MIRABILIS
Por
Luiz Augusto dos Santos
Registro na Biblioteca
Nacional - Rio de Janeiro
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FADE IN
SEQ. 01 INT. RODOVIÁRIA DE BELO HORIZONTE - MANHÃ 1
Rodoviária superlotada, carros de bagagens, crianças.
ÍRIS LOBO DAMIANI e sua irmã, ELISA LOBO, carregam algumas
malas. Íris(35); morena, tem 1,70 m. Olhos escuros e
densos cabelos. Elisa(39) tem 1,65 m. Um pouco roliça.
Elas param diante de UMA GRANDE TV.
INSERIR: IMAGENS DA TV:
Diante das SETE QUEDAS, um grupo protesta. Levam MUDAS DE
ÁRVORES E BANDEIRAS BRANCAS COM UMA PÉTALA AO CENTRO.
LOCUTOR (OFF)
Ontem, Domingo, dia 25 de Julho
de 1982, ficará marcado na
memória de todos aqueles que
defendem a natureza e as vítimas
inocentes das loucuras humanas em
busca do pretenso progresso...
Pessoas protestam e levam faixas: SETE QUEDAS VIVERÁ
LOCUTOR (OFF)
Três mil pessoas, entre índios e
ativistas protestaram contra o
fim das Sete Quedas. Uma das
paisagens mais belas do globo
será perdida para sempre por
causa do progresso, a construção
da Usina de Itaipu...
VOLTA À CENA
ÍRIS
E assim vão as coisas, até as
paisagens deslumbrantes somem. Se
não é o fogo que as consome, são
as águas que as cobrem. Esta
maravilha não vai bem
desaparecer, vai é ficar no
subconsciente da terra. Submersa.
ELISA
Credo, você está muito lúgubre
hoje. Levante esta cabeça.
Íris PARA diante de uma loja de brinquedos e olha para as
BONECAS em exposição.
OFF - GRITOS das balconistas. Elas saem correndo da loja.
(CONTINUED)
CONTINUED: 2.
Curiosos se aproximam. Pessoas das lojas vizinhas trazem
EXTINTORES DE INCÊNDIO e tentam apagar o fogo. As chamas
se alastram e tomam conta da vitrine.
Elisa puxa a irmã pelo braço. Íris se recusa e fica a
olhar...
PONTO DE VISTA DE ÍRIS:
NA VITRINE, UMA BONECA CAI SOBRE O FOGO E QUEIMA-SE
LENTAMENTE.
VOLTA À CENA
BOMBEIROS chegam e afastam os curiosos.
A BONECA EM CHAMAS. O FOGO ATRAVÉS DA VITRINE...
INÍCIO DOS CRÉDITOS
O FOGO ABSORVE TODA A TELA.
SEQ. 02 - INT. PALCO DE TEATRO - NOITE 2
O fogo se distancia e torna-se UMA PIRA SOBRE UM ALTAR
DRUÍDICO. Cenário da ópera Norma, de Bellini
CRÉDITOS SOBRE IMAGENS
O BOSQUE SAGRADO DOS DRUIDAS - Grandes carvalhos. MULHERES
gaulesas, vestidas de branco, movimentam-se.
Íris, como Norma, dirige-se para UM CARVALHO e colhe o
VISCO com uma FOICE DE OURO. Caminha solenemente até o
altar. Canta "CASTA DIVA", o coro a acompanha.
CRÉDITOS(CONTINUAÇÃO)
ÍRIS
(cantando)
Casta Diva, Casta Diva, che
inargenti/Queste sacre, queste
sacre, queste sacre antiche
piante/A noi volgi il bel
sembiante;/A noi volgi,
A noi volgi il bel sembiante,
Senza nube e senza vel...
FIM DOS CRÉDITOS
3.
SEQ. 03 INT. TEATRO/PALCO - NOITE 3
TÍTULO SOBRE IMAGENS:
1979 - ÓPERA ESTATAL DE STUTTGART
Cortinas fechadas. Íris se refaz. (OFF)APLAUSOS E GRITOS
DE BRAVO. Ela recebe FLORES das mãos de uma senhora.
OFF- A PLATÉIA, em delírio, solicita a presença de Íris.
A cortina volta a se abrir, ela é recebida com uma
tremenda ovação. Íris agradece.
SEQ. 04 TEATRO/CAMARIM - NOITE 4
Íris, com um robe de seda, recebe os visitantes. Muitas
flores sobre as bancadas. CARLOS DAMIANI(37), e TIAGO
DAMIANI(9) aparecem à porta.
Íris corre para eles. Beija o marido e abraça o filho. Os
visitantes deixam-nos a sós.
TIAGO
Você estava tão linda, mamãe.
Íris afaga os cabelos do filho e o envolve.
SEQ. 05 INT. RODOVIÁRIA EM BELO HORIZONTE - DIA 5
OFF - SOM DE SIRENES DE BOMBEIRO sumindo, ao longe.
Elisa e Íris estão sentadas em um banco. As pessoas passam
por elas e espiam. Íris enxuga algumas lágrimas.
Íris executa gestos repetidos e lentos sobre suas coxas.
Elisa toma as mãos da irmã.
ÍRIS
Sabe? No fim de tudo não estou
preocupada comigo. Só penso na
Rosa, só nela.
ELISA
Ela vai ficar bem...quer dizer,
ela está bem.
ÍRIS
Isto é maneira de falar, né?
Coitada. Queria tanto que ela
viesse comigo.
ELISA
Pare de teimar com isso. Como é
que você poderia cuidar da Rosa
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 4.
ELISA (cont’d)neste lugar perdido pra onde vai?
Não deve ter nem médico lá.
ÍRIS
Ah, Elisa, deixa de ser tonta.
Lavras de Sant’Ana é perto de
Governador Valadares. É uma
cidade grande.
ELISA
Não dá, não dá...Desista disso,
Íris, venha comigo. Perdão, mas
vou insistir. Precisamos de
alguém para fazer o trabalho que
a mamãe fazia. Por que não você?
ÍRIS
Não, Elisa, não levo jeito pra
costuras. Tenho certeza que você
vai achar alguém melhor.
ELISA
O que você não pode é deixar tudo
depois dessa luta da mamãe pra
você estudar...o sucesso, as
viagens...ah, você ainda
pode voltar a cantar.
ÍRIS
Se você falar nisso mais uma vez,
vou tomar o ônibus sem me
despedir.
ELISA
Tá, tá, desculpa. É que...é
que...Íris...este tempo todo
tomando pilhas de remédios...uma
fortuna com psiquiatras,
clínicas... Temo por você.
ÍRIS
Estou bem.
ELISA
Imagine, você à frente de uma
farmácia...uma cantora do mundo,
onde já se viu? Você pode ter uma
recaída, precisa é de companhia.
ÍRIS
(forçando o riso)
É...fazer o quê, né? É o que
sobrou da herança... Bom, agora
vou ter prateleiras e prateleiras
de remédios ao meu dispor.
(CONTINUED)
CONTINUED: 5.
ELISA
Não brinque.
ÍRIS
Fique sossegada e pare de me
chatear, tá bem? Agora vá. Tchau.
ELISA
Você não pode desistir assim...
Íris, irritada,levanta-se e acende um CIGARRO. Elisa
estranha a novidade. Íris olha os ônibus que saem.
ÍRIS
Chega, será que você não consegue
entender que estou precisando de
solidão?
ELISA
Solidão é a pior coisa neste
momento...Imagine, fazer coisas
que não entende...Tá se punindo
de quê?
Íris pega Elisa pelos braços e a levanta da cadeira.
ÍRIS
Elisa, por favor, está me
irritando, já te pedi que fosse
embora. Me deixe aqui sozinha.
Vá, vá. Não precisa me ver entrar
no cadafalso.
Elisa abraça a irmã e chora convulsivamente.
ELISA
Que coisa, que coisa. Como é que
a gente vai saber os caminhos que
a vida toma?
Íris sorri e enxuga os olhos de Elisa. Beija-a.
ÍRIS
Olhe pra mim, olhe.
Elisa chora. Íris enxuga suas lágrimas.
ÍRIS
Querida, escute. Ainda não estou
velha, sempre será tempo de
voltar.
ELISA
Jura? Pensa mesmo nisso?
(CONTINUED)
CONTINUED: 6.
ÍRIS
Vá, vá agora.
Elisa a beija, afasta-se e acena.
SEQ. 06 INT. ÔNIBUS - DIA 6
Íris para na porta e observa os PASSAGEIROS que a encaram.
As CRIANÇAS gritam, choram. Um CASAL cochicha algo. Riem.
Íris CAMINHA e coloca sua bolsa no bagageiro. Senta-se.
SEQ. 07 INT. ÔNIBUS - DIA 7
Íris espia A PAISAGEM ATRAVÉS DA JANELA...
TRABALHADORES montam um PALCO ao ar livre. Ao lado, uma
grande FOGUEIRA com restos da construção.
SOBREPOSIÇÃO DE IMAGENS: A FOGUEIRA E OS OLHOS DE ÍRIS.
OFF- CHORO DE CRIANÇA.
Íris observa a paisagem montanhosa e estéril: vegetação
seca, ossadas animais. Urubus volteiam sobre um cavalo
morto.
PITI, um menino de 7 anos, com um curativo no olho
esquerdo, desvia a atenção de Íris. Em pé no corredor,
segura o braço da poltrona e sorri. Ela acaricia seu
queixo.
PITI
Pra onde cê vai? Pra Lavras
tamém, que nem eu?
Íris sorri e confirma.
PITI
Cê é de lá?
Íris meneia a cabeça.
PITI
Vai fazer pedido pra Núncia?
Íris estranha e faz sinal negativo com o indicador.
PITI
Ocê tamém é muda que nem ela?
ÍRIS
(cantarolando)
Murucututu detrás do
murundu/Murucututu detrás do
murundu/Lá vem a sinhá velha,/Lá
da banda do andu.
(CONTINUED)
CONTINUED: 7.
PITI
Puxa! Que voz bonita cê tem. Vai
lá cantar pra Núncia, na
procissão?
ÍRIS
Não, meu bem, eu vou pra cuidar
de outra coisa.
PITI
Ah, Então deve ser o teu filho,
né? Cê tem um, num tem? Ele tamém
tá doente que nem eu?
Íris abaixa os olhos e tenta sorrir. A mãe do menino
pega-o pelos braços.
MÃE DE PITI
Desculpa, dona. Vamos, Piti. Que
especula.
ÍRIS
Pode deixar, ele não me incomoda.
O que ele tem no olho?
ÍRIS
Parece que tá perdendo a visão.
Vamos rezar pra Núncia, pedir pra
que não afete o outro olho.
ÍRIS
Com certeza ela vai atender. Boa
sorte pra vocês.
MÃE DE PITI
Com a graça de Sant’Ana. Obrigado
senhora.
PITI
Tchau.
Íris envia-lhe um beijo. Eles se assemtam.
SEQ. 08 EXT. ESTRADA - DIA 8
O ônibus PARA. SETE VACAS MUITO MAGRAS que trazem pele
sobre ossos, atravessam a estrada.
O TOCADOR acena para o MOTORISTA e fala com ele. Aponta
para algo mais à frente.
PONTO DE VISTA DE ÍRIS PELA JANELA - alguns homens queimam
um grande monte de entulho.
O ônibus segue e PARA outra vez.
8.
SEQ. 09 EXT. DIANTE DA PONTE - DIA 9
Os passageiros descem e observam...
UMA PONTE QUE ESTÁ RUÍDA sobre o leito do rio, onde corre
apenas um filete de água suja.
MAIS ABAIXO, trabalhadores constroem uma NOVA PONTE - um
caminhão despeja o concreto sobre a estrutura de madeira.
Uma das passageiras aponta para o alto do monte.
INSERIR:
NO ALTO DO MONTE UM GRUPO DE ANJOS surge por detrás da
encosta. Suas silhuetas tremeluzem devido à emanação do ar
quente diante de um céu incandescente.
VOLTA À CENA
Os passageiros observam a aproximação do grupo de anjos,
em seguida, atravessam a pinguela sobre o rio. Do outro
lado, um ÔNIBUS muito velho aguarda. No letreiro:
PREFEITURA DE LAVRAS DE SANT’ANA.
Íris atravessa com a ajuda de Piti. Ela PARA e no leito do
rio observa...
UMA ESTÁTUA QUEBRADA jaz na corrente de água - uma jovem,
segurando um pote, tem a boca amordaçada. A água
descobre-a e volta a cobri-la.
PITI
É uma imagem da Núncia, moça.
Íris termina a travessia e torna a olhar para o leito do
rio. Os passageiros ENTRAM no veículo.
A mãe de Piti pega-o pelos cotovelos, depois olham para...
A PINGUELA, onde o grupo de anjos atravessa. As asas são
toscas. Alguns são brancos e trazem o rosto pintado com
tinta escura. Outros são negros.
MÃE DE PITI
Estes romeiros devem estar
morrendo de calor nestas roupas,
coitados, e ainda mais com esta
tinta no rosto.
ÍRIS
Mas alguns são negros mesmo.
MÃE DE PITI
É, os brancos foram se encontrar
com os quilombolas que moram bem
distante, daí eles vêm junto pra
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 9.
MÃE DE PITI (cont’d)cá. Faz parte das cerimônias.
Todo ano é assim. Dia da Núncia.
Os passageiros embarcam. Íris ainda observa o grupo.
SEQ. 10 EXT. ADIANTE DA PONTE RUÍDA - DIA 10
O ônibus segue. Alguns passageiros espiam pelas janelas
traseiras: O GRUPO DE ANJOS CAMINHANDO EM MEIO À POEIRA.
SEQ. 11 EXT. PRAÇA - DIA 11
Iris desce do ônibus e perscruta a cidade.
Ruas de paralelepípedos e mal conservadas. Árvores secas e
casas sem pintura. Algumas, muito antigas, da época da
colônia, estão com os telhados desabando.
O ar parece envolto numa eterna poeira. Os raros
estabelecimentos comerciais estão fechados.
UMA GRANDE CONSTRUÇÃO se destaca na praça, obnubilada pelo
efeito dourado do pó refletido pelo sol, onde algumas
pessoas movimentam-se em torno.
CRISTÓVÃO - 18 anos; mulato; 1,68 m; muito magro, pega as
malas de Íris e, juntos, atravessam o jardim.
CRISTÓVÃO
Que bom que a senhora veio. Já tá
faltando remédio e eu não sabia
mais o que fazer. Além disso,
esse povo quer tudo fiado e eu
não podia negar, né?
ÍRIS
Mas não tem um fornecedor em
Governador Valadares?
CRISTÓVÃO
’Magina, com esta ponte
quebrada...de que jeito? Ah,muito
bom mesmo que a senhora tá aqui
agora. Vamos, vou mostrar a sua
casa e a farmácia.
Íris para diante do MURO EM RUÍNAS, repleto de INSCRIÇÕES.
No centro, um grande arco forma uma reentrância, muitas
velas acesas no chão e cêra antiga derretida.
Olha para cima, onde três CÍRCULOS EQUIDISTANTES vazam o
muro, formando um triângulo equilátero.
(CONTINUED)
CONTINUED: 10.
EX-VOTOS estão espalhados e empilhados um por cima do
outro - braços, pernas, cabeças, rins, pulmões, órgãos
sexuais disfarçados.
PESSOAS ESMOLAMBADAS circulam, alguns escrevem em
papeizinhos e os colocam nos interstícios das pedras.
Cristóvão pousa as malas no chão.
CRISTÓVÃO
Ah, a senhora não podia deixar de
notar isso, o muro. É muito
antigo, já estava aqui antes da
cidade, sabia?
Íris caminha até as pequenas BANCAS onde vendem lembranças
Tira o dinheiro da bolsa e o entrega a um AMBULANTE. Ele
lhe estende uma VELA.. Íris volta-se e vê...
...UM CAMINHÃO ESTACIONADO AO LADO DO JARDIM - várias
pessoas descem, ajudam a descarregar o material e logo se
juntam ao cortejo que se forma:
Sobre UM ANDOR, UMA JOVEM representa a beata Núncia. Está
vestida como no sec. XIX, leva uma coroa de flores sobre a
fronte e tem a BOCA AMORDAÇADA por uma faixa de gaze. Nas
mãos, UM POTE DE ÓLEO.
À frente, UM BURRO leva sobre o lombo UM JOVEM manchado
com tinta vermelha, a guisa de sangue.
TRÊS OUTROS RAPAZES, vestidos como tropeiros do sec. XIX,
ladeiam o burro e carregam armas. Estão sujos, têm as
pernas enfaixadas e mancam.
Logo atrás, QUATRO HOMENS FANTASIADOS DE ÍNDIOS FEROZES
mantêm as mãos acima dos olhos como que procurando alguém.
OUTROS "ÍNDIOS" seguram varas compridas que suspendem UM
GRANDE BONECO ALADO - quase um pássaro - que evoca figuras
proto-humanas da arte marajoara, com um toque futurista.
Íris e Cristóvão seguem a última ala do cortejo que é
composta por velhas negras vestidas de branco, levando a
imagem de Nanã Buruku. Entoam ladainhas.
ÍRIS
Essa beata, Núncia, foi proibida
de dizer alguma coisa em vida?
CRISTÓVÃO
Ah, é o jeito que essa gente
ignorante representa ela só
porque era muda. ’Magina só que
besteira. Hoje é o dia dela, 26
de Julho. É feriado. Dia de
Sant’Ana, a padroeira da cidade.
(CONTINUED)
CONTINUED: 11.
ÍRIS
Também é o dia em que os negros
festejam a Orixá Nanã Buruku, que
estas senhoras estão levando.
Íris aponta para O GRANDE PÁSSARO SUSPENSO POR VARAS.
ÍRIS
O que este pássaro tem a ver com
a Núncia ou com Nanã?
CRISTÓVÃO
Sei lá. Eu nunca soube de onde
surgiu este treco feio. Acho que
nem essa gente aí sabe, uma vez
perguntei e fizeram muxoxo. É
costume, tradição. Coisa muito
antiga que herdaram. Vai
saber...!Espera aí que já volto.
Cristóvão afasta-se. Íris ACENDE a vela e junta-a com as
outras. Olha para uma rua que desemboca na praça, onde...
O GRUPO DE "ANJOS NEGROS" surge aos poucos na esquina.
Cantam hinos.
Cristóvão reaparece com as malas. Aponta para um SOBRADO
azul com três portas muito altas e vidros coloridos nas
bandeiras.
CRISTÓVÃO
Alá, Dona Íris. Aquela é a sua
casa. Tá vendo? Eu mesmo que
pintei. Prá dar sorte. É. Não
custa, né? Quem sabe...Perto das
outras até que tá até bem bonita.
Os dois caminham e PARAM em frente da casa. Grandes
janelas envidraçadas na parte superior.
CRISTÓVÃO
Tá vendo? Estas três portas são
as da farmácia.
Íris afasta-se e aprecia a casa.
SEQ. 12 INT. CASA DE ÍRIS - DIA 12
Cristóvão mostra os cômodos. O mobiliário é eclético.
Cadeiras e mesas muito antigas misturam-se com sofás e
gadjets mais recentes. Tudo muito limpo e em ordem.
CRISTÓVÃO
Aí, ó! A senhora pode ver. O Seu
Lucas deixou tudo direitinho.
(CONTINUED)
CONTINUED: 12.
ÍRIS
É ele quem faz a limpeza?
CRISTÓVÃO
Não, da limpeza cuido eu. Era ele
que cuidava da farmácia, morava
aqui. Quando ficou sabendo que a
senhora vinha pra cá, ficou feliz
da vida. Precisava ver.
ÍRIS
Se não gostava, bastava ir
embora.
CRISTÓVÃO
Ah, ele era muito amigo da
família do seu Carlos, mas não
gostava daqui, não. Venha, vamos
lá ver a farmácia.
Passam por um longo corredor pouco iluminado.
SEQ. 13 INT. FARMÁCIA - DIA 13
Uma fraca luz passa pelos vidros. Armários envidraçados
nas paredes. Carpintaria antiga com entalhes preciosos. No
meio, um balcão com tampo de mármore branco.
Cristóvão procura o interruptor. A luz amarelada invade o
ambiente. Íris admira a carpintaria.
CRISTÓVÃO
Tô vendo que a senhora tem bom
gosto. Bonito, né? Não existe
mais disto por aí... Sabe? Das
veiz não tem muita coisa pra
fazer, então eu fico limpando,
dando brilho...
ÍRIS
É mesmo muito lindo.
Íris abre uma gaveta e encontra algumas RECEITAS.
CRISTÓVÃO
Sabe? Das veiz passo a tarde
inteira sem fazer nada. O povo
não tem dinheiro, dona. Eles tem
suas plantinhas no quintal e
fazem seus chazinhos...Bem, se
isto não curar, eles tem esse
muro aí na frente. Eles vão lá e
rezam. Pedem muitas coisas pra
Núncia. Se ela escuta a gente não
sabe, é muda (RI). Eu acho tudo
uma tonteira que não adianta
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 13.
CRISTÓVÃO (cont’d)nada, mas a senhora sabe como é
que é... Fé é fé.
Íris folheia as receitas.
ÍRIS
Tá, mas e quando precisam de um
antibiótico, um remédio para
pressão.../ estas coisas. Deve
ter um médico, não é? Estou vendo
aqui uns garranchos muito feios e
parecem ser recentes.
Cristóvão põe-se a rir.
CRISTÓVÃO
Me desculpa, Dona Íris, mas é
que...é que...bem, médico a gente
tem, uai. Só que é o doutor
Romero...e olha que o homem se
parece mesmo com estes
garranchos.(RI)
ÍRIS
Está rindo de quê? Ele não faz o
que deve?
CRISTÓVÃO
Bem...é que... Olha, até que faz
muito...quer dizer...ele tenta,
né? Tenta... Sabe? O povo daqui
não põe muita fé nele, não. O
homem bebe, bebe que nem camelo.
Pinga, vódica, conhaque,
uísque...ah, o que tiver pela
frente. Mas é um homem bom.
Estudou, uai. Essa gente aqui tem
quizila com ele, isto sim. Ah,
uns ignorante. Tudo ignorante.
Íris abre um armário e arruma algumas caixas.
ÍRIS
Bem, se é como você diz, acho que
o meu negócio não será muito
lucrativo.
Cristóvão passa para o outro lado do balcão.
CRISTÓVÃO
É, Dona Íris, a senhora chegou
num mau momento pra cidade. Não
viu aquele bando de gente
descendo do caminhão?
(CONTINUED)
CONTINUED: 14.
ÍRIS
Armaram uma procissão...
CRISTÓVÃO
Então...hoje é feriado, mas na
roça eles trabalha mesmo assim.
Tão tudo sem emprego. Os
fazendeiro deve até o pescoço e
despediram os empregados. Chove
pra tudo quanto é lado, menos
aqui. Tudo seco.
ÍRIS
Mas aquela ponte parecia ter sido
levada por uma grande tempestade.
CRISTÓVÃO
Pra senhora ver como é que são as
coisa. Antes da seca, choveu
muito. Destruiu casas, matou o
gado. Uns falam em maldição, sei
lá. Só sei que os mais moço tão
se bandeando daqui. Tão certo
eles.
ÍRIS
E a prefeitura.../o governo...
ninguém faz nada?
CRISTÓVÃO
Ah, isso a senhora sabe como é
que é, né? Diz que faz, que vai
fazer. A gente esperando. E
aquela ponte que nunca que
arrumam? A verdade é que não
votamos no deputado que
apresentaram pra gente, mas nem o
prefeito apoiou aquele ladrão.
Pra quê? Atrair mais desgraça pra
este fim de mundo? O deputado
ganhou e agora tá se vingando.
Ah, Dona Íris, não sei não. Viver
aqui só com reserva. E a senhora,
o que vai fazer?
Íris pousa as duas mãos sobre o rosto, desliza-as para a
boca, levanta a cabeça e corre os olhos pelos armários.
ÍRIS
Pode deixar, Cristóvão. Tenho
alguma coisa. Não se preocupe, o
seu salário está garantido.
CRISTÓVÃO
Peraí! A senhora vai poder me
pagar assim...mesmo sem eu ter o
que fazer?
(CONTINUED)
CONTINUED: 15.
ÍRIS
Pode me ajudar na casa, além da
farmácia, não é?
Cristóvão, solícito, sorri e dirige-se para as portas da
frente.
CRISTÓVÃO
Mas claro, o que a senhora
quiser. Então vamos abrir, vamos
abrir. Vai que tem gente querendo
entrar...Só que eu vou dar um
conselho: não venda fiado.
Íris e Cristóvão abrem as portas. A luz invade o ambiente.
Íris segura as duas folhas e, por um momento, olha para...
O GRANDE MURO E OS FIÉIS NA PRAÇA. O cortejo de Núncia
ainda dá voltas pelo monumento. Lamento e ladainhas.
SEQ. 14 INT. QUARTO DE ÍRIS - NOITE 14
Íris veste um peignoir, está DESCALÇA e toma whisky.
Arruma suas coisas sobre a cama. Encontra uma FOTO:
TIAGO, CARLOS E ÍRIS NUMA PRAIA.
Encontra FOTOS DE FAMÍLIA. Chora. Levanta-se, toma um
trago, enxuga os olhos e caminha.
SEQ. 15 INT. PALCO DE TEATRO - NOITE 15
Cena final de MADAMA BUTTERFLY : Íris, como Cio Cio San,
se apunhala e cai sobre o tatame.
A orquestra executa os últimos compassos.
PINKERTON(OFF-DISTANTE)
Butterfly! Butterfly!
As cortinas se fecham.
SEQ. 16 INT. BASTIDORES DO TEATRO - NOITE 16
Íris chora nos ombros de FRIDA. Esta olha com reprovação
para VINCENZO, o contra-regra.
OFF - APLAUSOS E BRAVOS DA PLATÉIA.
VINCENZO
É stato questo stesso quello che
ho sentito, signora Frida. La
macchina è precipitata
nell’abisso e ha preso fuoco.
(CONTINUED)
CONTINUED: 16.
FRIDA
Você poderia ter esperado mais um
pouco, Vincenzo. Talvez a
história seja outra.
ÍRIS
Meu filhinho...meu filhinho.
Carlos...
OFF - APLAUSOS RITMADOS.
Frida aproxima-se de Íris.
FRIDA
O Vincenzo vai avisar o
maestro...
ÍRIS
Não, não...deixe...eles me
chamam...
FRIDA
Íris...não...não vai conseguir...
Íris, decidida, avança para o palco.
SEQ. 17 INT. - PALCO DE TEATRO - NOITE 17
Íris ENTRA. Ovações e gritos de BRAVO. Ela agradece.
SEQ. 18 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - NOITE 18
Íris vai até o armário, pega a GARRAFA de whisky e enche o
copo. Enxuga as lágrimas. Tenta conter o soluço e corre.
SEQ. 19 INT. CASA DE ÍRIS/BANHEIRO - NOITE 19
Íris pousa o copo sobre a pia e abre a torneira.
INSERIR:
SÉRIE DE TOMADAS - A água escorre/ A mão de íris e o copo
prestes a ser vertido / A água escorrendo pelo ralo/ A mão
de Íris recolocando o copo cheio ao lado da torneira.
VOLTA À CENA
Íris abaixa-se e lava o rosto. Enxuga-o e olha-se no
espelho. Seus olhos estão vermelhos.
O SOM DE UMA ORQUESTRA, muito baixo. Íris gira o corpo e
apóia os quadris na pia.
A MÚSICA AUMENTA DE INTENSIDADE -
(CONTINUED)
CONTINUED: 17.
INTERLÚDIO FINAL DA ÓPERA ’A VALQUÍRIA’, de Wagner.A
DESPEDIDA DE WOTAN (Leb’ wohl) (ATO III)
CLOSE - Os pés de Íris caminhando para a porta.
SEQ. 20 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - NOITE 20
O interlúdio continua. Porções de whisky caem e respingam
nos pés de Íris. Ela para diante de uma cortina
translúcida e olha para a praça:
O MURO REFLETIDO PELO LUAR E VELAS.
FLASHBACK DE ÍRIS - PALCO DE TEATRO:
CENÁRIO DAS VALQUÍRIAS - uma escada em frente de uma
enorme construção. WOTAN, velho e abatido, surge da fumaça
carregando nos braços sua filha BRÜNNHILDE.
Ele dirige-se ao proscênio. Volta-se para os fundos e
avança lentamente para um ALTAR DE PEDRA.
VOLTA À CENA
Íris abana a cabeça. O Interlúdio desaparece aos poucos.
Ela corre até o armário e enche o copo com whisky.
SEQ. 21 EXT. PRAÇA - DIA 21
ROMERO observa os peregrinos - ele tem 55 anos, baixinho,
pele untuosa aparentando uma barba de dias, usa óculos de
aros pequenos. PARA diante do muro e observa os ex-votos.
Fiéis rezam, outros colocam papeizinhos em buracos. Romero
dá um sorriso, acende um charuto e olha para...
...A FARMÁCIA, onde Cristóvão abre as portas.
SEQ. 22 EXT. DIANTE DA FARMÁCIA - DIA 22
Cristóvão varre a calçada. Íris, ao fundo, arruma os
remédios nos armários. Está em cima de um banco e faz
anotações numa caderneta. Romero chega.
ROMERO
Bom dia, Critophorus.
Cristóvão volta-se para ele e sorri.
CRISTÓVÃO
Ah, é o senhor. Muito cedo, hein!
Vai viajar ou já tá viajando?
(CONTINUED)
CONTINUED: 18.
ROMERO
Pra onde? Só se for na tua
cacunda, Khristóphoros. Igual ao
teu xará que levou Cristo. Ontem
foi o dia dele, sabia?
CRISTÓVÃO
Dá pra parar de me chamar deste
jeito? Já bebeu, né?
ROMERO
Uai, não gosta do teu nome em
grego, Khris-tó-pho-ros?
CRISTÓVÃO
Não sou grego. Vê se fala
português
ROMERO
É verdade. Grego aqui só aquele
padre bunda mole.
INSERIR: Íris, diante das prateleiras, observa-os por um
momento e logo retoma o trabalho.
VOLTA À CENA
CRISTÓVÃO
O senhor não tem jeito, né, Seu
Romero? Tá sempre querendo
arreliar o padre.
ROMERO
Que nada. Sabe? Até chego a achar
que ele é um bom sujeito, até
simpático. Me sinto como se a
gente fosse irmão.
CRISTÓVÃO
Uai, agora deu de aparecer coisa
de parente aí?
ROMERO
Não, é que eu e ele somos dois
loucos de vir dar neste lugar
onde nem Judas sonharia em perder
as botas.
Romero olha para o...
INTERIOR DA FARMÁCIA, onde Íris continua as anotações.
ROMERO
Ela trouxe mais alguém?
(CONTINUED)
CONTINUED: 19.
CRISTÓVÃO
Não, veio sozinha. Ela parece
muito triste e...
ROMERO
Não é pra menos... perder o filho
e o marido de uma vez...
CRISTÓVÃO
Como é que o senhor sabe?
ROMERO
Ah, vamos lá dar um jeito nisso.
CRISTÓVÃO
Vê se tem cuidado com a moça.
Romero dirige-se à farmácia e PARA no batente da porta.
ROMERO
(alto)
Bem-vinda a Epidauro!
SEQ. 23 INT. FARMÁCIA - DIA 23
Íris volta-se. Dá um sorriso sem graça e desce do banco.
Aproxima-se do balcão que se interpõe entre os dois.
ÍRIS
Epidauro? O que...o que quer
dizer...
ROMERO
Como! Chegou ontem na cidade e
ainda não viu a principal atração
de Epidauro? Não viu o lugar onde
todos vêm se curar?
ÍRIS
Ah, o senhor deve estar falando
do muro, não? Bem, então suponho
que tenho a honra de estar
falando com Asclépio, ou melhor,
Esculápio.
Romero ENTRA. Ri.
ROMERO
Oh, nem tanto, nem tanto. Não
tenho a pretensão.../mas... como
sabe que sou médico?
Romero vai até o balcão. Íris o segue.
(CONTINUED)
CONTINUED: 20.
ÍRIS
Não foi difícil fazer a ligação
entre Epidauro e algumas
informações que obtive. Assim,
concluí que você é Romero.
ROMERO
(irônico)
Qual a sua fonte de informação,
grande diva Í-ris Da-mia-ni?
Íris ESTACA, apreensiva, e afasta-se dele.
ROMERO
(sarcástico)
Como pode ver, não é só a grande
diva que sabe colher informações.
Sou um bom detetive também, mas
posso viver amigavelmente com um
rival.
ÍRIS
(sem graça)
É que...bem, Cristóvão me
descreveu um tal doutor Romero...
daí, ao ver você na porta
e...nesse estado... adivinhei.
Romero senta no balcão.
ROMERO
Que estado?
ÍRIS
Bem...ah, você sabe! Digamos
assim.../Alteração do metabolismo
mental causada por agentes
etílicos.
ROMERO
Ah, então compartilhamos os
mesmos vícios. A clínica de
recuperação também deve ter te
levado a uma alteração do
metabolismo mental. Aquele monte
de droga e tal...
Íris abaixa a cabeça. Séria.
ÍRIS
Por favor, quero continuar meu
trabalho. Desça do balcão!
ROMERO
(descendo)
Tá, tá, perdão. É que esse
fedelho... esse Khristóphoros,
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 21.
ROMERO (cont’d)especula que nem velha. Está bem,
Íris... Me desculpe a intimidade.
Posso?
ÍRIS
Claro.
ROMERO
Vou saber manter a discrição.
Imagino que não queira falar
dessas coisas...do passado
recente.../
Íris assente, fixa os olhos no chão e arruma alguns
remédios.
ROMERO
Juro que não vou te incomodar com
perguntas, mas confesso que ardo
de curiosidade. Vou me calar em
nome da paz.
ÍRIS
Acho bom.
ROMERO
Como vingança também não vou
falar do meu passado. Assim
estamos quites. Mais ou menos,
né? Eu tenho vantagem na largada,
sou obscuro.
ÍRIS
E o que isso tem a ver...
ROMERO
Ninguém se interessou em me
convidar pra festas nababescas,
me colocar em revistas do mundo
lírico ou fazer um documentário
sobre a minha magnífica pessoa.
Íris acaba sorrindo e aponta-lhe o dedo em riste.
ÍRIS
Já está começando a quebrar o
pacto.
ROMERO
Ops, desculpe. Ei, não quer me
convidar pra conhecer a casa e
tomar um drink? Aquele Lucas que
morou aqui nunca foi com a minha
cara. Nem sei como ela é por
dentro.
(CONTINUED)
CONTINUED: 22.
ÍRIS
Já andou vertendo líquidos
inebriantes em sua garganta,
hein? ...logo cedo e ainda quer
mais?
ROMERO
Oh, só fiz o meu gargarejo. Vamos
ou não?
ÍRIS
Está bem. Vou avisar o Cristóvão.
Íris vai até a porta. Cristóvão conversa com NOÊMIA.
ÍRIS
Bom dia, dona Noêmia. Cristóvão,
vou lá dentro conversar com o
Romero. Tome conta da farmácia.
Tá bem?
Cristóvão acena afirmativamente.
SEQ. 24 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - DIA 24
Romero ENTRA. Íris observa-o com curiosidade enquanto se
dirige à cristaleira. Romero senta-se no sofá e coloca um
dos pés sobre o braço de uma poltrona.
ÍRIS
Sei que não é o seu primeiro
drink, mas... numa segunda-feira?
ROMERO
Feriado. C’est la même chose.
Beber é a única distração por
aqui. Quer dizer, tem outras
santas distrações, mas não me
interessam.
Íris enche o copo.
ÍRIS
Estou sem gelo. Quer que eu peça
para o Cristóvão arrumar?
ROMERO
Não precisa. Americano.
Íris lhe entrega o whisky.
ÍRIS
E quais são essas santas
distrações que não te interessam?
Romero pega na mão de Íris e a leva até a janela.
(CONTINUED)
CONTINUED: 23.
ROMERO
Está vendo? Olhe lá.
PONTO DE VISTA DE ÍRIS E ROMERO:
FIÉIS ANDAM EM VOLTA DO MURO - como zumbis, choram e
imploram.
VOLTA À CENA
ROMERO
O muro dos milagres, obra dos
tapuias venusianos. Olha só essa
gente rezando. Precisa ter muita
fé, hein?
ÍRIS
Não tem fé?
ROMERO
Preciso de mais. Olha. E este
povo acendendo velas, jurando que
amanhã será um dia melhor e que
acordarão curados? E se o muro
não der certo, como é que faz?
Bom, eles sempre podem tentar as
cavernas...
ÍRIS
E essa agora, cavernas?
ROMERO
A comadre Khristóphoros não te
informou tudo. Fora da cidade tem
várias cavernas, algumas bem
interessantes e cheias de
inscrições.
ÍRIS
Ah, eu quero ver isto. Me leve lá
um dia.
ROMERO
Claro. Dizem que a Núncia ainda
mora em uma delas e vão lá
acender velas e fazer promessas.
ÍRIS
Muro, cavernas...bom, e na
igreja...não vão?
Romero leva-a até outra janela e aponta...
PONTO DE VISTA DE ROMERO E ÍRIS:
A IGREJA NO ALTO DE UM MONTE - construção convencional com
duas torres e poucos adornos.
(CONTINUED)
CONTINUED: 24.
ROMERO (OFF)
Tá vendo? Apelam também para o
maior deles que mora ali, pregado
na cruz, mas pelo visto ele não
tem sido muito eficiente. Assim
mesmo, vão lá rezar suas
missinhas... Olhe de novo,
olhe para aqueles dois lá em
cima.
PADRE ALEXIOS E CONCEIÇÃO descem a escadaria.
ROMERO (OFF)
Veja só, é o sumo-sacerdote de
Epidauro. Tá vendo a outra? A
grã-sacerdotisa não larga dele.
PADRE ALEXIOS E CONCEIÇÃO descem a escadaria.
VOLTA À CENA.
ROMERO
Acho que o alto clero está indo
ao muro para falar com os
infelizes...
ÍRIS
Imagino que Esculápio não tenha
relações com o sumo-sacerdote e a
grã-sacerdotiza.
ROMERO
Acertou, detesto carolices. O
padre Alexios Eliades era
ortodoxo grego e se bandeou pra
Igreja católica. Andou, andou e
acabou chegando na própria terra,
aqui em Epidauro. Duvido que ele
não dê uma forcinha nessas
crenças bestas.
Íris senta-se numa poltrona.
ÍRIS
Bom, agora senta aqui e me fale
da Grã-sacerdotisa.
Romero pega a toalha da mesa de centro e coloca-a sobre a
cabeça, anda com afetação feminina, alça as sobrancelhas e
vai até a cristaleira. Enche seu copo. Íris ri muito.
ROMERO
(arremedando)
A grã-sacerdotisa se dirige ao
altar de oferendas...
(CONTINUED)
CONTINUED: 25.
Romero ANDA solenemente e PARA em frente da mesa de
centro. Pega um VASO comprido de cristal e cheira-o
profundamente.
ROMERO
A grã-sacerdotisa aspira o
ônfalo.
Romera verte a bebida no vaso e levanta-o com as duas mãos
e sorve o whisky. Íris dá gargalhadas.
ÍRIS
Estou curiosa, vamos. Pare com
esta coisa ridícula e me fale
dela.
Romero desarma a encenação, acende um charuto e caminha.
ROMERO
A grande dama de Epidauro é muito
rica e não deve gostar muito do
que vê ali no muro, naquele lugar
cheio de molambos...
ÍRIS
Mas você disse que os dois ajudam
aquela gente.
ROMERO
Dizem que ela já trabalhou em
muitos lugares pobres do mundo,
que já viu muito disto. Mas não
sei...não sei.../ Você reparou
bem na cor da pele dela?
ÍRIS
É bem escura.
ROMERO
Não sei porque ela é tão cheia de
si, parece afetar ares de
nobreza. Está na cara que ali tem
sangue negro. Não parece que tem
71 anos, não é?
ÍRIS
Puxa, tudo isto? Eu não daria
mais que sessenta.
ROMERO
É coisa da raça. Nunca conversei
com ela, o Kristóphoros me disse
que é uma boa mulher, que
trabalhou em equipes de socorro
da ONU e que viajou muito...
(CONTINUED)
CONTINUED: 26.
ÍRIS
Pôxa! Uma ex-funcionária da ONU
aqui? Este lugar é cheio de
surpresas mesmo.
ROMERO
Tão antipática... Prá mim, acho
que nunca passou de Belo
Horizonte.
Cristóvão ENTRA abruptamente na sala.
CRISTÓVÃO
Dona Íris, t’aí o Padre e Dona
Conceição querendo falar com a
senhora. Tão lá na farmácia.
Cristóvão olha para Romero com ar de troça.
CRISTÓVÃO
E aí, Doutor Romero, vai ficar
pra reunião?
ROMERO
Cala a boca, seu bosta...Bem,
acho que vou andando. Um mesmo
espaço não pode conter estes três
elementos. Poderia desestabilizar
o experimento de Deus...
(para Cristóvão)
Comadre faladeira, depois
arranjamos as coisas, me aguarde.
Romero SAI pelos fundos, levando o copo de whisky.
Cristóvão dá uns risinhos para si.
ÍRIS
Peça para eles entrarem,
Cristóvão.
Íris guarda o whisky na cristaleira.
SEQ. 25 EXT. PRAÇA - DIA 25
Romero, fuma um charuto, caminha, sorve o whisky e
observa os fiéis. Alguns choram, outros rezam.
Para diante de DONA ZULMIRA. Ela está de cócoras e tem o
braço enfaixado com panos imundos. A velha entoa lamentos
ao muro e estende uma cuia para as esmolas.
ROMERO
Aqui de novo, dona Zulmira?
Romero coloca o copo no chão e desenrola os trapos que
cobrem a ferida. Dona Zulmira chora.
(CONTINUED)
CONTINUED: 27.
ROMERO
Quieta, sua velha suja. Devia se
lavar. Olha só pra isso!
Romero, com um esgar, analisa a ferida. Chama um
ambulante. Ele lhe entrega uma garrafa de água mineral.
Romero joga a água sobre a ferida.
DONA ZULMIRA
Ai, meu pai do céu..ai...ai...
Romero joga o whisky sobre a ferida. Dona Zulmira urra de
dor.
ROMERO
Fedida e enjoada.
Romero seca o ferimento e enfaixa o braço, depois tenta
levantar a velha.
DONA ZULMIRA
Não, não, se eu sair daqui, nunca
que vou miorá...
Romero segura o outro braço e fala bem perto do seu rosto.
ROMERO
Não é nada grave. Pare com esse
chororô. Só precisa manter isso
limpo. Vamos, levante-se!
Romero pega a cuia do chão, tira algumas notas do bolso,
junta tudo e despeja no bolso da mulher.
ROMERO
Vá embora, vá! Saia daqui!
Dona Zulmira recupera todas as suas forças e corre.
ERNESTO, vendedor cheio de santos e tralhas, sorri e
aproxima-se de Romero. Mostra-lhe uma CAIXINHA DE MADEIRA
com um tampo de vidro.
ERNESTO
Olha, seu Romero, olha só o que
tenho aqui. Podia ter curado a
velha com isso.
Romero pega a caixa e tenta observar o conteúdo.
ROMERO
Mas que porcaria é esta aqui, seu
sacripanta?
ERNESTO
Não tá vendo uns cachos de cabelo
aí dentro?
(CONTINUED)
CONTINUED: 28.
Romero aproxima os olhos do vidro e analisa melhor.
ROMERO
O que é que significa esta
nojeira, hein? Vai me dizer agora
que é de algum santo?
ERNESTO
Quase, quase acertou, seu Romero.
São os cabelos da Núncia, a
mudinha.
Romero entrega-lhe a caixa com rispidez.
ROMERO
Toma, seu canalha, o que que eu
vou fazer com isso?
ERNESTO
Ora, vai ajudar o senhor a curar
muita gente. Olha, o senhor não
tem nem remédio pra cuidar deste
povo, né? Então é só fazer eles
por a mão aqui dentro que eles
sara.
ROMERO
Seu porco, este cabelo tá novinho
em folha, aposto que cortou ele
da Filipa, a tua filha. É da
mesma cor.
Romero se afasta.
ERNESTO
’Magina, seu Romero, eu não...
ROMERO
Ah, vai te catar, Ernesto.
Procura outro...cachos da
Núncia...ah, era só o que me
faltava.
Romero passa pelos fiéis e gesticula inconformado.
SEQ. 26 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - DIA 26
CONCEIÇÃO(71), está sentada no sofá e veste-se com
elegância, ela tem cabelos grisalhos; 1,70 m; muito
morena. Íris está em pé, atrás dela.
PADRE ALEXIOS(48) admira os quadros. Pele clara; olhos
claros; 1,75 m. Apesar do aspecto desleixado, é um homem
bonito que em nada se parece com a imagem convencional de
um religioso.
(CONTINUED)
CONTINUED: 29.
PADRE ALEXIOS
Não, não se preocupe com os
devaneios do doutor. Ele é
inofensivo. Sempre foge de mim,
não sei porque.
CONCEIÇÃO
Ele nunca conseguiu curar muita
gente, mas nem é culpa dele. As
pessoas começam o tratamento e
não continuam...
PADRE ALEXIOS
Eles têm medo dele. O doutor tem
a língua solta, então preferem
rezar ou fazer pedidos diante do
muro.
Íris vai até o armário. Retira um licor e algumas taças.
Padre Alexios olha para o muro.
ÍRIS
E aposto que você deve dar graças
por terem tanta fé, não é mesmo?
Íris enche as taças. Padre Alexios volta-se.
PADRE ALEXIOS
Espere, aí, não julgue as coisas
tão depressa. É importante que
tenham fé, sim, dá um apoio. Não,
não sou desses, não. Acho que
eles tem que acreditar na ciência
também.
Íris serve os licores.
CONCEIÇÃO
Tenho pena do Romero. Ele foi
mandado pelo governo, por causa
de uma epidemia de cólera na
época. Ele deu conta do recado,
mas você pensa que foi embora?
Que nada. Como é que vive sem o
salário de funcionário público,
não sei.
ÍRIS
Então eu e ele estamos perdidos
na terra do nunca.
Conceição ri e levanta-se.
CONCEIÇÃO
Olha, já vi muita miséria e
desgraça no mundo e acabei
voltando pra terra do nunca
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 30.
CONCEIÇÃO (cont’d)
quando meus dois irmãos morreram.
Pensei que ia ter um descanso.
Ah, que ilusão. Encontrei estas
pessoas desamparadas e recomecei
meu serviço. Ninguém me dá um
tostão, nem espero recompensa.
ÍRIS
Mas não tem nem um posto de
saúde?
CONCEIÇÃO
É uma briga antiga com um
desgraçado de um deputado. A
prefeitura é que paga alguma
coisa para o Romero. De vez em
quando, né? Nada de contrato.
Acho que o doutor deve ter lá
suas rendas, coisa de família.
Senão, como é que ia fazer?
PADRE ALEXIOS
O pessoal aqui não tem muito
dinheiro, mas sempre é bom ter
remédios à mão.
Íris vai até a janela. Uma chuva fina cai sobre o muro.
ÍRIS
Essa ruína aí em frente funciona
mesmo?
CONCEIÇÃO
Bem...ajuda, sabe? Funciona como
um placebo durante um tempo.
Alguns casos são mesmo
inexplicáveis, mas depois...Olha
só essa chuvinha, pena que não é
pra valer. Venha, vamos lá. Quero
te mostrar umas coisas.
SAEM.
SEQ. 27 EXT. PRAÇA - DIA 27
Íris, Conceição e Padre Alexios passeiam diante do muro.
Os ex-votos estão molhados, algumas velas acesas.
PADRE ALEXIOS
A igreja não reconhece, nem
protege o monumento, apenas
respeitamos a história local.
(CONTINUED)
CONTINUED: 31.
CONCEIÇÃO
Quem construiu isto e pra quê
serviria, ninguém sabe até hoje.
PADRE ALEXIOS
Dizem que já existia antes mesmo
da fundação da cidade. Foi
descoberto pela Núncia no início
do século XIX.
O vento agita as gotas de chuva.
SEQ. 28 EXT. MATA - DIA 28
A chuva fina cai sobre os TROPEIROS com roupas do sec.
XIX. Carregam muitas armas, estão sujos e feridos, nas
suas últimas forças.
GUSTAVO, português, 42 anos vem à frente. DOMINGOS,
mulato, 33 anos, segura as rédeas de DUAS MULAS
sobrecarregadas com suas cangalhas.
TRÊS OUTRAS MULAS carregam HOMENS FERIDOS. Ao lado destas,
caminha NÚNCIA(16), ela é muda. Baixa, olhos escuros,
cabelos lisos. Está muito arranhada.
Ventania, SOM DE TROVÃO ao longe.
DOMINGOS
Vamos parar um pouco, Gustavo.
Esses malditos índios já perderam
nossa pista.
GUSTAVO
(muito assustado)
Sei não...são uns diabos... Acho
que vai chover...
Núncia abre uma garrafa de aguardente, despeja num retalho
de tecido e limpa o rosto ensanguentado de um dos homens
que estão sobre a mula.
DOMINGOS
Tá desperdiçando um líquido
precioso, menina. Mais vale
despejar isso na minha goela do
que nas feridas desses coitados.
Eles já tão com a alma
encomendada.
Núncia olha para Domingos com desdém e continua a tratar
do rapaz. Os tropeiros aliviam suas cargas, sentam-se e
bebem cachaça. Outro urina numa árvore adiante.
(CONTINUED)
CONTINUED: 32.
GUSTAVO
Não carece mais a gente teimar
com isso, Núncia. É melhor deixar
ele aqui. Não tem esperança.
(para Domingos)
Domingos, vê se dá um jeito.
Núncia faz repetidos gestos negativos com a cabeça e cuida
dos feridos. Domingos se aproxima.
DOMINGOS
Olha, menina, estamos indo
devagar por tua causa, então é
melhor deixar ele aqui. A gente
tem que se apressar pra salvar os
outros.
Núncia continua a negar.
GUSTAVO
Moça, depois de tudo que a gente
fez para te arrancar das mãos
daqueles índios, acho que devia
ouvir nosso pedido. Estes outros
dois homens podem morrer por
causa da tua teimosia.
Domingos tenta tirar o rapaz de cima da mula. Núncia se
engalfinha com ele. Domingos desiste.
DOMINGOS
Temos que deixar ele aqui e
seguir adiante. Pense. Olha...
vem chuva pesada por aí.
Núncia ajeita o rapaz na mula. Volta-se para o outro lado
e olha com ansiedade para a densa vegetação.
RUÍDOS NA FLORESTA. Todos ficam alertas e pegam as ARMAS.
GUSTAVO
O que foi, Núncia? Índios?
Núncia caminha de olhos arregalados e fixos em ALGO
DISTANTE. Domingos e Gustavo, cautelosos, a seguem.
Núncia avança pela mata, indiferente aos arranhões. De
repente, começa a correr e para diante de uma cortina de
cipós, afasta a vegetação e corre.
SEQ.29 EXT. MURO EM RUINAS - DIA 29
Todos observam, embasbacados, UM GRANDE MURO EM RUÍNAS - o
mesmo muro da praça. O mato toma conta da maior parte da
construção. Eles se aproximam e exploram.
(CONTINUED)
CONTINUED: 33.
DOMINGOS
O que será que era isso, uma
igreja?
GUSTAVO
Não parece... Já vai escurecer e
tá vindo um toró. Vai até lá,
Domingos, diga para os rapazes
virem descansar aqui.
Domingos SAI. Núncia, extasiada e sorrindo, toca a
construção em vários pontos. Gustavo a observa.
GUSTAVO
Que que é isso, menina? Até
parece que já morou aqui.
Trovões. Gustavo olha para...
AS NUVENS NEGRAS NO CÉU.
SEQ. 30 EXT. MATA - NOITE 30
A chuva diminui. Núncia ajeita os feridos sob o arco.
Limpa suas feridas, dá-lhes água para beber e cobre-os.
A LUA SURGE ATRÁS DAS NUVENS.
Os homens deitam-se. Gustavo chama Domingos a um canto.
GUSTAVO
Bom, pelo menos eles vão ter um
grande túmulo aqui.
DOMINGOS
Os outros dois ainda têm chance,
mas aquele lá...
GUSTAVO
Não, nenhum dos três. Aquelas
feridas cheiram mal, não sentiu
isso? Vamos esperar até amanhã,
daí a Núncia vai ficar
convencida.
Núncia ajoelha-se ao lado dos três feridos e reza. O luar
banha seus corpos. Um dos feridos, amedrontado, aponta
para cima, tenta balbuciar alguma coisa.
Núncia pega na mão do rapaz e acalma-o.
UMA GRANDE SOMBRA COBRE O GRUPO. RUFLAR de asas muito
alto. Todos olham para cima, boquiabertos.
34.
SEQ. 31 EXT. RIO - MANHÃ 31
Gustavo e Domingos lavam-se num rio.
OFF- RISADAS E VOZES MASCULINAS.
Eles saem da água semi-nus e pegam as armas do chão.
Correm.
SEQ. 32 EXT. MATA - MANHÃ 32
Gustavo e Domingos surgem do mato enxugando o rosto e
ajeitando os cabelos. Domingos PARA e coloca as mãos no
braço de Gustavo. Olham para...
O MURO, onde os TRÊS RAPAZES levantam-se dispostos.
Espreguiçam. Limpam o corpo. Tomam água. Núncia, muito
feliz, se esmera em cuidados. Eles brincam com ela.
Gustavo e Domingos se entreolham.
Núncia, feliz, corre para a floresta cerrada.
DOMINGOS
Menina, menina, prá onde vai?
SEQ. 33 EXT. PRAÇA - DIA 33
Íris, Conceição e Padre Alexios estão em frente do arco.
PADRE ALEXIOS
Procuraram por ela, mas nunca
mais a encontraram. Dizem que até
hoje ela mora em uma das muitas
cavernas por aqui. A notícia do
milagre correu. Muita gente sem
esperança procurou este lugar.
Aos poucos foi se formando um
povoado em volta.
CONCEIÇÃO
O milagre foi no dia 26 de Julho,
dia de Sant’Ana; mas muitos
outros milagres ocorreram.
Acabaram encontrando ouro também,
então chamaram o local de Lavras
de Sant’Ana.
PADRE ALEXIOS
Eu já consultei os documentos da
diocese e não consta a construção
de nenhuma igreja antes desses
fatos.
Conceição observa os visitantes.
(CONTINUED)
CONTINUED: 35.
CONCEIÇÃO
Alexios, olha quem está ali.
TAÍS, 51 anos, coloca um papel dobrado num dos buracos.
PADRE ALEXIOS
Ah, Taís. Venha, Íris.
Vão ao encontro de Taís. Ela os recebe com grande alegria.
SEQ. 34 EXT. PRAÇA - DIA- 5 MINUTOS DEPOIS 34
Taís, Padre Alexios, Conceição e Íris caminham ao longo do
muro.
TAÍS
O Oswaldo tinha um câncer no
estômago e sofria muito, mesmo
assim quis vir aqui para estudar
as inscrições das cavernas. Veio
com o pessoal da universidade
onde ele dava aulas. De repente,
mudou o rumo das pesquisas quando
descobriu isto aqui, ficou
fascinado pelo muro. Encasquetou
que ia encontrar uma prova de
quem tinha construído ele...
Venham aqui ver.
Seguem Taís. Ela para num local atrás do muro.
TAÍS
O pessoal da universidade
protestou, pois tinham vindo aqui
para pesquisar as cavernas, as
inscrições...
(para e aponta)
Ali, olha.
Mostra alguns TIJOLOS ASSENTADOS com uma argamassa
diferente do restante. Todos se abaixam.
TAÍS
Já era noite e o Oswaldo foi
colher uma amostra da argamassa.
Agora, imagine o que aconteceu.
De-sa-bou. Um monte de pedras
enormes caiu por cima dele. Um
perigo. O muro todo poderia ter
desabado.
FLASHBACK:
Os estudantes correm para tirar as pedras de cima de
Oswaldo. Uma grande sombra cobre o grupo. SOM: RUFLAR DE
ASAS.
(CONTINUED)
CONTINUED: 36.
VOLTA À CENA
Íris passa as mãos pelas pedras, mais acima.
ÍRIS
Deve ter se machucado muito.
TAÍS
Ah, aí é que está. No dia
seguinte, ele me ligou dizendo
que não sentia mais dores. Nossa!
Do jeito que andava sofrendo...
Chamei ele de volta para fazer os
exames e...adivinha?...Nada...não
tinha mais nada. A metástase
sumiu. Pode uma coisa desta?
Íris cambaleia por um momento, ninguém nota. Estão atentos
ao relato de Taís. Ela olha em volta e coloca as mãos nos
ouvidos.
TAÍS (OFF)
Agora, vocês pensam que ele
agradece por isto? Que nada. É
descrente, o mal-agradecido. Eu
não, eu venho aqui todo ano no
dia da Núncia para agradecer. Ele
ri de mim. Um ingrato, isto sim.
Taís continua a falar. Sua voz some aos poucos...
Íris pressiona as têmporas.
INSERIR:
O INTERLÚDIO d’ A Valquíria, bem baixo, vai ganhando
força.
WOTAN, EM MEIO À FUMAÇA, CARREGA BRÜNNHILDE NOS BRAÇOS.
VOLTA À CENA
Conceição e Padre Jonas carregam Íris pelas pernas e
braços. Taís os segue.
SEQ. 35 INT. CASA PAROQUIAL - DIA 35
DONA MARIA, negra muito idosa, está sentada numa CADEIRA
DE BALANÇO perto da janela e afaga UM GATO no colo. Com a
outra mão segura uma BÍBLIA e olha tristemente para a rua.
Padre Alexios, Taís e Conceição ENTRAM com Íris.
D. MARIA, boquiaberta, observa tudo com espanto.
Pousam Íris sobre o sofá. A negra redobra o seu interesse.
(CONTINUED)
CONTINUED: 37.
Conceição corre para a cozinha. Padre Alexios desabotoa a
blusa de Íris.
Conceição retorna com uma toalha e uma bacia. Faz
compressas no rosto e colo de Íris.
CONCEIÇÃO
Íris.../Íris.../você está bem?
Aqui, olhe pra mim.
A negra, sentada e sem soltar o gato, estende a bíblia na
direção de Íris e tenta balbuciar alguma coisa.
CONCEIÇÃO
Vamos, Alexios, me ajude a
levantá-la.
Padre Alexios e Conceição colocam Íris sentada. Ela se
refaz aos poucos.
TAÍS
Não estranharia que fosse coisa
daquele muro...
CONCEIÇÃO
Não diga bobagens, Taís.
Padre Alexios percebe a estupefação da negra.
PADRE ALEXIOS
O que foi, o gato comeu sua
língua, dona Maria?(RI)
Conceição segura o queixo de Íris.
TAÍS
Costuma sofrer tonturas?
ÍRIS
Não, não...
D. MARIA levanta-se, coloca o gato e a bíblia na cadeira e
aproxima-se de Íris com passos miúdos. Todos ficam
impressionados.
CONCEIÇÃO
Tá vendo, Alexios? Não te falei
que era só teimosia dela? Tá
andando. Não tinha nada.
TAÍS
Ah, Conceição, pare com
isto...dona Maria tava triste,
vive muito sozinha. Vai ver que a
Íris é novidade.
(CONTINUED)
CONTINUED: 38.
A negra curva-se diante do sofá e toma as mãos de Íris
entre as suas. Olha-a e sorri, maravilhada. Íris não
compreende e, com ar inquiridor, olha para o padre.
ÍRIS
Quem é?
PADRE ALEXIOS
Oh, faz parte da mobília, fala
muito pouco... Ei, D. Maria, fala
alguma coisa pra moça. Gostou
dela?
D. Maria olha de relance para o padre, volta-se para Íris
e tenta balbuciar algo sem sucesso. Beija suas mãos.
Os olhos de D. Maria estão marejados. Um sorriso bóia em
seus lábios. Os dedos de Íris carinhosamente percorrem sua
face.
A velha afasta-se lentamente e volta a sentar-se. Acomoda
o gato, beija a bíblia e olha para a rua. Balança a
cadeira. Parece muito feliz entre as lágrimas.
ÍRIS
É muda?
PADRE ALEXIOS
Não. De um tempo pra cá se recusa
a abrir a boca, fica muito triste
e só sabe ler aquela bíblia. Ela
já estava aqui quando cheguei.
Ajudava na arrumação da casa e
agora pouco se levanta dali. Isto
foi uma surpresa. Está feliz e só
pode ser por sua causa.
CONCEIÇÃO
Sente-se melhor, Íris? Acho que
ficou impressionada com a
história de Taís.
ÍRIS
Não sei, é tudo muito confuso...
CONCEIÇÃO
Sabe, por um momento seu rosto me
pareceu conhecido... de onde? Não
sei.
TAÍS
Isso é contagioso. Vai ter uma
ausência também, Conceição? São
coisas do muro.
(CONTINUED)
CONTINUED: 39.
CONCEIÇÃO
Não brinque. É sério, o rosto
dela me é familiar.
ÍRIS
É impressão sua.
CONCEIÇÃO
Íris, tenho certeza, já vi o seu
rosto em algum lugar.
Conceição levanta-se e olha pela janela.
SEQ. 36 EXT. PRAÇA - DIA 36
O MURO, OS FIÉIS, A VENDA DE RELÍQUIAS, A PRAÇA MAL
CONSERVADA, AS CASAS MUITO VELHAS E SEM PINTURA.
CONCEIÇÃO(OFF)
Alexios sabe que sou uma cética.
Nunca fui devota, nem sei se
acredito em Deus. Agora, tem uma
coisa: fatos são fatos. Não dá
para ignorar o que acontece por
aqui. Alguns milagres são muito
intrigantes. Bem, de qualquer
forma, se este muro possui de
fato algum poder, ele bem que
poderia começar a melhorar a vida
desta cidade ou ela ainda vai
sumir.
Diante do muro, uma MULHER muito magra traz o FILHO no
colo. Seu rosto está marcado por feridas.
Uma VELHINHA ora muito rápido num gramelô irreconhecível.
CONCEIÇÃO (OFF)
Este povo sofre com esta carestia
e a pouca ajuda que chega,
demora. As coisas ficam piores
ainda com a vinda de mais e mais
fiéis que, sem nada pra fazer,
acabam por aqui mesmo, se
alimentando do pouco que tem.
Eles dormem ali ou, os mais
jovens, vão para as cavernas.
Caminhões lotados param diante da praça. Os romeiros
miseráveis descem.
CONCEIÇÃO (OFF)
Essa ponte caída, essa seca sem
fim, essa estrada horrorosa, a
energia que falha constantemente;
telefone, nem pensar. Se o muro
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 40.
CONCEIÇÃO (OFF) (cont’d)
pode fazer alguma coisa, por que
não dá o remédio coletivo? No
atacado. Que serve pra todos?
Não, as coisas são assim...vamos
dizer.../no varejo. Ah, não vai
muito longe isso.
Fiéis trazem ex-votos e amparam doentes. Uns com muletas,
outros em cadeiras de rodas.
SEQ. 37 EXT. - CERCANIAS DE LAVRAS DE SANT’ANA - DIA 37
CÉU AZUL, SEM NUVENS. Os campos crestados pelo sol e
plantações de milho secas, onde o gado esquelético e os
porcos procuram por comida.
Cães com pele sobre ossos e cheios de mosquitos farejam o
lixo.
SEQ. 38 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - NOITE 38
Diante da janela, Íris toma whisky. Está bastante
embriagada e olha para...
O MURO IMERSO NA ESCURIDÃO, o reflexo da lua brinca com as
reentrâncias.
FLASHBACK DE ÍRIS:
ÍRIS PARADA DIANTE DE UM CARTAZ QUE ANUNCIA SUA
APRESENTAÇÃO.
ÍRIS, NO CAMARIM, PREPARANDO-SE COMO BRÜNNHILDE.
ÍRIS CURVANDO-SE E AGRADECENDO OS APLAUSOS.
VOLTA À CENA
A LUZ FALHA, Íris tateia no escuro. Procura. BARULHO DE
CHOQUE CONTRA OBJETOS. Ela geme. Risca os FÓSFOROS. Tenta
acender um LAMPIÃO com muita dificuldade.
O LAMPIÃO SE ILUMINA
Íris olha fixo para a CHAMA. O INTERLÚDIO soa fracamente.
Tenta, com um gesto da cabeça, espaventar o som. Mexe na
ALIANÇA que ainda leva.
O INTERLÚDIO volta, intermitente. Depois...
FLASHBACK:
ÍRIS BRINCANDO COM TIAGO NO JARDIM, a casa da família
Damiani. Um amplo gramado.
(CONTINUED)
CONTINUED: 41.
ÍRIS E CARLOS NA FESTA DE CASAMENTO. Uma grande tenda
armada no jardim. Bebem champagne.
O INTERLÚDIO GANHA VOLUME
VOLTA À CENA
Íris olha para as sombras refletidas na parede:
A IMAGEM EVANESCENTE DE WOTAN em meio às brumas.
Íris entorna todo o whisky. Tenta fugir da música e das
visões. Anda a êsmo pela casa.
O ROSTO DE ÍRIS ILUMINADO PELO LAMPIÃO, lágrimas escorrem.
Sobe a escada. O INTERLÚDIO continua. Vira-se para a sala,
embaixo, e vê novamente...
WOTAN ENVOLTO EM BRUMAS, TOMA BRÜNNHILDE DE UMA CADEIRA DE
RODAS E A LEVA NOS BRAÇOS.
Íris desce às pressas, atravessa a sala na direção da
farmácia.
SEQ. 39 INT. FARMÁCIA - NOITE 39
O INTERLÚDIO continua.
O lampião está em cima do balcão, onde várias cartelas de
COMPRIMIDOS estão espalhadas. Íris tira alguns e fecha a
mão contra o peito. Chora.
A LUZ VOLTA. Íris abre a gaveta e ali joga os comprimidos.
SAI correndo.
SEQ. 40 EXT. PRAÇA - DIA 40
Padre Alexios caminha e observa os fiéis. Íris se
aproxima.
PADRE ALEXIOS
Bom dia, já está melhor? Parece
que não teve uma boa noite de
sono.
Íris confirma e caminha ao lado dele.
PADRE ALEXIOS
Ontem, tarde da noite, a
Conceição apareceu lá em casa só
pra me falar que tinha lembrado
de onde te conhecia. Até levou
umas revistas.
(CONTINUED)
CONTINUED: 42.
ÍRIS
Não segurou o desejo de espalhar
a novidade, hein?
PADRE ALEXIOS
Não a leve a mal. Ela disse que
assistiu a uma apresentação sua
em Leipzig...não pretende mesmo
retornar?
UMA MULHER LEVA O FILHO NUMA CADEIRA DE RODAS, para diante
do muro e toca-o. Íris desvia os olhos.
ÍRIS
Não quero falar sobre isto.
PADRE ALEXIOS
Você está sem motivação, talvez
precise se voltar pra Deus.
ÍRIS
(zombando)
Sei...e pra este muro aí, não é?
Comprar uma imagem da Núncia,
talvez ir para as cavernas. Ah,
era só o que me faltava... Nunca
precisei de muletas, padre.
Íris SAI furiosa e dirige-se à farmácia.
SEQ. 41 INT. FARMÁCIA/SALA DE APLICAÇÕES - DIA 41
Íris e Cristóvão atendem as irmãs LURDES(64) e RITA(68).
Lurdes está com o braço enfaixado e manchado de sangue.
Rita tenta acalmar a irmã, enquanto Íris limpa o
ferimento. Cristóvão maneja os curativos.
LURDES
Ai, ai,devagar.ah, tinha que ser
comigo.
ÍRIS
(rindo)
O que que é isso, dona Lurdes?
Acontece com qualquer um.
RITA
Ah, não, isto não. Ela é
especial, sofre mais que os
outros, a coitadinha.
Cristóvão e Rita riem.
(CONTINUED)
CONTINUED: 43.
LURDES
Vocês não têm dó, não?
ÍRIS
Mas por que estão rindo da
coitada?
Cristóvão ri e joga SÔRO FISIOLÓGICO sobre o ferimento.
Lurdes geme.
CRISTÓVÃO
Eu seria capaz de jurar que ela
se machucou só pra vir aqui
conhecer a senhora.
LURDES
(indignada)
Cristóvão...!
RITA
Ela vive tropeçando e caindo,
dona Íris, acho que gosta de ser
cuidada, mimada.
Íris termina de enrolar a gaze.
ÍRIS
Bom, tem que tomar cuidado. Está
faltando remédio aqui. E se
infeccionar? Venha.
Lurdes levanta-se e caminha com dificuldade.
SEQ. 42 INT. - FARMÁCIA - DIA 42
Íris, sobre uma escada, procura um medicamento. Lurdes e
Rita aguardam. Romero, da porta, observa a cena. Sorri.
CRISTÓVÃO
Mais acima, dona Íris. Do lado
direito.
Íris encontra o remédio e desce a escada, não nota a
presença de Romero. Anota num papel.
ÍRIS
Achei, deve ser um dos últimos
antibióticos. Tome dois
comprimidos por dia, de doze em
doze horas, depois das refeições.
LURDES
Por favor, Dona Íris, tenho aqui
um anel que era da minha mãe...
será que...
Lurdes procura e tira um ANEL DE OURO.
(CONTINUED)
CONTINUED: 44.
LURDES
No dia que eu tiver o dinheiro,
venho aqui e aí a senhora me
devolve ele.
Íris faz um gesto com a mão, recusando o anel.
ÍRIS
D. Lurdes, pode deixar. Pague
quando puder. Guarde isto.
Lurdes volta-se para Rita, guarda o remédio e o anel.
LURDES
Viu, Rita? E a gente pensava que
ela era durona...
As três mulheres riem.
RITA
Ah, é gente boa. Vamos? Até mais,
dona Íris e obrigada.
ÍRIS
Até.
As mulheres dirigem-se para a porta e dão de topo com
Romero. Lurdes o encara e persigna-se.
LURDES
(para Rita)
Dou graças a Deus por não ter
precisado ir ao médico. Cruzes!
Romero mostra a língua a ela. SAEM. Cristóvão se aproxima
dele e ameaça dar um soco em sua barriga. O médico se
desvencilha. O rapaz começa a fechar as portas.
ROMERO
Gente boa. Sei. Deste jeito você
não vai muito longe, não. Posso
lhe fazer uma visita? Já está
fechando mesmo.
ÍRIS
Claro, Romero. Entre por aqui.
Mostra-lhe a porta dos fundos da farmácia.
ROMERO
Você não se preocupa com a língua
do povo? O médico de Epidauro e a
distribuidora de poções...
ÍRIS
(rindo)
Imagine, não sou uma vestal. Eles
estão lá ocupados com o seu muro.
45.
SEQ. 43 EXT. - DIANTE DA FARMÁCIA - FINAL DA TARDE 43
Cristóvão fecha as portas da farmácia. Gesticula.
CRISTÓVÃO
(cantando)
Se o mundo quiserdes da guerra
livrar...
SEQ. 44 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - DIA 44
Íris, sentada no sofá, segura entre as mãos os cabelos em
desalinho. Romero faz-lhe uma compressa úmida na testa.
ROMERO
Aí, pronto. Está melhor?
Íris faz um movimento afirmativo com a cabeça.
ROMERO
Então deite-se, relaxe.
Íris deita-se. Romero toma seu pulso.
ROMERO
Ainda ouve a música? Talvez um
gole de whisky possa te ajudar.
Fique aí quietinha.
Romero vai até a cristaleira e enche um copo com whisky.
Olha O NÍVEL da garrafa e ri para si. Aproxima-se de Íris.
ROMERO
Oh...oh.../Ouvindo Wagner. Não
admira. O whisky está no fim. Não
é à toa, né? Quando te vi logo
notei o teu aspecto.
ÍRIS
Não, Romero. Não é por causa do
whisky. Acontece a qualquer
momento, vejo a cena.../só então
resolvo tomar algo. Você conhece
a história?
Romero estende-lhe o copo e senta-se ao seu lado.
ROMERO
Pôxa, se não conheço. Brünnhilde
desobedece às ordens de Wotan, o
pai, e contra a sua vontade, ele
prende-a num círculo de fogo.
ÍRIS
O interlúdio final retorna. Vejo
Wotan...a fumaça...a filha em
seus braços...
(CONTINUED)
CONTINUED: 46.
ROMERO
Você já interpretou este papel.
Quem sabe é um chamado, hein?
ÍRIS
Não é chamado nenhum!
ROMERO
Talvez Conceição possa te ajudar
a superar isto e voltar aos
palcos.
ÍRIS
(decidida)
Repito, não quero falar disso.
Muito menos com ela. Por favor,
agora quero ficar sozinha.
Romero cobre-a e vai até a porta.
ROMERO
Tá, tá, então se cuide, menina.
Acho que você se deixou
impressionar por este muro aí em
frente. Isto é contagioso. Tchau!
Romero SAI.
SEQ. 45 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - NOITE 45
Íris vai até o armário mas desiste. Volta-se, abre uma
gaveta e pega algumas fotos:
TIAGO, ÍRIS E CARLOS NUMA PRAIA EM NANCY.
Íris folheia reportagens sobre suas récitas.
FOTOS- Íris interpretando várias heroínas./ Íris
agradecendo ao público./ Artigos da imprensa.
FLASHBACK:
Íris representa a MORTE DE DIDO, da ópera OS TROIANOS, de
Berlioz. A cortina se fecha.
APLAUSOS FRIOS E SEM ENTUSIASMO.
Íris ENTRA nas coxias e atira-se nos braços de Frida. A
amiga a estimula a se apresentar. Íris titubeia e retorna.
Íris apresenta-se para a platéia e agradece. Os poucos
aplausos diminuem. Algumas vaias. A cortina se fecha.
VOLTA À CENA
O Interlúdio da Valquíria. Íris tapa os ouvidos e anda sem
rumo pela sala.
47.
SEQ. 46 INT. FARMÁCIA - NOITE- 3 HORAS DEPOIS 46
O INTERLÚDIO continua.
Íris joga os REMÉDIOS sobre o balcão e pega alguns. Coloca
as mãos nos ouvidos, entreabre a porta e olha para...
O MURO AO LUAR
A música a atormenta, agacha-se e cobre a cabeça com os
braços.
INSERIR:
Através da bruma, Wotan arruma as armas em volta do corpo
da filha e coloca o elmo em sua cabeça.
VOLTA À CENA
Íris joga OS REMÉDIOS no chão e corre.
SEQ. 47 EXT. PRAÇA - NOITE 47
O INTERLÚDIO CONTINUA.
Íris corre para a praça e se esgueira pelo muro. PARA
diante das VELAS que queimam.
INSERIR:
Wotan leva Brünnhilde nos braços. A fumaça densa se
desvanece e deixa entrever um CENÁRIO EM RUÍNAS - uma
grande construção que evoca o muro da praça.
VOLTA À CENA
Íris deixa a praça e corre pelas ruas vazias.
SEQ. 48 EXT. CERCANIAS DA CIDADE - NOITE 48
O INTERLÚDIO CONTINUA.
Íris caminha com dificuldade e entra na mata. Tropeça em
pedras e cai. Tem um corte na testa. O sangue escorre.
TROVÕES. Ela corre e encontra um PEQUENO ABRIGO em
círculo, feito de bambu e coberto com sapê. ENTRA.
Sobre uma pedra, há uma IMAGEM DE NANÃ BURUKU COM O IBIRI.
FLORES ROXAS E LILASES estão dentro de vasos. O chão está
salpicado com um PÓ VERMELHO. Íris desmaia.
O INTERLÚDIO CESSA.
48.
SEQ. 49 EXT. CERCANIAS DA CIDADE - NOITE 49
Íris está desmaiada diante do abrigo. GOTAS DE CHUVA CAEM
SOBRE SUA FACE e dissolvem as manchas de sangue. Seu BRAÇO
ESQUERDO está muito ensanguentado.
UMA SERPENTE sai de dentro do abrigo e desliza lentamente
pelo corpo de Íris. O sangue escorre pela terra e
mistura-se com a água da chuva.
SEQ. 50 EXT. CERCANIAS DA CIDADE - DIA 50
Do alto do morro, ISIDORO, um negro de 28 anos, leva UM
BURRO. PARA e avista o corpo de Íris.
Ele desce e examina-a. O sangue do rosto coagulou-se em
espessa camada. Improvisa uma tala no braço esquerdo,
depois coloca-a sobre o burro e parte.
SEQ. 51 INT. CASA DE BABA KUMI - DIA 51
Paredes de pau-a-pique. A frente é coberta por esteiras de
bambu trançado e por tecidos rústicos e coloridos. Chão de
terra batida. No canto esquerdo há um ALTAR eclético:
ESTÁTUAS DE SANTOS CATÓLICOS E DIVINDADES AFRICANAS. Velas
acesas. Num FOGÃO DE LENHA, PANELAS DE BARRO cozinham
algo. Algumas redes estão espalhadas.
Dois nichos na parede. Num deles, UMA IMAGEM DE NANÃ
BURUKU, VESTIDA DE ROXO, COM O IBIRI NUMA DAS MÃOS; no
outro, A IMAGEM DE SANT’ANA.
Íris está deitada numa cama alta e com a cabeça enfaixada.
BABA KUMI e DELFINA fazem compressas sobre seu corpo.
Baba Kumi(63), negro alto, magro. Delfina(19), magra; 1,68
m; muito bonita e com olhos de um branco imaculado.
Delfina pega um MAÇO DE MIRABILIS, vai até o fogão, tira
as flores e mergulha-as na água morna. Caminha até a cama
de Íris e coloca a infusão ao seu lado.
Baba Kumi continua as compressas. Íris abre os olhos
lentamente. Tenta murmurar algumas palavras.
BABA KUMI
Não, filha, descanse.
ÍRIS
(debilmente)
Onde...? O que.../ai. Quero sa...
Íris tenta se levantar. Delfina torna a colocá-la na
posição de antes. Íris olha para seu braço esquerdo.
(CONTINUED)
CONTINUED: 49.
BABA KUMI
É...treco feio. Se o Isidoro não
chegasse...sei não! Cê deve de
ter escorregado naquele grotão e
quebrou o braço esquerdo. Mas tá
viva...ô se não tá.
ÍRIS
Preciso ir embora...
BABA KUMI
Tá ouvindo, Delfina?
Delfina vira-a de lado e faz compressas em suas costas.
DELFINA
(rindo)
Tô sim, Baba. Ela que atente.
Quieta, aí, moça.
BABA KUMI
É, tem graça isto. Ela quer
emborar. Mas assim, menina? não
vai conseguir se alevantar de
jeito nenhum.
ÍRIS
Preciso de cuidados médicos...e
se infeccionar? Esses panos estão
limpos?
BABA KUMI
Ela não confia na gente, Delfina.
Moça teimooosa. Olha, ponha tento
no que vou dizer. Tá vendo essa
cuba aí?
Íris olha para a cuba. MIRABILIS bóiam sobre a água morna.
DELFINA
Não vire assim. Cuidado!
Ajeita o corpo de Íris.
ÍRIS
Mirabilis. São flores de
mirabilis. Fazem compressas com
elas?
DELFINA
Não sei que nome é este. Nós aqui
chamamos ela de jalapa.
BABA KUMI
Então, essas flor curaram a
menina. Não carece de médico lá
da cidade, não. Ocê tá bem. Em
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 50.
BABA KUMI (cont’d)
boas mão. A Delfina aí tem
talento. Teve gente que ensinou
as coisa direitinho pr’ela.
ÍRIS
O senhor?
BABA KUMI
Bão, eu ensinei pra Rahima e ela
ensinou pra Delfina. Eu já tô
velho e não tem frô que dá jeito.
Ensinei coisa que cura, mas
também que mata.
ÍRIS
Neste caso foi só a cura, né? Mas
que mata...?
DELFINA
Não. Baba Kumi às veiz mistura o
jeito de contar as coisa.
Delfina ri. Baba Kumi arma um muxôxo.
BABA KUMI
Não ria. É que as minhas idéia
corre muito depressa e a boca não
consegue acompanhar.
DELFINA
Rahima é a filha. Ele é o chefe
daqui e ela tem que treinar os
homem pra luta. Ela é também a
iabá que cuida das cerimônia. Eu
ajudo os dois.
BABA KUMI
Quando eu morrer, ela vai ser o
chefe do quilombo.
Íris levanta o tronco e sente dores. Delfina a ajuda.
ÍRIS
Mas será que eu andei tanto assim
para vir parar num remanescente
quilombola?...ai.
BABA KUMI
Se aquieta aí, menina. Devagar...
É, ocê tá no quilombo
Tambacounda. E daí? De gente
simples, mas guerreira. E boa
também, a gente não tá dando
ajutório pr’ocê?
(CONTINUED)
CONTINUED: 51.
ÍRIS
É o único quilombo por aqui?
Delfina arruma os travesseiros e ajeita Íris.
DELFINA
Tem outros... Lá pra cima. Pros
lado do Serro, mas são diferente.
ÍRIS
Diferentes?
BABA KUMI
Meu avô e os antepassados vieram
lá do norte de Minas, então a
gente é de outra nação, diferente
dos que tava neste lugar.
DELFINA
É, mas o nosso povo acabou se
misturando com eles.
BABA KUMI
Meu avô veio pra cá com sua gente
porque os branco de lá perseguia
eles. O povo banto daqui acolheu
a gente.
ÍRIS
Ai... minhas pernas doem. A
cidade é muito longe?
DELFINA
Se tiver falando de Lavras de
Sant’Ana, é bem longe. É de lá
que veio?
Íris confirma.
BABA KUMI
O Isidoro te encontrou numa
montanha cheia de pirambera. Mas
cumé que veio parar aqui sozinha,
assim, sem força nenhuma?
Íris dá de ombros.
BABA KUMI
Bão, teve sorte. Quando o Isidoro
troxe ocê, a gente achou que não
ia ter jeito não. Tava muito
machucada.
RAHIMA(26) ENTRA com um cesto - negra bonita; cabelos
curtos; 1,72 m. Coloca ERVAS-DE-PASSARINHO, manacás e
agapantos diante de Nanã e Sant’Ana. Faz louvações.
(CONTINUED)
CONTINUED: 52.
RAHIMA
Salubá Nanã,/ Salubá Nanã Burukú.
Volta-se para o leito de Íris.
RAHIMA
Ah, já está melhor, a moça. A
gente achou que não ia mais
acordar. Três dias ficamos aqui
velando ocê e...
ÍRIS
(levantando o tronco)
Três dias? Três dias aqui?
Delfina e Baba Kumi aquiescem. Rahima deixa o cesto no
chão e pega um maço de ervas.
ÍRIS
Meu Deus! Eles devem estar
preocupados, alguém tem que ir lá
avisar.
BABA KUMI
Menina, não deve de ter tanta
gente assim que te conhece, né?
Faz pouco tempo que ocê chegou na
cidade.
ÍRIS
...como sabe?
BABA KUMI
Ocê falou coisas. Umas coisa que
a gente não entendia, mas deu pra
ver que é nova na cidade. Donde é
que vem?
ÍRIS
Belo Horizonte.
BABA KUMI
Ah, da capital...então, ocê veio
dar em Lavras de Sant’Ana e do
jeito que as coisa tão... É...eu
quero dizer que não é bom eles
saber que a menina tá com a gente
aqui...mas dá licença agora,
tenho que falar com meus homem de
guerra.
Baba Kumi SAI. Íris segue-o com os olhos. Rahima levanta o
travesseiro de Íris e coloca o maço de ervas embaixo.
ÍRIS
Não entendi este negócio do povo
da cidade não poder saber que
estou aqui...
(CONTINUED)
CONTINUED: 53.
RAHIMA
Ele falou certo. É melhor que a
gente da cidade não fique sabendo
que a moça tá por aqui. Podem
achar que é tramóia, que a gente
tá te prendendo.
ÍRIS
Qual o problema? Eu vou dizer a
verdade. Que vocês me ajudaram.
RAHIMA
Não adianta, esse povo teu é
muito desconfiado. Tão com cisma
da gente. Acham que a gente
mandou demônios pra cercar a
cidade. Se alguém falar que ocê
tá aqui, vão enfezar e atacar o
quilombo.
ÍRIS
Não ouvi nada sobre demônios. Só
gente rezando sem parar na frente
daquele muro.
RAHIMA
Ah, moça, ali a terra secou e não
dá mais fruto, nem as vacas dão
leite. Deve ter ouvido falar que
lá tá faltando tudo, né?
Íris faz sinal afirmativo.
ÍRIS
Nem sei como podem viver assim.
Delfina pega o cesto e separa as ervas.
DELFINA
Eles acha que as reza vai
ajudar...
RAHIMA
Então...é, eles vão rezar lá
naquele muro e nunca que dianta.
Aqui não falta nada. A gente
conseguiu colher tudo que
plantou. Então eles dizem que é
coisa de demônio, que a gente tem
parte nisso. Tem que por a culpa
em alguém, não é?
DELFINA
Esse tal demônio é inveja. Isso
sim.
(CONTINUED)
CONTINUED: 54.
ÍRIS
Mas isto é motivo para
uma guerra?
RAHIMA
Eles vivem atormentando a gente.
Querem nossas terra que são muito
nossa. A gente precisa treinar os
homens pra luta.
Delfina deixa o cesto, corre até Rahima e abraça-a.
DELFINA
E Rahima sabe fazer isto. Treinar
os homem.
ÍRIS
Sabe treinar homens para a
guerra? Onde aprendeu?
RAHIMA
Nem é que eu sei. Meu pai diz que
é jeito, que eu nasci com
isto. Aprendi também coisas de
guerra entre tribos das África.
Histórias.
Rahima faz compressas em Íris. Delfina a ajuda.
RAHIMA
Aprendi também das lutas daquele
teu povo antigo, os romanos. As
lutas de religião.
ÍRIS
Imagino então que leia livros.
Você deve ter livros por aqui...
RAHIMA
Tem, mas não foi dos livros. Foi
o Padre Jonas.
DELFINA
(muito animada)
É, é...Padre Jonas.
ÍRIS
Ah, um padre por aqui... Onde ele
está? Quero falar com ele.
DELFINA
Ah, isto é difícil. Ele não gosta
muito de falar com gente da
cidade. É muito calado.
Delfina trabalha com as ervas.
(CONTINUED)
CONTINUED: 55.
RAHIMA
Padre Jonas foi mandado pela
igreja pra ver se ajudava a
arrumar este desmazelo entre os
brancos e a gente.
ÍRIS
Um padre negro?
DELFINA
Não, branco. Ele fica todo o
tempo rezando naquela morada.
ÍRIS
Esse Padre Jonas, pelo jeito, não
conseguiu resolver a situação...
RAHIMA
De que jeito? O problema não é a
gente, moça. Tamo no que é nosso.
Herança. Os fazendeiros e a
cidade inteira é que têm o
demônio no corpo.
Rahima, longe do olhar de Delfina, pega o POTE DE ÓLEO da
prateleira e coloca-o sob a cama. Íris percebe.
RAHIMA
O padre só conseguiu ganhar um
tempo, mas a coisa pode piorar.
Rahima vira-se para Delfina.
RAHIMA
Delfina, precisamos de mais erva
e mais undu prá cerimônia.
DELFINA
Ainda tem undu, não tá aí?
Delfina vasculha.
RAHIMA
Não tem mais, não.
DELFINA
Tá, então vou lá na cafua pegar
mais.
Delfina SAI. Íris olha com interesse para Rahima.
RAHIMA
A gente é que faz nosso undu e...
ÍRIS
(interrompendo)
Rahima, ainda tinha óleo ali. Eu
vi.
(CONTINUED)
CONTINUED: 56.
RAHIMA
É. Bem...é que eu...eu queria
falar umas coisas do padre. Tem a
ver contigo, achei que não ia
querer que os outros ouvissem.
ÍRIS
Não sou muito chegada a padres.
RAHIMA
Ele não gosta de falar com gente
da cidade, mas no teu caso acho
que não ia negar. Quer que eu
chame ele pra curar ocê?
ÍRIS
Não, deixa pra lá, perdi a
vontade de falar com ele. Vocês
já não me velaram durante três
dias? Estou boa, logo vou poder
me levantar.
Rahima curva-se sobre a cama, pega numa das mãos de Íris.
RAHIMA
Olha, deixa eu falar... Desde um
tempo atrás fiquei muito doente.
Tinha um negócio aqui no peito.
Sentia muito calor, suava. Meu
corpo inchava...meu sangue parou
de vir todo mês...
ÍRIS
Estava grávida!
RAHIMA
Que jeito? Nunca dormi com nem um
homem. Acho que ela deixou de vir
por causa da doença.
ÍRIS
E foi procurar um padre em vez de
um médico?
RAHIMA
Peraí, moça, deixa eu contar...O
corpo foi Nanã quem curou. Fiz
promessa e fui atendida, então
quis me dedicar pra ela, mas aqui
dentro ainda doía, doía muito.
Rahima afasta-se da cama e fala para um alvo distante.
RAHIMA
Um dia, de noite, aquela dor veio
bater no meu peito. Eu chorava
muito e encasquetei em falar com
o padre e...
(CONTINUED)
CONTINUED: 57.
Rahima cala-se, fica mergulhada em suas idéias.
ÍRIS
E então...
Rahima apóia-se em duas redes e olha para Íris.
RAHIMA
Parece que ele já me conhecia.
(caminhando)
Eu peguei falar de mim que não
parava. Daquele aperto no
coração...daquela vontade de
entrar na terra e sumir.
Rahima bate no peito com os punhos.
RAHIMA
Não sei como é que se deu a
coisa, mas depois que saí, bem
tarde, olhei as estrelas no céu,
(perto da janela)
vi a lua redonda que nem nunca.
FLASHBACK DE RAHIMA:
A lua cheia e depois sua luz banhando apenas o braço de
Rahima. Ela acaricia-o.
RAHIMA(OFF)
Estiquei os braços, a luz dela
batia prateada na minha mão...
RAHIMA olha para a lua e sorri.
VOLTA À CENA
RAHIMA
Ah, moça. Se visse. Eu tava
curada. Tava feliz de novo.
ÍRIS
Voltou a ter o sangue todo mês?
RAHIMA
Não, tô dizendo que eu tava
curada da alma. O corpo foi Nanã
que curou, mas o sangue, este
nunca mais que desceu.
ÍRIS
Bem, e o que tudo isso tem a ver
comigo? Não tenho problemas
menstruais.
(CONTINUED)
CONTINUED: 58.
RAHIMA
Moça, num tô falando disso. É que
ocê falou durante três dias e
três noites. Sei que tem uma
geringonça aí dentro que precisa
de remédio.
ÍRIS
As coisas não estão fáceis pra
mim, Rahima.
RAHIMA
Falou coisas de música, de um pai
segurando a filha... Não sei se
ela tava morta...Falou também do
teu marido e do teu filho... Eles
estão em Lavras?
ÍRIS
Eles já não estão mais neste
mundo.
RAHIMA
Ah, então isso explica as
coisas...
ÍRIS
Mesmo assim não quero a bênção do
teu velho padre.
RAHIMA
E quem disse que ele é velho? Só
tem trinta e quatro anos.
ÍRIS
Bonito?
RAHIMA
Muito bonito. Não costumo achar
branco bonito, mas esse é.
ÍRIS
(com ironia)
Ah, isso também explica muitas
coisas...
RAHIMA
Não é o que cê tá
pensando...fique aí, vou lá atrás
da Delfina.
Rahima SAI. Íris fica a olhá-la longamente.
59.
SEQ. 52 EXT. MONTE ADJACENTE AO QUILOMBO - DIA 52
PLANTAÇÕES DE MILHO, MANDIOCA,ETC. O GADO SE ALIMENTA
SOBRE UM PASTO MUITO VERDE. A VILA TODA POSSUI UMA ÚNICA
VIA CENTRAL COM UM CRUZEIRO NO MEIO.
Íris veste roupa do quilombo, tem o braço apoiado em uma
tipóia. Baba Kumi bate no chão com um graveto.
BABA KUMI
É, ela é bonita que nem a mãe.
Não é só a formosura que pegou,
não. Fala com os egun, com as
vida que já foram. É inteligente.
Aprendeu a ler com o padre, sabe
até as latinezas deles lá.
ÍRIS
O padre Alexios também não vem
aqui pra ajudar vocês?
BABA KUMI
O padre daqui é o Jonas,quem é
esse outro?
ÍRIS
Padre Alexios, o padre de Lavras
de Sant’Ana. Achei que ele
aparecia aqui para ajudar o
Jonas.
Baba Kumi coloca uns feijões na boca e ri.
BABA KUMI
Essa é engraçada, menina. Magina
que o padre deles aparece aqui.
Mas tamém não tô entendendo, eles
têm lá o sarnento do padre
Lamartine, cão medroso que só
ele...é, o tal deve ter fumado
muita liamba pra falar que a
gente traz o demo na cacunda.
ÍRIS
Não, o de lá chama-se Alexios,
Alexios Eliades, e é um homem
muito bom, tem idéias mais
avançadas. Não se parece com esse
Lamartine.
BABA KUMI
Ora, então temos novidade por lá.
Vai ver que o desgraçado deu nas
bota. Vivia doente e era muito
gordo. Gostava de vinho, de muita
carne...de carne dos dois jeito,
né? (RI)Ah, tamém não vai fazer
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 60.
BABA KUMI (cont’d)
falta esse Lamartine, deve de tá
lá ajustando as conta com o demo.
Bão, seje, mas este padre
aí...esse...
ÍRIS
Alexios.
BABA KUMI
Então. Esse não veio aqui ensinar
Rahima, não. Foi o nosso Jonas
aqui. Ele ensinou até música pra
ela.
ÍRIS
(surpresa)
Pôxa, ela conhece até música?
BABA KUMI
E tem uma voz bonita, muito
bonita. Sabe ler até aquelas
formigas pretas...(pausa) Mas eu
me preocupo. Não sei... A mãe
dela era coisa ruim nos troço de
coração. Mulher cheia de ciúme.
Arreda!
ÍRIS
As moças aqui devem se casar
muito cedo, né?, e ela...
Baba Kumi levanta-se e caminha em volta.
BABA KUMI
Rahima não pode mais casar e não
deixa os homem se aproximar. Teve
uma doença que quase matou ela,
fez uma promessa e foi curada...
ÍRIS
Sei, pra Nanã.
BABA KUMI
Rahima nasceu em 26 de Julho,
mesmo dia de Nanã, tamém por isso
ela quis se consagrar pra Nanã,
mas deu muito trabalho esse
negócio todo.
ÍRIS
Não vejo porquê, foi apenas uma
promessa...
BABA KUMI
Não é isso. O caso é que só as
mais velha pode se consagrar pra
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 61.
BABA KUMI (cont’d)Nanã. Rahima teimou. Os mais
velho achava que não tava certo,
fizeram reunião e aceitaram o
pedido dela...mas...e o desejo? É
moça ainda...
ÍRIS
Ela devia tentar um tratamento na
capital...
BABA KUMI
Esquece. Eu vou é ficar sem
herdeiro homem.
Os dois descem o monte na direção do quilombo.
SEQ. 53 EXT. CERCANIAS DO QUILOMBO - MADRUGADA 53
Rahima leva uma CORDA no ombro, traz uma FACA na cintura e
uma CESTA nas mãos. Canta enquanto caminha pelo mato.
RAHIMA
(cantando)
Obi Nanã aió o ku obó,/Nanã ió
obi Nanã io o ku óbó/ Nanã ió
Encontra Íris diante de um regato.
RAHIMA
Tá sem sono, moça? Assim não vai
melhorar.
ÍRIS
Cansei de rolar na cama. Você
está indo colher suas ervas?
RAHIMA
É. Tem que colher elas com as
gotas de orvalho ainda.
ÍRIS
E é proibido assistir a colheita?
RAHIMA
Não, só não pode ser gente ruim,
nem homem. Nanã não gosta.
ÍRIS
Não é o meu caso, né?
RAHIMA
Ah, a moça quer conhecer as
plantas? Vamos, então.
Íris e Rahima ENTRAM na mata.
(CONTINUED)
CONTINUED: 62.
Rahima PARA diante de uma FONTE entre pedras. Mostra para
Íris um grande declive ao lado.
RAHIMA
Desta fonte prá lá é território
dos brancos. Aqui acaba a nossa
terra.
Tira do cesto um prato de cerâmica com MUGUNZÁ. Coloca-o
no chão e completa o arranjo com frutas, hortências,
manacás e agapantos lilases. Faz algumas reverências.
RAHIMA
Salubá, Nanã. Salubá, Nanã
Burukú.
ÍRIS
Prá quem é?
RAHIMA
Ebó prá Nanã, é claro. Fique
quieta, ela não gosta de barulho.
Vamos sair daqui porque pode
aparecer cobra.
ÍRIS
Não precisa falar duas vezes.
As duas se embrenham na mata.
SEQ. 54 EXT. MATA - MANHÃ 54
Rahima corta com destreza os cipós e ramagens do caminho.
ÍRIS
Como é que sabe pra onde está
indo?
RAHIMA
(rindo)
A moça faz muitas perguntas.../
Sei lá. Acho que alguma coisa me
guia.
Rahima atira a corda para o alto de uma árvore cheia de
ERVAS-DE-PASSARINHO.
ÍRIS
Você vai subir lá? Só estou vendo
parasitas. Vai colher aquilo?
RAHIMA
Sim, o que que tem?
(CONTINUED)
CONTINUED: 63.
ÍRIS
(admirada)
O visco...!
RAHIMA
Visco? A gente chama isto de
erva-de-passarinho. Cura muita
coisa. Nanã gosta delas.
Rahima escala a árvore. Tenta arrancar com dificuldade a
erva-de-passarinho.
ÍRIS
Não seria mais fácil usar a faca?
RAHIMA
De jeito nenhum, moça. Nanã não
gosta de metal.
Íris, surpresa, observa Rahima. MÚSICA: CASTA DIVA, na
flauta transversal.
FLASHBACK DE ÍRIS
A música continua. Norma dirige-se para o carvalho e colhe
o VISCO com uma FOICE de ouro.
VOLTA À CENA.
Rahima desce da árvore com a colheita. Tira um COLAR DE
BÚZIOS do pescoço e o entrega a Íris.
RAHIMA
Ocê agora já conhece alguns
segredos...Foi curada e é de Nanã
também. Só não deve saber disso.
Toma, vai te ajudar.
Íris coloca o colar em seu pescoço.
SEQ. 55 EXT. MATA - DIA 55
Rahima segue com sua colheita. O tema da "Casta Diva"
retorna. Íris, cabisbaixa e pensativa, olha para o cesto
cheio de visco. Depois para o alto do monte...
A IGREJA MUITO TOSCA, com uma única torre no final da via,
na parte mais elevada do quilombo.
SEQ. 56 INT. IGREJA - DIA 56
Diante da porta, Íris observa o interior da igreja. As
paredes são caiadas de branco. Construção muito tosca.
(CONTINUED)
CONTINUED: 64.
A VIA CRUCIS nas paredes com imagens primitivas. Ao fundo,
O CRISTO acima do altar. Ao lado, um CRAVO muito antigo,
sobre ele um vaso com MIRABILIS.
Surpresa, Íris aproxima-se do cravo, esmaga uma flor entre
os dedos e a cheira. Senta-se e dedilha algumas teclas.
Toca a introdução do PANIS ANGELICUS. CURIOSOS aparecem à
porta. Baba Kumi fica na frente deles.
A VOZ DE ÍRIS ECOA NA IGREJA
ÍRIS
Panis Angelicus /Panis angelicus
Fit panis hominum/Dat panis
coelicus /Figuris terminum/O res
mirabilis!/Manducat Dominum /
Pauper, Pauper,/Servus et
Humilis.
PADRE JONAS ENTRA. Alto, magro e de olhos escuros. Ele
sorri e Íris retribui, depois se posta ao lado do cravo.
Delfina chega e não tira os olhos do Padre Jonas. O olhar
de Íris vai de um a outro enquanto canta.
SEQ. 57 EXT. CERCANIAS DO QUILOMBO - NOITE 57
Iris passeia. Olha para trás e vê...
...ACIMA DA SILHUETA NEGRA DAS MONTANHAS, O CÉU ESTRELADO
E O QUILOMBO ILUMINADO PELA LUA CHEIA.
SOM DE CACHOEIRA. Macacos curiosos com ela. Íris sorri.
Olha para A LUA CHEIA. Caminha, abre a vegetação e
encontra...
UMA CACHOEIRA - abaixo, um amplo poço ao luar. Ela tira as
roupas e mergulha. Entra sob a queda d’água. Sai, coloca
os cabelos para trás e observa na margem...
PONTO DE VISTA DE ÍRIS
Jonas e Delfina caminham abraçados. Sentam-se numa pedra e
beijam-se.
VOLTA À CENA
Íris nada silenciosamente para a margem oposta, pega suas
roupas e embrenha-se na mata.
Jonas e Delfina brincam à beira do poço.
65.
SEQ. 58 INT. CASA DE BABA KUMI - DIA 58
Baba Kumi seleciona GRÃOS, tem ao seu lado alguns BÚZIOS
espalhados. Íris o ajuda. Em volta, SACOS de sementes.
BABA KUMI
...então, tá vendo?...esses
búzios? Eles são coisa de Nanã.
Parecem com a morte porque tão
vazio, mas tamém traz a vida lá
dentro...olha bem...não parecem
com a parte da mulher que vai
gerar filho, a vida?
Íris confere o fato ao manejar alguns búzios.
ÍRIS
(rindo)
Olha, não é que é verdade?
BABA KUMI
Essas semente tamém são presente
de Nanã.
ÍRIS
Acho que entendi, ela vive no
meio dos mortos, mas também dá a
vida...
BABA KUMI
...o ventre de Nanã é a terra, é
ela que gera essas semente de
feijão e esses búzio. Acontece
que nosso corpo foi feito com a
lama de Nanã e vai voltar de onde
veio, pro ventre de Nanã. Não vai
demorar pra ser a guarida do
corpo deste véio aqui...
ÍRIS
Que é isso, Baba? Você está
melhor do que eu.
BABA KUMI
(selecionando os grãos)
Já está boa, menina. Pode ir pro
seu povo. Tá até cantando, tem
voz bonita...deixa eu ouvir de
novo? Canta um pouco prá mim.
ÍRIS
(cantando)
O res mirabilis!
Manducat Dominum /pauper pauper
servus et humilis...
Baba Kumi se emociona. Seus olhos estão marejados.
(CONTINUED)
CONTINUED: 66.
OFF DISTANTE - SOM DE ATABAQUES E CANTORIA.
BABA KUMI
Sabe? Quando ocê canta, eu
consigo ver um monte de
coisa...parece voz do Kulembe, um
povo antigo nosso.
Íris põe a mão em concha no ouvido.
BABA KUMI
É Rahima e o nosso povo fazendo
as cerimônia...tamém tô
escutando, dentro aí deste peito
teu, um troço triste e...
RAHIMA
Ah, não vem você também me dizer
pra falar o padre Jonas.
BABA KUMI
Não, nem podia, o padre foi
viajar, nem sei quando volta.
Lembrança é coisa só da gente e a
gente é que tem que resolver.
Íris abaixa a cabeça junta um punhado de feijões.
ÍRIS
Muitas lembranças, Baba. Eu
sempre cantava esta música para o
meu pai quando ele estava de
cama.
BABA KUMI
Tava doente?
Íris aponta a fronte com o indicador.
ÍRIS
Aqui, Baba, ele estava doente
daqui. Esta música aliviava o
sofrimento dele.
BABA KUMI
Não tem coisa pior neste mundo
que doença da cabeça. Então
precisa ir embora, ele deve ter
precisão da tua pessoa.
ÍRIS
Ele já não é deste mundo. Ficou
tão ruim que um dia, quando todos
estavam fora, tentou se matar
provocando um incêndio na casa.
Ele se salvou, mas depois disso
nunca mais se recuperou.
(CONTINUED)
CONTINUED: 67.
Íris enxuga as lágrimas.
BABA KUMI
Não fica triste...deve de fazer
muito tempo, né?
ÍRIS
Eu tinha dezessete anos...
BABA KUMI
Olhe a coisa de outro jeito,
acabou o sofrimento dele. Mas
deve ter outros que se preocupam
com a tua pessoa...
ÍRIS
O que todos lá em casa mais
esperam é que eu me recupere e
isto está acontecendo neste
lugar. Você não se importa que eu
fique mais alguns dias?
BABA KUMI
Claro, menina. Gosto de ti. Então
fique, se assim acha melhor, mas
não sei que descanso vai ter, tá
vendo que a gente tem problema.
Iris olha para OS SACOS DA COLHEITA. Continua a ouvir os
atabaques e a cantoria.
SEQ. 59 INT. PAVILHÃO DO QUILOMBO - DIA 59
SOM DE ATABAQUES. Rahima, no meio dos quilombolas, está
vestida de roxo e branco. Tem o rosto coberto por contas e
segura o IBIRI numa das mãos.
Os homens executam o ritmo SATÓ nos RUNS (atabaques
maiores). Rahima dança lentamente com o corpo curvado.
Duas assistentes acompanham sua evolução. Cantam:
TODOS
Salubá Nanã,/ Salubá Nanã Burukú.
Yìn Nàná yò/O lù obó/ Nana Yò/ O
ko lodò sìn sa lè wá/ A rìn kú ma
oun rè..
SEQ. 60 INT. CASA DE BABA KUMI - DIA 60
Íris mergulha as duas mãos num dos sacos e deixa cair os
feijões diante de Baba Kumi. A cantoria continua em OFF.
ÍRIS
Como é que a mesma terra pode
produzir num lugar e não no
outro? São tão próximos.
(CONTINUED)
CONTINUED: 68.
BABA KUMI
Menina, vai ver que os nosso
santo resolveram olhar pelo
quilombo Tambacounda.
ÍRIS
Mas, Baba, eles estão passando
necessidade por lá.
BABA KUMI
Acaso a gente nega as coisa? Até
podia vender pra eles por um
preço bem baixo. Ah, mas não
querem saber, desconfiam da
gente. Acham que fizemos
trabalho. Os fazendeiros invadem
nossos pastos e roubam nosso
gado. Dizem que a terra é deles.
ÍRIS
Alguém deve ter registrado essa
doação.
BABA KUMI
A gente não entende dessas
coisa...essas papelada. Os outro
de antigamente tamém não
entendia. Não sei porque ficam
falando que a terra é daquele
fazendeiro, o Otávio. Ah, este,
ele é igual a gente, ara!
ÍRIS
Isso tá confuso, Baba.
Baba Kumi levanta-se. Faz um gesto largo com os braços
abarcando toda a volta.
BABA KUMI
O dono disso tudo era Inácio
Bastos, o pai do Otávio. Era
mulato nascido de um branco muito
rico e de uma negra.
FLASHBACK DE BABA KUMI:
INÁCIO BASTOS(45), mulato, usa terno de linho branco e
recebe os convidados no jardim de sua GRANDE CASA.
Otávio(8), seu filho, mulato, também usa um terno branco.
Uma PEQUENA ORQUESTRA está instalada no gramado e executa
sarabandas e serestas. Alguns CASAIS dançam.
BABA KUMI(OFF)
O Inácio Bastos dava festa
bonita. Coisas de violino e
elegâncias. Queria parecer gente
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 69.
BABA KUMI(OFF) (cont’d)cacuta, de poder. Ara! Acaso o
poder pode ser prêto?
MULHERES BRANCAS e elegantes, apontam Inácio e SINALIZAM,
umas às outras, trocam sorrisos zombeteiros entre si.
Inácio conversa com um grupo de homens elegantes.
BABA KUMI(OFF)
Os outros ia na festa porque eles
não era tonto. Sabia que o
Inácio, apesar de quase preto,
tinha muito dinheiro e terras.
Gente finória essa.
Inácio Bastos convida uma jovem para dançar.
Desconcertada, ela aceita o convite. As outras mulheres se
esfalfam a rir, tapam a boca com leques, custando a
disfarçar.
VOLTA À CENA
Baba Kumi brinca com os feijões. Cantoria retorna em OFF.
BABA KUMI
Seu Inácio acabou ficando muito
amargurado, percebeu que riam
dele e do Otávio. O menino era o
espelho do pai, só que pequenim.
FLASHBACK DE BABA KUMI
TRÊS CARROÇAS, paradas em frente do casarão de Inácio,
estão cheias de MALAS. Um grupo de negros aguarda ao lado.
BABA KUMI(OFF)
Ah, menina, não tem milongo pro
destino. O Inácio tinha sangue
preto e via o mundo preto. Nunca
que assossegava. Vai daí que
resolveu dar sumiço de si e da
família. Partiram daqui.
Inácio SAI com SUA ESPOSA e Otávio. Um NEGRO se aproxima,
Inácio entrega-lhe UM PAPEL e despede-se. O negro agradece
com muitas vênias. A família ENTRA na charrete.
VOLTA À CENA
Baba Kumi levanta-se, vai até uma prateleira e pega uma
BONECA DE PORCELANA, depois entrega-a para Íris. Ela
aprecia a boneca.
ÍRIS
Que coisa rara.
(CONTINUED)
CONTINUED: 70.
BABA KUMI
O Inácio deu aquele documento das
terra para o preto e partiu.
Muito tempo depois, advinha só
quem aparece aqui? O Otávio
Bastos, o filho do Inácio. Homem
já feito, mas ainda mulato. Eu
tava lá na praça naquele dia.
Proseava com os amigo.
FLASHBACK DE BABA KUMI:
UMA CHARRETE para em frente do casarão. OTÁVIO BASTOS,
DOIS MENINOS E UMA MENINA descem. A menina segura uma
boneca de porcelana.Otávio ENTRA na casa e os filhos olham
para a praça, onde...
QUATRO NEGROS, sentados num banco, observam e fazem
comentários entre risos. Um deles é Baba Kumi, mais jovem.
BABA KUMI(OFF)
A família inteira era quase negra
e metida em roupa de branco,
imitando a gente francesa. Me
diz: como é que o homem pode
chegar gritando que nem cafuçu e
querendo as terra de volta? Como
querer terras de preto se preto
era?
A menina, com a boneca, aparta-se da família e vai até o
grupo de negros. Baba Kumi (jovem) passa a mão sobre seu
cabelo.
A AMA chega e leva-a com rispidez pelo braço. A menina
consegue estender a boneca para Baba Kumi. Ele a apanha.
VOLTA À CENA
ÍRIS
É a mesma boneca?
Baba Kumi confirma, depois espalha alguns feijões pela
esteira.
BABA KUMI
Olha, tá vendo esses feijão?
Baba Kumi mistura o feijão preto e o fradinho.
BABA KUMI
Se cozinhar tudo junto, vai ficar
bão do mesmo jeito.
OFF - A CANTORIA E OS ATABAQUES DÃO LUGAR A GRITOS E
EXCLAMAÇÕES.
Baba Kumi e Íris levantam-se.
71.
SEQ. 61 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - DIA 61
As pessoas correm. As mulheres juntam-se perto do
cruzeiro. Os homens vão até a casa de Baba Kumi.
SEQ. 62 INT. CASA DE BABA KUMI - DIA 62
Baba Kumi SAI. Rahima e Delfina barram Íris na entrada.
Ela ainda segura a boneca.
RAHIMA
Não, moça, é melhor não sair. Tem
gente da cidade aqui.
ÍRIS
Mas posso explicar pra eles...
RAHIMA
Eles podem te acusar de traição.
Deixa que a gente resolve.
SEQ. 63 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - DIA 63
Baba Kumi chega acompanhado de QUATRO HOMENS. Rahima e
Delfina seguem atrás. PARAM diante do CRUZEIRO.
OTÁVIO BASTOS(43), ladeado por SEIS HOMENS, vai até Baba
Kumi. Todos estão montados em cavalos. Otávio é um mulato
baixo, usa barba, cabelos escuros e crespo.
OTÁVIO BASTOS
Baba Kumi, venho em paz. Quero te
propor um acordo.
BABA KUMI
Seu Otávio, não vamo retornar
nessa conversa de terra. A gente
nunca que vai te convencer. Teu
pai deu e o senhor quer tirar.
OTÁVIO BASTOS
Eu desisto das terra, deixo pra
vocês o que não é seu, que fique
bem claro isso. Mas não é de
graça, sabemos que ocês têm
economias guardadas, coisa de
muito tempo. Então é só dizer
onde estão que vamos embora em
paz.
Baba Kumi, rindo, dá voltas sobre o próprio corpo e
gesticula para o seu povo.
(CONTINUED)
CONTINUED: 72.
BABA KUMI
Tá louco, homem? Isto é para os
que virão. A gente trabalha
muito.
Padre Jonas chega. Otávio vira em sua direção.
OTÁVIO BASTOS
Ah, tava faltando o excomungado.
BABA KUMI
Voltou de viagem numa hora ruim,
padre.
PADRE JONAS
Por favor, Seu Otávio, foi o seu
pai mesmo que passou as terras
pra essa gente. Deixa eles em
paz.
OTÁVIO BASTOS
Vai cuidar das tuas ovelha negra,
padre arrenegado. Não queremo
conversa com gente excomungada
pela igreja.
(à parte, para os capangas)
Esse maldito lambe-cruz deve de
saber alguma coisa.
Espera silenciosa. Os guardas de Baba Kumi se aproximam
com armas em punho e cercam o grupo de Otávio Bastos.
OTÁVIO BASTOS
(puxando as rédeas)
Eu tentei. Não vai falar que não
tentei. A gente vai voltar e
expulsar ocês daqui.
BABA KUMI
A gente tem muita arma e muitos
braço. A gente se defende.
Otávio Bastos pragueja. O grupo se afasta.
SEQ. 64 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - DIA 64
Isidoro segue na frente de Íris, muito apressado.
ISIDORO
Baba acha que vão atacar, sim. A
coisa tá feia lá na cidade e eles
tão morrendo de inveja da nossa
fartura.
(CONTINUED)
CONTINUED: 73.
ÍRIS
Agora que o padre Jonas voltou,
ele podia colocar as mulheres e
crianças na igreja.
ISIDORO
Cê acha mesmo que ele vai segurar
os fazendeiro? Vão falar que é
igreja de preto, que não é
consagrada mais porque o padre
desobedeceu os maior e foi
excomungado.
ENTRAM no mato.
SEQ. 65 INT. GRUTA/SALÃO PRINCIPAL - DIA 65
Íris e Isidoro ENTRAM num amplo salão. Ao fundo, há um
córrego muito cristalino. Rahima e Jonas limpam o local.
Duas outras entradas estão mais à frente.
ÍRIS
Isto é meio inseguro, Rahima. As
pedras parecem estar soltas.
RAHIMA
E tem outro jeito da gente
proteger as mulheres, as crianças
e os velhos?
Íris nota algumas INSCRIÇÕES RUPESTRES nas paredes.
ÍRIS
(admirada)
Inscrições paleolíticas! Padre
Jonas, você conheceu um tal de
Oswaldo, um antropólogo que veio
pesquisar isso?
PADRE JONAS
(movendo pedras)
Se veio, eu não vi. Eu já escrevi
para o governo falando disso, mas
não deram importância. Venha me
ajudar aqui.
RAHIMA
Ocê deve de tá louco, né, padre
Jonas? Como é que ela vai ajudar
com este braço? Ela tem que ir
embora. Não podem ver ela aqui.
ÍRIS
Nem pensar, ainda tenho o braço
direito. Não vou deixar vocês
nesta hora.
(CONTINUED)
CONTINUED: 74.
RAHIMA
(rindo)
Ocê é engraçada, moça.
PADRE JONAS
Olha, então pega um lampião e vai
com o Isidoro ver como é que está
o outro salão, só este aqui não
vai dar pra abrigar tanta gente.
Rahima levanta o lampião. Caminha para...
DUAS ENTRADAS ESTREITAS, AO FUNDO.
ÍRIS
Deveriam ter trazido mais gente
pra ajudar.
PADRE JONAS
Moça, as coisas de guerra têm que
ficar em segredo. Mesmo para os
outros do quilombo.
RAHIMA
Só na hora certa é que vamos
falar pra eles.
Íris dá de ombros, pega o lampião e dirige-e para as
outras entradas. Isidoro a segue.
SEQ. 66 INT. GRUTA/SALÃO MENOR - DIA 66
Íris e Isidoro passam por um túnel estreito e ENTRAM num
salão menor. Ela vistoria as paredes, coloca a mão sobre
as pedras onde há muitas INSCRIÇÕES ANTIGAS.
ILUMINA O CHÃO: Pedaços de madeira, ossos, cerâmica.
Avança e ilumina outros desvãos.
ÍRIS
Está mal isto aqui, Isidoro. Tem
muita coisa espalhada, coisas
antigas que não podemos jogar
fora. Vou precisar de algumas
caixas.
ISIDORO
Vai querer guardar estes caco?
Pra que? Vai demorar e não não
vai dar tempo pra colocar aquele
povo todo aqui..
Íris analisa as inscrições numa outra parede.
(CONTINUED)
CONTINUED: 75.
ÍRIS
Será que o padre Jonas já viu
estas inscrições?
ISIDORO
Uai, pra quê? É da gente antiga
que viveu aqui, é que nem aqueles
desenhos do outro lado. Por que
isso ia interessar ele?
ÍRIS
Não, Isidoro, estes não foram
feitos pelo mesmo povo. São muito
mais antigos.
Íris observa um desenho onde:
FIGURAS PARECEM DANÇAR EM TORNO DE UMA CONSTRUÇÃO: um
retângulo com três portas em arco na base. Acima das
portas, três círculos formam um triângulo. Uma grande
abóbada coroa o retângulo e, acima dela, pairando no alto,
algo como um PÁSSARO COM ASAS ENORMES.
ISIDORO
A moça vai ficar vendo os
desenho? Eu vou é começar a
limpar isto aqui.
Isidoro inicia a limpeza. Íris, com o indicador, delineia
um círculo em volta do PÁSSARO SEMI-HUMANO. Volta-se para
Isidoro.
ÍRIS
Com cuidado, Isidoro. Não deixe
quebrar nada. Junte tudo num
canto que já volto. Vou falar com
Jonas.
Íris retorna ao primeiro salão.
SEQ. 67 GRUTA/SALÃO PRINCIPAL - DIA 67
Íris PARA ao ver Jonas e Rahima muito próximos.
PADRE JONAS
Rahima,por favor. Não posso
faltar com a lealdade ao teu
povo. Não é hora de pensar nisto.
Rahima ajoelha-se. Jonas pousa a mão em seus cabelos.
PADRE JONAS
Já te disse que não pode haver
nada entre nós. Tenho que manter
minha palavra perante Deus.
Levanta o queixo de Rahima e olha nos seus olhos.
(CONTINUED)
CONTINUED: 76.
RAHIMA
Mas o padre foi excomungado, não
tem juramento nenhum pra manter.
PADRE JONAS
Os homens me expulsaram da
igreja, mas não podem expulsar o
Deus que mora no meu coração.
Você também fez votos, deveria
entender.
RAHIMA
Fiz sim, só que o meu coração não
quer saber disso.
PADRE JONAS
Você deveria se livrar dos seus
votos e seguir tua vida, ter
filhos...
Lágrimas correm dos olhos de Rahima.
RAHIMA
Isso não, não posso mais.
PADRE JONAS
Desculpe, esqueci. Você é uma
mulher bonita. Muitos homens
dariam tudo pra ficar contigo.
Rahima abaixa a cabeça. Levanta-se e continua a trabalhar.
RAHIMA
Vamos acabar logo. O tempo tá
ficando curto.
Íris recua alguns passos e senta-se. Olha para os REFLEXOS
DA LUZ brincando nas pedras.
MÚSICA: CASTA DIVA, muito baixo.
SEQ. 68 EXT. MONTE ADJACENTE AO QUILOMBO - DIA 68
Íris e Baba Kumi estão sentados em um tronco de árvore.
Ela está sem a tipóia. Ele tem alguns frutos na mão.
BABA KUMI
É, a gente guardou muita riqueza
dos antepassado. Tá tudo dividido
em duas parte. Cada uma em um
lugar...olha, só tô falando isso
pra moça porque sei que é gente
boa. Que posso botar fé.
Baba Kumi despeja alguns frutos nas mãos de Íris.
(CONTINUED)
CONTINUED: 77.
ÍRIS
Pode deixar. Vocês têm armas pra
se defender?
Baba Kumi pega um pedaço de madeira e olha em volta.
BABA KUMI
Ah, temo sim. Muita arma. De cada
vez que eles ataca, a gente põe
eles pra correr, deixam tudo prá
trás. Elas tamém ficam guardada
em lugar secreto.
ÍRIS
Não pode ter espião por aí?
BABA KUMI
Tem olho escondido em cada
árvore.(PAUSA) Os homem que fazem
a guarda são sempre trocados.
Assim é melhor ter tenência pros
caso deles serem torturado pra
denunciar. Só eu, Rahima e o
Jonas é que sabemos das coisa e
às vezes tamém fazemos a mudança
de lugar do tesouro e das armas.
Os dois dirigem-se para o quilombo.
BABA KUMI
Ainda acho que cê devia ir pro
seu povo.
ÍRIS
Pare com isso, Baba. Não é o meu
povo, nem é a minha cidade. Só
fiquei oito dias por lá.
BABA KUMI
De qualquer jeito devia se ir.
Olha só, até o teu braço já tá
melhor.
Íris passa a mão pelo braço. Fica pensativa.
ÍRIS
Curou muito depressa, isto
deveria levar pelo menos três
meses...
BABA KUMI
...Artes da minha filha...olha,
os branco tão fulo, só quer uma
desculpa pra atacar. Ocê é uma
delas, então é melhor se ir.
(CONTINUED)
CONTINUED: 78.
ÍRIS
Eu fico, Baba. Olha, eu conheço
um médico de lá, o Romero, homem
muito bom que pode ajudar.
BABA KUMI
Qualquer mensageiro que a gente
mandar pode ser torturado e falar
coisas. Se eles ficar sabendo que
ocê tá ajudando, vão é acabar com
tua vida.
ÍRIS
Não me importo com o que pensam.
BABA KUMI
Tá certo. Então fica, mas promete
que vai seguir as nossas lei.
Íris aquiesce. Os dois descem o monte.
SEQ. 69 INT. IGREJA - NOITE 69
O CRISTO na cruz e O ALTAR em entalhes primitivos. Jonas e
Íris estão sentados no banco da frente.
PADRE JONAS
Vá embora daqui para o seu bem,
leve Delfina com você. Quando
eles chegarem vão atirar pra
qualquer lado.
ÍRIS
Você, sempre calado, manteve
distância de mim e agora me
chamou aqui pra isso? Por que não
salva sua vida?
PADRE JONAS
Não, eu vou lutar, só quero
salvar Delfina, tirá-la daqui.
ÍRIS
Então não conte comigo, também
fico. Delfina está apaixonada e
não vê que não poderia viver na
cidade. Me surpreende isto em
você, tanto egoísmo.
PADRE JONAS
Eu só queria sua ajuda, mas se
não pode...
ÍRIS
Conserve a menina escondida aqui,
Jonas, ou então deixe ela ir com
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 79.
ÍRIS (cont’d)
os outros para a caverna. Tudo
vai passar. Eles vão conseguir
afastar os brancos.
Jonas fica pensativo.
PADRE JONAS
É. Vou fazer isto. Acho que você
tem razão.
Íris pega nas mãos de Jonas.
ÍRIS
É melhor. Seja sensato.
SEQ. 70 EXT. - PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 70
EMBRULHOS E SACOS estão empilhados junto ao cruzeiro.
Mulheres, velhos e crianças continuam a trazer panelas,
panos, etc. Íris ajuda a amontoar as coisas.
SEQ. 71 EXT. MATA - NOITE 71
Rahima, escondida nos arbustos, abre a ramagem e avista...
O PADRE JONAS, DELFINA E ZÉ DIOGO - branco, 17 anos.
ZÉ DIOGO
Acho melhor a gente ir no escuro
mesmo. E se eles descobrirem a
gente aqui?
JONAS
Não, não vai encontrar o caminho.
Espere até amanhecer. Estão todos
ocupados, ninguém vai aparecer.
Padre Jonas aperta as mãos de Delfina, beija seus lábios e
abraça-a. Em seguida, afasta-se e acena para os dois.
Rahima corre para dentro da mata.
SEQ. 72 INT. PAVILHÃO DO QUILOMBO - DIA 72
Rahima dá uma beberagem aos guerreiros e envolve-os com a
fumaça de resinas que queimam num POTE de barro. Baba Kumi
faz um sinal na testa de cada um. Íris se aproxima.
BABA KUMI
Cadê a Delfina, moça? Sumiu. Nem
Rahima sabe dela.
(CONTINUED)
CONTINUED: 80.
ÍRIS
Como posso saber, Baba? Estava
até agora lá, levando coisas para
a gruta, eu e o Isidoro. Espere,
acho que... Vou atrás disso.
Íris corre para a igreja.
SEQ. 73 INT. IGREJA - DIA 73
Padre Jonas está debruçado no altar com a cabeça entre os
braços. Íris, ao lado.
ÍRIS
Mas você está doido. porque...
PADRE JONAS
Eu precisava protegê-la. Ela vai
ficar bem.
ÍRIS
Que o teu Deus te perdoe, Jonas.
Para o teu bem, tomara que ele
não exista.
Íris corre. Padre Jonas fica a vê-la se afastar.
SEQ. 74 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - DIA 74
Íris corre para o pavilhão, de onde muitos outros se
aproximam, atrás de JUMBA E FLORÊNCIO. Os dois estão muito
feridos, os companheiros os ajudam.
SEQ. 75 INT. PAVILHÃO DO QUILOMBO - DIA 75
Rahima ainda segue na cerimônia com os homens, enquanto
JUMBA e FLORÊNCIO, acompanhados de Ìris e outros, se
aproximam de Baba Kumi.
BABA KUMI
Jumba, Florêncio. O que que
aconteceu? Por que não tão lá na
gruta?
JUMBA
Desgraça, Baba Kumi, os branco
encontraram o nosso tesouro.
Baba Kumi e Rahima aproximam-se dos dois.
FLORÊNCIO
A gente lutou, mas eram muitos.
Os maldito mataram os outros dois
que tavam de guarda.
(CONTINUED)
CONTINUED: 81.
JUMBA
Não temo mais o tesouro, Baba.
Agora temos que rezar pra eles
não achar o outro...e talvez
salvar nossas vida.
Rahima e Íris aproximam-se de Baba, que está soturno.
PONTO DE VISTA DE BABA KUMI:
O QUILOMBO EM 360 graus. As casas, a igreja, seu povo.
RAHIMA(OFF)
Não é o fim do mundo, pai. Se
eles queriam as riquezas, vai ver
que agora deixam a gente em paz
por um tempo. A gente tem a outra
parte ainda. Só nós dois e o
padre é que sabemos onde tá.
VOLTA À CENA
Baba Kumi apóia-se nos braços de Rahima.
BABA KUMI
Ah, filha, filha...chame meus
homem general. Tenho que ter uma
prosa com eles.
ÍRIS
Baba, acho que eu...
BABA KUMI
(interrompendo-a)
Por favor, menina. O momento
agora é meu e dos meus homem.
Deixa que eu resolvo desta vez.
RAHIMA
Mas...pai...Tá bem, vou perguntar
por aí. Vem comigo, moça.
As duas se afastam. Baba Kumi, alquebrado, caminha a êsmo.
Todo o quilombo se movimenta. Mais gente chega esbaforida.
SEQ. 76 INT. CASA DE BABA KUMI - DIA 76
O CONSELHO DE ANCIÃOS e guerreiros estão sentados no chão.
Rahima e Baba Kumi, em pé, no centro. Íris mantém-se
afastada.
Baba Kumi está sombrio, balança a cabeça constantemente.
RAHIMA
Os empregados da fazenda disseram
que os dois pararam lá pra beber
água. Eram eles mesmo.
(CONTINUED)
CONTINUED: 82.
BABA KUMI
Isto dói, dói muito...como é
que...
RAHIMA
Mas é assim, pai. Ele entregou a
Delfina pr’aquele rapaz branco.
Foram pra cidade. Traição, pai.
BABA KUMI
(para Írís)
Menina, cê sabia alguma coisa
disto? Destes dois? Acho que tá
escondendo alguma coisa.
ÍRIS
(aproximando-se)
Baba...eu...bem, não posso negar.
Eles se amam, sim. O padre só
quis proteger a menina e...
BABA KUMI
(fulo)
Proteger? Não sabe do que tá
falando.
ÍRIS
Se eu me calei foi porque o
assunto era deles. Nunca imaginei
isso.
BABA KUMI
(para a sua guarda)
Mandem ele pra minha casa.
QUATRO GUERREIROS saem.
BABA KUMI
Quando quiseram mandar ele aqui,
desconfiei, pois nunca gostei
desta tal de igreja. E quando vi
o homem, desconfiei mais ainda.
Homem bonito que nem mulher não
pode dar sorte.
Baba Kumi olha com pesar para o seu povo, depois olha
para...
UM BANDO DE PÁSSAROS NO CÉU.
SEQ. 77 INT. CASA DE BABA KUMI - DIA 77
Padre Jonas,sentado em um banco, é escoltado por quatro
guerreiros. Baba Kumi está em pé diante dele.
(CONTINUED)
CONTINUED: 83.
BABA KUMI
Padre, padre, o que que
aconteceu? A gente
tinha confiança na sua pessoa.
PADRE JONAS
Baba Kumi, diante de todos peço
perdão. Sei que errei, mas tudo
que fiz foi por amor. Nunca que
ia trair vocês e estou pronto pra
defender o quilombo.
BABA KUMI
Da parte da Delfina eu consigo
entender, ainda é nova. Mas ocê
não vê que a coitada vai sofrer
com os branco e aqui não vai
poder mais voltar?
PADRE JONAS
Eu quero cuidar dela, Baba.
Escute mais uma vez. Nem ela nem
eu revelamos o lugar do tesouro.
Rahima sobe num banco.
RAHIMA
Ele não pode continuar vivo, pai.
Tá aqui no quilombo, então tem
que obedecer nossas leis. E nesse
caso é pena de morte.
Os outros a apóiam. GRITOS.
BABA KUMI
Minha filha, acalme esta raiva.
Não podemos condenar ele assim.
Olha, pegue dois guardas e prende
o padre no quarto dele. Depois
vamos resolver.
Rahima chama DOIS HOMENS. Eles aproximam-se do Padre Jonas
e o levam. Ela os acompanha. SAEM.
BABA KUMI
A gente tem agora é que proteger
nossas mulher, as criança, os
doentes.
Apontando para os velhos do conselho.
BABA KUMI
E cês tamém. Já cumpriram sua
missão. Vão lá pra gruta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 84.
ÍRIS
Baba, com quantos guerreiros o
quilombo pode contar?
BABA KUMI
(calculando)
Hum...Novecentos e quarenta e
cinco par de orelha.
ÍRIS
Gostaria que pedisse para os seus
homens se juntarem comigo lá na
praça.
BABA KUMI
Vai lutar com a gente e ficar no
lugar de Rahima?
ÍRIS
Não temos tempo para discutir.
Precisamos de agir depressa. O
pessoal que vai pra gruta tem que
aparecer lá na praça também.
Baba Kumi ri consigo, meio triste, e assente. Íris fala
com alguns rapazes. Eles SAEM.
SEQ. 78 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - FINAL DA TARDE 78
AS MULHERES trazem AS CRIANÇAS. Os velhos chegam um a um.
Íris e Baba Kumi aguardam perto do cruzeiro.
BABA KUMI
Cê viu a cara dela? A gente
percebe nos zóio. Ali entrou
quichaça. Sangue quente...pra que
pedir pena de morte?
ÍRIS
Ela ainda não tem tua sabedoria.
Íris envolve as mãos de Baba Kumi.
PANORÂMICA DA PRAÇA:
Muitos outros, segurando archotes, se aproximam.
SEQ. 79 INT. QUARTO DE JONAS - NOITE 79
Padre Jonas está acorrentado à cabeceira da CAMA. Rahima,
agachada diante dele, segura suas mãos.
PADRE JONAS
Você não compreende, Rahima? Eu
amo Delfina.
(CONTINUED)
CONTINUED: 85.
RAHIMA
Mentiu pra mim com aquela
história de votos.
PADRE JONAS
E tinha outro jeito? Liberte-me,
deixa eu tentar arrumar as
coisas. Irei pra cidade tentar
convencer os fazendeiros, daí
trarei Delfina de volta.
RAHIMA
Agora não adianta mais. A gente
nunca mais que vai aceitar ela
como igual. Eles não querem saber
de ti nem da tua igreja.
PADRE JONAS
Eu tenho a obrigação de proteger
Delfina. Sei que o padre
Lamartine, apesar de tudo, não
vai me recusar isso.
RAHIMA
Nem tá sabendo que mudou de padre
lá. Parece que agora é um tal de
Alexios.
PADRE JONAS
Nenhum padre recusaria o meu
pedido.
Rahima levanta-se, enfurecida.
RAHIMA
Já tentei te convencer de todo
jeito...me fale, e quando me
ensinava a ler? Não ficava perto
de mim, não pegava na minha mão?
PADRE JONAS
Rahima, desculpe. Não quis te
provocar. Eu só...
RAHIMA
Me ensinou música. De noite
trancava a porta da igreja para
que ninguém chegasse.
PADRE JONAS
Acalme-se, Rahima, você começou a
ver coisas porque desejava que
fossem assim...
RAHIMA
Mas cantou aquelas músicas de
amor da sua gente. Fez de tudo
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 86.
RAHIMA (cont’d)pra que eu...Oh, como Delfina
pôde fazer isto comigo? O tempo
todo do meu lado, sem falar nada.
PADRE JONAS
Rahima, eu amo Delfina. Não
procure coisas pra...
Rahima vira-se e o encara.
RAHIMA
Cê tá mesmo decidido se ir com
ela?
Padre Jonas abaixa a cabeça.
SEQ. 80 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 80
Íris e Baba Kumi instruem os guardiões. As MULHERES
abraçam seus maridos. CRIANÇAS choram junto às mães. Os
VELHOS se despedem dos que vão ficar.
Íris parte com todo o grupo. Formam uma fileira de
archotes. Baba Kumi acena para eles. Os GUERREIROS agitam
os braços, archotes e tecidos, despedindo-se.
SEQ. 81 INT. QUARTO DE JONAS - NOITE 81
Rahima tem o rosto iluminado pelo reflexo do fogo. Mantem
suspensa a renda que cobre a entrada e olha para...
A FILA DE ARCHOTES que se dirige às montanhas.
OFF : GEMIDOS DE JONAS.
RAHIMA
Olha só aquela fileira de fogo.
Eles já vão partir...são muitos.
Bem, pelo menos pode ser que eles
tenham alguma esperança...o que
será que vão fazer sem a gente?
PADRE JONAS (OFF)
Rahima!...
RAHIMA
Que rumo pode tomar um povo que
não vai ter mais passado? Velhos,
mulheres e crianças...
Rahima abaixa o tecido, volta-se e olha para...
UMA MANCHA DE SANGUE NO CHÃO.
(CONTINUED)
CONTINUED: 87.
RAHIMA(OFF)
Não vão ter mais passado...
PADRE JONAS, com a mão direita sobre o VENTRE
ENSANGUENTADO, apara a FACA que foi enterrada bem fundo.
PADRE JONAS
Rahima...
Rahima cobre o rosto com as mãos.
RAHIMA
Não queria, eu não queria...o teu
deus não precisa me castigar,
Nanã vai fazer isto...eu usei o
metal...
PADRE JONAS
(arfando)
Rahima...leve o teu povo pra bem
longe. Todos.
RAHIMA
Já tão indo embora pras cavernas.
PADRE JONAS
Não, tem que ser pra bem longe...
todos... comecem a vida em outro
lugar...fujam agora. Não lutem...
SEQ. 82 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 82
O QUILOMBO ILUMINADO PELOS ARCHOTES.
Baba Kumi anda em volta do cruzeiro. Os homens apontam
LANÇAS DE MADEIRA.
Florêncio e TRÊS HOMENS mostram a Baba as lanças, ARCOS E
FLEXAS improvisadas. Baba Kumi pega uma lança e golpeia o
chão. Levanta-a e mostra A PONTA DA LANÇA ESMAGADA.
Baba Kumi olha para os homens. Meneia a cabeça e se
retira, muito triste.
SEQ. 83 INT. GRUTA/SALÃO PRINCIPAL - NOITE 83
CHORO DE BEBÊ. As mulheres estendem esteiras no chão. As
crianças brincam. Alguns meninos removem pedras. Velhos
acendem fogueiras, enrolam cigarros e fumam.
Íris improvisa UM BERÇO. Coloca umas pedras em volta e
forra com um cobertor. Toma o BEBÊ dos braços da MÃE e o
acomoda no centro. A criança para de chorar.
(CONTINUED)
CONTINUED: 88.
ÍRIS
Pronto, tá vendo? Não ficou bom?
MÃE
(rindo)
É, ficou melhor que o que ele
tinha lá. Olha, e gostou, o
danado.
Íris caminha entre várias pessoas estendidas no chão.
Alguns homens cuidam de uma VELHA que geme e se agita.
Jumba tenta acalmá-la.
JUMBA
Ela tá muito agitada. Tá cum medo
dos branco.
Íris ajeita uma trouxa de tecidos sob sua cabeça e deita-a
com cuidado.
Íris CANTA: O VOCALISE n.14 DE RACHMANINOFF.
Os quilombolas silenciam. As crianças dormem. Os velhos
sorriem. As mulheres param sua arrumação. Todos ficam
estáticos para ouvir o canto que ecoa pela gruta.
SEQ. 84 INT. QUARTO DE JONAS - NOITE 84
Padre Jonas, preso na cama, tem a mão sobre o ventre
ensanguentado. Rahima, de costas, ainda olha para fora.
RAHIMA
Não vão atacar. Eles sabem que a
gente tem muitas armas...é
conversa pra assustar.
PADRE JONAS (OFF)
Sim, vão sim. Agora eles têm
todas as armas do
quilombo...então...
Rahima volta-se e dá alguns passos.
RAHIMA
As nossas armas tão escondidas.
Eles não podem...
PADRE JONAS
...ah, Rahima, tão ocupada com
teu ciúme...não cuidou do que
tinha que saber...
RAHIMA
Fiz as coisas como devia...
(CONTINUED)
CONTINUED: 89.
PADRE JONAS
Fez não, Rahima...oh, que Deus
tenha pena de você...tão
preocupada com seu sofrimento e
não sabe...Rahima, desta vez as
armas foram escondidas junto com
o tesouro...mudaram de lugar e
você não sabia....e agora...o
que...?
Rahima arregala os olhos. Aproxima-se de Jonas, coloca as
mãos sobre o ferimento e mancha-as de SANGUE. Levanta-se.
Ela apóia as mãos nas paredes, manchando-as.
RAHIMA(OFF)
Pai, pai...meu pai...não...pai...
PADRE JONAS
(estertorando)
Rahima, o que...?
Um guarda entra e corre até Jonas.
GUARDA
Senhor, o que aconteceu?...
Rahima, encostada na parede, olha para...
...O TETO DE SAPÉ QUE GIRA.
RAHIMA(OFF)
Pai. Meu pai...Perdoa, pai. Eu
não... eu...
Padre Jonas tenta se livrar das cordas. O guarda o ajuda.
PADRE JONAS
Rahima...o que você fez, Rahima?
Rahima segura a cabeça de Jonas entre as mãos.
FLASHBACK DE RAHIMA
Amanhecer. Rahima espia entre os arbustos. Zé Diogo leva
Delfina. Ela os segue.
Delfina senta-se para descansar. Zé Diogo SAI com um
pote e Rahima o aborda. Ele se assusta.
Eles conversam. Ela entrega-lhe uma CARTA e lê-se no
sobrescrito: "PARA OTÁVIO BASTOS". Em seguida, Rahima
mostra-lhe um SACO CHEIO DE JÓIAS.
VOLTA À CENA
Padre Jonas desfalece nos braços do guarda. Rahima SAI.
90.
SEQ. 85 EXT. CERCANIAS DO QUILOMBO - NOITE 85
Rahima corre. Suas roupas estão rasgadas. Choca-se contra
as árvores e cai. Chora. Olha ao lado e vê...
OS PÉS DE DOIS GUARDAS DO QUILOMBO.
Levanta os olhos para os DOIS NEGROS que a observam.
SEQ. 86 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 86
Os quilombolas arrumam um círculo de madeiras em frente do
CRUZEIRO. No centro, algumas tábuas formam uma MESA.
SEQ. 87 INT. CASA DE BABA KUMI - NOITE 87
Íris ampara Baba Kumi. Ele está alquebrado.
ÍRIS
Agora vou logo pra cidade. É a
última chance, ainda não devem
estar sabendo de nada.
BABA KUMI
Ah, menina. Cê é que não sabe de
nada. Já te falei que eles têm
espia por aqui. Já deve, sim, de
tá sabendo. Mas é bom que vá.
Tentar não custa. Diz que não
tivemo culpa.
ÍRIS
E Rahima?
BABA KUMI
Temos nossa lei, não foi ela que
disse assim? É igual pra todos...
ÍRIS
O que vai acontecer com ela?
BABA KUMI
(imperativo)
Sou o chefe aqui, mas a lei foi
feita pelos antigos e tá acima de
mim.
Baba Kumi vai até um baú e tira UM EMBRULHO. Caminha até a
parede e pega um MAÇO DE ERVAS-DE-PASSARINHO. Caminha para
a praça. Íris segue-o.
ÍRIS
Baba, Baba.
91.
SEQ. 88 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 88
Baba Kumi caminha devagar na direção do círculo de lenha.
A alguma distância o povo reunido se movimenta.
SEQ. 89 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 89
Quilombolas com tochas perto do CÍRCULO DE MADEIRAS.
Rahima, com a cabeça baixa, move os lábios. Está seminua,
o corpo PINTADO DE BRANCO. Baba Kumi, taciturno, mantém
distância.
Íris, ofegante, PARA diante de Rahima, segura seus braços
e a examina de baixo a cima. Corre para Baba Kumi.
ÍRIS
Não, Baba Kumi, que cerimônia é
esta?
BABA KUMI
(impassível)
Nossas lei sendo cumprida.
As mulheres cobrem a mesa com um pó vermelho.
ÍRIS
Ah, não...não...não vão fazer
isso. Pense no teu povo que já se
foi, eles não iam gostar.
BABA KUMI
É por eles mesmo que precisamo
cumprir o que deve ser feito.
ÍRIS
O mundo mudou, Baba. Não tem mais
sentido manter estes costumes tão
antigos. Ela é tua filha. Foi
coisa de desespero, compreenda
isto. Dê o seu perdão.
BABA KUMI
Nossos eguns tão aqui em volta
agora. Os antepassado... Olha lá,
a Rahima tá falando com eles.
Rahima move os lábios como se falasse com seres
invisíveis.
BABA KUMI
Pra estes espíritos o mundo não
muda, não tem passado, nem
futuro. Só tão esperando o que é
certo acontecer. Meu povo tamém.
(CONTINUED)
CONTINUED: 92.
OS QUILOMBOLAS, EM CÍRCULO, AGUARDAM EM SILÊNCIO. Baba
Kumi faz um sinal com as mãos espalmadas a um GRUPO DE
HOMENS. Eles abaixam a cabeça e se retiram.
UM BATUQUE MUITO RITMADO E LENTO ACOMPANHA O ’CANTO DE
DESPEDIDA’.
MULHERES
Lava vanda/lava vacala/utima
umosi/lava vanda/lava
vacala/utima umosi/utima umosi
BABA KUMI
Agora pode ir embora. Eles lá não
vão te incomodar porque a gente
não vai mais existir. Sei que cê
só quis ajudar. Não adianta
vunzar nisso, é que nem ninho de
marimbondo, machuca quem deve e
quem não deve.
Íris, lentamente, caminha na direção do círculo. Rahima
dá-lhe as costas e volta-se para a pilha de madeiras.
ÍRIS
Não se entregue, Rahima.
Você aprendeu mais do que eles.
Grite, proteste. Ainda pode
ajudar sua gente a lutar.
BABA KUMI
(de longe)
Volta, menina. Não vê que ela já
aceitou o seu destino?
Rahima desvia e Íris retorna para Baba Kumi e olha...
UM GRUPO DE HOMENS que traz nos ombros SEIS TROUXAS,
amarradas em varas.
OUTRO GRUPO traz uma PADIOLA, onde jaz o CORPO DE JONAS
enrolado em tecidos. Pousam-na a meio caminho entre Baba
Kumi e a filha. Rahima aproxima-se.
BABA KUMI
(para Íris)
O mais que tem que fazer agora é
ir avisar que o crime vai ser
punido. As mulheres prepararam o
corpo dele com undu, depois da
cerimônia vão levar o padre pra
cidade.
ÍRIS
Está bem, irei junto com ele e
tentarei explicar...
(CONTINUED)
CONTINUED: 93.
BABA KUMI
Não, o padre vai depois.
Primeiro, o Abel e o Donga vão te
levar. Vai junto tamém o tesouro
que sobrou. Depois que a moça
explicar tudo e entregar o ouro,
eles pode não arreliar mais a
gente.
ÍRIS
(chorando)
Não, Baba...
Baba Kumi faz um sinal. ABEL e DONGA aproximam-se. Abel é
um negro de quase DOIS METROS E DE ASPECTO ASSUSTADOR.
Donga tem o rosto marcado por MUITAS CICATRIZES.
BABA KUMI
Levem a moça embora junto com a
outra parte do tesouro. Quando
voltarem, cêis tem que ir até a
gruta proteger o povo que tá lá.
Tenham cuidado com ela.
ABEL
Pode deixar, Baba. A gente leva
ela e depois corre pra gruta.
BABA KUMI
(para íris)
Rahima teve um último desejo e
pediu pra te entregar umas coisa
dela como lembrança. Tão ali,
amarrada nas vara. Juntei tamém
umas lembrança minha.
Íris olha para AS TRÊS VARAS COM AS TROUXAS.
BABA KUMI
Que pelo menos as mulher, os véio
e as criança não veja o que pode
se assuceder aqui. Vão caminhar
sozinhos neste mundo de Deus.
Quem sabe um dia cê vai poder
ajudar eles.
Abel e Donga se acercam de Íris. Ela segura os braços de
Baba Kumi e fala bem próximo de seu rosto.
ÍRIS
Por favor, Baba. Deixa eu ficar
um pouco mais.
Baba Kumi desliza suas mãos pelos braços de Íris.
(CONTINUED)
CONTINUED: 94.
BABA KUMI
Até o fim? Olha que não é coisa
bonita de se ver.
ÍRIS
Até o fim.
BABA KUMI
(numa raiva fingida)
Menina teimosa. Então, seje. Só
que tem que respeitar nossa lei.
Íris aquiesce. Baba Kumi dirige-se para Rahima, mantendo
uma respeitosa distância.
BABA KUMI
Filha, sabe do teu dever agora,
né?
Rahima assente. Baba Kumi dá-lhe as costas e caminha.
RAHIMA
(acenando para o pai)
Xal’é tata. (obs:Adeus, pai)
As mulheres cantam baixinho.
MULHERES
Yìn Nàná yò/ O lù obó/ Nana Yò/ O
ko lodò sìn sa lè wá/ A rìn kú ma
oun rè...
Uma JOVEM entrega a Rahima uma pequena CABAÇA. Ela leva-a
aos lábios. Íris corre e tenta tirá-la de suas mãos.
ÍRIS
Não, não, Rahima. Não beba.
Rahima afasta-a com um gesto e olha fixo em seus olhos.
BABA KUMI
(de longe)
Volta, cê prometeu respeitar...
Baba Kumi faz um sinal. Abel e Donga arrastam Íris.
ÍRIS
Não...não...
Lentamente, Rahima ingere o veneno e depois dirige-se à
mesa. PARA e olha para seu povo.
O veneno começa a fazer efeito. Ela cambaleia, ampara-se e
a custo se levanta. Aponta para as nuvens. Todos
acompanham a direção indicada...
NUVENS REFLETIDAS PELO LUAR.
(CONTINUED)
CONTINUED: 95.
RAHIMA
Olhem, olhem...as nuvens...
escuras...lá está escrito o nome
da cidade...Roma...Roma vai ter
fome. Roma vai morrer pela sua
própria inveja. Não, gente do
Tambacounda, deixem que a justiça
das nuvens se faça...não lutem...
ÍRIS volta a ouvir o tema "CASTA DIVA"; cai de joelhos,
ainda suspensa por Donga e Abel.
Rahima sobe na mesa e ajoelha-se. Olha para o povo.
RAHIMA
Não...não adianta lutar.
Esperem...Roma cairá...
Rahima é tomada por convulsões. Deita-se. Com os olhos
fixos no céu, levanta um braço e aponta para...
UMA GRANDE NUVEM DELINEADA PELA LUZ BRILHANTE DA LUA.
FUSÃO EM OFF: Panis Angelicus e o Canto de Despedida.
CORO DE MULHERES (OFF)
Lava vanda/lava vacala/utima
umosi/lava vanda/lava
vacala/utima umosi/utima umosi
SEQ. 90 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 90
Baba Kumi olha para a filha e não demonstra emoção.
Arranja alguns BÚZIOS em volta do corpo e cinge-lhe a
cabeça com uma COROA DE ERVAS-DE-PASSARINHO.
Vira-se para o povo, faz um sinal com as mãos e afasta-se.
Os homens, segurando tochas, dirigem-se à pilha de madeira
e ateiam FOGO. MÚSICA- O INTERLÚDIO D’ A VALQUÍRIA.
O REFLEXO DAS CHAMAS NO OLHO DE ÍRIS.
Baba Kumi em frente das chamas com os braços afastados do
corpo. Ao fundo, a fogueira.
WOTAN DE BRAÇOS ABERTOS PARA O CÍRCULO DE FOGO QUE ENVOLVE
BRUNNHILDE. MÚSICA DO "FOGO MÁGICO".
SEQ. 91 EXT. CERCANIAS DO QUILOMBO - NOITE 91
O quilombo, ao fundo, iluminado por um clarão vermelho.
Abel, Donga e Íris sustêm nos ombros as varas com as
trouxas. Param e ouvem o CANTO DE DESPEDIDA.
(CONTINUED)
CONTINUED: 96.
QUILOMBOLAS(OFF DISTANTE)
Lava vanda/lava vacala...
Íris caminha com dificuldade, depois coloca a carga no
chão e descansa.
SEQ. 92 EXT. - FONTE DA MATA - MADRUGADA 92
Íris e os companheiros caminham sob o luar. Diante da
FONTE ela PARA e deixa os embrulhos no chão.
AS OFERENDAS DE RAHIMA estão no mesmo lugar. A IMAGEM DE
NANÃ BURUKU COM O IBIRI está atrás das oferendas. Ela
avança para tocá-la, no que é interrompida por Abel.
ABEL
Tá louca? Não se pode tocar em
ebó. Vamo embora...a gente nem
devia tá vendo isso. Vamo sair
daqui, anda.
Os dois negros arrastam Íris com muita pressa. Ela olha
para trás. Eles mostram-lhe uma ribanceira perto dali.
DONGA
Aqui começa a terra dos branco.
UMA GRANDE SOMBRA OS ENCOBRE. SOM: RUFLAR DE ASAS muito
alto. Eles se abaixam.
ÍRIS
(levantando-se)
O que foi isso?
Eles puxam-na com violência.
DONGA
Vamos sair logo daqui.
ÍRIS
Mas...mas...
DONGA
Prá frente, dona, se ainda quer
viver neste mundo.
CORREM e enveredam pela mata fechada.
SEQ. 93 EXT. ZONA RURAL - MANHÃ 93
Íris está sem forças, solta a carga e cai no chão. Os
homens a auxiliam. Ela toma muita água.
(CONTINUED)
CONTINUED: 97.
ÍRIS
Aqui, podem me deixar aqui.
DONGA
Não vamo te deixar sozinha. Temos
que esperar alguém passar.
ÍRIS
Por favor, precisam voltar. As
mulheres e crianças precisam de
vocês lá na gruta. Pode demorar
pra alguém passar. Voltem.
Abel firma a vista em um ponto mais abaixo.
ABEL
Tem gente lá embaixo.
PONTO DE VISTA DE ÍRIS, DONGA E ABEL:
A PONTE RECÉM-CONSTRUÍDA. O MESMO LOCAL POR ONDE ÍRIS
PASSOU - OS TRABALHADORES dão os retoques finais. Uma
BRASÍLIA está estacionada perto do morro.
VOLTA À CENA
ÍRIS
Digam que são trabalhadores da
roça e que me deram auxílio.
DONGA
Pode deixar, dona.
SEQ. 94 EXT. DIANTE DA PONTE - MANHÃ 94
Um casal, NOÊMIA, DÉCIO, conversa com MANECO, o
superintendente das obras. Ele olha para o céu.
DÉCIO
Sei não, Maneco, é melhor você
apressar teu pessoal. Vem
temporal aí. Vamos, Noêmia!
MANECO
Ah, seu Décio. Será?...depois de
tanto tempo...e logo hoje...
NOÊMIA
A cidade toda esperava por este
momento. Não pode reclamar, né?
MANECO
Não, não reclamo, dona Noêmia.
(para os trabalhadores)
Ei, pessoal. Pode parar com isso
aí, não tão vendo que aí vem
água?
(CONTINUED)
CONTINUED: 98.
Noêmia olha para o alto do morro.
NOÊMIA
Mas o que é aquilo?
PONTO DE VISTA DE NOÊMIA:
Abel, Donga e Íris parecem formar três cruzes no alto do
morro; os braços estão abertos e apoiados nas varas. Um
céu carregado de nuvens negras. Ventania. Trovões.
VOLTA À CENA
NOÊMIA
Olha lá, Décio.
Décio franze as sobrancelhas, faz um muxôxo com os lábios.
Os outros juntam-se a eles e olham para o grupo.
SEQ. 95 EXT. DIANTE DA PONTE - MANHÃ 95
Abel, Donga e Íris saem do mato e aproximam-se da ponte.
MANECO
Nossa! Não é aquela mulher que
todo mundo procura?...a da
farmácia ...
Todos ficam parados à espera. O grupo se aproxima.
NOÊMIA
É, é ela mesmo...e estes negros
mal encarados?
Abel, Donga e Íris aproximam-se.
ABEL
B’as tarde, gente. Encontramo a
moça lá na plantação. Tava muito
necessitada e nossas mulher
cuidaram dela.
Íris deposita sua carga no chão. Noêmia corre para ela.
ÍRIS
Por favor, senhora, tem que me
levar pra cidade urgente. É
questão de vida ou morte.
NOÊMIA
Claro, querida. Claro...todo
mundo estava atrás de você. Ah,
finalmente apareceu trazida pelos
ventos...vamos entrar, então.
Noêmia segura a mão de Íris, ampara-a pelas costas e a
conduz ao carro. Íris volta-se para os companheiros.
(CONTINUED)
CONTINUED: 99.
ÍRIS
Até mais, amigos. Obrigado.
Precisam cuidar de suas mulheres
e filhos. Vão, depressa.
Abel e Donga depositam a carga no chão, acenam para ela e
correm para a mata.
ÍRIS
Temos que levar essas coisas.
Os trabalhadores livram os embrulhos das varas e levam-nos
até o carro. Décio abre o porta-malas e acomoda-os ali.
NOÊMIA
Depressa, Décio, já vai dando a
partida.
Eles ENTRAM. Maneco se debruça sobre a janela do carro.
MANECO
Olha só quanta honra, vão ser os
primeiros a passar pela ponte
nova. Isto é um bom sinal e ainda
tão socorrendo a moça aí que tava
sumida. Então é melhor correr
porque vem chuva da grossa aí.
Ah, isto sim é que é coisa boa.
A BRASÍLIA PASSA PELA PONTE. Maneco e os outros acenam.
SEQ. 96 EXT. DIANTE DA FARMÁCIA - DIA 96
A Brasília para em frente da farmácia. Cristóvão conversa
com Lurdes e Rita. Assustam-se ao ver Íris e correm.
LURDES
Dona Íris.
RITA
Ouviram nossas preces, Lurdes.
CRISTÓVÃO
Ah, dona Íris, que alívio...mas
onde é que...
ÍRIS
(resfolegando)
Depois a gente se fala. Depressa,
me digam onde é a casa de Otávio
Bastos, onde...?
Lurdes e Rita entreolham-se e viram-se para Cristóvão.
(CONTINUED)
CONTINUED: 100.
CRISTÓVÃO
O quê, dona Íris?
ÍRIS
Otávio Bastos...preciso falar com
ele...onde é que...
RITA
Mas ele...
LURDES
Íris, o que que você tá falando?
do que ...
(apontando ao longe)
O Otávio Bastos tá bem enterrado
lá no cemitério.
ÍRIS
(relaxando)
Ele morreu? Ah, Deus me perdoe,
mas isto é um alívio...
CRISTÓVÃO
Deve fazer mais de sessenta anos
que a terra engoliu este capeta.
Íris fica em suspenso, tenta se refazer da informação.
Lurdes, Rita e Cristóvão entreolham-se. Noêmia e Décio
trazem as trouxas.
RITA
Ele era o pai da Conceição. Já
faz muito tempo que...
ÍRIS
Pai? Onde mora a Conceição?
CRISTÓVÃO
Ela está com o Padre Jonas no
cemitério. Foram enterrar a negra
velha da casa paroquial.
Íris, indecisa, volta-se para os lados. Cristóvão toma seu
braço.
NOÊMIA
Cristóvão, é melhor você levar
ela pra casa. Precisa de
descanso, talvez de remédios.
CRISTÓVÃO
Vamos, dona Íris. Vamos dizer pra
polícia que a senhora já tá em
casa.
(CONTINUED)
CONTINUED: 101.
LURDES
A gente já tava sem
esperança...mas agora aparece com
isto...
RITA
A sua irmã esteve aqui, ela tá lá
no mato com a equipe de buscas.
Precisamos avisar eles. Entre,
Íris. Precisa descansar. Vou
fazer um chazinho...
ÍRIS
(saindo do estupor)
Onde é o cemitério?
CRISTÓVÃO
(indicando)
Lá, descendo aquele morro.
ÍRIS
Cristóvão, por favor, coloque
estes embrulhos num lugar seguro.
NOÊMIA
Entre no carro, Íris. Vamos te
levar até lá. Anda, que logo vai
chover.
Íris e o casal ENTRAM no carro. A Brasília parte. Os três
ficam olhando AS NUVENS NEGRAS. Estão apalermados.
SEQ. 97 EXT. CEMITÉRIO - DIA 97
UM BANDO DE AVES CRUZA O CÉU TEMPESTUOSO e mais abaixo...
Íris, Padre Alexios, Conceição e ZÉ CHICO estão ao lado de
um túmulo. Noêmia e Décio se mantêm distantes.
Íris, sentada, tem as mãos na cabeça. Padre Alexios está
com o paramento da cerimônia. Conceição segura um GATO. ZÉ
CHICO(55), negro, fecha a entrada do túmulo com tijolos e
argamassa.
CONCEIÇÃO
Ah,...não sei...Como você poderia
saber? Estas coisas aconteceram
em 1919, Íris. Na época, a cidade
inteira festejou quando o
quilombo Tambacounda foi
arrasado...
ÍRIS
Não, eles ainda estão lá, e...
Conceição abaixa-se e segura as mãos de Íris.
(CONTINUED)
CONTINUED: 102.
CONCEIÇÃO
(com ênfase)
Íris, pare, tente me ouvir. Não
sobrou ninguém, entendeu?
Ninguém. Foi um massacre terrível
e, sinto em dizer, foi o meu pai
quem comandou a ação.
ÍRIS
Inácio Bastos?
CONCEIÇÃO
Foi tudo anotado por ele num
maldito caderno que eu tenho lá
em casa, bem escondido. Mostro
mais tarde. Tem também uma carta
que ele recebeu, onde fala de um
tesouro escondido numa caverna.
Parece letra de mulher. Meu pai,
que Deus o perdoe...ele,
descendente de negros.
ÍRIS
Não, Conceição. Eu o vi há pouco
tempo atrás ameaçando os
negros...
CONCEIÇÃO
(apontando)
Íris, olhe, ele tá ali. O jazigo
da minha família tá ali, na
próxima quadra.
ZÉ CHICO
(levantando-se)
É...e fui eu que enterrei ele. É
aquele lá. Tá vendo?
PONTO DE VISTA DO GRUPO:
Mais adiante, um JAZIGO REPRESENTANDO A ESCULTURA DE JESUS
COM O CAJADO NAS MÃOS, DIANTE DE UMA PORTA. Dois anjos
ladeiam o jazigo.
VOLTA À CENA
Íris caminha até O jazigo, os outros a seguem.
ZÉ CHICO
Naquele tempo, meu pai era da
policia e foi obrigado a atacar
gente que nem ele. Irmão de cor.
Quando chegaram lá, de madrugada,
não foi difícil acabar com eles.
Não lutaram, ficaram ali parados
aceitando sua sorte...
Íris apóia-se nas grades e olha a escultura.
(CONTINUED)
CONTINUED: 103.
ZÉ CHICO (OFF)
...os negros tava fazendo uma
cerimônia do lado de uma fogueira
e o corpo do padre Jonas tava
enrolado em uns pano, bem perto
dali...
FUSÃO PARA:
SEQ. 98 EXT. PRAÇA DO QUILOMBO - NOITE 98
Escondidos em arbustos, os fazendeiros e seus capangas
olham todo o quilombo reunido em volta da fogueira e, AOS
GRITOS, avançam sobre eles.
Os quilombolas não resistem ao ataque.
O BRUXULEAR DO FOGO/ ARMAS LEVANTADAS/ BABA KUMI CAÍDO E O
SANGUE ESCORRENDO PELA TERRA/ UM NEGRO SENDO ARRASTADO
PELOS PÉS/OUTRO SENDO ATIRADO PARA A FOGUEIRA/ UM NEGRO É
ATINGIDO AO CORRER PARA A MATA/ATEIAM FOGO NA CASA DE BABA
KUMI.
O ALTAR DE IMAGENS QUEIMA-SE LENTAMENTE- os ídolos caem no
chão e se partem, entre eles, NANÃ BURUKU E SANT’ANA.
O CRUZEIRO EM CHAMAS DESPENCA SOBRE A FOGUEIRA.
Alguns homens levam o corpo do padre Jonas.
SEQ. 99 EXT. CEMITÉRIO - DIA 99
Zé Chico dá voltas pelo túmulo.
ZÉ CHICO
Só que uma coisa esquisita
aconteceu. Lá só tinha homem, não
tinha nem uma mulher, nem
criança, nem velho. Sumiram
todos. Ninguém nunca que achou
eles. Onde foram parar?
Íris cambaleia e apóia-se na grade.
ZÉ CHICO(OFF)
Meu pai disse que não teve que
manchar as mão com mais este
crime. Os negros daqui dizem que
os egun levaram eles pro céu
deles lá. Lugar de preto no além.
Íris cobre o rosto.
(CONTINUED)
CONTINUED: 104.
ZÉ CHICO (OFF)
Os católico diz que um anjo negro
desceu do céu, colocou eles numa
nuvem e abriu a porta do paraíso.
Zé Chico olha para o céu escuro.
ZÉ CHICO
Bem, só sei que as mulher, os
véio e as crianças sumiram ou
viraram anjo negro tamém. Quem
vai saber o que se assucedeu?
Íris abre o portão de ferro e aproxima-se do jazigo.
CONCEIÇÃO
Não, Zé Chico, nem todos sumiram.
Logo depois desta chacina, meu
pai encontrou dois negros no
mato. Já era dia e eles vinham
dos lados da cidade.
Íris agacha-se. Seus olhos abrem-se em espanto.
CONCEIÇÃO(OFF)
Um deles tinha quase dois metros
de altura e era de dar medo. O
outro tinha o rosto cheio de
cicatrizes.
Noêmia e Décio atravessam o portão e levantam Íris.
CONCEIÇÃO(OFF)
Meu pai carregava duas granadas e
esperou o melhor momento. Até que
viu os dois negros entrarem
numa gruta...
FLASHBACK:
Abel e Donga ENTRAM na gruta e cobrem a entrada com
folhagens.
Otávio Bastos observa, atrás de uma árvore. Acende o pavio
de duas granadas, corre e atira-as no interior da gruta.
SOM DE EXPLOSÃO.
VOLTA À CENA
Íris tateia o ANJO DE MÁRMORE.
CONCEIÇÃO (OFF)
Está escrito naquele caderno que
fez um barulho surdo dentro da
gruta e logo tudo desabou.
Íris apóia-se num vaso. Conceição aconchega o gato e olha
para...
(CONTINUED)
CONTINUED: 105.
O CÉU COM NUVENS NEGRAS.
CONCEIÇÃO (OFF)
Pedras enormes desceram da
montanha. Dois meses depois o meu
pai faleceu. Ah, só peço que
Deus, se existir, o tenha
perdoado.
Todos voltam ao primeiro túmulo.
PADRE ALEXIOS
Gente, depois tudo pode ser
esclarecido. Venha, Íris.
Noêmia ampara Íris. Zé Chico pega um TIJOLO e a PÁ.
ZÉ CHICO
Cês estão esquecendo de uma
coisa. Só uma pessoa sobrou deste
descalabro todo... É a coitada da
Delfina que acabamos de enterrar
aqui.
Íris ajoelha-se e, aturdida, passa as mãos sobre o túmulo.
Conceição afaga o gato.
CONCEIÇÃO(OFF)
Ela nunca foi de falar muito.
Sempre com seu gato e a bíblia.
Enfim, agora descansa.
Conceição pousa o GATO sobre o túmulo. Ele cheira e anda
em círculos. Íris afaga-o.
CONCEIÇÃO (OFF)
Pobre bichano, eram um só. Ele
vai sentir sua falta.
O gato circula e cheira uma PLACA DE BRONZE. Íris lê...
"PADRE JONAS ABRANCHES - 12-01-1885/24-11-1919"
CONCEIÇÃO (OFF)
Sempre calada...calada e triste.
Insistiu muito em ser enterrada
ao lado do último padre do
quilombo...era muito devota. Bom,
fizemos sua vontade.
Conceição estende a Íris um PAPEL muito amassado.
CONCEIÇÃO
Encontramos este papel nas suas
mãos. Uma letra muito ruim,
coitada.
(CONTINUED)
CONTINUED: 106.
Íris, segura o gato e abre o papel. Algumas gotas de chuva
caem sobre as letras escritas a lápis. Ela entrega-o a
Noêmia e acaricia o gato.
ÍRIS
Por favor...
NOÊMIA
(lendo)
"E então, não hei de ter
compaixão da grande cidade de
Nínive, onde há mais de cento e
vinte mil seres humanos, que não
sabem discernir entre a sua mão
direita e a sua mão esquerda, e
uma inumerável multidão de
animais?..."
O gato lambe as mãos de Íris.
PADRE ALEXIOS
Da Bíblia, O Livro de Jonas. Ela
sempre lia essa parte.
Íris abraça Conceição.
DÉCIO
Precisamos sair daqui, vai
chover.
Íris entrega o gato a Conceição, caminha e olha para...
ZÉ CHICO, QUE FECHA O TÚMULO.
Íris corre pelo cemitério. ALGARAVIA DOS PÁSSAROS.
A CHUVA CAI, PESADAMENTE.
PADRE ALEXIOS
Íris, espere.
NOÊMIA
Vamos te levar, volte.
CONCEIÇÃO
Vamos, ela não pode ficar só.
Correm pelo cemitério atrás de Íris.
SEQ. 100 EXT. CERCANIAS DA CIDADE - DIA 100
A água volta a correr sobre o leito seco do rio.
A chuva molha os torrões de terra ressequida. O gado magro
reúne-se diante das poças de água.
107.
Cães brincam com crianças debaixo do aguaceiro. CANTO dos
pássaros.
SEQ. 101 EXT. PRAÇA - NOITE 101
Uma chuva fina cai. As pessoas estão agitadas, conversam
em volta do MURO. OLHAM para a casa de Íris.
Conceição sai do meio do grupo. Segura a BONECA DE
PORCELANA e olha na mesma direção.
SEQ. 102 INT. CASA DE ÍRIS/QUARTO - NOITE 102
Íris, recostada em grandes travesseiros, tem uma bandeja
sobre o colo e toma chá. Romero aplica-lhe uma injeção,
auxiliado por Noêmia.
ROMERO
Menina, essa foi forte, hein?
Conseguiu abalar meus alicerces
de agnóstico.
Íris faz um esgar e pousa a xícara sobre a bandeja.
NOÊMIA
Tome, vai te fazer bem.
ROMERO
Pôxa! Então quer dizer que foi
levada pelos quilombolas
venusianos?
ÍRIS
Não brinque!
ROMERO
Mas como...? Como não percebeu
onde estava? Fez uma viagem ao
passado e...
ÍRIS
E como poderia, se tudo que me
falavam desta cidade estava
acontecendo de fato aqui, neste
tempo? Afinal retornei de lá com
objetos, não é? Não estou louca.
NOÊMIA
É verdade, padre, eu estava lá e
te garanto que aqueles negros e
as trouxas que traziam pareciam
mesmo vir de outro tempo.
(CONTINUED)
CONTINUED: 108.
ÍRIS
Vocês não podem entender, não foi
uma viagem ao passado. Não houve
transição espetacular...acabou de
acontecer...
ROMERO
Está falando de universos
paralelos? Ôpa, agora pesou...
Íris molha o dedo no chá e desenha A FITA DE MÖBIUS na
bandeja.
ÍRIS
Lembra-se disso?
ROMERO
A fita de Möbius, onde qualquer
ponto pertence ao dentro e ao
fora...
ÍRIS
Penso em algo assim...passado e
presente se fundindo.
ROMERO
Você quer dizer, algo como uma
dobra no espaço-tempo? Ui,
agora pesou mais ainda...
ÍRIS
Ah, pare de me amolar. Que sei
eu? Por que você não pergunta
para aquela boneca de porcelana
que devolvi pra Conceição?
ROMERO
Depois de tudo, não duvidaria se
aquela boneca falasse.
Íris tateia o pescoço. Noêmia pega o colar de búzios sobre
o criado-mudo.
NOÊMIA
É isto que procura?
Íris fecha-o entre as mãos e o leva aos lábios.
ÍRIS
Talvez Jonas pudesse ter me dado
uma luz, mas ele pouco falava
comigo e ainda passou um tempo
fora... Sei lá, vai ver que Nanã
dispôs as coisas assim...
(CONTINUED)
CONTINUED: 109.
ROMERO
Nanã? Ah, isto é um salto e tanto
pra quem há pouco tempo não se
importava com igreja, santos,
milagres...
NOÊMIA
Mal não faz, Romero.
ROMERO
E as terras deles, hein? Ficaram
com a Conceição. Aposto.
ÍRIS
Não atire pedras...
ROMERO
Tá, tá bem. Não se altere.
NOÊMIA
Quando o pai morreu, ela doou as
terras para alguns quilombolas.
Eu me lembro bem disso.
Íris estica a cabeça e olha pela janela
PONTO DE VISTA DE ÍRIS
Várias pessoas estão reunidas em frente do muro e olham
para sua casa. Estão molhados, indiferentes à chuva.
Chegam meninas vestidas como Núncia. Outros, como "anjos
negros". A tinta escorre de suas faces.
VOLTA À CENA
ÍRIS
O que eles estão fazendo?
Romero retira a seringa. Mede a pressão. Examina seus
olhos. Noêmia repõe a seringa sobre o criado-mudo.
ROMERO
O que você acha depois de tudo
isso? Você trouxe um tesouro para
reconstruir a cidade e comprar
remédios. Eles estão agradecidos.
NOÊMIA
Estão entoando ladainhas desde
manhã.
ROMERO
Ei, ainda ouve aquela música?
Íris recosta-se no travesseiro.
(CONTINUED)
CONTINUED: 110.
ÍRIS
Não, sumiu, não ouço mais...Faz
muito tempo que estão ali?
NOÊMIA
Dois dias.
ÍRIS
O quê, fiquei dois dias aqui?
ROMERO
Humm! Dois dias. Elisa, tua irmã,
esteve do teu lado o tempo todo.
ÍRIS
Elisa? E onde...
NOÊMIA
Foi para o Rio buscar sua outra
irmã. O Romero achou que era uma
boa idéia pra te acalmar.
ÍRIS
Rosa...Você adivinhou, Romero. É
dela mesmo que preciso agora
ROMERO
Então descanse. Tá bem?
ÍRIS
Por favor, você poderia ver como
ela está de saúde, assim que
chegar?
ROMERO
Está bem, mas não tem porque se
preocupar, Elisa disse que ela
está bem. Agora, vê se dorme.
Romero arruma a colcha sobre Íris e SAI.
SEQ. 103 EXT. PRAÇA - DIA 103
A chuva cessou. As pessoas reunidas em torno do muro estão
excitadas por um acontecimento novo...
UM CARRO está parado em frente da farmácia. UM HOMEM,
auxiliado por Cristóvão, empurra uma cadeira de rodas,
onde Rosa está sentada.
111.
SEQ. 104 EXT. PRAÇA/FRENTE DA FARMÁCIA - DIA 104
Padre Alexios e Conceição conversam com algumas pessoas,
depois despedem-se e dirigem-se para...
A CASA DE ÍRIS,onde esperam no passeio. Ouvem a voz de
Íris cantando MODINHA- DE JAYME OVALLE E MANUEL BANDEIRA.
IMAGENS EXTERNAS DO ENTORNO DA CASA- jardins, quintal,
pomar.
SEQ. 105 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - DIA 105
Romero, Padre Alexios e Conceição falam com Elisa. Íris
olha fixo para a irmã que se afasta, levada por Cristóvão.
FLASHBACK DE ÍRIS:
O PEQUENO SOBRADO da família de Íris está em chamas. As
CRIANÇAS observam do passeio, a MÃE fala com um bombeiro.
BOMBEIRO
É isto mesmo, senhora. Acho que
foi ele que começou o incêndio de
propósito. Os vizinhos viram
tudo.
MÃE
Ai, ele não viu que a Rosa não
foi com a gente. Ela está lá em
cima...corra, ajude minha menina.
Os bombeiros dirigem as mangueiras para o fogo.
O PAI quebra a porta em chamas, traz Rosa nos braços, tem
o olhar esgazeado e parece não sentir nada. Rosa, agora
com 12 anos, está desmaiada e muito machucada.
A MÃE toma Rosa nos braços. O pai senta-se no gramado e
olha para o infinito.
VOLTA À CENA
Íris nota que Conceição e Alexios a encaram. Vai até o bar
e enche dois copos com whisky e oferece a Romero. Brindam.
ÍRIS
À nossa partida, Romero.
ELISA
Então, já sabiam desta novidade?
CONCEIÇÃO
Já, sim. Ela vai levar Rosa para
a Europa...
(CONTINUED)
CONTINUED: 112.
ROMERO
E eu vou aproveitar a carona e
sair do purgatório.
CONCEIÇÃO
Mas antes não vai lá falar com
aquela gente?
ÍRIS
Achei que me julgavam louca.
ELISA
Pare com isso.
ROMERO
(irônico)
É aquela velha história. Loucura
e santidade...
ÍRIS
Ah, não me venha com essa.
PADRE ALEXIOS
Eles querem te agradecer e também
querem o perdão pelos erros dos
antepassados.
Íris vai até a janela, esconde-se ao lado da cortina e
olha para baixo.
ÍRIS
Entreguei um tesouro para a
cidade, um tesouro daqueles que
estão lá, todos enterrados
debaixo da montanha. O perdão não
está nas minhas mãos.
CONCEIÇÃO
Não é isso, só querem que você
indique o local onde ficava a
gruta.
ÍRIS
Ah, não. Não suportaria ir lá
outra vez.
ROMERO
Parece que eles querem erigir um
memorial no lugar.
ÍRIS
Isto pode ser bom para eles, não
para mim.
Conceição levanta-se e vai até Íris.
(CONTINUED)
CONTINUED: 113.
ROMERO
Mesmo sem crença, mostre-lhes o
local, será como um placebo.
CONCEIÇÃO
E depois, eles têm esperança que
as coisas melhorem por aqui com a
doação que você fez.
Íris olha pela janela.
ÍRIS
Não fiz doação nenhuma, apenas
respeitei uma vontade.
INSERIR:
O povo, diante do muro, olha em direção da casa de Íris.
VOLTA À CENA
ÍRIS
Isto tudo é muito ridículo. Não
eles, eu os entendo... É esta
situação...vocês sabem...a minha
fé é pouca, quase nada...
PADRE ALEXIOS
Mesmo depois desta experiência?
ÍRIS
Não vou atribuir ao além coisas
que não consigo explicar no
momento, é preciso muito
mais...preciso descansar.
ROMERO
Isso, descanse. Quem sabe mais
tarde você se resolva a mostrar o
lugar. Vou lá falar com eles.
Romero SAI. Conceição e Padre Alexios também SAEM.
CONCEIÇÃO
(voltando-se)
Também estarei lá, Íris. Você vai
saber o momento certo.
ÍRIS
Vão esperar muito.
114.
SEQ. 106 EXT. PRAÇA - DIA 106
UMA JOVEM, amordaçada e imóvel, está vestida como Núncia.
Alguns "anjos negros".
Conceição e Padre Alexios falam com algumas pessoas e
todos voltam-se na direção da farmácia.
SEQ. 107 INT. CASA DE ÍRIS/QUARTO - NOITE 107
Íris, deitada na cama, olha para o teto, onde sombras se
movimentam.
OFF - Distante, o povo entoa uma ladainha.
O REFLEXO DE UMA FOGUEIRA NAS PAREDES.
BRADOS. ARMAS LEVANTADAS. GRITOS EM MEIO À CHACINA.
EXPLOSÃO. SOM DE PEDRAS QUE CAEM.
Íris levanta-se.
SEQ. 108 INT. CASA DE ÍRIS/SALA - NOITE 108
Íris tateia no escuro. O SOM DE PEDRAS ROLANDO ainda
persiste. Sombras se movimentam nas paredes. Vai até a
janela e olha pela janela...
O POVO ESTÁ DIANTE DO MURO. A figura de Núncia e os "anjos
negros", na mesma posição. Mulheres entoam uma ladainha e
formam um semicírculo com as velas.
FLASHBACK DE ÍRIS
Diante das inscrições rupestres - figuras cercam a
construção, três arcos e o pássaro - ela delineia um
círculo com o indicador.
VOLTA À CENA
Conceição, Alexios, Lurdes, Rita, Romero, Taís, Cristóvão,
Piti, Noêmia e Décio também aguardam com eles.
Íris vai até o piano, sobre ele há um vaso com mirabilis.
Pega uma flor e a esmaga entre os dedos. Dedilha algumas
notas do PANIS ANGELICUS.
Pega o ramo de mirabilis e dirige-se para a porta da rua.
Elisa surge, vestida num peignoir.
ELISA
Íris, o que vai fazer?
(CONTINUED)
CONTINUED: 115.
ÍRIS
Vamos lá comigo, consumar o
sacrifício.
Elisa adianta-se e abre a porta. Luzes de velas se
refletem no rosto das irmãs.
O INTERLÚDIO D’A VALQUÍRIA
SEQ. 109 EXT. DIANTE DA FARMÁCIA - NOITE 109
O INTERLÚDIO continua.
Íris e Elisa dirigem-se ao muro, onde os outros ainda
aguardam. O som da ladainha mescla-se com o INTERLÚDIO.
O muro reflete sombras ondulantes em meio a uma luz
dourada. Uma grande sombra avança sobre as pessoas. Elas
olham para o alto.
A TELA ESCURECE.SOM: RUFLAR DE ASAS.
SEQ. 110 EXT. O MURO DA PRAÇA - NOITE 110
O RUFLAR DE ASAS se alonga e some aos poucos, à distância.
Uma fraca luz volta a incidir sobre a construção.
SEQ. 111 INT. PALCO DE TEATRO - NOITE 111
Sombras tremeluzem sobre UMA GRANDE CONSTRUÇÃO que aos
poucos se revela como o cenário d’A Valquíria.
TÍTULO SOBRE IMAGENS:TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS -
LISBOA - 1984
Íris, no papel de Brünnhilde, despede-se de Wotan.
INSERIR:
CAMAROTE - Rosa, na cadeira de rodas, assiste à ópera.
VOLTA À CENA
BRÜNHILDE (Íris) abraça Wotan. Música do "Fogo Mágico".
SEQ. 112 INT. PALCO DE TEATRO - NOITE 112
CENA FINAL D’A VALQUÍRIA:
Wotan em frente às chamas. A sombra de seu corpo é
refletida na grande construção.
As cortinas se fecham. Ovação do público.
(CONTINUED)
CONTINUED: 116.
As cortinas voltam a se abrir. Íris retorna e dirige-se
para o proscênio. Ela segura UM COLAR DE BÚZIOS, beija-o e
curva-se ante a platéia. APLAUSOS.
CRÉDITOS.
FADE OUT
FIM
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