegido e reforçado pelo regime
que endurecia a cada ação, atacava abertamente o governo.
O grande cerne deste estudo não é, de fato, o aprofundamento dos fatos pós 1964.
Contudo, muito mais que pesquisar sobre suas motivações, a intenção aqui contida é de
127 Lembrando-se é claro que esta aproximação ideológica se fazia sempre através dos médios e altos escalões. Visto que estes detinham o poder de, através da doutrina organizacional da disciplina e da hierarquia, articular grande número de homens, acaba-se generalizando dados movimentos e ações creditando-os na conta das instituições. 128 Como o IPES e o IBAD, por exemplo.
LXI
apontar as correlações ideológicas que se fazem presentes ainda nos dias de hoje. Como disse
Marc Ferro129 em seu livro ‘A manipulação da História no Ensino e nos meios de
comunicação,’
“A preocupação de tornar o passado asséptico e de deixar a História
sem problemas evidencia-se através do livros didáticos, em primeiro
lugar, sobre os quais têm poderes de pressão não só os governos mas os
vários segmentos da sociedade sobre os quais os governos se apóiam,
além dos interesses comerciais das editoras.
Mas a limpeza do passado também se processa de outras formas: as
histórias em quadrinhos, a televisão, o cinema (...) A manipulação do
passado esta bem longe de se limitar aos livros didáticos.”
Pode parecer paradoxal citá-lo neste contexto pois este autor afirma que “a História
"institucional" tem a função de glorificar a pátria e legitimar o Estado [legitimando assim] a
dominação”, contudo não o é à medida em que trata-se aqui de uma legitimação às avessas. O
Estado “democrático” brasileiro ainda infecto por muitos representantes hegemônicos
burgueses de outrora, hoje esforça-se em “proibir” a história institucional negligenciando
dados, falceteando acontecimentos e supervelorizando episódios degenerativos, lançando mão
dos meios de comunicação e formação de opinião. Há de se perguntar o porquê de tal
interesse. Por que creditar exclusivamente ao regime militar a constituição da divida externa,
quando sabemos que ela é herança de JK? Qual interesse em difundir o autoritarismo
reacionário instituido durante o regime quando sabemos que houveram ditaduras muito mais
algozes como a de Getúlio Vargas? Estas e outras impropriedades históricas são reproduzidas
em larga escala e de diversas formas, inclusive através de noticiários, implicita ou
explicitamente, inclusive em noticiários quando se escreve, por exemplo, que “Ex-Cabo do
Exército é preso acusado de tráfico de drogas.” Qual a intenção em correlacionar o traficante
com a instituição uma vez que não há mais vínculo algum deste para com aquela? Fica claro o
interesse em degenerar a imagem das instituições militares junto à sociedade na construção da
memória nacional.
É certo que há ideologias e interesses por detrás destas atitudes. Afinal,
“controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar tanto as
dominações como as rebeldias. Ora, são os poderosos dominantes
129 Diretor de estudos da École dês Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, examina a elaboração do discurso histórico através de vários países, várias épocas, vários regimes, insistindo principalmente na História "institucional" que tem a função de glorificar a pátria e legitimar o Estado. Legitimar a dominação.
LXII
Estados, Igrejas, partidos políticos ou interesses privados - que
possuem e financiam veículos de comunicação e aparelhos de
reprodução, livros escolares e histórias em quadrinhos, filmes e
programas de televisão. Cada vez mais entregam a cada um e a todos
um passado uniforme. E surge a revolta entre aqueles cuja história é
‘proibida’.”
De certo as hegemonias se aperceberam do poder revolucionário inconteste que militares e
proletariado teriam se unidos, tal qual episódio da Revolução Russa. Assim, da mesma
maneira que os EUA empenharam-se em criar uma imagem negativa do sistema socialista por
diversas formas,130 também aqui no Brasil tem-se tornado evidente e muito bem sucedida a
corrente ideológica que visa minar qualquer possibilidade de aproximação entre as duas
categorias, frequentemente abordadas sob o reducionismo de civis x militares.
Os formadores de opinião se valem do silêncio dos “vencedores” para transformá-
los em “vencidos”, subtraindo até mesmo o espaço para a critica. Entretanto, sabe-se que
“Elaborar a História a partir de uma só fonte cheira a tirania ou impostura [e que] É próprio da
liberdade deixar que várias tradições históricas coexistam e até se combatam.”
130 Vide filmes e desenhos da Wall Disney, como o desenho animado “Anastásia,” de fundo altamente ideológico.
LXIII
REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS:
1) FONTES PRIMÁRIAS
1.1) ORAIS:
1.1.1) Entrevista com o Sr. Cyro Guedes Etchegoyen.
ETCHEGOYEN, Cyro Guedes. Cyro Guedes Etchegoyen (depoimento, 1992/1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 52 p. dat.
1.1.2) Entrevista com o Sr. Carlos Alberto da Fontoura.
FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.
1.1.3) Entrevista com o Sr. Deoclécio Lima de Siqueira.
SIQUEIRA, Deoclécio Lima de. Deoclécio Lima de Siqueira(depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 39 p. dat.
1.2) IMPRESSAS
1.2.1) DOCUMENTOS OFICIAIS
Lei 6880, de 90de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares).
1.3) BIBLIOGRAFIA
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